Por um sopro de fúria e esperança – uma declaração de emergência
Vista de "Por um sopro de fúria e esperança – uma declaração de emergência", no MuBE. Foto: Hélio Campos Mello

Potencializar as obras em exposição é uma das principais tarefas da curadoria e, nesse sentido, gestos radicais são bem-vindos quando buscam ir além da representação, ao permitir uma experiência de fato. Por um sopro de fúria e esperança – uma declaração de emergência climática é um dos melhores exemplos recentes desse gesto ao alagar o Museu Brasileiro da Escultura e da Ecologia (MuBE) para tratar sobre a catástrofe climática em curso no planeta, que tem entre seus principais promotores o atual governo federal.

A mostra tem curadoria de Galciani Neves e Natalie Unterstell, mas a instalação cenográfica Inundação é assinada por Ary Perez e Flavia Velloso. Ao encher de água o piso do museu e permitir que se caminhe apenas sobre estruturas de madeira, cria-se uma experiência que aproxima o público de uma realidade não muito distante da que é denunciada em muitas das cerca de cem obras em exposição.

Trata-se, é evidente, de uma mostra com caráter militante, que ocorreu simultaneamente à COP26, a Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas ocorrida em Glasgow, na Escócia, no início de novembro passado, com resultados abaixo dos esperados, ampliando assim os alertas de um futuro difícil para o planeta.

Se por um lado o negacionismo dos dados científicos, em grande parte incentivado por grandes corporações e o agronegócio, faz com que muita gente desdenhe das necessidades de atenção à sustentabilidade, a mostra é exemplar ao criar um ambiente, em um dos bairros mais privilegiadas e elitistas do país, que atesta que o futuro distópico já chegou e não apenas simbolicamente, como é o caso da exposição.

É notável que esse gesto radical – programado para as primeiras semanas da exposição, mas que já não existe mais de dezembro a 30 de janeiro, quando ela será encerrada -, tornou praticamente impossível saber de quem são as obras na mostra. Mas quando se trata de emergência climática, parece coerente que autorias individuais sejam “prejudicadas”, pois é disso que se trata afinal: o possível fim de uma espécie. Ao mesmo tempo, o site do museu elenca todas as obras em imagens e seus devidos créditos, o que permite a quem tem mais compulsão em identificar autoras e autores, tenha seu desejo realizado.

Há assim uma relação ética entre o que está exposto e o contexto. Alagar um museu traz ainda uma forte carga de crítica institucional a um circuito de arte marcado pela hipocrisia: colecionadores ocupam espaços determinantes em instituições de arte, moldando essa cena e adquirindo tudo que surge como transgressão, ao mesmo tempo em que suas empresas seguem em políticas anti-civilizatórias.

Surreal

A história das exposições está repleta de gestos radicais desse gênero, como a instalação de Marcel Duchamp na mostra The First Papers of Surrealism (os primeiros artigos sobre surrealismo), realizada em 1942 na Whitelaw Reid Mansion, em Nova York. Lá, em meio a considerada maior exposição de obras surrealistas nos Estados Unidos, Duchamp espalhou mais de 1.600 metros de barbante, criando um ambiente repleto de teias, que dificultavam o caminhar dos visitantes. Essa atmosfera surreal tinha, afinal, tudo a ver com o tema da mostra.

No mesmo ano e cidade, outra mostra dedicada ao surrealismo, desta vez na galeria Art of this Century, de Peggy Guggenheim, criava também um ambiente de estranhamento com iluminação dramática e um ensurdecedor som de trem passando, que ocorria a cada dois minutos. São dois bons exemplos de estratégias criadas, antes mesmo do conceito de curadoria, para potencializar os trabalhos expostos, evitando o higienizado e neutro cubo branco.

Nem sempre encenações tão contundentes conquistam unanimidade, como o que ocorreu ao longo da Mostra do Redescobrimento, em 2000. Considerada a maior exposição já realizada no país, ao ocupar três dos quatro edifícios projetados por Oscar Niemeyer, no parque Ibirapuera, ela fez um percurso de 500 anos de história das artes no país, dividindo 15 mil obras em 13 módulos, sendo o mais controverso aquele dedicado à arte barroca. Concebido por Bia Lessa, ele se compunha por ambientes imersivos, com milhares de flores de papel envolvendo esculturas. A questão, quando se trata de gestos radicais, está em até que ponto a cenografia chama mais atenção que as próprias obras e, neste caso, decisivamente foi o que ocorreu.

Outro exemplo constrangedor do exagero na cenografia vem da própria Bia Lessa quando ela simplesmente dispôs no chão, e em sentido horizontal, 22 telas na mostra Itaú Contemporâneo, 1981-2006, realizada no Itaú Cultural em 2007, para surpresa e ira de seus autores.

Efeito redutor

Assim, a cenografia potencializa, esconde e pode ser contrária ao que a própria obra propõe, como se vê no caso das pinturas na horizontal. Recentemente, dois casos nesse segmento podem ser observados, ambos no Museu de Arte de São Paulo, o MASP, em exposições de duas artistas: Erika Verzutti e Maria Martins.

Verzutti é uma das artistas mais originais de sua geração, com obras que provocam estranhamento, ao mesmo tempo em que se aproximam da natureza, seja de animais como cisnes, ou frutas, como jacas e melancias. Esses elementos orgânicos formam figuras um tanto bizarras e difíceis de classificar. Pois Erika Verzutti – a indisciplina da escultura, que esteve em cartaz até outubro passado, apresentou uma cenografia gélida e racionalista, composta de ângulos retos, com obras dispostas em bases brancas que distanciam esse universo onírico dos visitantes. O museu, assim, higieniza a obra da artista, contrariando sua poética.

Algo semelhante ocorre com a mostra Maria Martins: desejo imaginante, que pode ser vista no museu até 30 de janeiro de 2022. Entre os modernistas brasileiros, Maria Martins (1894-1973) é figura chave ao tropicalizar o surrealismo e a mostra no MASP é repleta de obras exemplares. Contudo, ao dispor as esculturas em bases brancas com fitas que ainda criam um distanciamento das obras, remete à sociedade de controle, sem buscar saídas criativas para manter a necessária segurança das obras. A opção pelo óbvio é uma forma de reduzir a potência das obras. A divisão dos ambientes por cortinas parece ainda uma cópia da cenografia de Ludwig Mies van der Rohe e Lilly Reich para a exposição The Velvet and Silk Café (o café de veludo e seda), realizada em Berlim há nada menos que 94 anos.

Foto horizontal, colorida. Vista da exposição CAROLINA MARIA DE JESUS: UM BRASIL PARA OS BRASILEIROS, no Instituto Moreira Salles, ilustra a cenografia da mostra a qual Fabio Cypriano se refere. As paredes vermelhas tem quadros e textos curtos, nota-se obras no chão à distância.
Vista da exposição Carolina Maria de Jesus: um Brasil para os brasileiros, no Instituto Moreira Salles, em São Paulo. Foto: Ádima Macena / Divulgação IMS

Ao menos na mesma avenida Paulista, o Instituto Moreira Salles homenageia outra mulher, no caso a escritora Carolina Maria de Jesus (1914-1977), de forma muito mais digna. Trata-se da primeira exposição do programa criado por João Fernandes, e é digno de nota que ele repasse a mostra para uma equipe brasileira composta por Hélio Menezes e Raquel Barreto, na curadoria, e Isabel Xavier, no projeto expográfico.

Com muitos trabalhos comissionados, a exposição apresenta a obra de Carolina de Jesus de forma complexa, criando muitos diálogos entre textos e imagens, às vezes até dificultando a identificação de seus autores e autoras, mas no final criando um ambiente que potencializa a obra da homenageada. Ela é vista, afinal, em uma perspectiva da cultura, que não se utiliza apenas da literatura e artes plásticas, mas inclui ainda moda e carnaval, incluindo aí o histórico desfile da Mangueira de 2019, Histórias para ninar gente grande.

Em um momento em que preconceito e racismo ganham ares institucionais, a exposição em sua forma e conteúdo é corajosa, seguindo o que a própria autora defendia: “A vida não é para covardes”. Criar o ambiente correto para exposições também não.


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