Detalhe de um retrato de Aby Warburg por Rudolf Dührkoop, em 1925.
Detalhe de um retrato de Aby Warburg por Rudolf Dührkoop, em 1925. Foto: Bundespressekonferenz.

*Por Rafael Cardoso

No exato momento em que a Bienal de Berlim vem dar sua contribuição ao esforço para tornar a cena artística mais inclusiva e atual, dois importantes espaços expositivos da capital alemã voltam a atenção para a obra de um historiador da arte, falecido há mais de noventa anos, especialista em Renascimento Italiano. As exposições Aby Warburg, atlas de imagens Mnemosine: o original e Aby Warburg, entre cosmos e páthos: obras berlinenses do atlas de imagens Mnemosine, ocupam respectivamente a cultuada Haus der Kulturen der Welt (HKW) e o museu Gemäldegalerie. O que torna a obra de Warburg tão relevante para o presente que mereça esse duplo destaque e, mesmo em tempos de pandemia, atraia um público cada vez maior?

Aby Warburg. Sala de leitura da biblioteca de estudos culturais Warburg, Heilwigstr, em Hamburgo, fevereiro de 1927. Foto: cortesia HKW.
Sala de leitura da biblioteca de estudos culturais Warburg, Heilwigstr, em Hamburgo, fevereiro de 1927. Foto: cortesia HKW.

Aby Warburg (1866-1929) não é nenhum desconhecido na história da arte, mas antes um dos grandes nomes da geração que teorizou uma “ciência das imagens” (Bildwissenschaft, em alemão), no início do século 20. Com o ressurgimento desse tipo de abordagem, no rastro de seguidores como Georges Didi-Huberman e Horst Bredekamp, sua reputação intelectual se avultou ao ponto de ele virar modismo entre estudiosos da arte. O problema é que Warburg é daqueles autores mais referidos do que lidos. Muitos dos que invocam seu nome o fazem apenas para justificar aproximações entre obras de contextos distintos. Dizer-se warburguiano virou, no meio curatorial, uma licença para misturar alhos com bagulhos. O chamado pseudomorfismo (isso parece com aquilo, portanto deve existir uma relação) é efeito colateral comum de quem toma pílulas de Warburg fora da dosagem indicada.

Boa parte da desorientação em torno de Warburg advém do fato de que sua última obra, possivelmente a maior delas, permaneceu inacabada. Ao falecer em 1929, o autor trabalhava sobre um atlas de imagens intitulado Mnemosine – em homenagem à deusa grega da memória, mãe das nove musas. Seguindo uma lógica própria, Warburg montava imagens sobre painéis, organizando-as por grupos temáticos e palavras-chave, apontando persistências e coincidências, buscando ecos e repetições entre obras não necessariamente oriundas de contextos culturais vizinhos. Isso permitia comparações, às vezes geniais, às vezes tortuosas, entre antiguidade e modernidade; Oriente e Ocidente; cartas celestes e cartas de tarô; desenhos renascentistas e cartazes publicitários. Fundamentado em sua vasta erudição e conhecimento histórico, ele foi desenvolvendo um método original de pensar não somente o significado das imagens, mas também o modo como elas significam.

Aby Warburg. Montagem do "Atlas Mnemosine". em exposição na Haus der Kulturen der Welt. Foto: cortesia do museu.
Montagem do “Atlas Mnemosine”. em exposição na Haus der Kulturen der Welt. Foto: cortesia do museu.

Quando da morte de Warburg, o conjunto do atlas consistia de quase mil pranchas distribuídas por 63 painéis. A ascensão do nazismo colocou em dúvida o destino de sua biblioteca em Hamburgo, e seus discípulos organizaram a transferência dos livros e materiais iconográficos para Londres, onde serviram de base para a criação do Warburg Institute em 1934. Desde então, houve várias tentativas de publicar versões do atlas, na íntegra ou em parte, o que só fez aumentar as disputas em torno do sentido da obra. A exposição atual na HKW tem por propósito reconstituir a versão “original”, garimpada em extensa pesquisa nos arquivos do Warburg Institute, onde as pranchas se encontravam dispersas entre milhares de outras. Em paralelo, a exposição na Gemäldegalerie agrupa meia centena de obras estudadas por Warburg e incluídas nos painéis de Mnemosine por meio de reproduções. Juntas, as duas mostras oferecem uma oportunidade ímpar de vislumbrar os processos por trás do pensamento dele.

Qual a relevância desse legado intelectual para os dias de hoje? Não resta dúvida que Warburg foi um pioneiro em conceber as imagens de modo disseminado e universal, sem divisões hierárquicas entre culturas e mídias. Para ele, uma fotografia interessava tanto quanto uma pintura, povos não europeus tanto quanto a Europa. Foi precursor não somente em seu olhar para a linguagem das formas – a chamada iconologia – como também por seu interesse em estudos etnográficos como instrumento para compreender a arte. Era um pensador que entendia a cultura humana como um todo e buscava seguir o devir das imagens como pista para desvendar o que temos em comum. Antecipou, em vários sentidos, as ideias de cultura visual e arte global que hoje desafiam não somente historiadores como também artistas. Podemos aprender muito com sua obra – sobretudo que o melhor pensamento visual requer aprofundamento no repertório. Mnemosine, afinal, é memória. Do seu ventre, brotaram as artes e a história.


* Rafael Cardoso é escritor e historiador da arte, PhD pelo Courtauld Institute of Art. É membro do Programa de Pós-Graduação em História da Arte da UerJ e atua como pesquisador associado junto ao Lateinamerika-Institut da Freie Universität Berlin. É autor de diversos livros sobre história da arte e do design, além de quatro obras de ficção.

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