Raquel Arnaud, no vão do MASP, em 1983. Crédito: Arquivo pessoal
Raquel Arnaud, no vão do MASP, em 1983. Crédito: Arquivo pessoal

Talento, perseverança e atitude marcam a história de Raquel Arnaud, uma mulher determinada, que na década de 1970 rompe a arrogância do mundo masculino do mercado de arte para tornar-se uma das galeristas brasileiras mais bem-sucedidas dos últimos 50 anos.

Raquel nasce em Guaratinguetá, onde faz o primário, e aos 10 anos muda-se com a família para São Paulo, cidade promissora que já naquela época mantinha a Bienal de São Paulo, a segunda manifestação de arte do gênero mais importante do planeta.

Nesse novo cenário, ao mesmo tempo em que cursa o colegial, frequenta o Museu de Arte de São Paulo. “Esse contato com o MASP foi determinante para mim. Lá frequentei as aulas de história da arte com o professor [Wolfgang] Pfeiffer, que me abriu os olhos para o tema”. Em 1954 Raquel ingressa na Escola Livre de Sociologia e Política, experiência que ela rejeita depois de concluído o curso porque preferia a arquitetura, que sempre considerou algo maravilhoso. Com certeza esse aprendizado no campo sociológico amplia sua narrativa e a ajuda forjar o forte caráter que tem como galerista.

Pouco depois ela entra para a família Segall, ao se casar com Oscar, filho do pintor modernista, vai morar com ele na casa projetada pelo arquiteto Gregori Warchavchik, onde hoje funciona o Museu Lasar Segall. “Apesar de breve, o período que convivi com o casal, Lasar e Jenny, foi fundamental para mim, especialmente pelo relacionamento com dona Jenny. Um dia ela me pediu para ajudá-la a organizar os quadros de Lasar Segall (1891-1957) que iriam para uma exposição itinerante no exterior, logo depois da morte dele”.

Em 1968 Raquel se separa de Oscar, trabalha com Alcântara Machado, conhecido organizador de feiras têxteis com desfiles de moda. “Trabalhamos juntos algum tempo e, quando o professor Pietro Maria Bardi, diretor do MASP, soube que eu estava envolvida num setor comercial, não gostou. Ele me disse: “Não quero você trabalhando com pessoas de negócios. O meu museu precisa de alguém que conheça Van Gogh”. Com isso Raquel entra para a equipe do MASP e o professor Bardi foi muito receptivo com ela. “Aos poucos fui assumindo alguns papéis dentro do museu, inclusive nas exposições”.

A Lina Bo Bardi tinha chegado da Bahia e Raquel trabalhou com ela. “Foi um ótimo aprendizado, a gente foi fazendo lentamente um trabalho muito bonito, porque a Lina pertencia à vanguarda da época. Era uma pessoa que já pensava diferente do Bardi, uma arquiteta criativa em todos os sentidos”. Basta lembrar que Unidade Tripartida, obra de Max Bill premiada na 1ª Bienal de São Paulo em 1951, já fora exposta no MASP em 1947, quatro anos antes da Bienal, quando a Lina dava aula sobre Bauhaus, movimento ao qual o artista suíço estava engajado.

Raquel tinha planos pessoais fora dos limites do museu e em 1973 deixa o MASP e se une a Mônica Filgueiras, uma jovem de energia contagiante, que ela conheceu em sua passagem pela casa de leilões Collectio. Juntas abrem o Gabinete de Artes Gráficas, na Haddock Lobo, trabalhando com papeis, gravuras e desenhos. Em paralelo, Raquel também atuava na Arte Global, galeria que pertencia à Rede Globo.

Essa experiência foi expressiva naquele momento, mas ela perseguia uma carreira solo, então em 1980 anuncia sua nova galeria, o Gabinete de Arte Raquel Arnaud, na Av. 9 de julho. “Foi um momento muito bom para mim quando passei a expor artistas contemporâneos importantes”. O dinamismo estético dos geométricos a contamina e o impulso teórico convincente de Willys de Castro a convence e abraçar o movimento artística e comercialmente. Afinal, toda vontade de vencer tem que identificar-se com algo forte. Assim, ela se acerca da obra de Sérgio Camargo, Franz Weissmann, Tomie Ohtake, Willys de Castro, Hércules Barsotti, Arthur Luiz Piza, Anna Maria Maiolino, Leon Ferrari, Carmela Gross, entre tantos outros.

Em 1977, lança um dos marcos de seu trabalho intelectual, a obra Caixa Preta, com desenhos de Julio Plaza, artista espanhol radicado em São Paulo e poemas do escritor Augusto de Campos, recitados em disco por Caetano Veloso. Seu caminho construído com elenco de proa, se consolidara. Os anos seguintes são de sucesso com muitas exposições e debates. Em 1980 incorpora, como dimensão de suas referências, uma safra de jovens artistas já conhecidos no mercado. “Foi quando passei a trabalhar com José Resende, Waltercio Caldas, Tunga, entre outros talentos”.

Todo profissional tem sempre como referência um personagem que admira, com Raquel não foi diferente. Como muitos galeristas internacionais ela se encanta com o trabalho da lendária Denise René, alter ego das artes em Paris nos anos de 1950/1960. A grande dama foi uma das apoiadoras da arte cinética, fato que influenciou Raquel. Sob o carisma da amiga exibe obras de dois expoentes da arte cinética, os artistas venezuelanos Cruz-Diez e Jesus Soto.

Um dos projetos que Raquel tem muito orgulho é a criação do Instituto de Arte Contemporânea (IAC). Com ele, ela define um espaço social ampliado. “A ideia é a disponibilizar para a pesquisa uma documentação sobre a obra de artistas brasileiros, além de promover seminários, curso e exposições”.

Hoje, com sua galeria instalada em um agradável espaço na Vila Madalena, ela mantém seu modelo conceitual de lidar com a arte. Continua a construir pontes com o rigor formal nas escolhas de obras e artistas, especialmente aqueles ligados ao geométrico, sem deixar de lado algumas fantasias reparadoras trazidas por outras vertentes menos ortodoxas.

EXPOSIÇÃO ILUSTRA UM PROCESSO

Um longo caminho marca a história da Galeria Raquel Arnaud que, por 50 anos, vem contribuindo para a arte contemporânea de forma singular, como atestam as mais de 500 exposições realizadas entre 1974 e 2023. A recém-aberta coletiva Galeria Raquel Arnaud – 50 anos, com a curadoria de Jacopo Crivelli Visconti e da curadora adjunta Marina Schiesari, traz um caráter documental ao registrar todas as mostras e os artistas exibidos pela galerista ao longo dos anos.

Embora o circuito de arte enfrente hoje um público emancipado, que entende muito mais de arte do que há 50 anos, Jacopo Crivelli Visconti optou por uma exposição quase pedagógica em que o espectador pode acompanhar, sem susto, o percurso de uma produção voltada praticamente ao abstracionismo geométrico.

O que parece desacordo é um ganho. A mostra não foi pensada apenas para experts, mas desenhada especialmente para o visitante ativo e participativo, disposto a conhecer artistas que hoje em dia seria difícil associar a sua passagem pela galeria. Fica latente na montagem que a preocupação principal da galerista, em todo seu percurso, foi manter a preservação e a catalogação das obras, principalmente nos últimos 20 anos. A exposição constitui-se como documento vivo sobre um projeto coerente que demostra como Raquel defendeu a classe artística. Um dos exemplos é a criação do IAC – Instituto de Arte Contemporânea criado para manter as obras dos artistas protegidas.

A ideia da exposição nasce para celebrar a Raquel galerista o que Jacopo garante ter seguido estritamente. A coletiva tenta ser objetiva, imersiva e funcional ao mergulhar no arquivo que se converte em material documental, com o qual se criou um discurso expositivo com diversas linguagens experimentadas por grande parte dos artistas brasileiros de renome. Por trás de cada registro das obras há um número considerável de fotografias, cartas, catálogos, convites de exposições.

A escolha da linha do tempo como processo expositivo deu um caráter singular à mostra. Nela estão todos os títulos de todas as exposições realizadas ao longo da trajetória de Raquel Arnaud, além de todos os artistas que expuseram nesses 50 anos. Raquel lamenta que, de alguns deles ela não conseguiu a documentação completa. “No início de meu trabalho como galerista praticamente não existia a prática de catalogação, assim parte do que foi exposto naquela época estava na minha cabeça”.

A coletiva reúne documentos importantes como os textos de críticos, artistas e curadores que passaram pela galeria. Jacopo ressalta que justamente tudo isso compõe a segunda parte do projeto, que é a publicação de um livro, uma compilação de textos que deve sair no final da mostra, em maio próximo, quando se comemoram de fato os 50 anos da galeria. “Também queremos ilustrar a edição com imagens da exposição. A publicação será um contraponto à mostra e vai ser feita a partir de uma grande seleção porque Raquel trabalhou, com a maior parte dos artistas, críticos e curadores brasileiros, de vários períodos”. Ele considera essa compilação até mais importante do que a exposição.

A coletiva utiliza a linha do tempo, com opção de seriação cronológica, que no início do percurso funciona no sentido anti-horário. Os documentos mais antigos, a partir de 1974, estão perfilados sobre a parede e dão a volta no piso térreo. Seguem pela escada que leva o visitante ao piso superior e, neste ponto, é adotado o sentido horário que se desenvolve até chegar ao ano de 2023. Na verdade, esses dois sentidos se encontram diante das obras de Arthur Piza (1974) e de João Trevisan (2023), numa trama densa de continuidade, com um trabalho na frente do outro. Como fita de Möbius, que se refere ao símbolo do infinito, as obras estão assentadas em um traçado sem começo nem fim.

No processo da dinâmica expositiva, “é praticamente impossível fazer uma exposição com todas as obras, então a tentativa também foi manter um certo equilíbrio”, como observa Jacopo. O que une grande parte desses trabalhos é o olho da imaginação, a matriz de uma paixão geométrica que Raquel abraçou por influência de Willys de Castro, no início de tudo. No elenco estelar, há artistas que foram fundamentais para ela no plano pessoal como Hercules Barsotti e Sérgio Camargo, dois amigos que ela considera quase irmãos. Num exercício dentro do processo conceitual, aparecem artistas que foram simbólicos nessa trajetória e agregados por analogias de conceitos. Raquel cita Regina Silveira que se abriu para várias discussões. Há ainda tantos outros como Nuno Ramos, Carlito Carvalhosa, e Frida Baraneck.

A flecha atravessa décadas, aponta para a tendência internacional do mercado sempre tensionada pelo novo, como atesta a obra do Tunga que dialoga simultaneamente com diversas linguagens. “Há obras que foram inscritas na galeria, depois foram embora, agora voltaram e, na medida do possível, a gente conseguiu incorporá-las”, comenta Jacopo. Com montagem atípica, os trabalhos instalados esparsamente pela galeria estão contextualizados com os documentos expostos na parede. Para o curador, o mais importante da mostra está justamente na parede.

Há destaques históricos da década de 1970 quando tudo fluía com rapidez. Jacopo lembra que a média das exposições desse período era de três semanas, e ainda com catálogos caprichados, como os de Antônio Manoel e Regina Vater. “O clima do mercado de arte paulistano daquela época era mais lúdico e menos competitivo”, acrescenta Raquel.

Com o lançamento do livro, novas releituras sobre a arte geométrica e seus desdobramentos devem colocar na pauta personagens emergentes, confrontações, conquistas e reflexões sobre as origens desse movimento, que tem alguns protagonistas brasileiros e hispano-americanos reconhecidos internacionalmente.


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