Em novembro de 2024, na celebração do 22º aniversário do Museu Oscar Niemeyer (MON), foi inaugurada a exposição “Afinidades III – Cochicho”. Com curadoria de Marc Pottier, o artista Luiz Zerbini apresenta mais de 44 obras, entre pinturas, aquarelas e monotipias, dialogando com artistas paranaenses do acervo do MON, como Guido Viaro, Miguel Bakun, Bruno Lechowski, Guilherme William Michaud e Theodoro de Bona. Zerbini traz um olhar delicado e intimista sobre a natureza. Para ele, “cochicho é uma conversa ao pé do ouvido ao ar livre, entre artistas paisagistas que passaram muitas horas sozinhos. É uma oportunidade de dar voz ao silêncio”.

arte!: A sua última exposição no CCBB do Rio de Janeiro foi uma retrospectiva de quantos anos?

Zerbini: Foi a primeira retrospectiva que eu fiz. Tem um trabalho lá que eu fiz em 1976. Eu tinha 16 anos. É uma pinturinha. Eu não era nem artista naquela época. Então, cobre 40 anos.

arte!: Você era o quê?

Zerbini: Eu era talvez um estudante de arte ainda. A Clarissa [Diniz, curadora] botou que a exposição cobria 50 anos de carreira, mas eu não acho isso muito verdadeiro. Apesar de ser verdade, eu não me considerava artista naquela época.

arte!: Com 16 anos. E quando você decidiu que era artista?

Zerbini: Eu não decidi ainda. Não sei, não teve esse momento. Quando entrei para a FAAP nos anos 1980, foi um marco, mas fiz vestibular para Direito e História, e acabei seguindo Artes Plásticas. Naquela época, não era exatamente uma profissão ainda. Era muito difícil conseguir viver de arte. Então, eu fazia porque gostava. Aprendi a misturar tintas. Fazia aula de pintura com o Jose Antonio Van Acker, um pintor de São Paulo. Depois, frequentei a casa dele, ficamos amigos, e eu ficava olhando ele pintar, sabe? Antes de entrar na faculdade, onde entrei e saí várias vezes. A faculdade foi um lugar difícil para mim, difícil de me adaptar, sabe? Eu já fazia o que faço, e ninguém dava valor, porque tinha os abstratos, concretos, neoconcretos. Eu era figurativo já naquela época. Foi uma época de crise de identidade. Travei. Passei cinco anos sem fazer nada. Só em 85 fiz minha primeira exposição individual na galeria Subdistrito. 

Eu trabalhava com a Subdistrito Comercial de Arte, a galeria do João Satamini, em São Paulo. Muitos artistas trabalharam lá. Me lembro da Casa Sete, por exemplo. Era tudo muito confuso. Achei que poderia viver de arte. O valor era muito baixo e logo depois vi que não dava. Apesar de ter vendido todos os trabalhos dessa primeira exposição, logo depois já não tinha mais, quer dizer, não tinha produção para poder me sustentar. 

arte!: Em que momento você sentiu um diferencial no seu trabalho, um traço singular?

Zerbini: Eu nunca tive essa consciência, mas vejo que as pessoas percebem em um certo momento, em épocas diferentes, cada um me descobre em uma época.

Por exemplo, me reconheço nessas pinturas que têm aqui, aqui tem a essência do que eu faço, desde que eu comecei a pintar. Pintura pequenininha, pintando uma paisagem. Não tem galeria, não tem museu, não tem nenhuma outra preocupação que não seja o prazer de estar pintando. É a origem de tudo, sabe? 

É meio como se fosse o DNA do artista que depois vai se espalhando por várias outras técnicas, vai para as gravuras, pinturas grandes ou instalações, mas tudo começou nessas pinturinhas. Tudo começou no fato de eu gostar de pintar, de eu gostar de pintar natureza.

arte!: Hoje você se sente tolhido ou pressionado pelos galeristas, pelos prazos de exposições?

Zerbini: Não. Tive a sorte de trabalhar com três galerias muito boas: Fortes D’Aloia & Gabriel, Sikema Jenkins, em Nova York, e Stephen Friedman, em Londres. São galeristas que trabalham bem juntos, então dá certo. Não sinto essa pressão.

Luiz Zerbini, A primeira missa, 2014. Capa da edição #26 da arte!brasileiros, em 2014

arte!: E a sensação tua é de total liberdade? Eu vi uma essência no livro Sábado, Domingos e Feriados, publicado pela editora Cobogó, cujas pinturas estão aqui na exposição que me surpreendeu, porque eu tinha em mente a obra A primeira Missa, que foi capa da arte!brasileiros #26 em 2014.  

Zerbini: É porque tem uma coisa que acontece nas pinturas grandes, que elas estão sempre na escala de um para um. É quase que o tamanho real de cada coisa. E o meu ateliê antigo era pequeno, não tinha muito recuo. Então, eu ficava sempre muito perto da tela. Eu não podia ver lá de longe. Quase tudo que eu ia fazendo tinha seu tamanho original. Uma garrafa era do tamanho de uma garrafa. As coisas todas estavam no alcance da mão, sabe?

Então, quase todas as pinturas grandes, se você for ver, quase tudo tem a escala real, o que é uma coisa meio louca mas determinou um padrão para as pinturas grandes. Eu não consigo fazer menor, realmente não consigo. 

Vista da exposição do MON. Ao centro, vários objetos que Zerbini coleta em suas viagens

arte!: Mas isso acaba sendo uma necessidade da tua obra. Essa é a grande diferença, o lugar real do valor da obra do artista. Não tem isso de  “eu quero uma obra de 25cm x 80cm porque fica melhor sobre meu sofá”.

Zerbini: Ah, isso aí a gente nem discute, né? É uma outra questão, eu nem penso nisso!

arte!: Qual será o próximo passo, depois dessa retrospectiva?

Zerbini: Sinto que trabalhei a vida toda pra chegar neste momento. Agora eu tenho a possibilidade de fazer quase tudo que eu gostaria, entendeu? Até, por exemplo…

arte!: Ficar um ano sem fazer absolutamente nada?

Zerbini: Não, isso não consigo. Isso não dá. Não, porque a minha sobrevivência está ligada ao fato de eu trabalhar, senão eu acho que eu enlouqueço. A minha sanidade está ligada a uma rotina do ateliê. Agora estou morando no ateliê, o trabalho vai em paralelo a vida, não consigo parar para descansar, descansar de que? OK, estou cansado, estou trabalhando muito, mas o que move a minha vida é o trabalho, sabe?

arte!: Você pensou em alguma vez sair da pintura e fazer algum outro tipo de… 

Zerbini: Ah, então, você perguntou o que me motivava a fazer outras coisas, eu acho que é a curiosidade. Por exemplo, o negócio da monotipia me levava a pesquisar novas técnicas. Sou um cara curioso pelas técnicas, por entender cada técnica que aprendo e vou fundo nela. Essas monotipias, influenciaram a pintura.

Antes de eu fazer monotipia a pintura era diferente. Esse tipo de cor chapada que você vê aqui agora, foram aparecendo nas pinturas. As pinturas vieram depois. 

Existe uma contaminação, o tempo inteiro pego coisas que vou aprendendo nas outras técnicas e misturando e criando relações. Gosto de ficar criando relações, criando pensamentos que se completam. E usando tudo que tenho como material. O material é o mundo. Essas coisas que estão aqui no chão, por exemplo, que parecem lixo, é minha coleção pessoal. São coisas que catei na praia durante a vida toda. Está tudo catalogado lá no meu ateliê. Então, cada uma dessas coisas tem uma memória afetiva de onde eu estava quando peguei. Você vai meio que construindo um mundo, que é aquele seu mundo, assim, sei lá, onírico.

Gosto de observar as coisas, sabe? Eu presto atenção nas coisas, desde sempre eu gosto de ficar olhando como as coisas são, me reparando, gosto de ficar olhando e acompanhando as formigas. Ficar vendo insetos, ficar vendo as plantas. Desde pequeno.

De observar como a planta funciona, como a folha desenrola, como a raiz entra na terra. Observar as coisas e pensar sobre elas. Na exposição do CCBB tem o que a Clarissa chamava de “paisagens ruminadas”, que é meio essa ideia de ficar ruminando, repensando. É diferente de ter uma antropofagia que você engole e bota para fora. Eu não chego a engolir, eu fico só ruminando, aquele negócio que fica na boca, sem transformação. Ela não vai lá no fundo, se transforma em outra coisa e volta transformada, ela fica meio na superfície. Você fica meio pastando ali, né? 

Luiz Zerbini, Massacre de Haximu
Luiz Zerbini, Massacre de Haximu

Naquela exposição que eu fiz no MASP tinha um trabalho que chamava Massacre de Haximu. Você lembra desse? O Massacre de Haximu foi um massacre que aconteceu em 1993, quando os mineradores invadiram a terra Yanomami e mataram a aldeia toda. Mataram todas as mulheres e crianças. Até hoje, dizem que foram 16 pessoas. Uns dizem 16, outros dizem que foram 80 pessoas. Então, o número é meio controverso. E eu fiz a primeira missa que é essa que tem a indígena na capa da arte!brasileiros, comissionado pelo Adriano Pedrosa [curador do MASP]. Eu não queria fazer porque eu não me interessava pela primeira missa, não tinha interesse nenhum pela primeira missa. Mas aí eu vislumbrei a possibilidade de fazer sob o ponto de vista das pessoas que moravam aqui. E depois resolvi fazer essa sobre o massacre de Haximu. Só que o massacre dos Yanomamis, esse povo maravilhoso e incrível, a gente depende hoje em dia deles, entendeu? Eles têm a solução, eles têm o caminho das pedras e a gente poderia aprender muito com eles, né? E aprendemos ainda, mas poucas pessoas prestam atenção nisso. Quando fiz essa pintura, eu não gostaria de ter feito uma pintura sobre os Yanomamis que fosse o massacre de Haximu. Onde você os coloca em uma situação de vítima, quando eles são o oposto, não são vítimas, ao contrário eles são o povo, os homens, os Yanomami. O homem, o ser humano, uma coisa maravilhosa. E a cultura toda é riquíssima, então, eu não faria isso. Mas era 30 anos da TI Yanomami, da terra indígena Yanomami, e eram 200 anos da Independência e 100 anos da Semana de 22. Então era uma data… Aí eu falei com o Bruce Albert, que foi quem escreveu A Queda do Céu com o Davi Kopenagua. Falei, Bruce, eu não quero fazer essa pintura, entendeu? Eu estava com a ideia de fazer, mas fiquei na dúvida. Aí ele falou com o Davi e eles chegaram à conclusão que era para ser feita. “Você tem que fazer porque tem o aniversário, é importante, os garimpeiros estão voltando para lá agora e você tem que fazer”.

E aí eu fiz. Enquanto eu estava fazendo, eu estava tratando esse tema como uma coisa que tinha acontecido em 1993. E aí, durante a feitura da pintura, eu vi no jornal que a pessoa que tinha feito o massacre, que tinha um facão, que tinha matado todo mundo no facão, e que foi condenado a 18 anos de prisão tinha saído da cadeia, ninguém sabe como, e ele tinha voltado durante esse tempo à Terra Yanomami, fazendo a mesma coisa, só que agora com balsas grandes.

Então, eu estava tratando aquele crime como um crime do passado, só que o crime estava se repetindo de novo o tempo inteiro. Então, meu compromisso é com… Ah, sei lá.

arte!: Tudo é político, mas nesse trabalho você conseguiu exprimir algo que te impactou. 

Zerbini: Sim, e que estava acontecendo de novo, eles estão garimpando no rio de novo. Todo mundo passando fome e as águas todas contaminadas. 

Naquela parede lá, tem quatro pinturas de araucária. A menorzinha é a minha. Eu fiz aquela pintura sem saber que eu ia expor aqui. Aquilo é um exemplo de que são pintores que gostam de pintar a natureza e que gostam da floresta, que gostam da vida. É uma celebração, tudo é sobre a natureza. Igual o Michaud, as aquarelas do Michaud ali, tem dois desenhos ali.

Uma delas é a casinha onde ele morava. Ele morava na praia, então é meio sobre esse universo, tem uma certa nostalgia nesses trabalhos. 

arte!: Nostalgia do quê? 

zerbini: Nostalgia do tempo em que as coisas pareciam esperança, né? Ou que a gente não estava vivendo o que a gente tá vivendo agora. A gente tá vivendo o fim do mundo. O fim do mundo não, o fim da existência humana. Aquelas pessoas, os pintores dos anos 1950, eles não tinham essa preocupação. Não tinha emergência climática, não tinha aquecimento global, não se pensava nisso. Até já se pensava, mas não era uma coisa iminente.

arte!: Uma coisa que eu senti é um certo silêncio. 

Zerbini: Ah, sim, é. A ideia de Cochicho, o nome da exposição, vem disso. É como que não é um diálogo para você falar abertamente ou fazer. Não é panfletário, entendeu? É uma conversa entre dois pintores. Eu me coloco do lado do Bacum, por exemplo, ele está pintando uma araucária e eu estou aqui.

E a gente está conversando sobre a pintura, sabe? Sobre as cores, sobre a natureza, sobre, sei lá, temperatura. “Tá frio”, entendeu? “Vamos tomar um cafezinho”, sabe? Uma coisa muito íntima, muito cotidiana, né? E é isso. Eu acho que é meio saudosista, talvez. Saudosista não, qual foi a palavra que eu usei mesmo?

pat: Você usou nostalgia. Eu te perguntei do que, porque eu tenho um pouco dessa sensação, perante o acúmulo absurdo de imagens, informações e falas permanentes. E isso aqui é como se a gente pudesse dizer não. 

Zerbini: O silêncio fala. O silêncio provoca o raciocínio e o pensamento. Eu acho que é o caminho mais sensível para você conseguir alcançar alguma coisa que você quer. Tem que ir por um caminho sensível, tem que sensibilizar as pessoas. E as pessoas se sensibilizam nessa nostalgia, sabe? Numa beleza, né? Tem uma beleza da natureza que é outra, que não é necessariamente

arte!: Da forma. 

zerbini: Sim,  exatamente. E tem uma memória também da época, do lugar onde eu estava e da época, e com quem eu estava. Então, por exemplo, essa pinturinha aqui com rosa, é aquele galho ali, tá vendo? Então, aquele galho ali, eu estava passeando de canoa no mar e numa pedra vi cores, tinha uns plásticos pendurados e tal. Fui com a canoa, parei, desci e fiquei arrancando. Achei lindo, botei na canoa e levei para casa. Quando cheguei em casa, coloquei na mesa e pintei. Tenho uma relação afetiva com esse negócio íntimo. Uma memória  que você escolheu. Então, eu lembro dessas coisas. 

arte!: Você fez análise alguma vez?

Zerbini: Como ferramenta. Sim, fundamental. Me salvou e me salva até hoje.

arte!: Muito bom. Do quê? 

Zerbini: Me salva do quê? De mim mesmo. Do que seria.

  • As pinturas apresentadas na exposição foram publicadas no livro Luiz Zerbini, sábados, domingos e feriados. Org. pelo Tiago Mesquita. Editora de Livros Cobogó, 2023, 

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