Jochen Volz
Jochen Volz. Foto: Levi Fanan

Em 1905, a partir da transferência de 20 obras do Museu Paulista da USP e da aquisição de seis pinturas de artistas paulistas – como Almeida Júnior e Pedro Alexandrino –, foi criada a Pinacoteca de São Paulo, primeiro museu da cidade dedicado exclusivamente às artes. Hoje, 120 anos depois, com cerca de 12 mil obras no acervo – nas mais variadas linguagens e suportes, das mais variadas origens regionais e até estrangeiras –, a Pinacoteca se apresenta cada vez mais diversa e conectada aos debates contemporâneos.

Os responsáveis pelas transformações e expansões vividas pelo museu ao longo das décadas são muitos, entre diretores, funcionários, governos e, claro, os próprios artistas, mas é notável o foco especial dado pela atual gestão, de Jochen Volz, na construção de uma nova identidade para a Pinacoteca. Uma cara menos paulista, menos acadêmica e mais atenta às diversas vozes que foram silenciadas ao longo da história, seja de artistas negros, indígenas, periféricos ou LGBTQIA+. 

“Mais ou menos 60% do público que chega aqui está visitando um museu pela primeira vez na vida”, conta Volz. “Aí já fica evidente como nossa obrigação é, sim, refletir sobre dívidas históricas, refletir sobre representatividade e visibilidade de artistas que foram invisibilizados ao longo de séculos.”

Ocupando três edifícios (Pina Luz, Pina Estação e Pina Contemporânea, a última inaugurada há dois anos), além de responsável pela administração do Memorial da Resistência, a instituição do governo do Estado de São Paulo é um dos museus com maior público do país, ultrapassando os 800 mil visitantes por ano em 2023 e 2024. 

Com orçamento de R$ 66 milhões (2024), a Pinacoteca celebra suas doze décadas de existência com 18 exposições realizadas ao longo de 2025, com destaque para as coletivas “Pop Brasil” (com abertura em 31 de maio) e “Trabalho de Carnaval” (em novembro), que enfocam tanto a produção pop dos anos 1960 e 1970 quanto a riqueza cultural popular em nosso país.  

Em entrevista à arte!brasileiros, Volz fala de seus oito anos como diretor-geral da Pinacoteca, dos planos para tornar o museu cada vez mais aberto para a cidade e da importância da cultura para a transformação da sociedade. Leia abaixo.  

Pinacoteca de São Paulo
Pinacoteca de São Paulo. Foto: Beto Assem
arte!brasileiros – Antes de falarmos dos 120 anos da Pinacoteca, eu gostaria de focar um pouco na sua gestão como diretor-geral da instituição. O fato de você estar completando oito anos à frente da Pinacoteca parece mostrar que o trabalho tem dado resultados e recebido uma avaliação positiva. A que você atribui isso?

Acho que uma coisa importante foi que quando eu cheguei já existia uma estrutura muito boa, equipes muito bem estruturadas. E isso resulta especialmente de um processo que vem desde 2005, quando começa o trabalho de gestão via Organização Social – no caso da Pinacoteca, foi a Associação de Amigos que se qualificou como OS de Cultura – que permitiu uma administração com mais liberdade e um pouco mais de flexibilidade deste equipamento que é do governo do Estado. Esse é hoje o modelo de gestão de quase todos os equipamentos culturais do Estado de São Paulo. Ele favorece um processo de profissionalização da instituição, já que nos permite criar relações de trabalho um pouco mais longevas. Você não fica tão diretamente ligado à gestão direta da Secretaria de Cultura. Obviamente, a Secretaria dá as diretrizes, indica quais são as missões, mas você consegue criar equipes próprias muito profissionais – desde educativo, curadoria, conservação e restauro até financeiro e infraestrutura, por exemplo. Foi um privilégio, para mim, assumir a gestão da Pinacoteca em um momento em que todo mundo estava já em trilhas muito claras. 

Um dos primeiros trabalhos que fizemos, em 2017 e 2018, foi uma revisão do plano museológico, que é uma espécie de plano diretor da Pinacoteca. Isso foi muito importante porque é um trabalho coletivo, no qual você chama todas as equipes e tenta organizar as prioridades para os próximos anos, para refletir sobre a missão, sobre a visão, sobre valores, linhas de atuação e assim por diante. Para ficar claro o que a Pinacoteca quer ser e o que ela não precisa ser. E esse processo coletivo ajuda também a construir uma identificação de todos os colaboradores e colaboradoras com a instituição. Neste momento, portanto – e isso está em sintonia com o contexto no qual o Conselho me convidou para assumir a direção –, nós compreendemos com mais clareza que queremos ser um museu de arte brasileira em diálogo com as culturas do mundo. Isso hoje virou nossa missão: somos um museu de arte brasileira, voltada para a produção do século 19 até a contemporaneidade, em diálogo com as culturas do mundo, promovendo esses encontros, além de termos um grande projeto de educação museal.

E se queremos ser um museu de arte brasileira, não podemos mais ser só esse museu paulistano e paulista. Isso significa ampliar a linha de atuação programática e a coleção, olhar para além do Sudeste, além de São Paulo, e olhar também para além de uma formação mais acadêmica. Até porque em muitas regiões do Brasil tornar-se artista, em modo geral, não decorre de uma formação acadêmica. É aquela pessoa que começa copiando o pai ou a mãe, ou copiando o vizinho, ou fazendo parte de uma escola no bairro… Uma enorme produção que antigamente, de modo bastante problemático, chamávamos de arte popular.  

arte!brasileiros – Arte naif, arte vernacular…

Sim, algo que não se sustenta. A partir desse momento de revisão do plano museológico também ficou evidente que precisamos olhar para todas as histórias da arte brasileira que não foram contadas até agora e trazê-las para dentro da Pinacoteca. A produção de artistas mulheres, de artistas negros, indígenas, de artistas periféricos, de artistas de outras regiões e por aí vai. 

Ainda há muito para fazer, como por exemplo diminuir as lacunas do acervo, que é algo que já começamos, mas é um trabalho longo; trabalhar mais na interface com outras linguagens artísticas; e aprender e estudar mais sobre outras regiões do Brasil que talvez ainda não tenhamos alcançado. 

arte!brasileiros – A exposição de longa duração do acervo, totalmente reformulada e inaugurada em 2020, também é um marco significativo neste processo todo…

Sim. Porque, de certo modo, a Pinacoteca sempre teve esse cheirinho paulistano, com um pouquinho de cheiro do século 19. Então eu acho que quando nós reformatamos todo o acervo e abandonamos a ideia de uma história cronológica, passando a organizar mais tematicamente em uma mostra onde a produção do final do século 19 e a contemporânea estão misturadas e colocadas em diálogo, eu acho que isso mudou um pouco essa imagem de um museu paulista e que traz um pouco do passado de uma elite paulistana. Enfim, claro que esse passado existe, mas eu acho que a percepção mudou, assim como o público mudou radicalmente ao longo dos últimos anos. 

arte!brasileiros – Dentro destes oito anos de gestão, você esteve à frente da Pinacoteca durante toda a pandemia, em um dos períodos mais difíceis para qualquer instituição cultural na história brasileira. Para além das iniciativas realizadas, que acompanhamos à época, eu queria saber: tudo voltou a ser como era antes? Ou houve aprendizados e transformações que vieram para ficar? 

Respondendo de modo muito pragmático, a pandemia chegou no momento em que estávamos formatando o projeto da Pina Contemporânea, que foi a grande expansão da instituição. Era um desejo desde 2005, mas foi trabalhado sistematicamente a partir da minha chegada, com a cessão daquele espaço para a Pinacoteca em 2018. Em 2020, na pandemia, já tínhamos iniciado o projeto executivo do novo prédio. E, nesse momento, tanto dentro da equipe do museu quanto com os arquitetos, chegamos à conclusão que o museu pós-pandemia não podia ser igual ao planejado antes da pandemia. Então o projeto foi quase inteiro para a gaveta e se transformou em um outro projeto, que é o que foi construído. Alguns elementos sobre como usar as edificações já existentes permaneceram – como a reserva técnica –, mas em vez de criar muitas galerias novas para expor o acervo, criamos uma grande praça aberta. 

Pinacoteca Contemporânea
Pina Contemporânea. Foto: Manuel Sá
arte!brasileiros – Tornou-se um museu mais arejado?

Sim. No projeto original já havia uma rua passando pelo prédio, um pouco parecida com a rua central do Sesc Pompeia, mas a ideia de ser ainda mais arejado, mais aberto, com espaços de estar junto ao ar livre, isso tudo é um reflexo da pandemia. Então temos hoje um museu que busca promover para o público experiências com arte e cultura de uma forma mais direta. Atualmente, quando temos um evento na praça da Pina Contemporânea, com música por exemplo, as pessoas vêm e nem percebem que estão entrando no museu. Elas passam pelo parque (Jardim da Luz), de repente estão na praça da Pina, aí estão no meio do evento, se deparam com uma obra do Tunga, têm uma programação educativa ou cultural, uma biblioteca aberta para entrar e pegar um livro, ler uma revista… e ainda podem visitar as galerias expositivas. Então não é um museu com um monte de barreiras, escadaria grande, controles etc. 

arte!brasileiros – A ideia de um museu sem catracas, digamos assim…

Exato. Porque acho que a pandemia foi um momento em que nós todos percebemos o quão importante é ter esses espaços abertos e de convivência ao ar livre, que são raros em São Paulo. 

Para além disso, a pandemia trouxe outros debates à tona. Debates sobre qual é o papel da cultura dentro da sociedade, qual é o papel da arte na sociedade, qual é o papel das questões de representatividade. Ou seja, para pensarmos sobre quem fala e quem escuta, quem tem o poder de falar e quem está sendo ouvido, isso mudou radicalmente durante a pandemia. Não é uma questão da Pinacoteca, mas da cultura em si – que é urgente e a pandemia reforçou isso. A pandemia ou, talvez, a gestão política no período de 2019 a 2022 [governo Jair Bolsonaro] foi um momento de grande ataque à cultura que teve como reação um grande fortalecimento da cultura. E, aqui para nós, é preciso ressaltar que houve um investimento muito grande do governo do Estado de São Paulo, que não seguiu essa linha do governo federal de cortar todo o dinheiro da área.

arte!brasileiros – Falando de política, lembrei de uma afirmação sua de que o lugar da arte, neste mundo em crise, é também o lugar de pensar outras formas de se viver em comunidade, mais democráticas, e de conceber outros mundos possíveis. Recentemente o diretor do Museu Afro, Hélio Meneses, falando sobre a dívida histórica que o país tem com as populações minorizadas, disse: “Eu acho que essa dívida que é social, econômica e também cultural, ela não se resolverá apenas a partir do campo da arte e da cultura, embora ele seja fundamental para a elaboração de novas visões. Devemos cobrar de uma engrenagem socioeconômica uma maior responsividade, responsabilidade, equidade e justiça, e não pedir que o campo das artes resolva o que lhe escapa de possibilidade de resolução”. Não me parecem que suas visões são conflitantes, mas, ainda assim, queria te perguntar como enxerga essa questão do papel transformador da cultura na sociedade atualmente. 

Olha, eu concordo 100% com o Hélio, é inquestionável. Acho que o meu ponto, nas afirmações que você citou, é o de não subestimar o papel da cultura dentro da sociedade. Porque se existe um campo que atua entre a esfera privada e a esfera pública, provavelmente é a cultura. E se queremos que um debate seja levado para dentro das casas, escolas e administração pública, a cultura tem um papel importante. Não dá para apostar que ela vai resolver o problema da sociedade, porque não vai, mas ela forma opiniões, ela tem papel educativo fundamental. Por exemplo, um assunto como o racismo estrutural, se você não aprender na escola, no trabalho, ou na imprensa – e hoje é difícil saber quais as fontes de informação utilizadas e se são confiáveis –, possivelmente serão os lugares de cultura que vão poder difundir essa pauta. E falo de algo muito mais amplo do que os museus. O debate que uma série audiovisual levanta, o debate em livros de literatura, no teatro, enfim, em diversas linguagens.

E aí, voltando um pouco para a Pinacoteca, temos esse estudo que mostra que mais ou menos 60% do público que chega aqui está visitando um museu pela primeira vez na vida, porque nunca teve acesso. Aí já fica evidente como nossa obrigação é, sim, refletir sobre dívidas históricas, refletir sobre representatividade e visibilidade de artistas que foram silenciados e invisibilizados ao longo de décadas, séculos. Concluindo, concordo 100% com a fala do Hélio, mas acho importante pensar que o campo em que operamos é muito influente. Quer dizer, não estamos falando de coisas opostas.

arte!brasileiros – Nesse sentido, em sua gestão houve um enfoque crescente na arte produzida por grupos minorizados e marginalizados. Desde “Véxoa”, em 2020, que foi um marco ao mostrar a produção indígena contemporânea, até “Enciclopédia negra”, “Mulheres radicais”, entre outras. Esse é um grande foco da sua gestão? E como fazer com que isso não seja algo meramente protocolar – uma resposta ao que se espera – em um momento em que até mesmo o mercado está voltado para essas pautas? 

Olha, uma forma de atuar que eu acho importante é primeiro fazer e depois falar. Falar menos, escutar mais e pensar mais formas de integrar isso à programação de forma profunda. E quando nós começamos a refletir sobre a reformatação do acervo, em um seminário em 2018, convidamos vários palestrantes, entre eles a Naine Terena – que depois se tornou a curadora de “Véxoa”. E ela fez uma pergunta que provocou uma reflexão grande dentro na instituição, que foi: “Vocês, Pinacoteca, sendo uma instituição paulistana e majoritariamente branca no seu acervo e na sua gestão, qual lugar que vocês querem dar para os artistas indígenas?”. Ela não veio com respostas simples, mas nos questionou: “Vocês querem fazer uma exposição de álbum de figurinhas ou estão abertos a realmente abrir espaços, repensar formas de atuar como instituição?”. Não é por acaso que “Véxoa” é uma exposição tão importante, que não apenas foi uma das primeiras mostras de produção contemporânea de artistas indígenas, mas também teve curadoria de uma pesquisadora indígena. 

arte!brasileiros – E aí a importância de pensar em quem você convida, quem você escuta, quem você traz para o time…

Sim, pensar em como você constrói. Veja bem, quando a Naine nos fez a pergunta, em 2018, a Pinacoteca não tinha nenhuma obra de artistas indígenas contemporâneas no seu acervo. E hoje, depois de seis anos, são cerca de 40 artistas presentes. Então é preciso realmente repensar as formas de se criar um acervo: pensar o que que importa, qual é a nossa responsabilidade. E isso não é algo para se fazer uma vez e depois se virar para outros temas, mas deve virar uma linha de atuação contínua, um compromisso contínuo.

arte!brasileiros – Não é fazer uma exposição, “dar um check” e achar que já está bom…

Não pode ser isso, senão é justamente aquela coisa protocolar. Enfim, e já que você mencionou o mercado de arte, é interessante pensar que possivelmente as coleções particulares da cidade também mudaram após “Véxoa”, após “Enciclopédia Negra” e após “Histórias Afro-Atlânticas” [MASP], entre outras. Porque são momentos em que as instituições inserem debates que mudam tudo.

arte!brasileiros – Já falamos da Pina Contemporânea, um espaço mais aberto para a cidade, mas eu gostaria de aprofundar nessa questão da região tão complexa da cidade na qual a Pinacoteca está localizada. Uma área tão rica culturalmente, com equipamentos importantes, mas também muito degradada, com problemas de violência, desigualdade, com a questão da Cracolândia etc. Como é o trabalho da Pinacoteca para dialogar com essa região, com a cidade real, sem se tornar um bunker, digamos assim, protegido e isolado?

É sempre um desafio, obviamente. Eu acho que tem uma coisa muito importante, vamos dizer, que são as relações de parceria que a gente constrói ao longo dos anos. Então, por exemplo, o educativo tem uma atuação muito forte para além dos nossos muros. E acho que são parcerias com mais ou menos 23 coletivos aqui do entorno. Não todos simultaneamente, mas ao longo dos últimos anos, é uma grande rede de colaboradores, alguns mais distantes, outros mais próximos, mas que ajudam a criar laços que vão para além do próprio museu. Que criam laços afetivos com moradores de rua, com trabalhadores aqui do Jardim da Luz, com as mulheres do parque. Outra coisa é a relação com as outras instituições da região, como o Museu da Língua Portuguesa, o Teatro de Contêiner, com a Casa do Povo, o Museu de Arte Sacra etc. Então, essas colaborações, a compreensão de que nós não somos uma ilha, mas, na verdade, somos um hub muito forte de instituições culturais, também ajuda para pensar em circuitos e possibilidades de parcerias.

E, é claro, quanto mais vivo fica o centro, mais seguro ele fica. Então, optar por um museu sem muro, assim como a Pina Contemporânea, com suas três entradas, é parte disso. E nos últimos dois anos percebemos que a vivência naquele espaço, oferecer uma vivência para quem é morador de rua, ou público do museu, ou passageiro, ou alguém que só quer cortar um caminho para chegar mais rápido na Luz, essas são formas de promover a convivência. Em sentido parecido, fizemos em 2017, ainda antes do prédio novo, uma reforma da entrada na Pina Estação, abrindo mais portas. Nunca é fácil, mas sabemos que menos muros, mais convivência, isso gera também mais segurança.

arte!brasileiros – Falando em diálogo com a cidade e com o público, a Pinacoteca apresentou um aumento expressivo nos números de visitação de antes da pandemia [538 mil pessoas em 2019] para depois [880 mil em 2023]. Isso tem a ver com a inauguração da Pina Contemporânea, claro, mas não só. Pode explicar?  

Sim, houve um aumento, e isso não é só na Pinacoteca, mas em vários equipamentos. Essa percepção de que a visitação pré-pandemia e pós-pandemia tem um salto para cima significa que as pessoas estavam precisando de algo, de vivências, de espaços públicos, de contato com cultura, de contato com a imaginação. Mas, claro, isso também traz grande responsabilidade, porque é um público muito expressivo. Gera expectativas, desejos, o desafio de pensar como podemos ser cada vez mais um museu de todas e todos. E, é claro, existe ainda um potencial gigante de milhões de pessoas que passam por aqui pertinho todos os dias – na Estação da Luz, por exemplo –, mas não entram. Então, acho que o grande desafio da Pinacoteca e de todos os museus é o de criar linguagens e laços com um público que talvez hoje ache que o museu não é para ele. Porque eu acredito muito que o museu não é um lugar que você precisa de conhecimento para poder entrar. Todo mundo é bem-vindo. Mas existem barreiras sociais, históricas, estruturais…

Para nós, por exemplo, o sábado gratuito, que já existe faz tempo, é fundamental. É importantíssimo oferecer a gratuidade para o grande público nesse dia específico, porque ninguém vai, por exemplo, numa terça-feira sair da Cidade Tiradentes para visitar o museu só porque é gratuito. Mas no sábado você consegue combinar talvez com algum compromisso no centro, ou com um desejo de passear em alguma outra região da cidade e, deste modo, pode aproveitar e visitar o museu. E isso de fato acontece. Se um dia normal tem entre mil e três mil visitantes por dia, um sábado tem entre cinco e dez mil. E, ao todo, cerca de 78% do público da Pinacoteca usufrui de algum programa de gratuidade, seja o sábado, seja escolar, para professor, taxista, policial… enfim, todas as gratuidades que nós temos. É muito expressivo.

Almeida Júnior, Caipira picando fumo, 1893
Almeida Júnior, Caipira picando fumo, 1893
arte!brasileiros – Bom, chegamos então aos 120 anos da Pinacoteca. É muita história, nem faz sentido ficar repassando tudo. Mas tem uma fala sua que me chamou atenção, na qual você disse que, por mais que muitas vezes a gente relacione a Pinacoteca ao passado, ela sempre foi um tanto contemporânea ao seu tempo, por estar ligada à produção de artistas de sua época. Que quando foi criada, por exemplo, no início do século 20, serviu para ensinar jovens artistas e adquiriu obras atuais para a época. Pode falar sobre isso? 

Acho que tem muitos marcos ao longo da história. Quando foi fundada, em 1905, ela foi criada como uma Pinacoteca, ao lado de uma biblioteca, dentro de uma escola, basicamente – o Liceu de Arte e Ofícios. Mas, já em 1911, há um decreto que separa a Pinacoteca do Liceu e funda o museu independente, diretamente ligado à gestão pública. Isso é interessante porque, já nesse momento, se definiu que a instituição tem uma missão educativa e pedagógica. 

E por que é que eu sempre digo que desde a sua fundação é mais ou menos um museu de arte contemporânea? Porque as mais expressivas aquisições das primeiras décadas foram de trabalhos feitos no período. Quer dizer, havia duas maneiras pelas quais, na época, entraram obras no acervo. Uma era pelo programa de bolsas de estudos. Artistas ganhavam bolsas para estudar fora e no retorno deixavam obras. Ao mesmo tempo, houve momentos em que o próprio governo do Estado adquiriu trabalhos de artistas. A famosa “São Paulo”, da Tarsila do Amaral, de 1924, foi adquirida em 1929. O “Mestiço”, do Portinari, é de 1934, foi adquirido em 1935. Então, foram comprados quase que de dentro do ateliê, num período em que esses artistas ainda eram, digamos, a “nova produção”. E a partir daí, isso continua. Claro que teve momentos com um olhar mais vanguardista do que outros, mas eu entendo que a Pinacoteca sempre colecionava a produção do seu período. Até mesmo o Almeida Júnior (1850-1899) tinha acabado de falecer quando a Pinacoteca foi criada, não era “histórico” ainda. Aquilo era o mais novo de alguém que foi, talvez, um dos mais expressivos artistas do fim do século 19 no país. 

Depois teve um momento muito importante de participação da sociedade. Lá nos anos 1930 criou-se o Conselho de Orientação Artística, onde intelectuais, artistas e críticos participaram para garantir a qualidade e o bem-estar do acervo. Esse conselho existe até hoje, nesse momento sob a presidência da artista Cinthia Marcelle. Nos anos 1970, por exemplo, na gestão da Aracy Amaral, o educativo se tornou novamente uma linha muito preciosa e importante. Na época, a educação museal ainda era diferente do que se entende hoje, eram mais oficinas, espaços de experimentação, mas isso foi um momento muito importante de entender que o museu é mais do que simplesmente uma coleção de obras. É uma programação, uma atuação e um olhar para a sociedade. 

Nos anos 1990, na gestão do Emanoel Araújo, é um pouco um momento de internacionalização, quando ele trouxe Auguste Rodin, Niki de Saint Phalle e vários outros artistas internacionais. Ele claramente entendeu que, sim, é um acervo de arte brasileira, mas que é importante olhar a produção nacional à luz ou em diálogo com a produção de fora. Isso depois começou a se intensificar. Outro marco super importante é, em 2003, pós-reforma do Paulo Mendes da Rocha, a criação do octógono e do Projeto Octógono, que foi um projeto fundamental e que está hoje na edição 77 ou 78. Essa ideia de criar programas de comissionamento dentro de um museu que tem acervo é um fenômeno que acontece mais ou menos a partir de 2000, com a Tate Modern (Londres), e aqui já vem logo depois, ao mesmo tempo em que começa o Roof Garden Commission do Metropolitan Museum of Art (Nova York). Então, a Pinacoteca é uma das pioneiras nas instituições que sistematicamente trabalham com o comissionamento para inserir diálogos com produções contemporâneas e com o acervo. 

Arte!brasileiros – Bom, sobre as exposições deste ano, propriamente ditas, acho que são 18 aberturas. Seria muito assunto para falar, mas eu queria saber um pouco dos eixos que percorrem boa parte delas, algo que tem a ver tanto com o chamado popular quanto com o Pop no Brasil, que estarão, por exemplo, nas exposições “Pop Brasil” e “Trabalho de Carnaval”…

Eu acho que dá para entender isso, talvez, a partir da exposição que atualmente está em cartaz, “Caipiras: das derrubadas à saudade”, que parte de algumas pedras fundamentais que deram início à coleção da Pinacoteca: “O caipira picando fumo” e “Amolação interrompida”, que são duas pinturas do Almeida Júnior que entraram na primeira transferência do Museu Paulista para iniciar a Pinacoteca, em 1905. E eles são, de certa forma, obras em que o artista acadêmico olha para a pessoa popular. É o caipira, o campestre, o trabalhador do campo, a pessoa anônima, a pessoa comum… Esse naturalismo da época. A produção artística desse período olha para o trabalhador do campo para achar nele o verdadeiro brasileiro. Então já tem uma primeira relação entre o popular e o erudito.

Aí, pensando ao longo das décadas, tem aquela questão que já falamos, de como no Brasil a maioria dos artistas não teve acesso a uma formação acadêmica. Então, olhar para o popular, o chamado popular, é muito lógico e, na verdade, a ideia de separar as categorias entre erudito, acadêmico e popular não se sustenta. A exposição “Tecendo a manhã” fala disso explicitamente. Ela fala de uma experiência de uma vida moderna e mistura produções de autodidatas – ou chamados artistas populares – com Di Cavalcanti, Tomie Ohtake e muitos outros que tiveram acesso a uma formação. 

Na questão da arte Pop, acontece de novo. Porque, para mim, “Caipiras” o “Pop Brasil” e o “Trabalho de Carnaval”, eles todas fazem parte de uma discussão que tem muitas facetas. Nos anos 1960, muitos artistas olham para uma estética popular da rua. Isso não só no Brasil, mas no Brasil abre-se assim a possibilidade de falar de assuntos vivos da sociedade [em período de repressão] de forma um pouco escondida. Então, esse pop não é um pop. Quer dizer, a chamada Nova Figuração olha para as figuras da sua época, para a vida popular – seja do ônibus, seja do bar, seja o jogador de futebol etc. São todas imagens da sociedade, imagens populares que são incorporadas, e muitas mensagens são passadas de modo um pouco mais subliminar.

Então, resumindo, não quisemos fazer uma grande exposição sobre os 120 anos da Pinacoteca. Quisemos, de certa forma, abranger tudo entre “Caipiras”, até o Gabriel Massan, até os anos 1960, até a produção mais recente… Por exemplo, o filme da Bárbara Wagner e do Benjamin de Burca [Estás vendo coisas] é uma representação de um movimento popular pernambucano, pop brega, tecno brega, que é um fenômeno mundial maravilhoso, com uma existência um pouco apartada do mundo da música pop. E isso nos interessa.

arte!brasileiros – Me chamou atenção, nas exposições individuais deste ano, que a grande maioria é de artistas mulheres. Mônica Ventura, Marga Ledora, Ad Minoliti, Dominique Gonzalez-Foerster, Beatriz González, Neide Sá, Juliana dos Santos, Olinda Tupinambá, Lucy Citti Ferreira, Renata Lucas… Isso foi algo pensado, digamos, como uma proposta curatorial, ou apenas aconteceu assim?

Se você olha ao longo dos últimos anos, desde “Mulheres Radicais” é um pouco assim. Faz parte de uma preocupação que é contínua, não é um statement, não é uma retórica, é um processo de como queremos pensar o museu para os próximos 120 anos. Que todas essas narrativas naturalmente tenham espaço, e assim tenhamos a presença de artistas mulheres, artistas homens, artistas negros, artistas brancos, artistas indígenas… todos de forma natural, configurando uma programação. E, como eu disse, tem muita trilha ainda para andar.

arte!brasileiros – Por fim, queria te perguntar sobre o Jardim de Esculturas, situado no Jardim da Luz, que passará por uma reformulação. Como isso está sendo pensado? 

A maioria das coisas que estão vão ficar. Algumas saem apenas para restauro e preservação, afinal muitas das obras estão lá há 25 anos, mas voltam. Grande parte das obras foi instalada no final dos anos 1990 e início dos anos 2000, na gestão do Emanoel Araújo, em um momento bonito de tentar levar o museu para fora de seus muros e, basicamente, criar uma coleção de esculturas que seria impossível de mostrar dentro.

Mas ela ainda é uma exposição predominantemente masculina, branca e paulistana. Então, a ideia é, ao longo do ano, pelo menos acrescentar algumas obras que possam já diversificar um pouco a discussão sobre esculturas. E também entendo que essa é uma missão para os próximos anos, mas é um começo. O nosso atual projeto é para adicionar cinco esculturas, reformar algumas e criar uma outra forma de apresenta-las. A escultura, principalmente em grande escala ao ar livre, é um suporte que por muito tempo tem sido mais masculino… ou em geral mais ligado aos artistas que tiveram um pouco mais de privilégio. Porque não é fácil produzir. Quem tem, por exemplo, acesso a uma fundição para fazer uma escultura em bronze, ou para fazer uma grande escultura? Então eu vejo que isso é um cuidado que queremos ter, para ter um debate sobre a escultura e sobre as várias linguagens artísticas de uma forma um pouco mais diversa. 


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