Ana Mae Barbosa
Ana Mae Barbosa, 2025 (imagem: André Seiti/Fundação Itáu)

Figura fundamental da história da educação artística no Brasil, campo ao qual se dedica há quase 70 anos, Ana Mae Barbosa é agora tema de exposição. A 67ª edição das “ocupações” – exposições que o Itaú Cultural dedica a personagens emblemáticos da cultura nacional – revisita sua trajetória pessoal e profissional, iluminando seu percurso desde os anos formativos em Recife, passando pela experiência com as Escolinhas de Arte (movimento que chegou a congregar 144 unidades em todo o país) e uma intensa atividade exercida junto a diversas instituições de museologia, ensino e arte. Em entrevista à Arte!Brasileiros, a pesquisadora fala sobre seu trabalho e reitera a potência transformadora da arte e o papel imprescindível das imagens na formação ampla, democrática e crítica do indivíduo. 

São quase 70 anos de carreira, com mais de 30 livros publicados. Como foi esse processo de revisão da sua trajetória?

Foi muito mobilizador e questionador, não diria que foi prazeroso. Muitas vezes me perguntei sobre a energia gasta em coisas que não continuaram, sobre o que não é mais possível, como fazer pesquisas no exterior, por exemplo. De outra maneira foi uma certa alimentação para continuar, nesse que é um período de maior fragilidade, para não me deixar envolver completamente pela inércia. Mas fico sonhando e sonhar é bom. 

Como surgiu a abordagem triangular, com ênfase na ideia de contextualização, que você desenvolve como forma de ampliação do ensino de arte para todos?

Comecei o trabalho de arte com crianças, até mais ou menos uns 11 anos. Depois disso, era meio difícil, as crianças tinham uma autocrítica tremenda, diziam: “não tenho jeito para o desenho, eu vou largar”. Não davam importância nenhuma ao que a gente dizia, que essa era uma fase normal. A questão era: como fazer com que a arte continue a ser uma companheira dessas crianças na idade adulta? Como fazer que eles continuem ampliando a sua mente através da arte, se eles não veem arte? Apenas o fazer arte era valorizado. Foi aí que comecei a pensar o que fazer para possibilitar uma expansão, como possibilitar que, por exemplo, um bancário, que passa o dia inteiro num banco cuidando do dinheiro dos outros, quando vai para casa, para um apartamento pequeno, possa usufruir da arte, se deixar tocar por ela. Eu coloco então um terceiro elemento: a contextualização. Que foi a grande descoberta, quase como o fermento do fazer e o fermento do ver a arte. Porque contextualizando você vai ter que se perguntar por que fez, de onde vem o que você faz, o que se faz hoje com o que se fez ontem, e esse exercício é muito maior. Essa coisa da imagem me pegou muito. 

Porque e como o Brasil adota o termo Arte-educação?

Ele surge nos anos 1940, em 1948, por aí, quando se cria a primeira Escolinha de Arte. Com Augusto Rodrigues e Margareth Spencer, uma professora americana que iniciou com ele a primeira escolinha, numa biblioteca do Rio de Janeiro. Ela achava que nós tínhamos mania de copiar o exterior e tínhamos uma cultura extraordinária, que misturava os códigos europeus com os códigos afro-indígenas e que não tinha sentido a gente estar copiando a institucionalização da cultura dos outros. Desconfio que a razão é essa, porque tradução literal do termo “art education” seria educação artística. A coisa vai evoluindo e começamos, eu e dona Noemia Varela, já nos anos 1960, a colocar o hífen em Arte-educação. Recentemente, há uns 25 anos, um linguista disse a uma aluna minha que o hífen valoriza mais a primeira palavra. E aí comecei a usar a barra. 

Por que ela permitiria um maior equilíbrio entre os termos? 

Exato. Mas acho interessante até essa variedade de termos. Isso revela também uma variedade de abordagens. Acho isso importante. 

Há uma dificuldade cada vez maior em fazer essa proximidade entre as pessoas, que não são do mundo da arte? Como vencer esse desafio?

Só na prática. Não tem jeito! A arte contemporânea não é fácil de entender. Aliás, para as crianças é muito mais fácil, porque elas entendem naturalmente esses deslocamentos – como colocar uma cadeira em cima de uma geladeira, elas fazem essas operações com constância. Pesquisas têm sido feitas acerca de quanto e como as pessoas veem. Qual é a relação entre o ver a arte e o grau de educação daquela pessoa? Chegaram à conclusão de que não tem nenhuma relação. Uma pessoa formada na universidade pode ter uma dificuldade tremenda de ver arte e uma pessoa menos educada formalmente pode ter uma leitura muito mais rica. É a frequência em ver imagens que importa. Fiz uma pesquisa na estação Sumaré do metrô, com aquele trabalho do Alex Flemming.  É muito interessante, porque a primeira forma de explicar a arte, de ler arte, é sempre trazer alguma coisa que você conheceu antes. Por exemplo, uma geógrafa viu aquilo e disse que era a foto de todos aqueles que trabalharam naquele metrô, porque quando esteve num hotel na Bahia havia visto lá uma foto de todos os operários que trabalharam naquela obra. Ela precisou lembrar outra experiência de imagem para entender aquela. Enquanto um feirante olhou aquilo e me diz: “Eu acho que é o povo brasileiro” Ele foi além, ousou interpretar. É a leitura de segundo grau, em que o objeto se separa do sujeito que está vendo e diz algo a ele. 

O desenvolvimento da criatividade como espaço de liberdade?

Isso mesmo, sem liberdade não há desenvolvimento criativo. Entender imagens é cada vez mais importante para o desenvolvimento da mente. Há muitas pesquisas mostrando que a leitura de imagem desenvolve a inteligência. A arte desenvolve não só criatividade, não só percepção visual, que é algo muito importante e você não tem nas escolas. O que faz falta mesmo é um convencimento de que a arte é importante.

Você conta que seu primeiro pedido de bolsa para Capes foi negado com a alegação de que esse campo de pesquisa não existia. E hoje ele é um campo sólido, configurado. Como você vê essa evolução? 

O que a gente tinha antes era o ensino de desenho. O programa do Rui Barbosa, baseado no programa do Walter Smith, era desenho, com muita geometria devido à influência positivista. A arte só se torna obrigatória no ensino no Brasil em 1971-73, com a Lei de Diretrizes e Bases. E agora estão tirando de novo. E no ensino médio, o que é um absurdo total. Na adolescência você fica completamente tonto, uns lhe tratam como criança, outros lhe tratam como adulto. Os hormônios em ebulição. Sempre ouvimos: “temos outras prioridades”. Aí eu pergunto: “Quais?!”. Respondem: “alfabetização!” Eu retruco que a arte é importantíssima para isso. Por exemplo, as palavras “lata” e “bola” parecem a mesma coisa. Porque é uma letra alta e uma baixa, intercaladas. A criança vê a mesma configuração. Mas aquela que trabalha muito com arte, com desenho, mesmo que esteja na fase da garatuja, vai começando a entender o entrelinhamento e imediatamente é capaz de distinguir as palavras por causa do traço do t. 

Você acha que nos museus a situação está melhor?

No museu melhorou muito. Não no MAC, de onde sai há 25 anos. Quando saí de lá deixei 14 arte-educadores, cada um com uma pesquisa. Eu dizia: em universidade, quem não faz pesquisa não é importante. Agora tem apenas dois arte-educadores. O MAE também conta apenas com dois arte-educadores. Estamos criando um bando de gente analfabeta para a imagem, que é uma linguagem importantíssima. 

Voltando à exposição: você participou ativamente da seleção do que seria exibido?   

Eu não me meti. A Clarissa Diniz (curadora) fez tudo sozinha. Só exigi a inclusão de duas fotos. Uma com meu mestre, melhor dizendo, meu tutor, Eliot Eisner, o americano que na época era considerado o maior arte-educador do mundo. Simplesmente um dia ele ouviu uma palestra minha e não parou mais. Nos correspondíamos, ele me orientava, mesmo que não formalmente. Foi presidente da International Society for Education through Art e, perto de sair, quis que eu o substituísse. Era na época do Collor, era impossível sair sem pagar só para sair do país. Ele terminou me convencendo, como mostra a carta que está lá, dele me intimando a aceitar. E outra, minha e de meu marido, tirada pelo Alex Flemming,  que foi a última foto dele. O resto foi todo trabalho dela e de sua equipe de pesquisadores, muito competentes. 

Achei curiosa essa escolha de inserir na mostra elementos afetivos, como sua coleção de colares, que são um pouco a sua marca registrada. 

Isso foi uma ideia antiga da Regina Machado, uma grande amiga, que foi minha orientanda. Eu tenho mania de colar mesmo. Antes eu usava muito brinco, grande, aí fui ficando velha e passei inconscientemente para os colares, grandes. São muitos mesmo. O negócio é meio maluco. Comecei a comprar um em todo lugar que eu ia e depois os amigos começaram a me dar muitos colares. São 700! Descobri agora que eles contaram e fotografaram todos e a curadora escolheu alguns para colocar na exposição. O mesmo acontece com minhas caricaturas. Tenho muitas porque os alunos costumam me presentear com desenhos no final das aulas. Talvez meu rosto seja bom para caricaturas. 

 


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