Os curadores buscaram criar uma mostra que desse “apoio à cena que existe aqui na Turquia, inspirar as pessoas novamente e sugerir novas formas de produção de linguagem'. Foto: Divulgação.

Qual a relevância de uma bienal de arte em meio a um regime opressor? Em um contexto delicado, quando após uma estranha tentativa de golpe, em 2016, a Turquia passou a prender dezenas de intelectuais, jornalistas e acadêmicos, esta foi uma das questões recorrentes aos artistas e curadores Elmgreen & Dragset, responsáveis pela 15ª. Bienal de Istambul.

Trabalhando juntos desde 1995, primeiro na Dinamarca, depois em Berlim, onde vivem desde 1997, o norueguês Ingar Dragset (1969) e o dinamarquês Michel Elmgreen (1961) consultaram até o prêmio Nobel de literatura Orhan Pamuk sobre a conveniência da organização da bienal.

A mensagem do escritor foi clara: “não se amedrontem”. Com isso, de acordo com Dragset, em entrevista à ARTE!Brasileiros, durante a abertura da Bienal, em setembro passado, os curadores buscaram criar uma mostra que desse “apoio à cena que existe aqui na Turquia, inspirar as pessoas novamente e sugerir novas formas de produção de linguagem”.

Intitulada “um bom vizinho”, a Bienal reuniu 56 artistas de 32 países, em seis locais expositivos, do museu Istambul Modern a uma residência modernista, que serviu de sede para a Proposta para uma Casa Museu do Desconhecido Homem que Chora, projeto do artista egípcio Mahmoud Khaled.

Esse ambiente íntimo, acaba reverberando em vários outros espaços da mostra, o que para Dragset significa que o momento agora é de um tempo interior. Veja o porque a seguir.

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Obra de Andrea Joyce Heimier exibida na Escola Grega, em Istambul.

Dezenas de jornalistas e acadêmicos estão presos, e a liberdade de expressão está seriamente ameaçada na Turquia. Como é fazer uma bienal neste contexto?

INGAR DRAGSET – Nós estivemos muito inseguros, até certo ponto, se ela seria possível ou mesmo se é relevante fazer uma bienal em um situação como esta. Logo após a tentativa de golpe que ocorreu no ano passado, o que fizemos foi colocar o tradicional processo curatorial em suspensão, afinal precisávamos falar com as pessoas locais sobre a visão delas do que ocorreu, só elas teriam uma leitura precisa dos fatos. Então, dez dias após a tentativa de golpe, viemos ouvir não apenas de artistas e curadores, mas jornalistas, políticos, pesquisadores, diretores de instituições, acadêmicos e assim por diante o que eles pensavam da Bienal, e se organizar esse evento seria ou não relevante.

Entendemos, então, bem rapidamente, que o pior que poderia ocorrer, naquele momento, seria o rompimento com a comunidade internacional. Imediatamente após o golpe, teve um expurgo de intelectuais e acadêmicos, ameaçados pelas autoridades, criando mais medo e isolamento. Escritores como o Orhan Pamuk, com quem tivemos um jantar naquela semana, nos disse: “rapazes, por favor não se amedrontem (chicken out), de um modo bem prêmio Nobel de se expressar.

Voltamos, então, à Berlim mais encorajados e recomeçamos o projeto curatorial, pensando que a Bienal poderia ser uma forma de manter os canais de comunicação abertos, de dar apoio à cena que existe aqui na Turquia, inspirar as pessoas novamente e sugerir novas formas de produção de linguagem, o que tem muito a ver com o que se vê por aqui no momento.

De resistir?

Sim, de resistir, de buscar alternativas. As pessoas não sabem, mesmo após Gezi (os protestos massivos na praça Taksim Gezi, em 2013), como é possível expressar oposição.

O tema “um bom vizinho” já estava escolhido, naquele momento?

Sim, ele é menos um tema e mais uma ferramenta de trabalho, mas já tinha sido escolhido e se tornou mais relevante com o Brexit e com o muro prometido na campanha do Trump na fronteira do México.

Por outro lado, esse nome tem a ver com o passado da Turquia, que é uma história de convivência na diversidade por séculos, de uma sociedade com muitas camadas, o que contradiz o presente do país.

Em momentos duros assim, talvez a tendência seja ser mais documental, de denúncia do que ocorre. Mas essa bienal é o oposto disso, ela é delicada e ambígua, o que talvez sejam formas possíveis de resistência.

Em momentos assim, a primeira coisa é ouvir. Entretanto, a oposição não é muito alta, o que se reflete nos trabalhos dos artistas turcos, que são mais introspectivos, com mais pesquisa, mais poéticos, o que não significa que sejam menos importantes. É o caso do trabalho de Volkan Aslam, comissionado para a Bienal, muito representativo do que muitas pessoas, especialmente as jovens, sentem, que é o desejo de voltar à normalidade do dia-a-dia, ao enrolar um cigarro, beber um café, escrever uma carta…

Na mostra de fato há muitas obras que tratam da estabilidade e instabilidade do lar, como as pinturas de Andrea Joyce Heimer, que representa lares enlouquecidos.

E nós não sabemos para onde isso vai, toda essa insegurança não está sendo sentida só aqui, mas em muitos lugares do mundo e ainda estamos pensando em como reagir a toda essa estupidez dos líderes políticos, dos altos escalões da política internacional. Mas para isso precisamos tomar o nosso tempo, insistir em nossas identidades, nossos modos de se expressar, sem sermos forçados, como artistas, intelectuais e acadêmicos, a dar uma resposta rápida como “hooligans” (torcedores fanáticos).

E o artista brasileiro Victor Leguy, como você chegou ao trabalho dele?

Para ser honesto, eu vi o trabalho dele pela primeira vez no Instagram. (risos). Além dele, também descobri Andrea Joyce Heimer no Instagram, mas nunca a encontrei, apesar de nos comunicarmos muito.

Com Victor, eu consegui ir visitá-lo em São Paulo e logo depois de conhecê-lo, percebi que realmente gostaria de trabalhar com ele. É um artista com tantos níveis, que aborda questões sociais, usa readymades, o que é bastante raro. Esse trabalho que ele apresenta aqui, no qual mistura objetos que encontra com histórias pessoais, é algo que muitos fazem, mas do jeito que ele trabalha, cobrindo partes em branco, é uma excelente forma de apontar como a sociedade apaga partes significativas da cultura, transforma tudo em quase a mesma coisa, é quase uma forma escandinava de falar de monocultura.

Alejandro Almanza Perada
Foto da instalação ‘PYZ’ 1915, do artista mexicano Alejandro Almanza Perada

Usar Instagram no processo curatorial é interessante, fale mais sobre esse processo…

Foram apenas dois artistas escolhidos pelo Instagram, mas obviamente usamos a internet para mais informações, sites de galerias, site de instituições. Mas também usamos o formato de pesquisa tradicional, fomos para a América do Sul, do Norte, África do Sul – onde fui pela primeira vez e achei incrível, daria para fazer toda uma bienal só com artistas de lá, é uma cena muito forte.

A curadoria de uma bienal é um processo no tempo, que um dia termina, já criar uma obra é um processo no espaço, que permanece. Como vocês diferenciam estas duas tarefas?

Curar uma bienal é trabalho que nos consome muito, de um momento para outro você se vê envolvido de situações políticas a conseguir patrocínio, definir logos, espaços. É um monstro. E, nestes últimos seis meses, praticamente paramos de produzir nosso trabalho, tanto que estou com medo de voltar ao ateliê (risos).

Creio que essa é a primeira vez que uma bienal está pronta quase um mês antes da abertura, essa é a maneira escandinava de se produzir uma bienal?

Superneurótico, como os filmes do Bergman, você quer dizer (risos), com toda a culpa protestante… Bom, uma coisa que a gente traz como artista é essa experiência pragmática, afinal nós já participamos de muitas bienais, e sabemos que para colocar de 60 a 70 projetos é preciso tempo. Tivemos um fantástico time também e, talvez isso se relacione às dificuldades do momento, houve uma energia positiva incrível em torno da bienal, de todos os técnicos, assistentes, voluntários, como se todos quisessem que algo bom acontecesse.

Como vocês começaram a fazer curadoria?

Nós nunca sentimos de fato uma oposição entre práticas artísticas e curatorais. Quando começamos, no início dos anos 90, em Copenhague, não havia uma cena comercial e tão pouco uma cena institucional, então tudo era possível e tudo dependia de nós. Criamos nossas exposições, revistas, performances, espaços expositivos, festivais.

Mas é raro esse reconhecimento tanto como artistas como curadores. Essa é a primeira bienal, não é?

Sim, e deve ser a última. (risos) Mas, sabe, foi natural, pensando novamente em Copenhague. Naquele momento, era quase a única opção pensar em tudo como um “gesamtkunstwerk” (obra de arte total).


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