Patricia Rousseaux | Foto: Alex Flemming

Tivemos a oportunidade de acompanhar, nesses três meses, o debate que diversas mostras internacionais apresentaram para o mundo da cultura e da arte. Após o momento de privação que vivenciamos durante os dois últimos anos, elas refletem, ainda mais, as polarizações econômicas, sociais e políticas globais, em que a arte está tendo um papel notável como transmissor dessas disrupções.

Em vários de seus artigos nesta edição, o crítico e membro de nosso conselho editorial, Fabio Cypriano, descreve muito bem a complementariedade e a diversidade que aparecem nestas edições da Bienal de Veneza, na Itália, da Bienal de Berlim e da documenta quinze, em Kassel, ambas na Alemanha.

Há, porém, um denominador comum no intento de denunciar, de uma ou outra forma, a ferocidade com que o homem vem lidando repetidamente com o outro.

A necessidade de apagar o passado – segregações raciais e religiosas, invasões territoriais, massacres – ou confundir o presente usando-se dos avanços científicos e tecnológicos – fake-news, vigilâncias e centralização de dados digitais, milícias. Todas são, enfim, manobras a serviço de não refletir sobre esse passado colonial tão violento, marcado pelo abuso de poder e pela necessidade de uma perversa opressão do outro.

Frente a isto, Kader Attia, artista, filósofo e diretor criativo responsável pela Bienal de Berlim, conclama a militar, como forma de reparação, pela retomada de atenção por parte dos indivíduos, para tudo aquilo que nos rodeia. Certamente um dos pensadores mais agudos da problemática internacional, ele foi entrevistado pela arte!brasileiros, na capital alemã.

Para ele, perdemos a capacidade da “atenção”, de parar para ver, parar para entender, para nos emocionar. Consumimos imagens e informações soltas, meros objetos. Assim sua potente mostra se propõe a criar ligações sutis, com espaços intersticiais, em que, depois de imagens aterradoras, espera-nos um texto do psiquiatra e escritor anticolonialista Frantz Fanon, conclamando pelo humano: ”A única possibilidade de recuperar o equilíbrio é enfrentar todo o problema, já que todas estas descobertas e indagações levam apenas a uma direção: fazer o homem admitir que ele não é nada, absolutamente nada. E que ele deve por fim ao narcisismo em que se apoia para imaginar que ele é diferente dos outros animais”. (Black Skin, White Masks, 1952).

Esta crítica aparece também, implícita na proposta da documenta quinze, cujo diferencial com qualquer outra mostra anterior deixou perplexos desde alemães até brasileiros. Dirigida pelo ruangrupa, coletivo vindo da Indonésia, decidiu fazer da mostra uma obra, cujo corpo é formado por infinitos corpos.

A proposta associa a arte às práticas cotidianas e aos costumes de 14 outros coletivos de artistas vindos da Nigéria, do Camboja, das Américas e Indonésia.

Não se pode entender essa experiência sem perceber que ela não está nas suas partes e sim em um todo, cujo significado é a importância de aprender sobre diferenças e como conviver com elas.

A importância está dada em como partilhar conhecimentos, como cuidar do outro, como grupos distintos pensam a defesa do meio ambiente, organizam-se para um futuro sustentável e como a arte pode ajudar como catalisador.

A rigor, já nos anos 1980, na documenta sete, apesar de não vir de um coletivo, uma proposta parecida se transformou num dos paradigmas da arte contemporânea, quando o artista Joseph Beuys apresentou um dos maiores projetos de arte pública e ecológica, 7000 Carvalhos, em que, defendendo a proposta de escultura social, ele plantava sete mil árvores numa cidade de terra arrasada. Assim, ele trazia à tona um dos maiores bombardeios ocorridos durante a Segunda Guerra Mundial, na cidade que deu início à documenta em 1955.

Hoje, 40 anos depois, quem entra em Kassel, vindo da principal estação de trem, não tem como não se emocionar ao ver uma frondosa alameda florida na primavera, crescendo ao lado de rochas, depositadas ao lado de cada árvore.

Há luz no fim do túnel, desde que resgatemos a pulsão de vida. E, como diria Deleuze, a alegria. A arte tem que sair do circuito que a transforma em mercadoria, tem que incomodar e fascinar.


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