A Chacina da Luz é uma exposição intraduzível, cercada de incertezas, ambiguidades, indignação, lacunas, apagamentos. Reabre o debate em torno do atentado de 2016 a oito esculturas do século 19 que circundavam o Lago da Cruz de Malta, no Jardim da Luz. Na mesma praça, a mais antiga de São Paulo, que abriga a Pinacoteca do Estado, um dos acervos mais relevantes da pintura brasileira do século 19. O ataque, aparentemente sem vínculo ativista, evidencia a desinformação da noção do bem público. Ninguém sabe quem cometeu a barbárie e muito menos a autoria das esculturas depredadas, dois fatos comprovam o total desinteresse brasileiro pela arte pública.

A exposição começa no momento em que a curadora Giselle Beiguelman tem acesso ao laudo policial e visita os despojos das esculturas na casa do administrador do parque. A coragem de demonstrar, nesse momento obscuro político do Brasil, que tudo o que envolve as coisas públicas tem que vir a público e ser discutido, torna a mostra política por sua implicação e emancipadora pelo debate que provoca. A instalação toma a sala principal do Solar da Marquesa de Santos e é, segundo Giselle, um ready-made em um contexto fechado, tal qual ela o encontrou no porão da casa do administrador. “Por três anos os fragmentos estavam lá protegidos, e eu decidi montar a instalação exatamente como as peças estavam dispostas no depósito. Queria reproduzir a cena pós crime. ” O desenrolar da exposição revela detalhes e confronta o espectador com as várias faces desse atentado. Todos os fragmentos foram resgatados e estão na mostra, dando provas de que as esculturas podem ser restauradas, embora não haja o parecer de um especialista. A montagem das peças e sua disposição no piso produzem a sensação de estarmos suspensos sobre a obra.

Para entender como uma artista consagrada em arte digital chega ao tema sobre patrimônio histórico, voltamos a 2014, quando Giselle é convidada para participar da 3ª Bienal da Bahia, onde fez pesquisa no arquivo histórico daquele estado. “Considero esse trabalho um divisor de águas, porque até então eu só tinha me envolvido com a mídias digitais. Em Salvador, trabalhei em um lugar onde se acendesse a luz pegava fogo, então me reinventei”.

Em Chacina da Luz, Giselle toca em outra face das narrativas historiográficas e retoma um episódio constrangedor para uma cidade como São Paulo, que se vê como capital cultural do País. Para a curadora, é a “cicatriz de nossa falência com o espaço público”.

Giselle reacendeu o debate e documentou tudo, passo a passo. “Para realizar essa mostra criamos uma equipe de especialistas. O making off da montagem vira um statement do momento que estamos vivendo”. A curador fechou ruas, usou dois guindastes, passou obras pesadíssimas por cima do pórtico do Beco do Pinto, uma curta e estreita passagem, vizinha ao Solar. Nas escadarias do Beco montou a segunda instalação, Monumento Nenhum, outro enigma para decifrar-se, afinal não é tarefa simples dar forma e nome à desordem. Giselle coloca foco na opacidade que atravessa o patrimônio público brasileiro que se traduz nas pilhas de pedestais, bases e fragmentos de monumentos desaparecidos, roubados ou atacados e que compõem um cenário de desolação. São peças encontradas pela curadora no Departamento do Patrimônio Histórico, no Canindé. A temporalidade fragmentada e a tentativa de compreensão da matéria podem levar o visitante às perguntas. Por que essas peças foram desmontadas? Onde estão as obras que sustentavam? Por que foram descartadas?.

Com raros ou nenhum vestígio de seu passado, esses enigmáticos fragmentos enfatizam a ideia de abandono. Entre eles, pode-se localizar as patas de cavalo que figuram na base de granito bordado com alto relevo do conhecido monumento do Duque de Caxias. Giselle lembra que a base desse trabalho, criado por Brecheret, é considerada a mais alta já feita para uma escultura equestre. “A mutilação ocorreu em 1991 durante um confronto entre a polícia e trabalhadores”.

No depósito do Canindé também foram recuperados alguns postais com fotos dos fragmentos que hoje se tornam prova, objeto de desejo, lembrança. No Solar, eles estão dispostos em gavetas de um arquivo à disposição do público que pode levá-los. No verso deles estão impressas as fichas técnicas e informações sobre cada peça exposta.

As duas instalações trocam o lugar da arte dentro das políticas públicas de memória. Aqui é a arte que provoca o debate sobre memória e esquecimento no espaço público. O efeito que ambas causam no visitante é de indignação diante da passividade do sujeito contemporâneo, com a destruição sucessiva dos bens culturais brasileiros do passado.


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