Cabrita Reis
Frente à Faculdade de Direito de Buenos Aires, instalação do português Pedro Cabrita Reis

Há muito que o formato bienal deixou de ter um único padrão e, mesmo que em geral contenha uma presença multinacional, muitas experiências costumam ser feitas. Há bienais criadas para abordar apenas uma região, como foi a do Mercosul, em Porto Alegre, ou a Europa, como a Manifesta. A iniciativa mais recente delas é a Bienalsur – Bienal Internacional de Arte Contemporânea da América do Sul.

“Usamos o termo bienal como um cavalo de Tróia”, ironiza Diana Wechsler, diretora artístico-acadêmica da Bienalsur. Para ela, esta era uma forma de conquistar apoio e interesse de interlocutores na Argentina e no exterior. A metáfora faz sentido, afinal tudo o que abarca esta recente bienal com sede em Buenos Aires vai muito além do que qualquer outra mostra do gênero já alcançou.

BIENALSUR
O artista africano Romuald Hazoumé da República de Benin, Diana Wechsler, diretora artístico-acadêmica da Bienal sur, a artista Carolina Wolmer, Anibal Jozami, diretor da Bienal SUR, a artista voluspa jarpa, Bertrand Ivanoff, a jornalista Marlise Ilhesca, organizadora da Bienal, e o brasileiro Eduardo Srur FOTO: Patricia Rousseaux

Primeiro, ela é organizada a partir de uma universidade pública, a UNTREF (Universidad Nacional de Tres de Febrero), o que lhe dá um caráter mais voltado à pesquisa e menos preocupado com turismo ou mercado de arte, apesar de seu reitor e diretor geral do evento, Anibal Jozami, e sua mulher, a jornalista brasileira Marlise Ilhesca, serem um prestigiado casal de colecionadores de arte contemporânea.

Além de Wechsler, contudo, que dirige os cursos de mestrado e doutorado em artes visuais na UNTREF, um comitê acadêmico com 30 universidades de todo o planeta, do Japão ao Brasil, reforçam o lado de pesquisa da bienal.

A UNTREF, vale lembrar, possui um espaço expositivo importante em Buenos Aires, o Centro de Arte Contemporânea e Museu da Imigração, onde já passaram excelente mostras, como “Levantes”, em cartaz no Sesc Pinheiros, em São Paulo, do francês Georges Didi-Huberman, que possui uma cátedra na universidade portenha, e “Perder a forma humana”, organizada junto com o museu Reina Sofia.

Portanto, sem dúvida, não é forçado dizer que surja dela uma bienal. Estranho, em se falando desse circuito, é que ela ocorre simultaneamente em 84 espaços de 32 cidades de 16 países, a maioria na América Latina, mas também na Austrália, França e Japão. Com isso, é praticamente impossível uma avaliação precisa dessa iniciativa.

BIENALSUR
Alice Creischer (1960), Andreas Siekmann (1961), As trabalhadoras de Brukman, Instalação composta por dez trajes costurados e desenhos digitais em papel FOTO: PR

Apesar de conter explicitamente no título que é da América do Sul, o conceito de sul está mais próximo ao que o Festival Sesc Videobrasil vem apresentando, isso é, de exibir práticas contra-hegêmonicas, que ocorrem não apenas no sul formalmente. Na documenta 14, aliás, que também tratou dessa questão, isso ocorria com a apropriação da revista grega “South as a State of Mind” (Sul como um Estado Mental), que na Europa representa um modo de pensamento menos duro e racionalista como o que ocorre nos países do norte.

Com essa ampliação do conceito de sul, a bienal argentina também se ocupa de um posicionamento político.  Para Jozami, que além de reitor é também empresário, investir em um evento tão complexo faz parte da função da universidade. “Arte e cultura costumam ser vistos como paliativo para quem sofre desigualdades sociais, mas um de nossos eixos é justamente apoiar projetos sociais que dão visibilidade a grupos marginalizados”, afirmou à ARTE!Brasileiros, no amplo gabinete com móveis de madeira da sala da reitoria, no bairro da Recoleta. Lá ele responde a tudo com detalhes, menos quando a pergunta é sobre valores. Na Argentina, não há leis de incentivo à cultura, o que torna o patrocínio direto, seja do Estado seja da iniciativa privada, e o reitor diz apenas que “a mostra custa menos do que aparenta”.

Marion Baruch, Rumania, 1929, Retrato 4, 2013, Seda, 19cm x 140cm, Coleção Mamco, faz contraponto na coleção do Museu de Belas Artes de Buenos Aires FOTO: PR

Finalmente a seleção de artistas pende entre uma democrática chamada de projetos por edital – de 2500 recebidos, cerca de 300 foram aprovados – para convites a mostras que já circulam em instituições de arte, como “Take me (I´m yours). Concebida originalmente por Julia Peyton-Jones, Andrea Schlieker  e Hans Ulrich Obrist, em 1995, seguindo a moda das reencenações, ela ressurgiu em 2015, na França, com ajuda de Christian Boltanski, e desde então vem circulando pelo mundo, de Nova York a Milão, onde também se encontra agora. O conceito é simples: constitui-se de múltiplos de artistas, como cartões-postais, camisas, posters e bottons, que podem ser levados pelos visitantes gratuitamente.

“Nós trouxemos essa mostra porque essa ideia tem a ver com o conceito da bienal. Aqui, por ocorrer em um local gratuito, tivemos que repor tudo muito mais rapidamente do que nas outras cidades”, conta Jozami.

Aqui se explicita uma das contradições da Bienalsur que, se por um lado busca um lastro acadêmico, por outro não se furta a apelar a Obrist, o mais estelar dos curadores do circuito contemporâneo, que se utiliza de sua celebridade para estar em toda parte, mesmo que com a mesma mostra.  Tal estratégia lembra a recorrente necessidade de validação dos países latino-americanos pelos países do norte. Desnecessário.

Mesmo assim, dentro de um espectro tão amplo, Obrist dilui-se em Buenos Aires, onde outros 26 espaços sediam mostras e projetos ligados à Bienalsur, congregando museus, como o Malba e o de Belas Artes, a centros culturais, como o recém-inaugurado CCK (Centro Cultural Kirchner).

Há de tudo, e dessa diversidade parece nascer a força desse evento: de um desfile-manifesto de Ronaldo Fraga, utilizando temas latinos em modelos não convencionais, às gigantes garrafas Pet de Eduardo Srur, que se assemelham às denuncias de movimentos ecológicos como o Greenpeace.

Ivan Grilo, Nadie ha dejado de existir, 2017, duas placa de 100 cm x 25 cm, bronze FOTO: PR

Entre esses dois exemplos, há mostras sobre colecionismo – dos cinco eixos da bienal, um se chama Coleção de Coleção -, como “Arte para pensar a nova razão do mundo”, com aquisições recentes do museu espanhol Reina Sofia, em geral com alta voltagem política. Os outros eixos da Bienal são: Arte no Espaço Urbano; Arte nas Fronteiras; Arte e Ação Social, e Curadorias Bienalsur.

O título que o escritor espanhol Enrique Vila-Matas dedicou a seu livro sobre a (d)OCUMENTA 13 cairia bem para descrever a Bienalsur: “não há lugar para a lógica em Buenos Aires”. É certo, contudo, que uma ação de arte contemporânea tão ampla e inclusiva, presente desde museus históricos a zonas fronteiriças e carregada de polêmica, é essencial para oxigenar os tristes tempos do avanço conservador no planeta. E Jozami garante: vem mais em 2019.

 


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