Vista da instalação de Nádia Taquary durante a 36ª Bienal de São Paulo © Levi Fanan/Fundação Bienal
Vista da instalação de Nádia Taquary durante a 36ª Bienal de São Paulo © Levi Fanan/Fundação Bienal

Nem todo viandante anda estradas – da Humanidade como prática, a 36ª Bienal de São Paulo, aberta ao público em 6 de setembro, tem graves problemas de comunicação. É muito difícil identificar os 125 artistas espalhados ao longo dos 30 mil m2 do pavilhão, o que gera um grande desconforto. Em parte, isso ocorre por uma decisão conceitual. Bonaventure Soh Bejeng Ndikung, curador geral da mostra, explicou em entrevista coletiva que a intenção de não dar informações próximas às obras era para que os visitantes tivessem uma experiência direta, sem precisar de explicações.

Ocorre que, em arte contemporânea, o contexto é essencial. Além do mais, torna-se falta de respeito com os artistas que as informações estejam distantes a ponto de muitas vezes impossibilitar a identificação. Quando a curadoria sonega informações sobre as obras e os artistas, ela está reforçando a própria curadoria, o que é um contrassenso. Descontextualizar e desistoricizar é praticamente um ato colonialista.

Isso poderia ser aliviado se ao menos o mapa estivesse disponível, mas, ao menos entre os dias 9 e 12 de setembro, estavam esgotados, uma falha no planejamento para a semana de abertura. Tampouco os mediadores estavam devidamente informados sobre obras e artistas. Muitos não sabiam quem eram os autores e autoras dos trabalhos que eles estavam ao lado e tampouco possuíam informações sobre eles. As fichas, quando encontradas, davam apenas dados técnicos, o que, por ser obvio demais, chega a ser irrelevante.

Há informações mais detalhadas em algumas colunas, com textos longos e em formato circular, mas como estão distantes das obras, e aí em excesso, acabam por manter o enigma sobre os trabalhos. Em síntese, há pouca generosidade com o público. 

O próprio catálogo, que em edições anteriores costumava ser denso e uma referência teórica, na 36ª  Bienal é como um guia com informações sucintas. Tão sucintas, que sequer alguns artistas aparecem com suas nacionalidades. Um caso exemplar aqui é o da palestina Noor Abed, que não tem sua origem explicitada e, como na página da internet ela foi identificada por ser de Jerusalém, para a artista Graziela Kunsch, em um post nas redes sociais, é uma “violência”. 

“Aprendi uma vez, com a própria Noor, que muitas pessoas não compreendem o que é um regime de apartheid e acabam imaginando que, de um lado, está Israel e, de outro, a Palestina. E não que tudo está imbricado e que é essa violência maior, que obriga palestinos a serem constantemente escaneados, vigiados, obrigados pelo constrangimento de passar por diversas catracas, mesmo em sua terra”, escreveu Kunsch. Por aí vê-se como informação é essencial.

Seis capítulos

Como se fosse um livro, essa Bienal é dividida em seis capítulos, e seu começo é bem empolgante: a imensa instalação de Precious Okoyomon, que leva o ecossistema do cerrado brasileiro para dentro do pavilhão, como a dar continuidade do próprio parque, cria uma atmosfera simpática e acolhedora, enquanto Gê Viana, logo em seguida, traz as imensas radiolas do Maranhão, com o som das batidas de reggae e tambores dos terreiros, em meio às típicas imagens da artista que desconstrói narrativas colonialistas. 

Vista da instalação de Gê Viana durante a 36ª Bienal de São Paulo. © Levi Fanan/Fundação Bienal

Natureza e cultura se complementam nesse portal de entrada, em uma bienal que tem um título longo e um tanto confuso ao impor a humanidade como figura chave – ignorando outras formas vivas, com práticas, aliás, mais exemplares que da própria humanidade, como autores indígenas e quilombolas costumam apontar, entre eles Airton Krenak, Davi Kopenawa e Nêgo Bispo (1959 – 2023).
“Humanismo é uma palavra companheira da palavra desenvolvimento, cuja ideia é tratar os seres humanos como seres que querem ser criadores, e não criaturas da natureza, que querem superar a natureza”, dizia Bispo.

Apesar dessa escorregada conceitual, o primeiro capítulo da 36ª Bienal, que inclui em sua equipe Alya Sebti, Anna Roberta Goetz, Thiago de Paula Souza, Keyna Eleison, Henriette Gallus, André Pitol e Leonardo Matsuhei, segue forte com obras de impacto, onde há uma interação entre humanidade e natureza. É o caso de Nádia Taquary com a instalação Ìrókó: a árvore cósmica, obra comissionada pela mostra – este procedimento, aliás, é um dos pontos altos dessa edição, já que cerca de metade de suas obras foram criadas para ela.

A obra de Taquary parte da cosmovisão africana que coloca o Baobá, árvore milenar que testemunha o tempo, com seres escultóricos meio-mulher, meio-pássaro, das imagens mais marcantes da mostra.

Perto dela estão obras de Mademe Zo (1960 – 2020), de Madagascar, uma artista têxtil que produz a partir de materiais descartados como fitas magnéticas. Ela também pode ser vista no segundo andar, na área refrigerada. Trabalhos manuais como os de Madame Zo são uma das importantes vertentes desta bienal, como as produções da brasileira Sallisa Rosa e da francesa Carla Gueye. 

Também neste primeiro capítulo, intitulado Frequências de Chegadas e Pertencimentos, está o Sertão Negro, um espaço cultural multiuso em Goiânia, fundado por Ceiça Ferreira e Dalton Paulo, com uma perspectiva muito voltada ao estímulo da produção no território. É outro dos pontos altos desta bienal, ao dar visibilidade ao trabalho coletivo com o espírito “faça amigos e não arte” da última Documenta.

Já o segundo Capítulo, no térreo do pavilhão, dedica-se às Gramáticas das Insurgências. É onde estão trabalhos mais militantes, como a videoinstalação do Forensic Architecture/Forensis, um grupo especializado em utilizar ferramentas de investigação criminal para tratar de histórias reais de violência e exploração, mas que na Bienal se coloca em um lugar de passagem, onde é difícil de conseguir a concentração necessária. Melhor alocada está Ouro Negro é gente, de Aline Baiana,  sobre uma comunidade da Ilha da Maré, na Bahia de Todos os Santos, que defende seu ecossistema local. É ainda neste capítulo que estão dois filmes da palestina Noor Abed, trabalhos delicados sobre corpo, memória e som. 

Contexto

O empolgamento inicial vai se dissolvendo ao longo da mostra, com obras às vezes muito distantes uma das outras, às vezes amontoadas, caso do mato-grossense Gervane de Paula, que recentemente teve uma excelente individual na Pinacoteca do Estado e, na Bienal, aparece com as obras bastantes espremidas. Sua obra, contudo, é essencial em um momento de expansão do agronegócio, tema que ele aborda de forma sarcástica há décadas.

No mesmo piso, outro destaque brasileiro é a paraibana Marlene Almeida, tanto pela sua obra, como pela forma como está disposta. Sua imensa instalação Terra Viva traz rochas e pinturas com tintas orgânicas realizadas a partir de uma meticulosa pesquisa de décadas, que é revelada em forma de arquivo ao lado da obra. São centenas de materiais coletados, cópias de cadernos de pesquisa, com paletas de cores que surgem a partir da natureza. 

Se aqui a obra cresce com o arquivo, o contrário ocorre quase no final da mostra com Alberto Pitta. Há décadas responsável por estampas e figurinos para o carnaval baiano, na Bienal ele é visto com uma réplica de sua loja-ateliê em Salvador. Seus tecidos são de estampas fantásticas, mas ao manter seu espaço de criação vazio, a impressão é de abandono.

A 36ª Bienal contou com quatro encontros internacionais, chamados Invocações, em Marraquexe, Guadalupe, Zamzibar e Tóquio. Não há vestígio desses encontros na mostra, algo estranho e que, novamente, demonstra falta de respeito com o contexto local. Qual o sentido de deslocamentos para lugares tão distantes se eles não se refletem na mostra, nem mesmo em textos dos catálogos ou obras?

O título “Nem todo viandante anda estradas – da Humanidade como prática” é retirado de uma estrofe do poema Da Calma e do silêncio, de Conceição Evaristo. A homenagem é justa e necessária. A Bienal de São Paulo por décadas ignorou curadores e autores afrobrasileiros. Esta edição, apesar de marcar no catálogo que “não é sobre identidades e suas políticas, não é sobre diversidade nem inclusão, não é sobre migração nem democracia e suas falhas”, acaba se revelando sobre tudo isso, mas sem assumir de fato. É preciso entender os motivos dessa autocensura, afinal não estamos na Alemanha, onde vive Bonaventure Soh Bejeng Ndikung, e a situação lá, especialmente no campo das artes, é mais difícil que aqui, a Documenta que o diga. Mas a falta de contexto nesta Bienal ainda precisa ser melhor investigada.

 


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