Hans Op de Beeck, We were the last to stay, 2022. O artista realizou uma instalação, uma vila fantasma abandonada, um cenário petrificado, de aço, madeira, tinta e silêncio, ao longo de um dos galpões da antiga Usina Fagor. Uma Pompeia contemporânea que traz o calafrio de um espaço devastado por uma bomba, a lava de um vulcão ou um tsunami. Foto: Patricia Rousseaux
Hans Op de Beeck, We were the last to stay, 2022. O artista realizou uma instalação, uma vila fantasma abandonada, um cenário petrificado, de aço, madeira, tinta e silêncio, ao longo de um dos galpões da antiga Usina Fagor. Uma Pompeia contemporânea que traz o calafrio de um espaço devastado por uma bomba, a lava de um vulcão ou um tsunami. Foto: Patricia Rousseaux

Após uma intensa pesquisa sobre a história de Lyon, os curadores Sam Bardaouil e Till Fellrath escolheram trazer à tona diversas expressões da nossa fragilidade, contada por obras de diferentes períodos da história e da contemporaneidade. Imagens e documentos relatam, na sua própria existência, como o homem reage a sua fragilidade através do tempo.

Manifesto da fragilidade coloca a vulnerabilidade como possibilidade de uma forma geradora de resistência, encorajada pelo passado, sensível ao presente e que prepara para enfrentar o futuro”, diz a historiadora da arte Isabelle Bertolotti, diretora artística da Bienal de Lyon. 

Simone de Beauvoir, uma das escritoras francesas mais famosas do século XX, escreveu lá atrás, em 1946, um clássico do existencialismo francês, Todos os homens são mortais. Nele, o protagonista Fosca é imortal e, em cada um dos personagens que vive ao longo dessa existência infinita, sofre, ao não ser vulnerável, por não poder viver cada momento como único. Por não poder amar, por saber que vai perder o ser amado ou lutar, porque sabe que vai ganhar ou perder, e tudo voltará a se repetir. Seu desejo ficou adormecido. Não lhe falta nada.

Não há anseio de imortalidade nas escolhas da Bienal de Lyon. Ela não nega nossa fragilidade, a encara. Escancara que somos seus reféns desde o dia em que nascemos, o que nos traz a certeza de não estarmos excluídos do tempo, do tempo da história, e do mundo. Onde criar e fazer em cada momento pode nos libertar da angústia da nossa própria morte.

“O manifesto imagina um mundo onde a vulnerabilidade é representada ativamente, uma realidade como base para o empoderamento, em vez de ser evitada como um sinal de fragilidade. Concebido como uma declaração coletiva, é sustentado por uma pluralidade de vozes resilientes que prosperam na ternura e florescem na adversidade”, escrevem os curadores, no Manifesto da fragilidade.

Criada em 1991, a Bienal de Arte Contemporânea de Lyon cresceu sistematicamente em visitação e fundamentalmente no conceito de ocupação da cidade. Ela nasce concomitante ao declínio da Bienal de Paris que, lançada em 1959, chamava-se também Manifestation Biennale et Internationale des Jeunes Artistes, ostentando o experimentalismo e permitindo a entrada só de jovens artistas, até 35 anos. Com o passar dos anos ela foi se abrindo para outras sugestões, perdendo sua originalidade e veio a encerrar suas atividades em 2008. 

Ailbhe Ní Bhriain, “Instrusions II”, 2022, tapeçaria jacquard de linho e algodão. Foto: Patricia Rousseuax

Lyon é a terceira cidade francesa em importância, pela sua história, e por ter exercido um papel preponderante na economia e industrialização na França. Criada na antiguidade pela vontade de Roma, pela sua posição estratégica, tornou-se a capital dos gauleses. Era um importante centro político e religioso, e sua cristianização se deu no século 2. 

“A própria cidade de Lyon também é protagonista: mergulhamos na história de Lyon, que fornece um conjunto emocionante de estratos, para extrair elementos que queríamos ver os artistas explorarem, depois focamos em três trajetórias concêntricas que destacam o tema”, diz Bardaouil. 

Como se tivessem atirado uma pedra no lago, os curadores criaram narrativas que vão se desenvolvendo em círculos concêntricos. O primeiro movimento, As muitas vidas e mortes de Louise Brunet, conta a história de um indivíduo, neste caso a história e resistência de Louise Brunet, uma tecelã (fiandeira), trabalhadora da poderosa indústria da seda em Lyon, e de sua participação na famosa Revolta dos Canuts, em 1834. 

Os canuts eram trabalhadores da seda lionesa do século 19, muitas vezes trabalhando em teares de jacquard, eram sujeitos a condições de trabalho extremamente precárias. Em 14 de fevereiro de 1834, os canuts se revoltaram pela segunda vez, ocupando as colinas de Lyon. A revolta durou seis dias, antes de ser reprimida por 12 mil soldados.

Segundo documentos oficiais encontrados no Ministério Francês de Assuntos Estrangeiros, em Paris e Nantes, Louise Brunet, após quatro anos na prisão, liberta teria sido recrutada por um grande marchand da seda, Nicolas Portalis, que lhe prometera uma vida digna numa Vila de Btetir, no Monte Líbano. A despeito de suas expectativas, encontra as mesmas dificuldades que existiam na França. Maus tratos, condições de trabalho insanas, que a levam a continuar lutando. 

Tomando como base estes dados reais, Bardaouil e Fellrath, num misto de documentação e fantasia, constroem o segundo movimento da narrativa para esta bienal: Beyrouth et les Golden Sixties, situando-a em Beirute, revisitando um capítulo tumultuado do modernismo no Líbano. Com a declaração de independência do Líbano da França, em 1943, Beirute vai se tornar um destino valorizado por artistas e intelectuais do Oriente Médio e da África do Norte de língua árabe. Ainda assim, com fluxo exacerbado de capitais internacionais, a partir de 1958, tensões internas eclodem e instalam um conflito que durará 15 anos e terminará em 1975 com a Guerra Civil Libanesa. 

Aqui foram explorados etnia, gênero, sexualidade e contexto socioeconômico como vários territórios em que o sofrimento individual e coletivo se sobrepõem, através das gerações.  Mais de 230 obras e documentos, de 34 artistas, trazem indícios de como a arte em tempos difíceis permaneceu ativa e relevante. “Beirute tem um microcosmo condensado de incoerências. É uma cidade por si só manifesto da fragilidade, e ela continua mostrando até hoje vulnerabilidade e determinação”, diz o Manifesto. 

Por último, desenvolvido durante a pandemia, no confinamento e num dos momentos em que o mundo e a sociedade global conviveram com uma provação limítrofe, o terceiro movimento: Um mundo de promessas infinita traz os limites e a inevitável fragilidade do nosso corpo. “Seja racializado, colonizado, generificado ou diminuído, ‘ele é a maior manifestação de onde todo começa e termina”, diz o Manifesto. 

No nosso atual estado de incerteza global, climática, socioeconômica e política, provocado pela ação do próprio homem, que depreda seu entorno e o do outro, olhando-se cada vez mais num espelho em que se afoga como Narciso, a arte acaba sendo um elemento de denúncia permanente, um grito sensível.  

Nesse sentido, a construção documental e fantástica a partir de mais de 125 artistas, perscrutando 3000 anos, reconsiderando a História, muitas vezes esquecida ou marginalizada, permite refletir sobre as dificuldades que persistem. 

As exposições e suas narrativas se expandem ao longo da cidade de Lyon, em quatro percursos. No Primeiro Percurso, no lado oeste da cidade, a visitação inclui o macLyon, o Musée Guimet e o Parc de la Tête d’Ór; na direção sul. O Segundo, o Musée des Beaux-Arts; o Musée de Fourvière, o Lugdunum Musée et théâtres romains, Parc LPA République, Pont de l’Úniversite e o MHL-Gadagne; ao leste, o Terceiro, a Usines Fagor e a Place des Pavillons. Por último, ao norte, o Quarto, a URDLA e a Gare SNCF Part Dieu. 

Uma das instalações significativas da Bienal foi montada num dos pavilhões da Usines Fagor, antiga fábrica de eletrodomésticos Fagor-Brandt, que hoje está parcialmente em reabilitação. Na década de 1980 a fábrica ainda empregava 1800 trabalhadores, após diferentes ciclos econômicos, entrou em declínio, até seu fechamento em 2015. O local, atualmente com mais de 29 mil metros quadrados, realiza eventos culturais.

“Experiências sensoriais, contemplação, memória, transposição. Todo o meu trabalho está ligado à ideia de “memento mori’ [lembre-se que você também vai morrer]” diz o artista belga, Hans Op de Beeck, em artigo para Yamina Benaï,  fundadora e editora-chefe da GESTES/S (Groupe Beaux Arts & Cie), “não como uma posição filosófica melancólica ou sombria, mas sim como um convite a considerar ser mortal como uma razão para exercer humildade e empatia, e para que se veja como essencial ser solidário com os outros”.

Em outro dos galpões da Fagor, Standing by the ruins of Aleppo, 2021, da artista Dana Awartani, nascida em Jeddah, Arabia Saudita, chama para outro momento de silêncio e contemplação. Uma instalação com mais de 22 metros de comprimento por 13 metros de largura, construída com tijolos de barro de diferentes regiões da Arábia Saudita.  Uma réplica do pátio da Grande Mesquita de Aleppo traz, a partir dos seus desenhos geométricos, característicos da cultura árabe, a memória dos grandes danos sofridos durante a Guerra Civil Síria.  

No Musée Guimet – um museu de história natural que esteve fechado nos últimos 15 anos –, o artista francês Ugo Schiave ocupa o salão central com a obra de técnicas mistas Grafted Memory System, 2022. Uma instalação com plantas, insetos, vídeos mostrando momentos de destruição da natureza, insetos, fósseis, ossos, LEDS sobre horticultura, reflete sobre o destino do ambiente.

Daniel de Paula, que mora no Brasil e em Maastricht, Holanda, ganhou destaque no segundo andar do Guimet com a instalação Veridical Shadows ou Unfoldings of a Deceptive Physicality, uma escultura contemporânea, composta por diferentes materiais emprestados ou comprados de instituições públicas e privadas após negociações. Ele coloca esse conjunto de coisas descartadas em diálogo com uma máscara funerária romana, preservada em Lugdunum – Museu e Teatros Romanos. O espaço e o tempo formam parte da rede complexa que atravessamos. 

Numa leitura completamente diferente, o sueco Tarik Kiswanson recorre a crisálidas que, quase levitando, desafiando a gravidade, são penduradas pelo avesso de mobiliários que pertencem à história do museu, criando uma sensação de incerteza. 

A brasileira Valeska Soares, nascida em Belo Horizonte que vive e trabalha entre Brooklyn (EUA) e São Paulo, criou para a Bienal de Lyon uma nova versão da sua instalação Folly, um cenário de espelhos, onde é projetado o vídeo Tonight, 2002, gravado em um antigo edifício, Cassino Pampulha, projetado por Niemeyer. “No espaço o espectador é cercado pelos bailarinos numa dança sem fim. A instalação fala de solidão. De um Outro distante, fugaz, mas não impossível”, reza o guia do Manifesto da fragilidade, publicado pela Bienal. A instalação foi concebida num espaço dedicado no Place des Pavillons. 

A Bienal de Lyon trouxe diferentes expressões, produto de pesquisa cuidadosa, e escolha de obras singulares, de qualidade ética e estética. Em conversa, permitiu que artistas de diferentes culturas criassem um ambiente de reflexão a partir de narrativas poéticas sobre nossa existência.


Cadastre-se na nossa newsletter

Deixe um comentário

Por favor, escreva um comentário
Por favor, escreva seu nome