“Inquieto, navegou em todas as águas e experimentou técnicas e suportes diversos como a xerox, o videotexto, a arte postal, microfichas, livros de artista, heliografia, uso da letra-set e instalações sonoras”, escreveu a jornalista Leonor Amarante sobre o emblemático artista argentino León Ferrari, cujo centenário é celebrado neste dia 3 de setembro.

A propósito da data, a exposição retrospectiva La Bondadosa Crueldad percorrerá dois anos pela Europa. Sua inauguração será no dia 15 de dezembro no Museu Reina Sofía, em Madrid (Espanha) – onde sete salas serão dedicadas à obra de Ferrari -, com sequência no Museu Van Abbe, em Eindhoven (Holanda), onde permanece de 8 de maio até 26 de setembro do próximo ano. O percurso da mostra, na Europa, termina em junho de 2022, no Centro Georges Pompidou, em Paris (França).

La Bondadosa Crueldad propõe um percurso pelas obras, ideias e lutas políticas que atravessaram a vida do artista argentino. Trabalhos que “desmontam as sequências naturalizadas de violência propagadas pela guerra, religião e outros sistemas de poder”, e que “convidam quem os olha a parar, refletir e se posicionar”, segundo a Fundação Augusto y León Ferrari-Arte y Acervo.

A exposição agrega ainda um número significativo de documentos inéditos disponibilizados pela Fundação Augusto y León Ferrari para apresentar outros pontos de vista sobre sua produção e as várias ações que desenvolveu ao longo da vida. Tal proposta feita pela fundação, de fornecer uma visão alargada acerca da vida de León, será transportada para suas redes sociais durante o mês de setembro, contando com ciclos de publicações, registros e histórias enviados por amigos e familiares que compartilharão suas experiências com León e seu trabalho.

 

Já em seu país natal, o Museu Nacional de Belas Artes montou em seu hall de entrada uma das obras mais marcantes do artista: La Civilización Ocidental y Cristiana. Exibida pela primeira vez em 1965, ela apresenta uma figura de Cristo crucificado nas asas de um avião de guerra estadunidense. Sua importância é tamanha que, para a curadora Andrea Giunta, depois desta obra “León abandona a arte no sentido tradicional do termo”.

Enquanto a instituição permanece fechada à visitação, La Civilización poderá ser vista a partir do exterior do museu. Em novembro ela parte para a Europa como integrante da mostra retrospectiva. O trabalho retorna ao Belas Artes em 2022, depois da finalização de La Bondadosa Crueldad, dando início à temporada de exposições do museu, com ações anteriormente programadas para 2020 e adiadas devido à pandemia do coronavírus.

“La civilización occidental y cristiana” (2008). Foto: Museo Nacional de Belas Artes.

No site do Belas Artes já pode ser conferido, na íntegra, o filme Civilización, premiado no Festival de Cinema Independente de Buenos Aires em 2012, um ano antes do falecimento de Ferrari. Dirigido por Rubén Guzmán, o documentário registra entrevistas exclusivas e mostra o feitio de uma obra original especialmente para o filme (Assista aqui).

León e o Brasil

Andrea Giunta afirma que “a obra que León realiza nos anos 1960 é delicada e monumental. Os desenhos de linhas flutuantes, apenas uma sucessão de traços sobre o papel, dialogam com suas esculturas que soldam ou enredam o arame”. Ao mesmo tempo, tais trabalhos convivem com La Civilización Occidental y Cristiana (1965).

Focado na Guerra do Vietnã nos anos de 1966 a 1970, Ferrari retorna às esculturas de aço abstratas durante o período que morou em São Paulo entre 1976 e 1991 (ele retorna a Buenos Aires logo após). Em 1975, Ferrari parte para o Brasil com Alicia, sua esposa, e toda sua família, para se proteger da hostilidade criada em seu país natal pela ditadura iniciada em 1976 e findada em 1983, quando a última junta militar convocou eleições em outubro. Em São Paulo, León se vincula às formações experimentais da cidade com artistas como Regina Silveira, Julio Plaza, Carmela Gross, Alex Flemming, Marcelo Nietsche e Hudinilson. “O momento paulista [ainda marcado pela prisão ilegal e assassinato de seu filho Ariel pelas forças militares argentinas] é, também, o retorno às escrituras sagradas e ao papel que os escritos bíblicos exercem na história do Ocidente”, lembra Giunta.

Em uma tentativa de retribuição, a metrópole paulistana recebeu duas mostras-homenagem com trabalhos de Ferrari. Uma no MASP, em 2015, e outra na Galeria Nara Roesler, em junho deste ano – foi também a galeria que fez, em 2013, a primeira mostra individual de envergadura após a morte do artista, à época com curadoria de Lisette Lagnado e uma seleção de obras que abrangia o período entre 1962 e 2009.

Na mostra mais recente no Brasil, a cidade de São Paulo foi ressaltada como elemento participante do trabalho do argentino, em um esforço de mostrar que a chave do “ativismo” é redutora para explicar sua produção. A exposição trouxe trabalhos de Ferrari que comunicam o absurdo da vida comum, a alienação das multidões e a influência da cidade avassaladora que é São Paulo.

Enquanto isso, no MASP, cinco anos atrás, foram reunidas quase 100 obras – pertencentes ao acervo do museu – em torno do tema León Ferrari: Entre Ditaduras, servindo como “testemunho de seu embate contra as forças antidemocráticas que se instauraram na América Latina nas décadas de 60, 70 e 80”, como escreveu Eduardo Simões para a arte!brasileiros à época. Em especial sobre as heliografias expostas, o jornalista relatou: “León Ferrari fez dezenas de versões deste trabalho, mostrando o percurso quilométrico feito por uma pessoa em busca de informações sobre desaparecidos, sem nunca chegar a lugar algum. Ele tinha humor e estômago para criar este labirinto onde a procura dispara múltiplas releituras da dissolução da vida”.


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