O banquete de migalhas
Instalação O banquete de migalhas, Marcos Zacariades, 2014. Fotos: Rafael Martins

Por Paulo Herkenhoff

Conheci o trabalho de Marcos Zacariades, em 2019, na Art Rio e fiquei muito impressionado. Na época, eu não tinha noção do que mais havia do pensamento dele e hoje vejo que foi apenas a ponta do iceberg. Mesmo em meio ao corre-corre da feira, imediatamente achei que aquele trabalho faria muito bem ao acervo do MAR (Museu de Arte do Rio), e generosamente Marcos aceitou doar, mas não entregou a peça. Fiquei com medo, afinal peça doada e não recolhida pode vir a ser peça não recebida. Depois compreendi se tratar de um excesso de rigor, disse que estava insatisfeito com alguns elementos, que precisava repensar e refazer algumas questões. Então, ali, já tive uma noção inteira de que era um artista rigoroso em termos de forma.

Depois tivemos mais um encontro no Rio e tive acesso a outras imagens do seu trabalho e pensei em escrever sobre ele, conversamos sobre sua obra, a exposição, o livro e, finalmente, fui visitar sua mostra O tempo espelhado, em exibição na cave subterrânea da Vinícola UVVA, na cidade de Mucugê, em plena Chapada Diamantina. Para mim foi uma grande revelação encontrar aquela exposição, naquele lugar, com aquela força. Tenho dito que, embora não tenha visto tudo o que se expôs este ano no Brasil, mas vi bastante, eu acho difícil que tenha uma exposição que supere em rigor formal, em vigor político e intelectual a mostra que hoje temos naquela galeria. O trabalho do Marcos tem uma grande abrangência, um diapasão de muita largueza. É o que eu acho que é uma obra épica.

O susto começou logo no primeiro dia e se seguiu depois, com a visita a Igatu, pequena vila a poucos quilômetros de Mucugê, onde Marcos Zacariades vive e, desde 2002, mantém a Galeria Arte & Memória. Igatu é uma cidade de pedras, e cada pedra tem uma história que vai se desenrolando. Essas pedras são marcos de vida. Eu me lembrava o tempo todo do poema de Drummond – “no meio do caminho tinha uma pedra” –, que podia ser uma pedra que exigia suor, que causava dor, perdas, mas também podia ser aquela pedra que seria valiosa e que sua venda daria para garantir o requeijão na mesa do garimpeiro.

Não digo que foi uma aventura, foi uma descoberta de que talvez cada um de nós brasileiros pertença àquela história. Aquela história se desenrola dentro de cada um de nós brasileiros porque ali, dentro daquela usina de pensamento, surgem dramas, surge poesia, surge a questão do trabalho. É o que eu chamo de diagrama de alteridade, de sociabilidade, uma arte que pensa na devolução à sociedade, pensa no outro, incorpora o outro no trabalho e como sujeito econômico da obra. Acho que o que existe em Igatu e na galeria da Vinícola UVVA é uma gema ainda não trazida à luz, em termos do olhar brasileiro.

Essa é uma questão primeira. A outra questão foi encontrar naquela vastidão a experiência da UVVA e da Fazenda Progresso. A atuação da Família Borré é ímpar, exemplar, um paradigma. Para além do agronegócio e da cultura do vinho, ali existe arte. A vinícola ostenta uma arquitetura espetacular, com um mobiliário de designers brasileiros como Sergio Rodrigues. Há um processo de valorização da cultura brasileira. E, quando se trata de uma galeria de arte que se mistura às barricas, que mostra o solo da Chapada Diamantina com suas camadas, nós estamos falando de uma totalidade de percepção do mundo, da geografia humana, da geografia cultural e dessa correlação entre culturas.

Quando vejo essa revelação, o que posso dizer é que Fabiano Borré é um empresário moderno que entende que o capital financeiro também deve ser convertido em capital simbólico. Isso eu digo por que acho que ele está ao lado de grandes empresários modernos, como foi Ivoncy Ioschpe, como é a família Setúbal com o Itaú Cultural, como foi Julio Landmann na condução da Bienal de São Paulo, e outros que fazem essa conversão de capital financeiro em capital simbólico, como uma forma de devolução à sociedade de parte do que afere com o trabalho coletivo.

Igatu é um lugar de mulheres modernas. Digo moderna no sentido da mulher que não tem medo de trabalhar para sobreviver. Lá eu conheci figuras inspiradoras como Nívia, diretora de uma escola e também grande doceira, e Dona Zelita, com seus quase 90 anos, ainda cuidando da casa, do seu pé de araçá. É a mulher que melhor sabe arear uma bacia em Igatu e tem a máxima de que aquilo que “se precisa, se preserva”, que dá nome a uma das obras de Zacariades. Tudo é muito entrelaçado, a tradição de Igatu é também a sua modernidade. Através de Marcos, Igatu pensa uma modernidade que se finca na tradição do diamante, do cascalho de Herberto Sales, na inovação de Kátia, da Pipoca Moderna, um carrinho de pipoca adaptado que fica na praça e na escola com livros à disposição das crianças.

Então o que fica para mim é que Marcos Zacariades produz algo absolutamente inesperado. Uma exposição que é um grande argumento em favor da recondução da civilização brasileira, que é capaz de lançar um grito contra todo tipo de violência, todo tipo de destruição, todo tipo daquilo que faz mal à sociedade, que faz mal aos corpos. É uma exposição que diz que é possível um diálogo entre as diferenças, um diálogo que vem do mais profundo rincão, que é um centro exemplar do mundo também. O centro do mundo é sempre onde está um grande artista. Para mim o grande desafio agora é dar conta dessa complexidade. Será que é possível reduzir essa exposição a palavras? ✱


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