O arquiteto Jorge Hue, no dia em que completou 90 anos de idade, em sua casa, no Rio. Foto: Marcos Pinto

“Minha desconfiança vem de um comentário que Oscar Wilde fez no prefácio de O Retrato de Dorian Gray. Ele diz mais ou menos o seguinte: ‘Quando fala de si, a pessoa é sempre complacente ou absolutamente corrosiva’. Mas, se você estiver em uma ilha deserta, deitado na areia, sem a necessidade de uma esteira de vime, como cantou Vinicius em Tarde em Itapoã, mas deixando o pensamento correr e fluir, a vida surge de maneira caleidoscópica. Tudo que você fez e sentiu vem de maneira muito mais nítida.”

A observação de Jorge Hue, na manhã desta sexta-feira, 6 de agosto de 2013, dia em que ele completa 90 anos, vem de forma voluntária, e sucede o comentário inicial de que devíamos passar por momentos cronológicos para traçar um perfil que desse conta de sintetizar, em poucas páginas, sua irrepreensível trajetória profissional. Mas Hue, que engavetou o diploma de sociólogo para fazer história como arquiteto, não quer mesmo holofotes, tampouco voltar-se para o próprio umbigo para cantar os louros do passado.

Movido por essa tônica dominante, com impressionante serenidade e conhecimento, Hue começa a discorrer sobre uma série de questões. E assim conduz a conversa do começo ao fim, com uma sutileza que torna suas façanhas quase imperceptíveis. Ele não fala explicitamente sobre si, mas diz muito sobre quem é. De quebra, oferece lições valiosas de sabedoria. De maneira que a conversa a seguir, como as obras de seus pares Oscar Niemeyer e Lucio Costa, que assina o projeto do moderno edifício onde ele vive no Parque Guinle, seguirão estruturalmente despojadas e objetivas. Sem grandes intervenções, dispensemos, então, o supérfluo. Afinal, menos sempre será mais, como escancarou Mies van der Rohe, um de seus mestres.

Desejo
As únicas coisas que eu gostaria que continuassem sempre comigo: a lucidez, a generosidade e a coragem. Seria muito difícil que alguém como eu pudesse ter tido sete filhos, 16 netos e 11 bisnetos – aliás, o 12o está prestes a chegar! –, sem que tivesse o tempo todo presente em minha vida o sentido de coragem e generosidade. A coragem deve estar em tudo. Ela não é um otimismo besta, pelo contrário, é conforto permanente com tudo.

Romana – Banheiro com box, chuveiro, vaso, bidê e cama de massagem, de inspiração romana. Rio de Janeiro, 1962

Ensaios e uma carta
Tenho uma grande quantidade de textos sobre os mais variados assuntos, que jamais publiquei, e tinha também a pretensão de publicar um livrinho de ensaios nesta data, mas não os concluí. Só que a qualquer momento posso escrevê-los, ou simplesmente me deitar no chão e ditar essa coisa toda. Posso fazer um devaneio e gravar. Por que não? São nove ensaios e, por fim, uma carta aberta ao neto de um dos meus bisnetos. Os ensaios são sobre coisas práticas, como a caneta, o lápis, a barba, para não encher o saco de ninguém. Pequenas digressões sobre objetos e divertimentos. O primeiro ensaio é sobre a revitalização do tempo. Outro se chama A Barba do Faraó. Me interesso muito pela história da barba, tenho um livro chamado Thousand Beard. Aliás, depois de uma escravização de anos e anos fazendo a barba, descobri, há três, o quanto é confortável não fazê-la (Hue sempre usou bigode). Outro ensaio se chama A Lua e a Roda. Mas por que a Lua? Porque a roda não surgiu como uma coisa intuitiva, e ela é totalmente intuitiva. Basta dizer o seguinte: os astecas, os maias e os incas não tinham rodas. E, se você observar a lua cheia, lógico deveria intuir a roda. Claro que as bigas romanas, e mesmo as egípcias, já tinham rodas, mas isso não quer dizer que ela se consolidou. A África até então desconhecia a roda. A Ásia ainda não tinha a roda.

Três mulheres e o amor
Antes da carta que deixarei para meu tataraneto, haverá um ensaio chamado As Três Mulheres. São elas: Nossa Senhora, mãe de Jesus Cristo, Maria Madalena e Madame de Warens (Françoise-Louise de Warens), que foi quem iniciou Jean-Jacques Rousseau no amor. Ela foi, para ele, a descoberta do saber junto com uma coisa sublimada, que é a ideia de um sexo mais ligado à natureza, ao saber, à delicadeza, ao toque, ao cheiro, ao calor, à proximidade, à identificação de ideias. O caminho peripatético, toda uma série de revelações tão extraordinárias para Rousseau, que, por uma série de razões, quando, depois de três anos idílicos, teve de abrir mão de tudo isso e voltou para ela, somente dois anos depois, ele encontrou Madame de Warens casada e infeliz. Foi aí que ele perdeu totalmente sua segurança, que perdeu o Paraíso”

Mutações do mundo
Noventa anos é uma vida razoável. Já vivi e vi tantas coisas que não tenho a mínima perspectiva do que acontecerá em 180 anos. O galope que nós fomos conduzidos pela evolução da informática nos coloca numa descartabilidade total. Mesmo coisas estáveis, feito a arquitetura, passam a ser presas de vicissitudes que ninguém pode programar. O Edifício Manchete, por exemplo, por ser do Oscar (o arquiteto Oscar Niemeyer), é tombado pelo IPHAN. Não podem modificar nada, então, sob certo aspecto, ele é um condenado. Sob o ponto de vista de segurança, tecnologia, falta de terminais de computadores, velocidade nos elevadores, vulnerabilidade das esquadrias, má situação de todo o sistema de ar condicionado e a própria doença do tempo, que corrói determinados processos construtivos de concreto, ele não é perene. Perenes são as pirâmides do Egito. Até mesmo os objetos têm em si o micróbio da própria morte.

Turma de notáveis
Li um livro muito interessante, Flores Raras (Flores Raras e Banalíssimas, de Carmen L. Oliveira, recém-adaptado para o cinema por Bruno Barreto), que conta a história da Elizabeth Bishop e da Lota de Macedo Soares. Quando foi pensado o Aterro do Flamengo, evidentemente entrou gente muito boa no projeto, não só a Lota, mas Roberto Burle Marx, Reidy (o arquiteto Affonso Eduardo Reidy), que fez o projeto do MAM, Lucio Costa, Alcides Rocha Miranda, gente da melhor qualidade. O aterro poderia ter sido uma pista, mas foi transformado em um jardim incrível. Faço aqui também justiça a Luiz Emygdio de Mello Filho, que não só era médico, era, sobretudo, um botânico extraordinário. Com o Roberto ele trabalhou na escolha minuciosa de espécies de convivência. O jardim em si é um monumento de acertos, pois ele tem o micróbio da própria transformação, é uma coisa viva. Temos palmeiras e babaçus que morrem depois dos 40 anos. No final da vida, as palmeiras, por exemplo, dão um pendão maravilhoso, morrem, e naturalmente são substituídas, pois, na sequência de séculos, aquelas sementes que caíram vão germinando outras palmeiras.

Obra em retrospectiva – As fotos e desenhos reproduzidos aqui integram o livro Jorge Hue (editora Contracpa). Lançada em 2010, reúne imagens de trabalhos, testemunhos de profissionais e de amigos sobre o arquiteto

Lucio Costa
Foi chamado um primeiro arquiteto (para a construção do prédio onde mora Jorge Hue). Esse camarada tinha um projeto que era uma série de prédios afrancesados. Os herdeiros sentiram a impropriedade do gesto e pediram uma consulta ao Lucio, que disse: ‘Isso aqui vai se transformar em uma grande senzala do palácio’ (o Palácio Laranjeiras, que fica dentro do Parque Guinle e é a residência oficial do governador do Rio de Janeiro, embora, o atual, Sérgio Cabral, não tenha optado por morar lá). E Lucio criou essa coisa inédita, de fazer uma série de prédios, todos embebidos nos princípios básicos do Le Corbusier – pilotis, lajes soltas e independentes, quase a pré-ideia de um loft, com grandes áreas de depósitos onde afloram colunas de sustentação, um brise e uma clautra de tijolo, que filtram as aventuras do Sol. Os únicos pontos de determinação de uma exigência técnica são os pontos hidráulicos. Fora isso, você pode tirar todos os outros elementos do apartamento que ele vira um espaço único. Uma ideia absolutamente extraordinária. O prédio foi construído de 1943 a 1948. O projeto inicial previa sete edifícios, mas foram construídos apenas três. O empreendimento imobiliário foi um fracasso, as pessoas ficavam completamente tontas de morar em um espaço único como esse.

Improvisos no Planalto
A primeira vez que fui convidado a trabalhar no Palácio do Planalto, durante o governo Costa e Silva, me deparei com a seguinte cena: uma sala relativamente longa, com teto acachapado, vidro nas laterais, vidros no fundo e como paisagem a savana! Havia um sofá de madeira e umas espécies de bancos laterais, que lembravam aqueles troncos de cones nos quais os elefantes são chamados, no circo, para por um pé em cima e levantar a tromba. Com a pressa de inaugurar o Palácio do Planalto – e o governo tinha farto dinheiro na mão, mas não importava móveis verdadeiros –, réplicas de peças do Mies van der Rohe foram colocadas lá. Tudo feito com metal dourado e parafuso. Rachavam com o tempo. Cópias de fundo de quintal, feitas a martelo.

Marx, Burle Marx
Minha casa foi invadida por uma série de policiais, às três horas da manhã. Estavam à paisana, mas todos armados. Houve uma coleta de livros, tiraram uma série de títulos suspeitos de minha biblioteca. Um deles, do Burle Marx, imediatamente chamou a atenção deles. Disseram: “Por favor, o senhor tem a necessidade de nos acompanhar até o Ministério da Aeronáutica”. Tratado com correção, fomos ao aeroporto Santos Dumont, no Comando do Espaço Aéreo. Entrei, por volta de 5 horas, quando vi, sem poder trocar uma palavra com eles, dois amigos meus, marido e mulher. Fui levado para outra salinha, onde fui interrogado. Respondi a várias perguntas, mas fui levado de volta a minha casa.

Substituição – O arquiteto foi chamado a São Paulo para complementar um apartamento que estava apenas no esqueleto, após a morte do autor do seu projeto. “O cenário era catastrófico, lamacento e pinguento”, lembrou ele. O resultado ficou assi

Memória do cárcere
Passado algum tempo que Jorge Eduardo (Jorge Eduardo Hue, filho do arquiteto, que militava contra o regime militar) vivia clandestinamente, outros amigos estavam desaparecidos. Um rapaz muito simpático, filho de um diplomata que teve contato com Jorge Eduardo, foi torturado e mencionou meu nome. Eu tinha ido levar o projeto do Palácio do Planalto, que era meu, do Bernardo (o arquiteto carioca Bernardo Figueiredo) e do Roberto (o paisagista Roberto Burle Marx). Quando voltei para casa, vi um sujeito estranho, de costas, fazendo pipi, e fui parado por um mundo de meganhas. Pedi apenas que eles me deixassem estacionar o carro na garagem, mas não pude entrar em casa, porque ela estava cercada. Soube depois que ela tinha sido invadida e os telefones cortados. Fui encapuzado e me fizeram ficar de cócoras no banco de trás de um carro de passeio. Paramos em um quartel na Rua Barão de Mesquita – coisa que soube depois, somente quando saí. Encapuzado, fui levado a uma câmara frigorífica e obrigado a tirar toda minha roupa. Absolutamente nu, me deixaram sozinho. Um frio e um calor danado, que variava de 5 a 30 e tantos graus. Com uma frequência regular, eles vinham em grupos de três, fazendo sempre as mesmas perguntas ordinárias: nome, nacionalidade, nome da mãe, nome do pai… Pouco depois as perguntas foram adensando até chegar à situação em que mudou o tratamento. Tudo foi ficando pior… A namorada do meu filho chamada de puta, Jorge Eduardo chamado de viado… Quando era deixado sozinho ouvia gritos, uivos, lamentos, murmúrios e som de pancadaria. No final de todo esse interrogatório um desses camaradas me deu um tremendo safanão. Passaram-se horas e horas até que vieram outros três, que me tiraram de lá e me fizeram vestir um macacão azul. Nessa altura, com o frio que estava sentindo, o macacão veio bem a calhar. Eles, então, me conduziram para um dos corredores até um lugar onde o chão era úmido, com cheiro de urina. Vi deitada no chão, nua e gemendo, uma moça de 17, 18 anos. Eu a observava por baixo do capuz e percebi que ela estava muito frágil. Choramingava, pedia um médico. Fui levado por dois camaradas uniformizados até a minha cela. Uma cela retangular. Havia nela uma pia, à direita um vaso sanitário rachado e um cano na parede, um pseudochuveiro… Aí é que está a coisa imoral desse negócio. Esses rapazes, que gratuitamente me tratavam com a maior estupidez, eram apenas jovens em serviço militar. Não tinham nenhuma convicção política e não estavam ali defendendo bandeira alguma. Eram movidos por pura estupidez.

Liberdade?
Vieram de novo me interrogar. Trouxeram uma pranchetinha em tamanho A4, um lápis-tinta, uma cor meio roxa, indelével, e o papel era pautado, em folhas soltas. Um extenso questionário. “Quem é De Gaulle?”. “Até que ponto está ligado ao Partido Comunista?”. De novo citaram nome dos meus amigos, queriam saber das minhas ligações com o menino, que, depois de levar choques elétricos, me denunciou. Meu posicionamento era nenhum, tanto quanto tenho agora. Só ajudei pessoas de organizações. Respondi, copiosamente, às perguntas. Escrevi, escrevi… Quando terminei, veio um meganha que me pediu os papéis e o lápis para eu não ter como me suicidar (risos). Depois disso, uma sessão de fotografias. De frente, de perfil, com numeração… Era quase noite quando me levaram para o mesmo banheiro e a menina ainda estava lá, sentada na mesma posição. Eu, descalço e de macacão, novamente de capuz. Veio, então, um camarada que fez uma série de perguntas e disse: ‘Lendo seu questionário encontramos um depoimento sincero, e o senhor vai ser liberado’. Cerca de dois meses depois, recebi um telefonema de alguém dizendo que era do Exército e que eu precisava ir buscar algumas coisas que eram do meu interesse. Preocupado, falei com meu cunhado, que é advogado: ‘Olha João, estou indo ao Ministério da Guerra’ (o episódio aconteceu em janeiro de 1972, em pleno governo Médici que, ironicamente, contratava os serviços de Hue). Entrei numa sala, tinha lá uns sacos e uma grande quantidade de livros meus, entre os quais, o do Burle Marx (risos).

Perfeccionismo – Desenho com minúcias de detalhes de um salão no Rio Janeiro, feito no ano de 1956

Quatro rodas
Demorei muitos anos para me sentir no direito de comprar um carro conversível. Comprei um de segunda mão, mas muito conservado. Tinha sete filhos, e eles é que tinham a preferência. Para me dar o direito de comprar o carro fiz um estudo de dois anos, a fim de saber quantos dias perfeitos existiam no Rio de Janeiro, dias nos quais eu poderia decretar feriado nacional. Eles deveriam ser antecedidos e sucedidos por outro dia perfeito, se não não poderiam ser considerados perfeitos. Encontrei 11 dias por ano. Foi então que me dei o direito de ter o carro. Nesses dias perfeitos eu saía de manhã, chegava até um determinado ponto da Barra, e, quando via a pedra da Gávea do lado oposto, voltava para casa. Nunca tive um objeto em toda minha vida que eu tenha gostado tanto quanto gostei desse carro, um MG conversível, de 1958. Fiquei com ele por dez anos, de 1975 a 1985. Quando o vendi tive certeza absoluta de que estava envelhecendo.

Além da vida
Para uma pessoa de 90 anos a vida desfila, de maneira impressionante. E, é claro, sempre valeu a pena viver. As coisas se fundem: alegrias, tristezas, tudo que você conquistou. Mas não preciso de data alguma para celebrar essas coisas. A partir de um determinado momento elas estão sempre presentes. E não há nenhum sentido mórbido nisso. Pelo contrário, até mesmo minha amiguinha morte é tão alegre quanto as coisas boas da vida.

Depois de quase três horas de uma aprazível conversa, intercalada por cerca de 20 ligações telefônicas de familiares e amigos ansiosos por parabenizar Hue pelos 90 anos, a entrevista chega ao fim. O encontro foi testemunhado pelo cientista político Paulo Sérgio Pinheiro, fundador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo – USP, membro da Comissão da Verdade, e Presidente da Comissão da ONU para a Síria. Personagem de capa da edição de agosto de 2012 de Brasileiros, Paulo Sérgio é amigo incondicional de Hue desde a década de 1960. Foi ele que, em um gesto de coragem e lealdade, acolheu, em São Paulo, Jorge Eduardo, o filho do arquiteto, perseguido pelo governo Médici. Em dia tão especial, Paulo Sérgio fez questão de pegar a ponte-aérea para visitar o grande amigo e sua inseparável companheira, Anna Luiza, espécie de Madame de Warens de Hue – muito embora, claro, ele tenha tido sorte maior do que a de Rousseau.


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