Fine, 1996-1997, Qiu Zhijie, chromogenic print. The J. Paul Getty Museum, Anonymous Gift. © Qiu Zhijie

*Gustavo Von Ha

Duas exposições realizadas no primeiro semestre no J. Paul Getty Museum, em Los Angeles, atravessam mais de um século de fotografia, documentando um processo que impactou não apenas o nosso entendimento da fotografia na contemporaneidade, como também nossa ideia sobre política e cultura ocidentais. Ambas as exposições abordam, de formas distintas, a noção de reencenação na fotografia.

A expo “Encore Reenactment in Contemporary Photography” reunia trabalhos de sete artistas (Eileen Cowin, Cristina Fernández, Samuel Fosso, Yasumasa Morimura, Yinka Shonibare CBE, Gillian Wearing e Qiu Zhijie) que utilizam a fotografia para “reencenar” o passado e assim a partir dele destacar lacunas históricas e apontar de forma crítica para narrativas já estabelecidas no cânone da história da arte.

Paralelamente, na sala que antecede esse grupo contemporâneo, havia uma exposição individual de Oscar Rejlander, a primeira grande retrospectiva desse fotógrafo sueco do século XIX que também utilizava a reencenação como estratégia para a construção de seus trabalhos. Ao recriar em fotografia ícones históricos como a Virgem em Oração do pintor italiano Sassoferrato, o trabalho perde a referência temporal, dando a sensação de que todas aquelas imagens compartilham do mesmo tempo onde passado, presente e futuro habitam um único espaço, um ambiente criado pelo artista para além daquelas imagens. Essa percepção é reforçada por uma luz que parece escapar da moldura das fotografias, revelando que estamos diante de uma cena, de um teatro metafórico e real. Mas a que tipo de teatro essas imagens se referem afinal?

Já na exposição de artistas contemporâneos, os trabalhos mostram abordagens distintas ao explorar narrativas históricas da arte, enquanto outros reinterpretam histórias mais pessoais. De todo modo, todos eles usam a reencenação como estratégia na construção daquelas imagens trazendo à vida textos, relatos e registros visuais que traduzem a formação histórica de cada um. Por meio de esforços obsessivos para garantir fidelidade em relação às narrativas originais, os artistas “reencenadores” se tornam especialistas nos assuntos que investigam e podem transmitir um conhecimento íntimo sobre eles. Por meio dessa pesquisa todos eles acessam um museu imaginário, pois trabalham à luz de imagens reconhecíveis no âmbito da história da arte.

A repetição está diretamente ligada ao processo de aprendizado humano, nosso desenvolvimento intelectual se dá muito por meio da imitação. No campo da arte, podemos citar os ateliês em que, desde a antiguidade clássica, havia um mestre para ensinar seus discípulos por meio da cópia dos modelos e padrões estéticos vigentes, em um ambiente em que a autoria tinha um caráter mais coletivo.

Essas exposições me fizeram olhar para dentro do jogo do cenário artístico brasileiro e todas as suas categorias que se criam para certos grupos hoje. Como um artista em constante deslocamento, penso toda essa produção mostrada no Getty a partir de minha própria origem, latino-americana, e formação.

O que todos esses artistas têm em comum é a ideia de um narrador/intérprete: eles próprios desempenhando um papel fictício que esbarra na técnica do tableaux vivant muito utilizada no século XVIII para a produção de imagens, em sua maioria, para pinturas históricas. Isso também fala sobre uma atuação no campo da performance e do próprio teatro. Nessas imagens, todos sujeitos estão atuando como verdadeiros atores. Quando artistas reencenam “obras de arte” mais antigas, muitas vezes agregam um novo significado aos temas originais. A nova imagem se torna ainda mais complexa, somando-se a ela as características da original e seu objetivo é, muitas vezes, criticar narrativas convencionais e destacar histórias sub-representadas.

Apesar da proximidade entre diversos trabalhos ali apresentados, existe uma questão que parece importar muito mais a nós, latino-americanos, do que a esses artistas: a busca pelo ineditismo. Nossa formação acaba sendo anestesiada por tantas imagens desse mundo hegemônico e por isso essa busca incansável por uma independência através do “novo”. Mas a ideia de ineditismo é, na verdade, uma ilusão. Segundo o crítico Roland Barthes, em A morte do autor, tudo o que se produz vem de inúmeras colaborações, diluindo, desta forma, a ideia de autoria.

Dessas fotografias “encenadas” surge mais uma pergunta: o que seria de fato a identidade de um artista nos dias de hoje? Até que ponto podemos ou devemos usar apenas mecanismos próprios individuais para olhar o mundo e fazer “arte”? A ideia da reencenação é também uma quebra na construção da narrativa histórica linear, e dessa forma, ela poderia apontar para modos plurais de construção de outras perspectivas sobre a história. Em que medida somos formados artisticamente por toda essa visualidade que nos atravessa o tempo todo a partir de uma narrativa hegemônica?

Fotografia e aura

Mesmo em grandes mostras como essas, as fotografias ainda parecem ser menos consideradas do que a pintura. No Getty e em quase todos os museus elas são sempre apresentadas no subsolo, “protegidas da luz”. Mas seria esse o real motivo? Ou sua natureza facilmente reprodutível é considerada menor? A aura está relacionada à autenticidade, a existência única de uma obra de arte. Portanto, teoricamente, ela não existe em uma reprodução. Mas considerando que a fotografia capta um momento que não pode mais ser alcançado para além daquele “clique”, a fotografia é, segundo filósofo Walter Benjamin, a última instância da aura em torno de uma imagem.

Avançando para o presente, na era do Instagram, quando esse “momento decisivo” é determinado por um processo totalmente diferente e a mudança para a fotografia digital tornou o papel bastante obsoleto, as reproduções caminharam para uma democratização da cultura, onde a imagem reproduzida pode ser acessada e produzida por qualquer pessoa, reforçando esse mecanismo. A mesma imagem que está no museu está também no site do museu, na revista, no jornal, está solta na internet. Isso nos ajuda a entender como uma única imagem pode capturar e imortalizar um momento decisivo criando um ícone instantâneo. Esses ícones parecem compor um storytelling; são imagens que sequencialmente formam uma narrativa quase linear. As imagens produzidas hoje são inseparáveis da história pois elas continuam a contar uma história seja ela qual for e podem funcionar como índices que contribuem para o sentido de uma narrativa.

Aquele conjunto de fotos é muito mais do que uma exposição, é um ambiente que nos coloca imediatamente num outro tempo, talvez no tempo da arte, aquela cheia de aura, na contramão desse mundo acelerado inundado por imagens onde tudo se dilui.


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