Acima, retrato de Hudinilson em seu ateliê, década de 80.
O que pode a arte? Hudinilson Júnior sempre fez o que bem quis e a resposta a essa irreverência foi tornar-se um ponto fora da curva dentro do universo da arte brasileira. Sua trajetória é marcada pelo colapso do sujeito, explosão da relação com o objeto e radicalização de performances. Com vigor poético sofisticado, somado às experiências corporais e relacionais, Hudinilson deixa uma produção intimamente ligada a São Paulo, seja em performances, grafites ou arte em xerox.
Muitas de suas obras surgem na busca da simultaneidade entre pensamento e visualidade, como no dia em que surpreendeu a cidade com a imagem do seu pênis xerografada em um imenso outdoor, próximo ao parque do Ibirapuera. As reações provocadas pelo atrevimento apontavam para o desmonte das hierarquias do espaço expositivo, destruição do poder de localização da obra e ao mesmo tempo revelava a irreverência do sujeito.
Obra “Sem Título” do artista, produzida na década de 80.
Todo movimento de acionar a des – ordem perpassa pelas obras que tomam agora os 600 metros quadrados da galeria Jaqueline Martins, cuja proprietária é também a curadora da mostra. As novidades são as pinturas sobre tela, realizadas quando o artista ainda era estudante de arte na década de 1970. Uma tensão curiosa permeia a pluralidade do trabalho de Hudinilson, um dos pioneiros do movimento da arte xerox no Brasil. Melhor personagem de sua própria obra, ao criar Exercício de me ver (1981), desorganiza o pensamento crítico com a simulação do ato sexual com uma máquina de xerox. É instigante segui-lo nessa experimentação produzindo outros sentidos para o homem e a máquina. Como não lembrar de Hélio Oiticica quando sentenciou: “experimentar o experimental”? Hudinilson se expressa, sem pudor, por meio de várias linguagens que, em algumas circunstâncias, passa a ser instrumento de especulação. Para o crítico Jean-Claude Bernardet, “a fragmentação do corpo pela xerox, converte-o em paisagens abstratas, nas quais os fragmentos se esvaem”. Em sua performance com a máquina copiadora, ele utiliza seu corpo como matriz para a reprodução e investigação de possibilidades visuais.
Em 1979, Hudinilson cria o grupo 3Nós3, com os artistas Rafael França e Mário Ramiro. A união por afinidades eletivas era de amigos que pactuavam arte e forma de fazer arte. Até 1982 eles intervêm em vários pontos de São Paulo, praticando a reapropriação lúdica e crítica da cidade. O repertório de ações vai desde o ensacamento de monumentos públicos à intervenção no buraco de respiração de um túnel, à lacração de portas de galerias de arte. Todas entendidas como marco revolucionário contra as determinações racionalistas e controladoras da metrópole. Mesmo atuando com o grupo, ele jamais abandona sua produção individual que dura mais de três décadas.
Desde o início, Hudinilson mantém uma forte relação com a colagem, ponto de partida para uma fase comentarista. A isso se somam experimentos na xilogravura, suporte pelo qual a maior parte dos artistas brasileiros passou, utilizando decalques de imagens fotográficas. Hudinilson passava longas horas escolhendo fotos de corpos nus que retirava de revistas americanas. Em 1984, abandona esses modelos e centra toda a sua atenção em torno dele mesmo, quando se dedica a Narcise/Estudo para autorretrato (1984). Nesse “ensaio” dialoga com o mito de Narciso e cria sua própria identidade visual. O projeto envolve uma série de trabalhos, como uma espécie de “ópera”. Narciso passa a ser obsessão para ele que, nos últimos cadernos de colagens, revela seu interesse pelo estudo do nu masculino.
Hudinilson Jr, Amantes e Casos
Na década de 1980, o lugar da arte de Hudinilson é a rua, onde inventa grafites com desenhos incorporados à escrita, numa reivindicação de espaço de liberdade total. Seu mentor e cúmplice, Alex Vallauri (1949-1987), foi o primeiro artista brasileiro a aderir ao grafite. Como ele, Hudinilson trabalha com máscaras ou estênceis na busca de um novo espaço formal para criar, uma resistência em vão, como se fosse possível alguma naturalidade na arte.
Em vida Hudinilson se salvou de experimentar a vertigem ilusória de pertencer ao mercado de arte e de participar da internacionalização por meio das maratonas repetitivas de feiras e bienais. Só depois de sua morte seus trabalhos chegam ao exterior e desembarca, em junho, na Art Basel, na Suíça, a mais antiga e reverenciada entre as feiras de arte do mundo.
Hudinilson Jr. Até 06 de setembro de 2019 Na Galeria Jaqueline Martins Rua Dr. Cesário Mota Junior, 433 – Vila Buarque, São Paulo
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O corpo da linha: notações sobre desenho, de Edith Derdyk
Por Tatiana Eskenazi*
Vim pelo caminho difícil, a linha que nunca termina, a linha bate na pedra, a palavra quebra uma esquina, mínima linha vazia, a linha, uma vida inteira, palavra, palavra minha. Paulo Leminski
No princípio, era a linha. Do primeiro traço humano, registrando o gesto, à elaboração da linguagem. Antes mesmo, do humano: a linha que dá forma ao mundo. Partindo de um paradoxo, “como um traço contínuo de uma só dimensão pode ser um corpo?”, e nos paradoxos reside um imenso potencial criativo, em seu novo livro O corpo da linha: notações sobre o desenho, a artista e escritora Edith Derdyk percorre um trajeto que não é linear, mas que segue um fio da meada em torno da linha e suas infinitas possibilidades, e propõe uma investigação sensível e profunda sobre o ato de desenhar.
O livro se organiza como uma costura de fragmentos (pequenos ensaios, aforismos, imagens e provocações) que se conectam por um fio condutor: a linha. Essa linha, no entanto, não é apenas formal. É também existencial. “A linha é condutora de uma experiência que atravessa o corpo, é território de trânsito entre o dentro e o fora”. Não à toa, por vezes, temos a impressão de tratar-se de um grande poema, um manifesto, ou um livro de artista.
E se o corpo da linha quem dá é a mão que alinhava, assim a autora o faz. A linha como processo, em um alinhavar contínuo, “o gosto pelo caminho sem destino”. A intenção é esgotar a linha em todas as suas possibilidades — ainda que isso seja impossível. “E, porque inalcançável, impulsiona o eterno desejo de deslocamento, vocação da linha.” Porque aqui, nada importa mais do que o processo, a investigação, da arqueologia da linha a novas formas de ver e traçar futuros possíveis.
Articulando referências de diferentes áreas — filosofia, literatura, artes visuais — para aprofundar seu pensamento, somos conduzidos por um coro de autores, artistas e pensadores ao longo do trajeto. Foucault, Deleuze, Deligny, Simondon, Ponty, Valéry, Lispector, Mario de Andrade, Fernando Pessoa e muitos outros aparecem como vozes que se entrelaçam à sua reflexão, dando corpo ou ajudando a construir esse corpo em movimento da linha. Essas referências, no entanto, não se impõem como autoridade: são partilhadas como companhias de percurso, numa construção coletiva. “Não é uma citação que justifica, mas uma citação que pulsa, que vibra junto”.
Em O corpo da linha, Derdyk propõe pensar o desenho como uma forma de conhecimento sensível e intuitivo. Mais do que uma técnica, o desenho é apresentado como experiência do corpo, gesto de pensamento e modo de habitar o mundo. “Desenhar não é apenas traçar, é inscrever-se, é um modo de escuta, uma forma de estar presente”. O desenho como a língua mais antiga, “tão antiga e tão permanente que atravessa o arco das civilizações, nosso convívio coletivo.”
Uma das ideias centrais do livro é que o corpo está presente em todo gesto de desenhar: “O corpo inteiro está na ponta do lápis…” E não só o corpo físico, mas também o corpo simbólico, poético, político. “A linha é o corpo em estado de pensamento. É o corpo que pensa enquanto se move”. Ao desenhar, traçamos caminhos, criamos sentidos, fazemos escutas visuais, deixamos nosso rastro no mundo.
Derdyk questiona as hierarquias tradicionais que opõem palavra e imagem, pensamento racional e sensível, teoria e prática. “O desenho não é ilustrativo, é constitutivo. Ele não representa, ele apresenta”. Recusa a normas que aprisionam os desenhos e o livre pensar, que reduzem nossas possibilidades de habitar o mundo. “Escapar da submissão do gesto que, sob o comando do olhar, por vezes subjuga todos os outros sentidos à informação da linha como contorno, e a decorrente suposta fidelidade ao referente, será aqui o nosso aprendizado, o nosso desafio.”
Para nos guiar por esse desafio de abandonar a ideia de linha como contorno, as formas fixas e estáticas, herança da linha cartesiana, a autora propõe dezoito novas possibilidades de linhas, cada uma acompanhada por citações que as disparam: linha-lama, linha-imensurável, linha-membrana, linha-aparição, linha-cartopográfica, linha-deriva, linha-é, linha-acontecimento, linha-emancipada, linha-performativa, linha-horizonte, linha-transitiva, linha-rasura, linha-nômade, linha-projétil, linha-fantasma, linha-teia e linha-destino.
O livro também é uma defesa da potência do fazer manual, da lentidão, da atenção ao detalhe (práticas que resistem ao ritmo acelerado do mundo contemporâneo), e da valorização do erro como potência. “A linha que erra abre possibilidades. O erro, nesse contexto, não é falha, é desvio criativo”. O traço vacilante, a linha que hesita, o gesto interrompido: tudo isso ganha valor como parte do processo. Assim como a vida, o desenho é feito de incertezas. E é justamente aí que reside sua força.
Por fim, O corpo da linha não é somente um livro sobre desenho. É uma obra sobre o gesto de existir com atenção, curiosidade e entrega. Um convite à escuta, ao movimento e à presença. Como diz Derdyk: “O desenho é o intervalo entre o olhar e o gesto. É o tempo suspenso do corpo que pensa”. Só com um olhar atento, presente e curioso — entregue à escuta e ao movimento — é que podemos caminhar juntos. E só caminhando juntos, numa construção coletiva, é que podemos chegar a um lugar que interesse: a novas possibilidades de futuro.
*Tatiana Eskenazi (São Paulo, SP) é fotógrafa, poeta e escritora. Publicou os livros de poemas “Seu retrato sem você” (Quelônio, 2018) e “Na carcaça da cigarra” (Laranja Original, 2021). Ministra cursos e oficinas literárias e colabora com revistas e jornais.
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Clara Sampaio, Mirella Schena e Felipe Gomes da Atmo Cultura junto a Patricia Rousseaux realizadores do evento
Esta edição especial de Arte!Brasileiros é resultado de um encontro. Um encontro de profissionais excepcionais, de diferentes estados e cidades brasileiras que trabalham incansavelmente na e pela cultura brasileira há anos. De pessoas cujo caráter e cuja empatia viabilizaram um trabalho impecável de quase oito meses, com o objetivo de realizar o primeiro Seminário Arte!Brasileiros Internacional fora das cidades hegemônicas, São Paulo e Rio de Janeiro.
Apesar dos brutais cortes de investimentos do governo bolsonarista, do obscurantismo em que o governo tinha mergulhado o país, encontramos, no Espírito Santo, uma intenção pública e política de investir em cultura e educação.
Parte da equipe de São Paulo e Vitória, com artistas, curadores e o Secretário de Cultura do Estado – ES, Fabrício Noronha
Assim, graças à Lei de Incentivo à Cultura Capixaba (LICC), à Secretaria de Cultura de Espírito Santo, na pessoa de Fabricio de Noronha, seu Secretario de Cultura, e ao patrocínio da EDP, empresa que atua em todos os segmentos do setor elétrico, e à parceria entre a ATMO, empresa de cultura de Vitória (ES) e Arte!Brasileiros conseguimos levar, nos últimos dias de março de 2025, duas dezenas de convidados nacionais e internacionais, pesquisadores, curadores, educadores, artistas e gestores de instituições hegemônicas e não hegemônicas, para um evento inesquecível. No Museu de Arte de Espírito Santo – MAES e na Casa de Música Sônia Cabral, centenas de participantes ouviram e debateram sobre narrativas apagadas da história brasileira, sobre iniciativas solidárias de ponta, suas atuações e sugestões de como trabalhar no coletivo e sobre a importância das interlocuções teóricas e territoriais Sempre dizemos que decolonizar é um ato cotidiano, na ciência, na educação, na cultura, na arte.
A defesa da democracia, da justiça social, depende da elaboração permanente de metodologias críticas e projetos de estratégias na defesa de uma civilização que está ameaçada ecológica e humanamente. Acompanhem estas páginas e comprovem esse encontro especial. ✱
Boa leitura!
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Luiza Lorenzetti é jornalista, especialista em Mídia, Informação e Cultura pelo CELACC-USP. Foi coordenadora de comunicação do FETESP – Festival Estudantil de Teatro do Estado de São Paulo. Atualmente, é Gerente Web da arte!brasileiros
Coil Lopes é desenvolvedor multimídia, designer, videomaker e programador. Atuando na ARTE!Brasileiros desde sua fundação, integra criação e tecnologia, produzindo fotografias, vídeos, newsletters e gerenciamento do portal.
Eduardo Simões Jornalista, trabalhou em O Globo, na Folha de S.Paulo, e atualmente colabora com a edição da revista arte!brasileiros digital e impressa.
Clara Sampaio Artista, curadora e pesquisadora de arte. Integra o coletivo ATMO como curadora e gestora de projetos, além de participar de exposições, residências, cursos e publicações. Escreve sobre a instalação Wi-Fi Grátis, montada na biblioteca do Museu de Arte do
Espírito Santo (MAES).
Nicolas Soares é artista, pesquisador, curador e gestor cultural formado pela Escola de Belas Artes da UFBA, em Salvador, e Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Artes da UFES, em Vitória. Diretor do Museu de Arte do Espírito Santo, assina um artigo sobre Nice Nascimento.
Fotos: arquivo pessoal
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Ana Luzes é artista visual capixaba, nascida no centro de Vitoria e criada no Morro do Quadrado. Desde muito jovem a sua paixão foi a fotografia, fazendo dela uma forma de documentar seu entorno. Já com 22 anos, se graduou em Fotografia pela Universidade de Vila Velha (UVV) e resolveu começar a retratar a periferia, mostrar suas raízes, suas historias. Participou da exposição virtual “Séries sobre o isolamento” no Museu Vale em 2021 e atuou com fotografia documental na matéria “Sobreviver para cuidar: Os degraus da vida de Lenir”.
Em 2022, participou da projeção O URBANO ENTRE A REALIDADE E A UTOPIA no Festival de Fotografia Tiradentes e Rotterdam Photo. Com imagens da serie Só se afoga quem sabe nadar (2021), tiradas no Rio Santa Maria, que beira a Ilha das Caieiras.
Em 2023, participou das exposições BRIDGING HORIZONS: Brazilian Photography Today, nos Estados Unidos e Otros Brasiles: La fotografía como expresión de la resistencia, na Cidade do México.
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Peixes e Aves
“Deus os abençoou e multiplicou”
liberdade, ambiente, respiro
no princípio, era o verbo: criar
“a luz chegou em mim quando tudo era trevas”
no princípio, era o verbo: criar
“a luz chegou em mim quando tudo era trevas”
no princípio, era o verbo: criar
“a luz chegou em mim quando tudo era trevas”
semelhança, harmonia, coexistir, presente, futuro
Há mais de três anos, Ana Luzes desenvolve uma pesquisa sobre as criações que existem dentro da favela, em parceria com o Instituto Serenata de Favela. Ao todo, ela dá aula de fotografia e conduz oficinas para 200 crianças.
Na exposição GENESIS: A CRIAção, a artista apresentou, na Galeria Homero Massena, em Vitória, instalações fotográficas baseadas nas 7 etapas de criação do mundo, segundo o primeiro livro bíblico Gênesis, que narra desde um ponto de vista religioso, a origem do mundo. Ao registrar imagens que dialogam com a realidade das periferias, a artista, moradora do bairro Santa Tereza e a iniciativa “cria” , do Morro do Quadro, apresentam intervenções de fragmentos de um grande universo criativo dos bairros do Quadro, Cabral, Jesus de Nazareth, Inhanguetá e Grande Vitória, enfatizando suas vivências, manifestações culturais e resiliência em meio à desigualdade social e que trazem a tona diversos momentos com palavras chaves da historia bíblica.
“Essa pesquisa e estudo para a produção das imagens não foram feitas nos livros, com nenhuma teoria ou especialista em favela , essa pesquisa foi feita na prática com as comunidades, com muitas visitas, conexões e reflexões que influenciaram nas decisões estéticas ou narrativas. Deste modo, a exposição não foi feita apenas sobre eles mas, fundamentalmente, com eles.” diz a curadora Nataly Volcati*.
A exposição é resultado também de um projeto educacional, que inclui o uso de smartphones e câmeras para fazer registros. Crianças são também estimuladas a participar da experiência fotográfica.
“Gênesis é minha primeira exposição individual, mas me orgulho em saber que foi construída de forma coletiva com as pessoas envolvidas no projeto. É o início de uma trajetória que busca trazer as memórias das favelas capixabas para o olhar de outros públicos. Exibir essas experiências na Galeria Homero Massena, um espaço de referência para pautas políticas contemporâneas, reforça a presença da periferia no Centro Histórico de Vitória”, diz Ana Luzes.
“Todo o meu trabalho é sobre, também, um pouco da minha história. Sempre quis abordar a favela de uma perspectiva diferente, de uma perspectiva que encantasse as pessoas e eu acho que isso acabou gerando um bom resultado”.
* Nataly Volcati, cria do bairro Grande Vitória, em Vitória/ES, é pesquisadora-artista e gestora de projetos culturais. Curadora estreante da exposição GENÊSIS: A CRIAção, ao lado da artista Ana Luzes, Nataly traz ao seu trabalho uma abordagem crítica e consciente das questões étnico-raciais, com uma projeção de continuidade na prática curatorial. Formada em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), com ênfase em Sociologia Urbana, atualmente cursa especialização em Gestão de Projetos Culturais no Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (CELACC/USP). Sua pesquisa explora temas como memória e identidades afro-brasileiras e das periferias urbanas, permeando sua atuação intelectual, artística e cultural. ✱
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Círculo Máximo, Geovanni Lima (MG), no Parque de Cultura do Governador, com vista ao mar. Fotos: Divulgação
ARTE!✱ – Seu percurso se inicia pela literatura…
Sim. Eu transito bem nesse campo interdisciplinar, gosto disso, tudo o que faço vem de alguma forma da poesia. Uma busca sempre atravessada por um olhar poético, sobre a forma de ler. Meu primeiro emprego foi numa editora, depois fui trabalhar com publicidade, música, artes. Trabalhando um pouco com tudo que ia chegando. Aprendendo enquanto fazia. Letra de música, cenografia, filme, designer. Fiz cenário para Gal, Macalé, Adriana Calcanhotto. Eu acho que tudo isso para mim vai se conectando. Comecei a fazer curadorias e, de alguma forma, a maneira de pensar é atravessada por essa minha formação, acho que familiar. Meu pai [o escritor e diretor artístico Waly Salomão ] era poeta e também conviveu no meio de artes plásticas. Cresci nessa mistura, nesse caldeirão de referências. Minha formação e a minha vida vão juntas.
Vários anos depois de formado, em Comunicação: Jornalismo e Cinema, voltei para a universidade para fazer mestrado, justamente porque na PUC do Rio de Janeiro tinha esse programa que pensava a literatura no campo ampliado (pegando ali da Rosalind Krauss e a forma de entender a escultura como algo muito além das fronteiras do objeto escultórico e do monumento), que se chamava Literatura, Cultura e Contemporaneidade. E lá era isso, a mistura, olhando pra cultura de forma múltipla. Sem aquela bobagem de contar palavras e rimas pra julgar um poema, para mim uma perda de tempo quando tem tanta coisa incrível acontecendo num bom poema. A forma objetiva, pragmática, eficiente de ler um poema ou uma obra de arte é a eliminação das possibilidades, é o desencantamento da arte. Ou como escreveu em algum lugar [o filósofo checo-brasileiro Vilém] Flusser, estão confundindo rigor com rigor mortis. Ou ainda, como me disse certa vez um professor, “o que importa é a possibilidade de invenção de novos sentidos para o mundo”. Ou seja, o que importa é o desvio.
Um projeto do qual tenho muito orgulho virou livro publicado pela Cobogó, Flutua pelas ruínas, flutua, em parceria com a Editora PUC-Rio e o David Rockefeller Center for Latin American Studies. Na sequência entrei num doutorado lá em Harvard, que foi uma loucura, muda tudo, suas referências, seu ponto de vista, tudo se multiplica. Uma experiência de desamparo que te tira o chão, e aos poucos você vai enraizando novamente, se encontrando.
E eu aprendi assim, com meu pai, a ler as coisas como vivas. Você pega um livro, uma obra de arte, e dialoga, conversa. Alterar. Nômade. Não tenho esse olhar sobre a coisa morta, de dissecar. Fico buscando o pulsar nas coisas. Essa foi minha formação: meu pai, Heloisa Teixeira, Marcelo Yuka, Tunga. Humor e bagunça. Criar e colocar pra fora, em movimento.
ARTE!✱ – Como você chegou ao Parque Cultural Casa do Governador? Acha que seu perfil influenciou no convite?
Sim, o Fabrício Noronha, que é o secretário de Cultura de Espírito Santo, tem uma visão muito ampla, criou em 2021 um edital para esculturas nos arredores da Casa do Governador. Foi o primeiro edital nacional de cultural do estado e transformou aquele enorme espaço em um parque. A Casa do Governador já ocupava uma mítica na cabeça de todo capixaba, um terreno na beira do mar, inacessível. As esculturas permitiram o início da abertura para a população. Na sequência, fizeram mais um edital de esculturas, e com o sucesso e a curiosidade, especialmente a partir de um evento quinzenal chamado Parque Aberto – que, como o nome diz, abria o Parque para todos com shows, eventos, food trucks – o governador Renato Casagrande e o Fabrício criaram o Parque Cultural Casa do Governador. É um espaço incrível, um bosque à beira-mar.
E é aqui que eu entro. Junto com o instituto selecionado para gerir o espaço: o IAC. Eu chego para tentar organizar essa personalidade artística do Parque. Os editais foram muito importantes, mas geralmente criam um todo muito disperso. Um dos desafios (são muitos) é dar força a esse conjunto e expandir. Desenvolver as potências que o Parque tem como um local de convivência com a arte, de estímulo, de encontro, de catalisador.
ARTE!✱ – Parece ter sido uma tendência terceirizar a gestão de espaços públicos através de uma empresa dedicada. Você acha que é isso mesmo? As OSCs, elas têm liberdade de contratação, são autônomas?
É uma parceria. O governo é o, digamos, cliente. Tem a escolha, a voz, ou seja, pode determinar a direção. Mas é isso, é uma parceria. A OSC consegue ser mais dinâmica, trazer outras formas de investimentos. É menos amarrado. E eu acho que no meio das artes funciona, porque o espaço artístico é muito idiossincrático. Ele depende de muitas formas de pensamento. É muito importante criar políticas de desenvolvimento cultural, e isso não acontece com editais de produção de obra, de desenvolvimento. É bom existir, mas muitas vezes acaba mais por segregar, porque cria uma competição, do que unir. E para a produção artística, para a criação, o encontro, a troca, o convívio, o acaso, tudo isso é incrivelmente importante.
Algo que é muito importante num centro cultural fazer as pessoas olharem as coisas de forma diferente, movimentar. E se essa estrutura for muito dura, você não consegue ter essa maleabilidade. Existe uma preocupação minha de [o Parque] não se tornar também só um lugar de evento, um lugar que você vai porque tem algo acontecendo, um show, uma feira, por exemplo, e depois vai embora. Fica tudo reduzido a números: passaram tantas pessoas, que incrível. Engorda os dados. Mas quando aquilo poderia ter acontecido em absolutamente qualquer outro lugar, não se constrói nada, se esvazia. É importante tentarmos criar uma relação com o espaço. Por isso o Parque é um espaço que tem que abrigar, receber as pessoas, pelo que o próprio espaço é. Acho que temos o compromisso de se criar legados, de estimular e criar raízes, aprofundar o trabalho no Parque em algo que se transforme em parte da cidade, que vire parte da vida dos moradores.
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Marilá Dardot (MG), Pensamento de Fora, 2021. Instalação com mais de 20 placas ao longo do parque, com frases e citações de livros de autores (as), mulheres LGBTQAI+, negros (as), indígenas que com uma perspectiva decolonial, foram editados e reeditados no Brasil nos últimos 20 anos. Fotos: Divulgação
Omar Salomão, diretor do Parque Cultural da Casa do Governador
Balança Cotejo, a intenção de compreender a presença, 2023, de Bárbara Carnielli (ES). A obra de arte efêmera coteja, que significa “comparar” o efeito ou processo de dois elementos alí dispostos. A intenção de compreender a matáfora da balança entre dois elementos: um mineral com um corpo orgânico.
Carla Derirée (ES), Agô - do Iorubá, um pedido de licença, 2023, escultura que adentra o espaço do parque para falar sobre ancestralidade a partir dos simbolos religiosos do povo que cultua Orixás, entidades e seres encantados. O espelho localizado no centro da obra, insere a imagem do parque o do espectador no trabalho é elemento de Oxum que representa as águas doces e as cachoeiras
Voar doce lar, Rick Rodrigues & Luccas Martins (ES)
Estados Originários, Renato Ren (ES)
Sutilezas do tempo, Castiel Vitorino Brasileiro (ES). Instalação de bambu a pique, estrutura de madeira, muro de pedra, quartzo rosa bruto e cristal bruto, 2024. Trata-se de um lugar ritualístico e de descanso, que confunde o tempo de início e de abandono, e guarda ou é guardado por grandes cristais vindos de Minas Gerais
ARTE!✱ – Que iniciativas já foram tomadas e quais estão por vir?
Internamente estamos cuidando do espaço e das obras – que nunca tinham recebido manutenção. Reorganizando caminhos para desenhar novos sentidos. E estamos articulando para receber obras de artistas importantes para colocar o Parque no roteiro nacional das artes. Não p
osso dizer nomes ainda, mas fiquem de olho, tem coisa boa vindo. Nessa mudança de novos caminhos, vamos mudar a entrada de forma a criar todo um novo fluxo de relação com o parque. Tem um projeto de derrubar o enorme muro e fazer um gradil, arejando mais a conversa com a rua.
Uma das primeiras novidades, agora já em maio, é o ciclo Desnaturada, com curadoria do Ailton Krenak. Serão três dias de mergulho para pensar a própria ideia de natureza, para gerar futuros alimentados pela ancestralidade, renaturalizar-nos. E qualquer oportunidade para ouvir um sábio como o Krenak, ou o Sidarta Ribeiro, é incrível. O Ailton Krenak tá sempre desconcertando, de passo em passo, de uma maneira muitas vezes sutil, ele desdobra a conversa para te levar por caminhos enviesados. É uma alegria trocar com ele. É uma honra poder recebê-lo dessa forma.
Outra invenção que estamos levantando junto com o Nathan Braga, e que acho que vai ser o grande transformador, é criar uma escola dentro do parque. Estamos aproveitando algumas atividades que existiam no Plano de Trabalho que trazia demandas da Secretaria de Cultura e jogando a barra lá pra cima: ao invés de oficinas e atividades de um dia, trazer um projeto mais completo e integrado, uma escola livre capaz de misturar o meio ambiente, agrofloresta com estudos de arte, de desenho. Não uma escola com um viveiro, uma horta, dentro, mas um viveiro-escola onde se vivenciaria encontros com a natureza, do ambiente e da criação como experiência na arte, como uma atitude de integração com a vida. Pensar formas de vida, entender o outro, desnaturalizar para ler o ritmo do que nos cerca. Escola e viveiro integrados para ser um berçário de futuros. Escola Viva de Artes, a nossa EVA.
Um espaço que sempre me estimulou e inspirou foi o exemplo da escola do Parque Lage no Rio de janeiro. Foi um lugar que frequentei de criança, participava da Colônia de Férias no Parque Lage. Ficava lá, rabiscava, ficava correndo pelo parque. E, ao longo da vida, ia encontrar amigos, viver o lugar, conhecer pessoas, trocar ideias. Por isso o Parque Lage foi importante para tantas gerações, assim como o MAM-Rio na década de 1960, ou a UFBA [Universidade Federal da Bahia, em Salvador] com Edgard Santos antes disso. Esses lugares, por sua simples abertura ao convívio, geram coisas que reverberam por décadas.
Enfim, é um círculo que permitirá ir despertando novas inquietudes nos frequentadores. Mas é isso. Nesse momento temos o desafio e a reflexão de criar esse plano. Eu estou voltando para o Brasil justamente para me envolver com tudo isso aí.
ARTE!✱ – Você nasceu no Rio?
No Rio. Na Zona Sul, mas cresci em Salvador, meu pai foi ser coordenador do Carnaval da Bahia, levado por Gil. Depois voltei pro Rio, andando por todo canto. Já morei em tantos lugares, nem sei mais dizer de onde vim. Adoro mapear lugares novos.
ARTE!✱ – Como estão organizados para a gestão do Parque?
Fred Mascarenhas e Mirella Schena são os coordenadores do Parque. Fred no administrativo e Mirella no artístico-cultural. Eu entro como curador: diretor curatorial. Outra peça bem importante é o Nathan Braga, que é o nosso diretor pedagógico. Ele estava morando em Porto Alegre, trabalhando no educativo da Bienal do Mercosul, e importamos ele pra cá. Uma aquisição superimportante para a gente – especialmente agora com o projeto da EVA.
Na diretoria temos ainda a Dani Maia, que cuida da produção, e recentemente entrou a Melissa, para a Comunicação. Mas a equipe toda é incrível. Mirella, Fred e eu começamos montando a equipe, e temos uma sintonia deliciosa, muito produtiva. Meu braço direito aqui no Parque é o David Trindade, que cuida da manutenção e conservação das obras, e é artista também. Aliás temos alguns artistas/criadores na nossa equipe: o Nathan é um artista da pesada, a Mirella também é cenógrafa, o Kaique, da produção, é DJ e formado em arte, entre outros. Isso gera um olhar e um clima especial aqui dentro. ✱
Assista ao VIII Seminário Internacional Arte!Brasileiros: Narrativas contra-hegemônicas
Por Clara Sampaio Colaboraram: Carlo Schiavini e Elvys Chaves
Wi-Fi grátis é uma frase familiar em boa parte dos centros urbanos, acompanhada de símbolos que se tornaram parte da linguagem visual contemporânea. Invisível, mas essencial, essa rede conecta pessoas, rompe barreiras físicas e redefine a maneira como o conhecimento e a participação se tornam possíveis. No contexto da obra proposta pelos artistas Carlo Schiavini e Elvys Chaves para o 8º Seminário Internacional Arte!Brasileiros em Vitória, porém, essa ligação se propõe como um gesto de “hackeamento”, uma atitude que questiona as estruturas institucionais e a própria materialidade do objeto de arte.
Como podem os públicos estarem ainda mais ativos e engajados? Quais corpos são incluídos ou excluídos das instituições culturais? Partindo dessas questões, os artistas criam uma escultura que explora o deslocamento crítico entre dentro e fora, arte e público.
Posicionada na biblioteca do Museu de Arte do Espírito Santo (MAES) – um lugar simbólico do papel educativo da instituição – a obra estabelece um diálogo direto entre o espaço do museu, seu acervo e a cidade, acionado por transeuntes, que, por meio de uma câmera na fachada do museu, incorporam uma veste digital.
Por sua vez, dentro da biblioteca, imagens são construídas em diversas superfícies, televisores com “defeito”, cujas particularidades de emissão de sinais e glitches compõem pictoricamente seu desenho. Em um deles é possível ver o modelo humano que gerou o elemento vestível: encontrado em um banco de dados, este corpo vazio, misterioso e sem cor, conecta-se aos seus semelhantes num espaço digital infinito: sem tempo, sem som, sem lugar.
Essa fusão entre o corpo e a tecnologia, expõe a onipresença de sistemas que sobrepõem as dimensões do público e do privado, do indivíduo e do coletivo. É a partir nessa noção de rede, que não apenas une, mas também permite observar e codificar, recombinar e materializar, que este trabalho se situa.
A instalação se estrutura a partir de uma composição vazada em ferro, sustentando televisores, painéis e outros dispositivos, criando um ambiente que remete tanto à transparência quanto à exposição dos meios de comunicação e controle. Para os artistas, “a ferragem exposta não é um detalhe secundário, mas um elemento essencial para que a obra cumpra sua função crítica e conceitual. Ela evidencia os processos e materiais de construção e reafirma a necessidade de espaços artísticos mais abertos, acessíveis e transparentes.”
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Instalação
Wi-fi Grátis (ou Intromissão)
Instalação
Wi-fi Grátis (ou Intromissão)
Os artistas Carlo Schiavini & Elvys Chaves juntos a Clara Sampaio, curadora da instalação
Wi-fi Grátis (ou Intromissão)
Nesse embate entre corpo e tecnologia, a fusão entre o humano e a máquina se torna inevitável, e, como nos propõe Haraway 1, “há prazer nessa confusão de fronteiras, mas deve haver responsabilidade nessa construção”. A obra não apenas materializa essa interseção, como também alerta para seus riscos, evidenciando os limites fluidos entre criação humana e artificial, presença e controle, autonomia e vigilância.
Essa experiência convoca as pessoas ao risco: o de serem capturadas, mesmo que momentaneamente, ainda do lado de fora — e instadas a entrar, se quiserem. Wi-Fi Grátis pretende cativar com seu aparente “lugar comum” e convidar a uma reflexão e uma percepção mais profunda das urgências que nos atravessam.
O atrevimento em disponibilizar uma rede de internet em uma instituição ainda sem esse serviço, entende tal questão como urgente, e o gesto como mote e obra. Insere o trabalho na longa tradição da desmaterialização do objeto artístico, mas reafirma sua atualidade ao ressignificar a presença e a democratização dos espaços institucionais. No cruzamento entre tecnologia e estética, questiona-se não apenas o que significa estar conectado, mas para quem essa possibilidade realmente está aberta.
(1) Haraway, Donna J. Manifesto Ciborgue. O Manifesto das Espécies de Companhia. Tradução de Ana Maria Chaves. Lisboa: Orfeu Negro, 2022. ✱
Assista ao VIII Seminário Internacional Arte!Brasileiros: Narrativas contra-hegemônicas
Nicolas Soares, diretor e curador do MAES, na inauguração da instalação Wi-Fi Grátis. Foto: Divulgação
ARTE!✱ – Nicolas, conta um pouco da sua trajetória. É raro encontrar gestores de instituições tão jovens. Quantos anos você tem?
Nasci em Cachoeiro de Itapemirim, no sul do Espírito Santo, em 1987, e sempre vivi fora do estado. Morei no estado do Rio, em Goiânia e em Salvador. Ingressei na Escola de Belas Artes da UFBA, em 2006, com o entendimento de que queria ser artista. Me identifiquei com a fotografia e, logo no início, entendi que esta seria a minha principal pesquisa.
Produzi muito durante o período da universidade. Na época, tínhamos um grupo de amigos artistas, todos da Escola de Belas Artes. Nós propúnhamos diversos projetos e montávamos exposições, muitas delas independentes, em espaços institucionais como Galeria do Conselho, Instituto Cervantes, Aliança Francesa, Galeria de Arte do ACBEU, entre outros. Individualmente, por meio de seleção em chamadas públicas: os Salões Regionais da Bahia (Funceb), Bienal do Recôncavo e Salão da Bahia, no Museu de Arte Moderna (MAM Bahia). Ocupei, entre os anos de 2008 a 2011, diversos espaços expositivos em Salvador, e essas atividades me colocaram em alguns circuitos.
Minha pesquisa como artista está centrada na imagem, em pensar as questões relacionadas à imagem-cultura e imagem-arte. O corpo sempre foi uma atenção à qual me dediquei (e continuo me dedicando): o corpo do outro, as relações de desejo, as relações de poder que o corpo exerce e às quais se sujeita também na cultura. Em um momento, também fui entendendo o meu lugar como um artista negro munido de uma câmera. Tendo o poder de definir imagens – quais imagens e como! Os discursos e as narrativas. Porque o embate, na verdade, parece indissociável e definitivo: que a existência e a ação do meu corpo – pessoalmente – atravessem o trabalho e as imagens que produzo.
A partir daí, dando um salto histórico nesta narrativa, retorno ao Espírito Santo. Vim para Vitória em 2012, e fiz o mestrado no Programa de Pós-Graduação em Artes da UFES. No meu percurso acadêmico, fui professor substituto, assim como orientador de TCC do Ensino à Distância em Artes, na mesma Universidade, entre 2016 e 2018. Neste momento, exercendo atividades no Departamento de Artes Visuais e inserido numa vivência da academia, entendi que o ensino – dar aula – era um trabalho de arte, de certa forma, como um arranjo curatorial: a possibilidade de organizar conceitos, textos, imagens e artistas. De estender meu trabalho no espaço discursivo que é a Universidade, e por muito, o melhor lugar para ser artista.
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Acima, Nicolas Soares. Esta Aporia –AMENSAL, 2016 Casa Porto das Artes Plásticas, Vitória-ES. Fotos: Divulgação MAES
Nicolas Soares. Esta Aporia –uma liturgia do desejo, 2015, Galeria Homero Massena, Vitória-ES
Descarrilho, curadoria de Clara Pignaton; 2023 no MAES. Na vista instalação de JaíneMuniz: Na terra se ver, no ferro perdurar.
Sete Caminhos de Rafael Segatto, 2022, no MAES. Na vista objeto de WeligtonSantos: Caxixide Buzios
ARTE!✱ – E quando você passou a gerenciar espaços culturais?
Fui convidado, em 2019, para entrar na Secretaria de Cultura do Estado do Espírito Santo e assumir a coordenação da Galeria Homero Massena, que é um espaço de artes visuais tradicional no nosso cenário. Um fato curioso é que a Galeria foi o primeiro lugar que visitei quando cheguei em Vitória, em 2012. Em 2015, expus na Galeria uma pesquisa que estava desenvolvendo desde 2011, em Salvador, por meio do Edital de Artes Visuais do Funcultura (Secult). A exposição Esta Aporia: Uma Liturgia do Desejo compreendia uma reunião de fotografias em preto e branco, entre paisagens e gestos simbólicos de corpos nus masculinos na paisagem (que é a linguagem e estética com a qual trabalho há 20 anos), tentando entender como o desejo é uma força que, ao mesmo tempo em que nos impulsiona, também pode nos fragilizar como sujeitos, e, principalmente, forçando a imagem fotográfica em seu lugar devocional. Ainda ao fim da exposição, propus uma ação/videoinstalação no interior da Capela Santa Luzia – capela de arquitetura colonial, datada de 1537, que nos anos 1970 foi a Galeria Arte e Pesquisa da UFES e presenciou diversas manifestações experimentais. Esta pesquisa se desenrolou ainda em Esta Aporia: AMENSAL, apresentada na Casa Porto das Artes Plásticas, em 2016, também selecionada pelos Editais do Funcultura.
Discorri tudo isso para dizer que tenho uma relação afetiva com a Galeria Homero Massena. E ter a oportunidade de contribuir, durante a gestão, para o pensamento deste espaço, para mim, foi um privilégio! Porque uma das relevâncias, em quase 50 anos de Galeria, é que muitos artistas capixabas hoje reconhecidos em suas trajetórias expuseram na Homero Massena. Sempre foi um espaço de experimentações artísticas, respondendo e atravessando estas cinco décadas. De alguma forma, ela nos conta uma história da arte a partir daqui.
ARTE!✱ – Para além das exposições que a galeria produz por meio do Edital de Artes Visuais do Funcultura do Estado, quais foram os projetos que a própria galeria propôs que fortaleceram essa personalidade?
Durante a minha gestão na Homero, em sua missão principal como espaço de arte pública e sua posição na cena artística em todos esses anos de funcionamento, reforcei seu caráter de abertura à nova produção artística. Dessa forma, paralelamente às produções das exposições selecionadas pelos Editais do Funcultura, ativamos uma programação que pudesse estreitar esses diálogos: três edições da Mostra Videografias (2019–2021), Ciclo de Pesquisa e Formação (2019) e duas edições do Fórum da Imagem (2020–2021), todos com abrangência nacional.
As mostras de vídeo tiveram três recortes com artistas não só do Espírito Santo: Videografias do Corpo, Videografias do Meio e Videografias do Convívio — as duas últimas durante a pandemia, sendo umas das primeiras ações da Secretaria de Cultura com apoio de transmissão da TVE. Ainda durante a pandemia, realizamos os dois Fóruns da Imagem: Construção de Imagens Urgentes e Imagens em Trânsito. Foram ações discursivas articulando pesquisadores, artistas e ações educativas – resultando em duas publicações impressas e exposições, com mais de 50 artistas de todo o país. Essas atividades, por meio de chamadas públicas nacionais, me possibilitaram acessar jovens artistas de outros lugares e me trouxeram uma atenção maior a um exercício de curadoria que estava começando a fazer.
Pensar uma articulação para fora do estado é uma preocupação. Logo no início da minha coordenação na Galeria, propusemos um ciclo de palestras que acompanhava as exposições previstas no calendário. O Ciclo de Pesquisa e Formação convidou artistas da cena do Espírito Santo, como Hilal Sami Hilal, e pesquisadoras como Tatiana Rosa, em torno de alguns debates propostos. Como também apresentou e trouxe para Vitória nomes importantes da arte contemporânea nacional, como o pesquisador Guilherme Marcondes, os artistas Ayrson Heráclito e Paulo Nazareth, e a curadora fundadora da Associação Cultural Videobrasil, Solange Farkas. Acredito que este momento tenha sido importante para nos reposicionar também frente a um circuito nacional, além do fortalecimento da própria Galeria como um espaço de discussão da arte contemporânea.
O isolamento histórico do Espírito Santo é quase um trauma, porém nossa pulsante produção nas artes visuais tem vazado as fronteiras e se desvinculado desses apagamentos. Devemos considerar que o incentivo público, a exemplo dos 16 anos ininterruptos do Funcultura, e principalmente na atual gestão do Governo e da Secretaria de Cultura (desde 2019), tem investido no aumento dos recursos e repasses, e contribui de forma significativa para a produção, articulação e intercâmbio da nossa produção em artes visuais, que cada vez mais tem se mostrado nas cenas nacionais e internacionais. Realmente, a produção artística tem conseguido transpor fisicamente o território, e, obviamente, é mérito de cada artista em seus percursos e “corres”, nas frentes de batalha que todos nós, na arte, enfrentamos insistentemente. Tenho muito respeito e orgulho pelo que todos nós estamos contribuindo por esta história.
ARTE!✱ – E quem foi Homero Massena?
Homero Massena foi um dos grandes nomes da arte capixaba – mesmo sendo mineiro –, radicado no Espírito Santo, representou a paisagem do Estado no repertório de seu trabalho. Morou na Prainha, um dos primeiros bairros de Vila Velha, aos pés do morro que abriga o Convento da Penha – que, por sinal, sua subida de pedras foi retratada diversas vezes por ele. Embora esteja ligado ao modernismo, o estilo dele tem muito de impressionismo.
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REVIRAVOLTA: Corpo e Performance no Acervo Videobrasil, vista da Galeria Homero Massena,2022, Vitória-ES. Foto: Gabriel Lordello/Mosaico Imagem
REVIRAVOLTA: Arte e Geopolítica no Acervo Videobrasil; vista do Museu de Arte do Espírito Santo (MAES), 2022, Vitória-ES. Foto: Gabriel Lordello/Mosaico Imagem
REVIRAVOLTA: Arte e Geopolítica no Acervo Videobrasil; vista do Museu de Arte do Espírito Santo (MAES), 2022, Vitória-ES. Foto: Gabriel Lordello/Mosaico Imagem
Modernidade Cultura e Paisagem: Acervo em Diálogo MAES e Arquivo Público da Estado do Espírito Santo, Sala de exibição do Acervo, 2023. Vistas do MAES, Vitória-ES
Modernidade Cultura e Paisagem: Acervo em Diálogo MAES e Arquivo Público da Estado do Espírito Santo, Sala de exibição do Acervo, 2023. Vistas do MAES, Vitória-ES
Modernidade Cultura e Paisagem: Acervo em Diálogo MAES e Arquivo Público da Estado do Espírito Santo, Sala de exibição do Acervo, 2023. Vistas do MAES, Vitória-ES
Homero Massena é uma figura fundamental no repertório artístico daqui, e suas pinturas atravessam gerações, como também merecem ser revistas discursivamente, a partir dos debates de agora.
Hoje, a casa em que ele morou é o Museu Homero Massena, com gestão da Prefeitura de Vila Velha. A Galeria Homero Massena, com gestão da Secretaria de Cultura do Estado, inaugurada em 1977, homenageia e, de alguma maneira, fortalece o elo entre a história e a continuidade da arte contemporânea a partir daqui.
ARTE!✱ – Quando você assume a direção do MAES? E como tem percebido sua atuação?
Em fevereiro de 2022, assumi a Direção do Museu de Arte do Espírito Santo, o MAES. O Museu estava fechado há alguns anos, por conta de um processo de reforma que reestruturou fisicamente os espaços internos, tanto administrativos quanto o espaço expositivo. Esse processo ocorreu entre 2016 e 2019; em 2020, o Museu foi reinaugurado em meio à pandemia (na primeira brecha de circulação de pessoas e reabertura dos espaços), com a exposição VIX – Estórias Capixabas, articulando dois artistas do acervo, Dionísio Del Santo e Elpídio Malaquias, com artistas contemporâneos capixabas e de fora do estado.
A pandemia foi um momento muito frágil para os espaços. E em 2022, quando assumi a Direção, a instabilidade provocada pela pandemia contribuía para o afastamento do público do Museu, e ainda não haviam sido ativadas todas as suas potências em sua nova configuração pós-reforma. O desafio que tomei pessoalmente foi – e tem sido – movimentar o MAES e expandir suas atividades com a cena cultural local, além de articular com outras instituições de representação nacional.
O MAES completa 27 anos em dezembro de 2025. Sua missão inicial de ser o grande museu do Estado foi desenhada entre os anos de 1980 e 1990 pelo crítico e curador – também capixaba de Cachoeiro de Itapemirim – Paulo Herkenhoff, em parceria com a gestão do Departamento Estadual de Cultura (DEC) na época. A reivindicação transformou o MAES em um equipamento de interlocução com grandes exposições “de bilheteria” que circulavam nacionalmente pelas capitais do país – exposições que vinham formatadas para ocupar os espaços expositivos aqui do Museu.
Com o passar do tempo, o Museu se desvinculou desses pacotes de exposições e, principalmente a partir de sua entrada como uma linha de fomento para compor a agenda, pelos Editais do Funcultura, em 2016, estreitou de forma significativa suas atividades e pensamentos com a nova produção artística local. Essa virada é o fôlego que estamos articulando agora com a minha gestão. São três exposições selecionadas pelo Edital, porém outras frentes foram demarcadas a partir de 2022, como a abertura de uma sala de exibição permanente do acervo e a ativação da biblioteca, além de parcerias institucionais, tanto com agentes do Espírito Santo quanto de outros Estados e importâncias no cenário da arte contemporânea nacional e internacional.
O programa Acervo em Diálogo, da sala de exibição permanente, aproxima recortes curatoriais a partir das nossas coleções com outros acervos e artistas, como já aconteceu com o Arquivo Público do Estado, a Galeria de Arte Espaço Universitário – UFES e até mesmo com o Grupo de Experimentação Sonora da UFES. Expor o acervo de forma sistemática me parece ser uma oportunidade não só de rever, como também de atualizar o pensamento e as perspectivas do nosso acervo e do próprio Museu.
Entre as parcerias interinstitucionais, podemos destacar a exposição inédita da Associação Cultural Videobrasil, em 2022, REVIRAVOLTA, que aconteceu no MAES e na Galeria Homero Massena simultaneamente. Também tivemos a retrospectiva do artista expoente da videoarte Éder Santos, em 2023, além da itinerância da 35ª Bienal de São Paulo, Coreografias do Impossível, também com extensão até o Palácio Anchieta, em 2024, e a exposição Favela é Giro, do Museu das Favelas, em 2024. Todas elas reforçam o papel institucional do Museu em âmbito nacional – não apenas recebemos as exposições, como também pensamos e produzimos junto, acionando a cena e os profissionais da área no Espírito Santo. Inclusive, podemos destacar o papel do MAES na articulação do VIII Seminário Internacional Arte!Brasileiros, pela primeira vez fora do Estado de São Paulo.
Além disso, quanto ao acervo, nosso olhar e revisitas às coleções também nos impulsionaram em novas incorporações durante esses três anos: pelo menos 30 novos trabalhos e artistas entraram em nosso acervo. Recentemente, lançamos um programa de aquisição que vinha sendo desenhado desde 2022 com a minha entrada: o Edital Diálogo com Acervo faz o exercício de olhar para dentro e propor conexões com a arte contemporânea nacional. Nesta primeira edição, a proposta curatorial se volta para uma artista do nosso acervo, Nice Avanza. E, dessa forma, é 100% direcionado a artistas negros, negras e indígenas – uma inserção direta de dez artistas, que se mostra fundamental na história do MAES e na tentativa de reparação e pluralidade para o acervo. O acervo está sendo composto desde a inauguração do Museu, hoje com mais de 600 obras, e tem cinco principais coleções: Dionísio Del Santo, Nice Avanza, Elpídio Malaquias, Raphael Samú e Maurício Salgueiro. Outros artistas e obras orbitam e compõem o acervo como um todo.
Podemos também destacar uma outra ativação que temos provocado dentro do Museu, com a cena musical. A programação MAES TONS aproxima a produção de artes visuais com a produção musical, e também aproxima e cria interlocuções entre os públicos. Já tivemos três edições com contribuições curatoriais da Faculdade de Música do Espírito Santo (FAMES) e dos Centros de Referência das Juventudes (CRJs).
ARTE!✱ – Conte-nos um pouco da trajetória do MAES…
O MAES foi inaugurado em 1998 com uma exposição dedicada à trajetória e à produção de Dionísio Del Santo, reconhecido como um dos nomes fundamentais do modernismo brasileiro. Dionísio era um artista minucioso nas técnicas gráficas, além de dedicado à pintura, investindo em uma precisão geométrica em suas composições. Nascido em Colatina, aqui no Espírito Santo, viveu e produziu no Rio de Janeiro, mas sempre foi identificado como um artista capixaba.
Inclusive, tem um detalhe curioso e muito interessante: foi ele quem auxiliou na gravação em silk das garrafas de Coca-Cola no projeto Inserções em Circuitos Ideológicos, de Cildo Meireles. Apesar de trabalhar com linguagens tradicionais, Dionísio também contribuiu para um momento histórico da arte experimental. Considerado por muitos um artista concretista, Dionísio, no entanto, não se via assim.
Acredito que seja muito simbólico que a exposição de Dionísio tenha marcado o início do Museu, fruto de uma longa negociação e trocas com a Secretaria de Cultura, como podemos ver em alguns documentos e manuscritos nos arquivos do MAES. Dionísio faleceu logo após a abertura da exposição e nem chegou a participar do evento de inauguração. A partir desse momento, o MAES passou a se chamar Museu de Arte do Espírito Santo Dionísio Del Santo, em sua homenagem. Foi também o início do nosso acervo, com a incorporação de trabalhos após a exposição. Costumamos dizer que o acervo do MAES começa com Dionísio.
ARTE!✱ – Hoje, quem são os artistas do Estado a serem expostos no MAES?
Em todos esses anos de exercício, o MAES já produziu cerca de 120 exposições. Só na nossa gestão, a partir de 2022, foram mais de 20 mostras. Quando consideramos esse histórico ao longo do tempo, vemos que artistas importantes do circuito capixaba passaram por aqui: como já dito, Dionísio Del Santo (1998), a exposição retrospectiva da Nice Avanza em 2000 (que merece um parêntese – desde 2019 tenho me dedicado a revisitar e repropor discursivamente o trabalho da Nice, e faremos essa exposição 25 anos depois da última ocorrida no Museu).
Também podemos destacar Meditações Extravagantes (2012), do artista capixaba Nenna, hoje radicado em Paris. Essa exposição, por exemplo, ocupou desde a calçada do Museu até toda a área expositiva e se estendeu até a Galeria Homero Massena – estratégia que temos repetido com recorrência.
Com a entrada do MAES nas linhas de fomento do Edital de Artes Visuais do Funcultura, o Museu passou a acompanhar mais de perto a produção artística contemporânea local, já que os editais são destinados a proponentes residentes no Estado. Os projetos são selecionados prevendo arranjos expográficos adaptados ao novo espaço após a reforma: amplo, iluminado por luz natural, com janelas que permitem negociações com a paisagem urbana em torno do prédio (prédio este que, agora em 2025, completa 100 anos).
Os projetos recebem recursos do Fundo de Cultura do Estado (Funcultura), hoje com um repasse de R$ 150 mil – o dobro do executado no início da gestão, em 2019. Esse aumento acompanha a inflação e os valores de serviços no mercado, mas também reflete a reivindicação de profissionais da classe artística e nossa atenção no acompanhamento do desenvolvimento de cada exposição.
Nossa expectativa com as três exposições anuais selecionadas é que o Museu amplie sua conexão com a nova produção artística, assim como seja palco para o desenvolvimento de pesquisas de artistas com maior tempo de carreira e reflexões sobre seus percursos. Atualmente, as diferentes gerações da produção artística do Espírito Santo têm se encontrado no MAES.
Importante lembrar que, entre os editais da Secult, o de ocupação dos espaços (MAES e GHM) foi um dos primeiros a ter reserva de vagas destinadas às pessoas negras e indígenas, em 2021 – o que reflete diretamente na produção, nas exposições e no nosso público.
ARTE!✱ – Então, nesse sentido, com foco nas exposições de artistas do Estado, você conseguiria elencar algumas delas?
Desde 2022 até hoje, foram sete exposições projetadas especialmente para o MAES e selecionadas por meio do Edital. Até o fim de 2026, teremos mais sete. De modo geral, as exposições têm explorado as trajetórias dos artistas, refletindo sobre seus processos e pesquisas, a partir de uma elaboração espacial dos trabalhos em novas perspectivas.
Em 2023, tivemos ANTICORPOS, de Luciano Feijão e Juliana Pessoa – dois artistas do desenho que desenvolvem reestruturações sobre a representação dos corpos, considerando entendimentos de gênero e racialidade. Também em 2023, a exposição Sete Caminhos, de Rafael Segatto, em parceria com Welington Santos e Renan Bono, articulou uma relação expandida entre o MAES e o Quintal Bantu – espaço de aquilombamento, resistência e encontros artísticos no alto da Fonte Grande (região no entorno do Museu). A mostra contou com trabalhos instalativos manejando elementos da paisagem marinha, pinturas, trabalhos sonoros e a provocação de andar pelo centro da cidade, traçando sete caminhos e despertando outras percepções.
No mesmo ano, Descarrilho reuniu nove artistas (Alessa Felix & Jessica Sampaio, Filipe Borba, Jaíne Muniz, Jessica Maria, Maria Menezes, Thiago Sobreiro e Yurie Yaginuma), sob curadoria de Clara Pignaton, em residência artística pela estrada ferroviária Vitória–Minas, reelaborando narrativas sobre a exploração de minério e o trânsito entre os dois Estados.
Seguindo essa linha do tempo, destacamos também FIAR, de Rick Rodrigues (2023); O Inquilino, de Júlio Tigre (2024); A Persistência da Palavra, de Fernando Augusto (2024); e Pele Abissal, de Marcos Martins (2025).
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Coreografias do Impossível: Itinerânciada 35ª Bienal de São Paulo. Vistas do MAES, Vitória-ES. Foto: Gustavo Louzada / Porã Imagens / Fundação Bienal de São Paulo
Coreografias do Impossível: Itinerânciada 35ª Bienal de São Paulo. Vistas do MAES, Vitória-ES. Foto: Gustavo Louzada / Porã Imagens / Fundação Bienal de São Paulo
Exposição de Rick Rodrigues, 2023. Abaixo, Pele Abisal de Marcos Martins
Exposição de Rick Rodrigues, 2023. Abaixo, Pele Abisal de Marcos Martins
Exposição de Rick Rodrigues, 2023. Abaixo, Pele Abisal de Marcos Martins
Exposição de Rick Rodrigues, 2023. Abaixo, Pele Abisal de Marcos Martins
Exposição de Rick Rodrigues, 2023. Abaixo, Pele Abisal de Marcos Martins
ARTE!✱ – Hoje você tem atuado e circulado em diversas frentes na arte; como entende essas relações?
O percurso que tenho traçado nas artes atravessa meu fazer como artista, gestor e curador. Todas essas atuações acontecem em paralelo, mas com interseções. Em quase vinte anos de carreira, meu trabalho artístico tem sido a base e o meio pelo qual chego a outros espaços. Ser o “artista-tudo”, em uma expansão do “artista-etc.”, cunhado por Ricardo Basbaum, tem me feito compreender o exercício do fazer artístico para além da concepção de uma obra, mas como um conjunto de ações múltiplas.
Em 2023, organizei uma exposição em comemoração aos 15 anos da minha produção: POR UMA CRISE DA IMAGEM, que aconteceu na Galeria de Arte Espaço Universitário (GAEU), na UFES. A mostra apresentava quatro trabalhos desenvolvidos entre 2017 e 2023 e refletia sobre a relação entre imagem, cultura e identidade, elaborando as formas pelas quais a imagem influencia a construção de imaginários sociais e como pode sustentar ou se opor às estruturas de poder.
Desde 2015, me debruço sobre um projeto permanente chamado Oretratista. Em 2024, lancei o livro fotográfico e o filme LARGO, resultados da ação que empreendi na Praça Costa Pereira, no Centro de Vitória, com um estúdio fotográfico montado, aberto a quem quisesse ser retratado.
Recentemente, participo de uma exposição coletiva de larga escala, Afro-brasilidade (2025), no espaço de arte da Fundação Getúlio Vargas (FGV Arte, Rio de Janeiro), com curadoria de Paulo Herkenhoff e João Victor Guimarães. A exposição propõe abarcar e relacionar a produção histórica da arte afro-brasileira.
Já entre as ações de curadoria, tanto pelas que tenho exercido dentro da gestão da Secretaria de Cultura – como as propostas na Galeria Homero Massena e, atualmente, no MAES – quanto por outras oportunidades, também se expandiram. Destaco, por exemplo, ter sido responsável pela proposta curatorial e implementação do parque de esculturas no Parque Cultural Casa do Governador (2021–2023), em Vila Velha, sob gestão compartilhada da Secult e da Secretaria de Governo do Espírito Santo.
Por essas iniciativas curatoriais, também posso apontar a participação na curadoria das Novas Aquisições para o Acervo do Banco do Nordeste (2023), atualmente em itinerância com a exposição Nordeste Expandido, que tem circulado por todas as capitais da região e chegará a Vitória em 2026.
Ainda, a curadoria da exposição Transitar o Tempo (2024-2025), com curadoria adjunta de Clara Pignaton, a convite do Museu Vale. Esta mostra reúne trinta artistas capixabas de diversas gerações, com atenção aos saberes e fazeres tradicionais, a artistas que não estão necessariamente inseridos no sistema da arte e a artistas de outras linguagens, como música e dança. É uma exposição que recupera a atenção sobre nós mesmos e, sobretudo, sobre histórias que não estão contadas.
Por fim, também ressalto a oportunidade de contribuir com o VIII Seminário Internacional Arte!Brasileiros – Narrativas Contra-Hegemônicas, pela primeira vez realizado fora de São Paulo, aqui em Vitória.
Digo tudo isso para organizar meu entendimento sobre estar em trânsito, de certa forma, entre os diferentes lugares da arte, e que permitem exercitar constantemente a criação e o pensamento. ✱
Assista ao VIII Seminário Internacional Arte!Brasileiros: Narrativas contra-hegemônicas
O alerta do educador José Eduardo dos Santos, em sua fala final no VIII Seminário Internacional Arte!Brasileiros, sobre um iminente encerramento das atividades do Acervo da Laje (Salvador), é, a um só tempo, exemplar da precariedade com que atuam as iniciativas culturais na periferia da institucionalldade oficial, como também um eco de resistência das narrativas e práticas contra-hegemônicas, tema dos encontros que aconteceram nos dias 20 e 21 de março, em Vitória, no Espírito Santo.
Com patrocínio da EDP, empresa que atua em todos os segmentos do setor elétrico, o Seminário, em parceria com o Museu de Arte do Espírito Santo (MAES), foi uma realização da Atmo e da Arte!Brasileiros, por meio da Lei de Incentivo à Cultura Capixaba (LICC) e do Governo do Estado do Espírito Santo / Secretaria de Estado da Cultura, que entende o papel e a importância da esfera pública de incentivar e investir em debates sobre temas emergentes, como a decolonialidade e a crise climática.
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Sede do Seminário, Casa da Música Sônia Cabral recebeu cerca de 400 participantes ao longo dos 2 dias de seminário
Fabricio Noronha, Secretário da Cultura do Espírito Santo e Presidente do Fórum Nacional de Secretários e Dirigentes Estaduais de Cultura
Clara Sampaio, curadora da ATMO
Nicolas Soares, curador e diretor do Museu de Arte do Espírito Santo (MAES)
Patricia Rousseaux, fundadora e diretora de Arte!Brasileiros e curadora dos seminários internacionais
Apresentação e performance da artista Glicéria Tupinambá junto ao público do seminário
Apresentação e performance da artista Glicéria Tupinambá junto ao público do seminário
Para o Acervo da Laje, iniciativa concebida e liderada há quase 15 anos por José Eduardo Santos e Vilma Santos, assim como o Sertão Negro (Goiânia), a sobrevivência de suas propostas passa, não sem certa ironia, por uma inserção em parâmetros institucionais, a exemplo da criação de um CNPJ, como apontou Luciara Ribeiro, representante do projeto goiano criado pelo artista Dalton de Paula, que, não à toa, cogita ter Luciara como sua diretora, novamente num movimento de institucionalização nos moldes de entidades museais e de centros culturais inseridos em estruturas hegemônicas. O nó górdio dessa complexa equação? A obtenção ou captação de verbas que viabilizem e mantenham suas atividades, mesmo quando anti-majoritárias em suas essências artística e ideológica.
Em entrevista à Arte!Brasileiros após a sua fala, Santos ressaltou que é preciso haver uma discussão sobre a redistribuição de recursos e editais, “para que esse dinheiro da cultura chegue aonde tem que chegar: aos artistas, agentes de culturas, às populações mais vulneráveis, porque isso vai possibilitar que a arte brasileira conheça uma diversidade maior de expressões e vai favorecer outros circuitos de existência.”
Pertinente e urgente, a fala de Santos sintetiza parte das discussões que permearam tanto os workshops, que aconteceram no auditório do Museu de Arte do Espírito Santo (MAES), quanto as mesas do Seminário em si, realizado no teatro da Casa da Música Sônia Cabral. Houve também o compartilhamento de experiências e um tom propositivo.
Vale ressaltar que, ainda que compreendam o papel social, de acolhimento e proteção das comunidades em seus entornos, estas iniciativas e os agentes culturais à frente delas reivindicam o reconhecimento – e, claro, a remuneração – da produção de pensamento e das experimentações artísticas que ensejam e promovem.
A APRESENTAÇÃO
Com curadoria de Nicolas Soares, Fabio Cypriano (jornalista e crítico de arte, diretor da Faculdade de Filosofia, Comunicação, Letras e Arte da PUC-SP e membro do conselho editorial de Arte!brasileiros), e de Patricia Rousseaux, fundadora e diretora editorial da Arte!Brasileiros, as mesas do Seminário tiveram início na tarde do dia 20/3.
Fabricio Noronha, Secretário da Cultura do Espírito Santo e Presidente do Fórum Nacional de Secretários e Dirigentes Estaduais de Cultura, abriu a primeira noite do Seminário ressaltando a importância da parceria do Governo do Estado com a Arte!Brasileiros, com Nicolas Soares, curador e diretor do Museu de Arte do Espírito Santo (MAES) e de gestores de demais equipamentos culturais envolvidos no projeto, assim como da produtora Atmo, em nome ds curadora Clara Sampaio.
Soares relembrou um ciclo de debates realizado em 2019, quando ele estava à frente da galeria capixaba Homero Massena, que ele considera como uma gestação, ainda não assim imaginada, do Seminário, quando houve uma aproximação com a Arte!Brasileiros, que à época já demonstrava seu interesse pela produção artística do Espírito Santo.
Fundadora e diretora-editorial da Arte!Brasileiros, Patricia Rousseaux destacou em sua fala inicial que, durante o governo obscurantista de Bolsonaro, empreendeu um mapeamento de iniciativas culturais que resistiam ao ataque sistemático do poder vigente. Encontrou, em estados como o Ceará e o Espírito Santo, uma “intenção pública e política”, que não se via no eixo Rio-São Paulo, de continuar investindo em nas artes e na educação.
Foi nesse mapeamento que foram identificadas iniciativas como a Casa do Governador e o trabalho que vinha sendo realizado pelo MAES. O resultado foi o desejo de realizar o Seminário em Vitória, abrindo espaço para de discutir os retrocessos que estamos vivenciando em escala global, na educação, na cultura, na ciência, na luta ambientalista e no respeito pelo outro. Para Patricia, são consequências das marcas indeléveis deixadas pelo colonialismo, perpetradas e agravadas pelo neoliberalismo.
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Fabio Cypriano, crítico de arte e professor da universidade Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, abriu a primeira mesa do dia
Marcus Vinícius ant’Ana, historiador e pesquisador, ES
Mesa 1 do dia 20 de março
A Artista Lia d Castro citou um texto intitulado “Ignorância branca”, do jamaicano Charles Mills, em que o filósofo e escritor, segundo a artista, critica como a cultura pensada pelos brancos é marcada pela ausência da informação e da verdade, o que criaria uma memória de caráter colonial
A Artista Lia d Castro citou um texto intitulado “Ignorância branca”, do jamaicano Charles Mills, em que o filósofo e escritor, segundo a artista, critica como a cultura pensada pelos brancos é marcada pela ausência da informação e da verdade, o que criaria uma memória de caráter colonial
Guilherme Marcondes, sociólogo e antropólogo, UFRJ
Em seguida, houve uma performance de Glicéria Tupinambá, tendo como pano de fundo vídeos, propositalmente sem som, para falar do silenciamento histórico do Manto Tupinambá, uma vestimenta sagrada utilizada em rituais e cerimônias de seu povo. Um exemplar que estava em um museu da Dinamarca foi devolvido em 2022? ao Brasil e sua reinvidicação pelos tupinambás contraria uma narrativa, até pouco tempo tida como verdade histórica, sobre a extinção desse povo. Há um território no sul da Bahia que atualmente luta por sua demarcação.
Durante sua participação, Glicéria falou da importância da arte como um espaço para o debate com a sociedade, abrindo diálogos. Ao fim, ponderou que as pessoas que ocuparam o país aqui deixaram canhões e fortalezas, ao passo que os tupinambás legaram, ao mundo, o que há “de mais belo, precioso e frágil”, que é o Manto Tupinambá de 400 anos, hoje de volta a um território tupinambá, a uma terra dos povos originários, que é o Rio de Janeiro.
“E eu falo que a gente depois ocupou o Velho Mundo. A marca disso são os outros mantos, que estão ainda na Itália, na França, na Suíça, na Bélgica, E trazer tudo de volta não resolve. Eu penso para além do museu. Quero entender a nossa história, que não passa apenas pelo roubo, mas pela diplomacia. È preciso ter cuidado com o que falamos, porque podemos cometer alguns erros. Mas é possível reverter algumas narrativas. Todas podem coexistir. Existe mais uma, além de roubo”, disse.
O SEMINÁRIO, DIA 1, MESA 1 Retina colonial
Com o título Experiências da luta anticolonial no sistema das artes: por uma contraofensiva saudável, radical e com amor, e mediação de Fabio Cypriano, a primeira mesa teve como participantes Lia D Castro (artista, São Paulo), Marcus Vinicius Sant’Ana (historiador, pesquisador do ES) , Guilherme Marcondes (sociólogo, antropólogo, UFRJ, SP).
Cypriano apresentou a artista paulista Lia D Castro e ressaltou que ela atua de maneira transversal no terreno das artes visuais. Destacou que Lia lança mão da prostituição, com garotos na faixa etária de 18 a 25 anos, brancos e auto-declarados heterossexuais, como ferramenta de trabalho e investigação sobre raça, gênero e sexualidade. Lia então citou o que teria sido uma fala de cliente: “A prostituição é fundamental para manter a ordem social que é o padrão de família”. Para ela, essa premissa coloca o trabalho da prostituta como uma proposta colonial para que essa manutenção ocorra.
“Como uma mulher trans e prostituta, percebi que poderia trazer outras narrativas em relação à prática sexual. O meu interesse era usar a prostituição como forma de diálogo para poder entender quem são esses homens. Parto da pergunta que nomeia o projeto – Seus filhos também praticam? – em que eu satisfazia o desejo sexual deles em troca de informação da maioria deles – homens cisgêneros, brancos, das Forças Armadas e das policia – sobre como a criminologia ou a Justiça via as pessoas pretas e as pessoas transexuais.
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Deri Andrade ressaltou a importância de políticas institucionais que garantam a presença contínua de artistas invisibilizados nos espaços culturais: “a inclusão precisa ser estruturada,
não episódica“
Mesa 2 do dia 20 de março
Luciara Ribeiro, pesquisadora, Sertão Negro - GO
“é preciso haver uma discussão sobre a redistribuição de recursos e editais para que esse dinheiro da cultura chegue aonde tem que chegar aos artistas, agentes de culturas, às populações mais vulneráveis”
José Eduardo Santos, curador do Acervo da Laje - BA
Mesa 1 do dia 20 de março. Em todas as mesas contamos com a participação das tradutoras de libras Gisele Fontes e Priscila Muzy
Nicolas Soares, diretor do MAES e um dos curadores do seminário, mediou a mesa 2 no dia 20 de março
Lia também citou um texto intitulado “Ignorância branca”, do jamaicano Charles Mills, em que o filósofo e escritor, segundo a artista, critica como a cultura pensada pelos brancos é marcada pela ausência da informação e da verdade, o que criaria uma memória de caráter colonial. “Ou seja, também o branco passar por um processo colonizador”, disse. Por conta disso, o interesse de Lia não era mudar a relação de seus clientes quanto a ela, mas entre si mesmos. E mais: a inclusão e a representatividade em diversos setores da sociedade não são suficientes. Elas se tornaram uma armadilha para pessoas pretas, por exemplo.
“Não queremos ser inclusas em ambientes racistas. Nem assimiladas pelas pessoas brancas. Eu comecei então a entender que via o mundo com o olhar do homem branco. Uma retina colonial que impacta culturalmente a todos nós, pessoas pretas, trans, da periferia etc.”, afirmou, Para Lia, a branquitude, assim como a cisgeneridade, são sistemas. Para ela, quando falamos de narrativas decoloniais e anti-hegemônicas é necessário quebrar os pactos daqueles sistemas. Não se trata apenas de discursos, mas de práticas que devem ultrapassar a fronteiras dos museus, por exemplo, e alcançar outros espaços da sociedade.
Histórias invisibilizadas
O segundo participante da Mesa 1 foi o historiador e professor Marcus Vinicius Sant’Ana que, por meio de vídeos publicados no Instagram (@santanamarcusvinicius), entre outras iniciativas, em que relata fatos e recupera personagens históricos invisibilizados, de modo similar ao projeto Tá na História, do petropolitano Thiago Simão Gomide e inspirado no “movimento liderado por Luiz Antônio Simas de ver a rua como uma vertente importante da cidade”, como escreveu Maria Hirszman na edição 70 da Arte!Brasileiros.
Também mestre em Estudos Urbanos e Regionais pela Universidade Federal dos Espírito Santo (UFES), Sant’Ana iniciou sua fala ponderando que a academia não dá a mesma dimensão – ou ainda propriedade e hierarquia – sobre manifestações populares, objeto de seus estudos e ensino, quanto a vivência delas. “Antes de ser historiador e pesquisador de cultura popular, eu sou sambista, que desfilou na Unidos de Jucutuquara pela primeira vez aos 9 anos de idade”, pontuou.
Em vez de falar a respeito dos assuntos que estuda, o historiador afirmou que iria se debruçar sobre o processo de suas pesquisas. Em um slide, Sant’Ana mostrou reportagens sobre o desconhecimento que o capixaba tem de sua própria história. E questionou: “Isso quer dizer que o capixaba não gosta da própria história?” e “quais são os meios que o capixaba tem de conhecer a sua própria história?”. Comentou que o estudo da história oficial do estado se limitava em geral a decorar quais foram seus governadores após o período colonial e quais as respectivas realizações.
Isso teria sido o ensejo para ele desenvolver seu projeto, ressaltou que, na Casa da Música Sônia Cabral o público estava num lugar privilegiado, o centro histórico da cidade. “Quando a gente por este lugar, mesmo que seja em nosso cotidiano, a gente tem contato com essa história? Ela é contada, é convidativa?, perguntou. A resposta veio na forma de outro slide: uma estrada de pedras, de 200 anos, na Gruta da Onça havia sido coberta por cimento, levando a uma investigação do Ministério Público do Espírito Santo. “Essa estrada foi feita por escravizados da Fazenda de Jucutuquara, que a usavam, por exemplo, para quaisquer tipos de atividades comerciais e ela foi acimentada numa reforma”, explicou. Em tempo: a trilha é registrada como sítio arqueológico no Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan)
Noutro slide, Sant’Ana mostrou a estátua de bronze de Dona Domingas, “uma mulher negra, escravizada, que vagava pela cidade catando papel e madeira, dizia-se à sua época que tinha mais de 100 anos”, contou. “O que ela catava, vendia para seu sustento. O que sobrava, ela usava para encomendar uma missa pelas almas do escravizados”.
Instalado próxima ao Palácio Anchieta, sede do poder executivo do estado do Espírito Santo, o monumento não tinha qualquer identificação há mais de 30 anos, segundo o historiador. “Quem passa por ali, não têm ideia de quem ela foi. E não sei se vocês sabem, mas ela está numa praça, que se chama Franklin Delano Roosevelt, que foi presidente dos Estados Unidos durante a Segunda Guerra Mundial”, disse. “Isso é uma sintoma de que, mesmo que a pessoa tenha interesse de conhecer a história capixaba, ela não vai ter facilidade para poder aprender”.
Sant’Ana listou a seguir “atos amenizadores” desta invisibilização – ou, por vezes, distorção – da história, que ele aplica a seu projeto: vídeos que trazem a história do Espírito Santo; citação de fontes; fomento à cultura; curta duração; referências visuais do cotidiano”. E salientou que essa história do estado é, sim, desbravada, com pesquisas e artigo maravilhosos no departamento de História da UFES. “Mas eu sentia a necessidade de ter contato com o público. Foi então que ele começou a gravar os vídeos que veicula em rede social.
Aos vídeos, o historiador passou a promover uma “imersão” por meio de “caminhadas que contam a história e a história preta” de Vitória, assim como a “passagem por pontos que expressam ou rememoram fatos e personagens históricos”. “Eu não poderia simplesmente tentar passar informações sobre uma igreja do século 18 [Igreja de Nossa Senhora do Rosário] em dois minutos, sem destrinchar tudo que ela tinha de conhecimento histórico”, ponderou.
“Mas, no caso da caminhada sobre história negra, se temos 20 pontos de interesse em mente, em mais de 15 deles eu terei que lidar com a imaginação porque esse lugares já não existem mais e são pouquíssimas a referências históricas”.
Interseccionalidades
Em sua participação na Mesa 1, o sociólogo e antropólogo Guilherme Marcondes compartilhou reflexões sobre sua trajetória acadêmica e profissional, destacando os desafios enfrentados como artista e pesquisador negro no Brasil. Ele abordou a interseccionalidade das opressões — racismo, machismo, classismo e homofobia — e como essas experiências moldaram sua perspectiva e atuação no campo da arte contemporânea.
Marcondes discutiu sua pesquisa de doutorado em sociologia na UFRJ, na qual investigou os caminhos de inserção e consagração de jovens artistas no circuito artístico. Enfatizou a importância da legitimidade, visibilidade e do reconhecimento para esses artistas, e como as estruturas de poder e dominação influenciam suas trajetórias.
Além disso, destacou a necessidade de desmistificar a ideia de que “na arte tudo pode”, apontando para as regras implícitas que regem o mundo da arte e a importância de compreendê-las para uma inserção bem-sucedida. Ao longo de sua fala, Marcondes também compartilhou experiências pessoais de discriminação e violência, ressaltando a resiliência necessária para superar tais obstáculos e alcançar seus objetivos acadêmicos e profissionais.
Ele concluiu sua fala incentivando os jovens artistas a se conectarem com suas pesquisas estéticas e a buscarem reconhecimento sem se submeterem aos desejos de galerias ou curadores, valorizando sua autonomia e autenticidade artística.
Proposições
Em seguida, houve um debate mediado por Fabio Cypriano, que lançou algumas questões aos participantes. Cypriano indagou como as instituições culturais podem incorporar práticas decoloniais de forma efetiva, indo além de ações simbólicas. Perguntou de que maneira a arte pode ser utilizada como ferramenta de resistência e transformação social e, por fim, quais são os desafios enfrentados por artistas e pesquisadores na promoção de narrativas contra-hegemônicas no panorama artístico atual.
Marcus Vinicius Sant’Ana abordou a relevância de repensar os currículos acadêmicos e os programas de formação artística, propondo a inclusão de perspectivas afro-brasileiras e indígenas como forma de combater a hegemonia eurocêntrica. E sugeriu que as instituições culturais adotem políticas afirmativas e criem espaços de escuta ativa para artistas e pesquisadores de diferentes origens.
Já Guilherme Marcondes enfatizou a importância de compreender as estruturas de poder que permeiam o sistema artístico, destacando que a transformação só será possível com a desconstrução dessas hierarquias. Incentivou a criação de redes de apoio e colaboração entre artistas, pesquisadores e instituições comprometidas com práticas decoloniais, visando a construção de um ecossistema artístico mais justo e representativo.
Do público, vieram perguntas, por exemplo, acerca da inclusão de artistas periféricos e de suas narrativas nas grandes instituições culturais. E também sobre a forma como o ensino de arte pode contribuir para a desconstrução de paradigmas eurocêntricos. Para Lia D Castro, é importante reconhecer e valorizar as práticas artísticas que emergem das periferias, enfatizando que essas expressões são fundamentais para a construção de uma cultura verdadeiramente inclusiva.
Lia ressaltou ainda a necessidade de as instituições culturais se abrirem para diálogos horizontais, permitindo que vozes historicamente marginalizadas tenham espaço e protagonismo.
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Banda Fabriccio,
Fabriccio (voz e violão)
Vitor Lima (Saxofone e Flauta)
Maicon 7 Cordas (Bateria/Percussão)
Banda Fabriccio,
Fabriccio (voz e violão)
Vitor Lima (Saxofone e Flauta)
Maicon 7 Cordas (Bateria/Percussão)
Banda Fabriccio,
Fabriccio (voz e violão)
Vitor Lima (Saxofone e Flauta)
Maicon 7 Cordas (Bateria/Percussão)
DIA 1, MESA 2 O desafio da luta decolonial nas instituições
A segunda mesa do primeiro dia do Seminário teve como palestrantes Deri Andrade (pesquisador e curador, Inhotim, BH); Luciara Ribeiro (pesquisadora, Sertão Negro, Goiás); José Eduardo Santos (pedagogo, doutor em Saúde Pública, Acervo da Laje, Salvador), com mediação de Nicolas Soares.
Soares iniciou a mesa destacando a importância de repensar as estruturas institucionais para acolher narrativas historicamente marginalizadas. Ele enfatiza a necessidade de ações concretas que vão além de iniciativas simbólicas, afirmando que “não basta abrir espaço; é preciso transformar as estruturas que perpetuam exclusões”.
Deri Andrade compartilhou sua experiência na promoção de artistas negros e indígenas. Ele ressaltou a importância de políticas institucionais que garantam a presença contínua desses artistas nos espaços culturais, afirmando, em consonância com a falar de Soares, que “a inclusão precisa ser estruturada, não episódica”.
Já Luciara Ribeiro abordou a necessidade de descolonizar os currículos acadêmicos e as práticas curatoriais. Ela destacou que “a decolonialidade não é uma tendência, mas uma urgência”, enfatizando a importância de reconhecer e valorizar os saberes tradicionais e ancestrais nas instituições culturais.
Por fim, José Eduardo Santos falou de sua experiência na construção de espaços culturais comunitários. Ele enfatizou que “a cultura é um direito, não um favor”, e que as instituições devem atuar como facilitadoras, não como gatekeepers, para garantir o acesso equitativo à produção cultural.
O debate da Mesa 2 reforçou a necessidade de uma transformação estrutural nas instituições culturais brasileiras, promovendo práticas decoloniais que reconheçam e valorizem a diversidade de narrativas e saberes presentes no país.
O primeiro dia do VIII Seminário Internacional Arte!Brasileiros foi encerrado com um show de Fabriccio. Natural de Vitória (ES), ele é multi-instrumentista, compositor e produtor musical. Suas canções exploram temas como afetividade, sensibilidade masculina e espiritualidade, com influências da literatura, do cinema e da magia presente no cotidiano.
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O público participou ativamente do seminário com perguntas pertinentes, enriquecendo o debate, junto a Malcom Ferdinand
Malcom Ferdinand, escritor e pensador nascido em Martinica
Malcom Ferdinand, escritor e pensador nascido em Martinica
O público participou ativamente do seminário com perguntas pertinentes, enriquecendo o debate, junto a Malcom Ferdinand
O público participou ativamente do seminário com perguntas pertinentes, enriquecendo o debate, junto a Malcom Ferdinand
O SEMINÁRIO, DIA 2 – ABERTURA a dupla fratura da modernidade
Na tarde do dia 21/3, na Casa da Música Sônia Cabral, teve início, as 17h, o segundo dia do VIII Seminário. Após breve apresentação de Patricia Rousseaux, a abertura dos trabalhos ficou a cargo do escritor e pensador martinicano Malcom Ferdinand, autor de Uma Ecologia Decolonial: Pensar a partir do mundo caribenho (Ubu Editora).
Em seu livro, Ferdinand faz. Ele também introduz o conceito de “dupla fratura da modernidade”, referindo-se à separação entre natureza e cultura e à desconexão entre lutas antirracistas e ambientais. Essa fratura, Ferdinan defende, impede uma compreensão abrangente das injustiças ecológicas, pois desconsidera a exploração da natureza e a opressão de povos colonizados.
Em sua apresentação, que durou cerca de 40 minutos, Ferdinand ressaltou que era um homem negro pertencente à “academia francesa branca, uma mistura rara, que pode explicar o contexto” a partir do qual ele produz seu trabalho. Ele defendeu a própria noção de planeta Terra e meio ambiente é um “constructo colonial” e que a forma como damos significados as coisas não está separada de um imaginário que temos delas, algo que demanda o que ele chama de “decolonização ecológica”.
Como exemplo, citou que, do “choque entre o Velho e o Novo Mundo”, com a “descoberta” das Américas, por Cristóvão Colombo, teria sido imposta uma perspectiva de “habitar colonial”, baseada na dominação e exploração, para além da “conquista de terras, do estupro, do genocídio de povos”, que inclui ainda a prática de nomear coisas e seres vivos.
O escritor trouxe à tona o conceito-chave de sua pesquisa – a dupla fratura da modernidade – que faz uma crítica ao modelo dominante de ambientalismo, que muitas vezes ignora as dimensões coloniais e raciais da crise ecológica. O movimento ambiental e sua ideia de preservação partem de uma noção de refúgio para o homem branco, ligada ainda à ideia de remoção de povos originários.
Também o conceito de pesquisa – em meio a corpos não brancos – foi criticado por Ferdinand por seu caráter “extrativista”, que implica em um pesquisador investigar determinando assunto em uma comunidade, por exemplo, colher os fruto e nada dar em troca. “Quem determina o que é pesquisa, que decide o que é ou não ciência?”, indagou.
A proposta de Ferdinand é desenvolver uma ecologia decolonial que reconheça e valorize os saberes e práticas dos povos originários e afrodescendentes, com modos de vida que promovem uma convivência mais harmoniosa com o meio ambiente. O autor enfatiza a importância de integrar as lutas antirracistas, anticoloniais e ecológicas para enfrentar efetivamente a crise ambiental contemporânea.
Ao fim de sua apresentação, Ferdinand abriu espaço para perguntas da plateia. Guilherme Marcondes, que havia participado do Seminário na noite anterior, pediu que Ferdinand elaborasse mais a sua crítica ao conceito de Antropoceno, termo usado para descrever uma nova época geológica proposta, caracterizada pelo impacto significativo e duradouro da humanidade na Terra.
“O antropoceno não é apenas um conceito, mas uma história do mundo e da Terra, que tem a sua gramática, sua linguagem e sua hierarquia de valores. Um conceito romovido por uma pessoa em particular, um cientista holandês, que ganhou um Nobel. Mas o que é importante é o fato de ele ser de um país colonizador. Então ele está elencando os países que horam colonizados pela Holanda. E todo mundo aceita essa narrativa de um homem branco. Eu proponho outra palavra, o negroceno. Seria bom para todos. A tarefa decolonial é tornar possível uma pluralidade”, argumentou Ferdinand, em sua fala final.
Em seguida, aconteceu a Mesa 3, intitulada A deseducação potencial, mediada por Gabriela Leandro Pereira (Gaia) e com a participação de Horrana de Kassia, Gleyce Heitor e Napê Rocha.
Como mediadora, Gabriela, arquiteta capixaba que leciona na Univeridade Federa da Bahia, propôs uma reflexão sobre o conceito de “deseducação potencial”, questionando as estruturas tradicionais de ensino e aprendizagem. Ela destacou a importância de práticas educativas que valorizem saberes ancestrais e experiências comunitárias, desafiando os modelos eurocêntricos de conhecimento. Em seguida, Gaia passou a palavra para as participantes da mesa, “muito interessada no olhar crítico, cuidadoso, que elas têm desenvolvido nos seus trabalhos, nas suas atuações.
DIA 2, MESA 3 Recusa e reapropriação
A educadora e curadora Horrana de Kassia compartilhou sua experiência no Instituto Moreira Salles, enfatizando a necessidade de repensar as instituições culturais a partir de uma perspectiva antirracista e decolonial. Ela discutiu estratégias para tornar os espaços culturais mais inclusivos, promovendo a participação ativa de comunidades historicamente marginalizadas.
Para Horrana, a palavra “desaprender”, presente no título da mesa, encerra uma ideia de uma prática de transformação e indagou aos colegas e público: “O que precisamos desaprender para construir justiça, em especial no campo das artes, da educação e da cultura de modo mais amplo? Questiou ainda como conceber mudar os instituições culturais e espaços de aprendizado para que não sejam mais espaços de manutenção de violência e desmemória.
Recordou um monólogo de Elisa Lucinda em que a poeta, cantora e atriz parte de sua relação com o filho. Horrana então “tomou emprestado” um trecho de reportagem sobre Elisa:
“Para Elisa, a poesia é como construtora da cidadania. ‘Criei meu filho Juliano à base de poesia, e o resultado é avassalador, no sentido da delicadeza, de humanidade, altruísmo, solidariedade e ética. Os poetas levantam a bandeira da paz. Dificilmente o poeta é da cultura da guerra. Juliano é talvez responsável por um dos versos mais bonitos dentro da minha obra. Ele tinha 4 aninhos e disse: mãe, sabe por que eu gosto de você ser negra? Porque combina com a escuridão. Então, quando é de noite, eu não tenho medo. Tudo é mãe, tudo é escuridão’”.
A passagem da reportagem faz com que Horrana não considere desaprender apenas um gesto político, de resistência, mas também de afeto, uma prática sensível de reeinvenção das relações. “E a palavra poética muitas vezes é excluída dos espaços institucionais. Mas tenho acreditado que ela pode e é uma ferramenta fundamental de reconstrução das formas de pertencimento e de reconhecimento”, ponderou.
Para Horrana, desaprender é um processo contínuo. Sua prática profissional , no Espírito Santo e outros estados, atravessa “múltiplos espaços” em sua trajetória, como o MAES, Palácio Anchieta, Galeria Homero Massena etc. Antes de passar por demais instituições, como a Pinacoteca de São Paulo e, hoje, o IMS, ela “já experimentava o museu, e o museu como espaço de aprendizado, mas também de confronto”.
“Os desafios institucionais não são isolados. Estão hiperconectados por processos históricos e políticos ainda mais amplos dos quais sou parte e participante”, afirmou. “Então, desaprender, de partida, no meu entender, tem a ver com reconhecer a minha trajetória, que não se inicia no eixo Rio-São Paulo, mas é constituída por todas essas experiências, memórias, aprendizados que trago aqui”.
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Mesa 3
A mediadora Gabriela Leandro Pereira, arquiteta, professora e curadora, ES/BA; Horrana de Kássia, curadora do Instituto Moreira Salles, SP
A mediadora Gabriela Leandro Pereira, arquiteta, professora e curadora, ES/BA; Horrana de Kássia, curadora do Instituto Moreira Salles, SP
Gleyce Heitor apresenta seu trabalho como diretora do projeto educativo de Inhotim - MG
“A encruzilhada ousa talvez nos ensinar que esses territórios são lugares da habitalidade, onde todo tipo de criação e recriação acontece”
Napê Rocha, curadora e pesquisadora, ES
Horrana então relembrou sua atuação, como curadora de pesquisa e ação transdisciplinar, numa parceria entre a Pinacoteca de São Paulo e a coleção Ivani e Jorge Yunes, de 2021 e 2022, e em que ela buscou implementar processos curatorias que “desafiaram os modelos rígidos dessas instituições” e propuseram outras narrativas de atuação e mediação com esses espaços. Para ela, a experiência foi como uma “metodologia de ocupação”, no sentido de provocar e promover uma revisão dos espaços a partir dos trabalhos criados pelos artistas envolvidos na exposição resultantes, Atos modernos, entre eles Castiel Vitorino Brasileiro e Misty Queiroz.
Para ela, partindo do contexto do projeto, a ideia de “desaprender” é um gesto político de recusa e reapropriação daquilo que nos foi tirado pela colonialidade”, disse. “Talvez para a [escritora israelense Ariella Aïsha] Azoulay, desaprender não seja apenas um processo de individual, mas uma prática coletiva que nos permite acessar saberes silenciados e reencontrar modos de existir que foram apagados pelo sistema de poder. Desaprender talvez signifique substituir um saber por outro”, sem apagar, eliminar o outro, afirmou.
Crítica e cautela
Gleyce Heitor Gleyce abordou sua atuação como curadora no Inhotim, destacando projetos que buscam integrar arte contemporânea e saberes tradicionais. Ela ressaltou a importância de curadorias que dialoguem com as realidades locais e que promovam a valorização de práticas culturais diversas.
A educadora e pesquisadora ponderou que, na manhã daquele diz, havia levado a seu workshop “metodologias e modos de fazer” ligados à sua expertise e trajetória, mas que naquela noite iria se ater ao tema da mesa, como algo que une as participantes, a proposta de “desaprender”, segundo Azoulay, para a contrução de novos olhares e novas narrativas, assim como o pensamento do educador pernambucano Paulo Freire.
Gleyce então disse que queria fazer uma convite para “termos cautela com a ideia deseducação”, lembrando que aquele era o Dia Internacional Contra a Descriminação Racial, apresentando em seguida um slide em que uma faixa celebrava a entrada de um rapaz de uma comunidade quilombola (Arturos) num curso de medicina.
“A imagem indica a importância da educação, embora a gente venha a passar por aqui por uma crítica às estruturas, aos modelos institucionais de educação”, pontuou. “A educação é, sim, no Brasil, um dispositivo de mobilidade social, principalmente para as pessoas negras, pobres, indígenas.
E, embora sejam espaços de manutenção da violência e reprodução da ordem, é importante ler nossos processos de resistência história com muita nuance, com cuidado para não generalizar, porque, por vezes em alguns espaços subjazem também processos de resistência. A escola também pode ser o espaço de segurança alimentar ou onde as crianças ficam enquanto as mães precisam trabalhar”, salientou.
Encruzilhadas
Natural de Vila Velha (ES), Napê Rocha mora no Rio de Janeiro. Ela trouxe reflexões sobre sua pesquisa no Espírito Santo, discutindo como as práticas artísticas podem servir como ferramentas de resistência e afirmação identitária. Em sua fala inicial, propôs partir da noção de encruzilhada “ como perspectiva crítica para as artes visuais”, como signo de transgressão ou “fenômeno cosmológico, filosófico ou intelectual”. E, ainda, partindo da ideia de, como nos terreiros, conhecimento não se aprende, incorpora-se.
Napê apresentou uma obra sem título, e de autoria compartilhada, da série Procedimentos para desenhar uma encruzilhada, produzida com riscaduras de giz de pemba branca sobre tecido preto em 2023, no Solar dos Abacaxis, no Rio, no contexto de seu programa público.
“A encruzilhada é este lugar da semântica, da sintaxe, onde todos os atos de fala vão acontecer”, disse. “E Exu é o dono do verbo e da palavra falada. No contexto da diáspora, existe uma língua imposta pelo colonizador e a que a gente utiliza para manter os atos de aproximação com a terra de origem”.
Em síntese, Napê enfatizou, a partir, por exemplo, da proposição do pretuguês – segundo Lélia Gonzalez, uma africanização da língua portuguesa brasileira – e do paxubá – dialeto usado pela comunidade LGBTQIA+ no Brasil, com raízes na cultura africana e no candomblé –, assim como na figura de Madame Satã – uma das personagens mais representativas da vida noturna e da Lapa carioca na primeira metade do século XX, que traz em seu nome o cruzamento do feminino (madame) e masculino (satã) – a relevância de narrativas que venham a emergir das periferias e comunidades tradicionais, propondo uma escuta atenta e respeitosa a esses saberes.
“A encruzilhada ousa talvez nos ensinar que esses territórios são lugares da habitalidade, onde todo tipo de criação e recriação acontece, ligadas a transfigurações e transgressões, simultaneamente o centro e a periferia, o verso e o avesso”, afirmou. “Encruzilhadas são um gesto político, que nos coloca a pensar quais posições a gente ocupa ao longo desses caminhos coletivos e individuais, posições transitórias e dinâmicas. E como a gente performa as possibilidades de transgressão diante das políticas de controle dos corpos e subjetividades”.
Em conjunto, as falas das participantes da Mesa 3 convergiram para a ideia de que a “deseducação potencial” reside na capacidade de desaprender modelos opressivos e abrir espaço para formas de conhecimento mais inclusivas e plurais. As três participantes defenderam a construção de práticas educativas e culturais que reconheçam e valorizem a diversidade de experiências e saberes presentes na sociedade
brasileira.
DIA 2, MESA 4
Reconfigurações
Logo após teve início a Mesa 4, com o nome Arte é conversa das almas, a arte alimenta a vida. Com mediação de Patricia Rousseaux, participaram Sandra Gamarra (artista, Peru) – que representou a Espanha na 60ª Bienal de Veneza, em 2024, com o projeto Pinacoteca Migrante, sob curadoria do historiador Agustín Pérez Rubio –e Luciano Feijão (artista, ES).
Em seu projeto em Veneza, Sandra se debruçou sobre o conceito de “migração”, invertendo narrativas tradicionais, trazendo à tona histórias apagadas e abordando temas como racismo, extrativismo e migração. Nesse contexto, migrantes humanos e não-humanos, como plantas e matérias-primas, tornam-se protagonistas.
A artista fez uma apresentação de seu trabalho, contextualizando cada obra. Ela destacou sua crítica à forma como os museus, especialmente os de arte ocidental, representam as narrativas coloniais e eurocêntricas.
Em seu projeto LiMAC Museo Imaginado de Arte Contemporáneo, realizado no Museu Reina Sofía (Madri, 2023), ela propõs a criação de um museu imaginário que confrontava essas estruturas dominantes. “É um museu que não existe, mas que poderia existir. Um museu construído com obras que vêm de diferentes coleções, como se estivéssemos fazendo uma ficção de museu”, afirmou.
Sandra reconfigurou obras clássicas da arte europeia, inserindo personagens indígenas, elementos da natureza das Américas e símbolos coloniais, para questionar a exclusão de histórias latino-americanas e indígenas na arte canônica. “A ficção do museu é a da neutralidade. Essa suposta objetividade constrói um olhar que exclui outras formas de ver e de contar”, ponderou.
A artista utiliza a pintura – “pinto como uma forma de me aproximar da história da arte, mas também como uma forma de fazer uma crítica a ela” – como meio principal, incorporando textos e elementos museográficos que evocam arquivos, etiquetas e vitrines, desconstruindo a ideia de neutralidade dos museus.
Desse modo, propõe uma reinterpretação crítica das instituições culturais e suas formas de construção da memória, convidando o público a imaginar novos modos de representação que incluam outras vozes e narrativas. Em suma, sua produção tem forte base política e histórica, abordando temas como colonialismo, apropriação cultural e apagamento histórico.
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Mesa 4
Patricia Rousseaux, mediadora, o artista Luciano Feijão - ES e a artista peruana Sandra Gamarra
O artista Luciano Feijão
A artista peruana Sandra Gamarra
No encerramento do seminário, a artista Rosana Paulino se fez presente com uma longa gravação de saudação e apresentação do seu trabalho
“O que me interessa é como a arte constrói uma memória visual que, muitas vezes, apaga, silencia ou deforma outras memórias”, argumentou. “Quero que o público se pergunte por que olha do jeito que olha, por que uma obra está ali e não em outro lugar, por que algo é considerado arte e outra coisa não.”
O encerramento da mesa ficou a cargo do artista capixaba Luciano Feijão. O artista mencionou um projeto que vem elaborando nos últimos tempos: “Minha pesquisa atual tem como foco uma espécie de anti-anatomia, uma tentativa de criar uma imagem do corpo negro que não seja baseada nos regimes tradicionais de saber, como o científico, o artístico e o pedagógico”, disse.
Feijão criticou a maneira como os corpos negros historicamente foram submetidos a olhares classificatórios, exóticos ou utilitários, tanto na arte quanto na ciência e na educação:
“A história da representação do corpo negro é uma história de dissecação — literal e simbólica. Foi preciso abrir, catalogar, estudar, classificar. Meu trabalho tenta fugir disso, propor outra forma de ver.”
Luciano propõe, então, uma abordagem sensível e ética da imagem, que subverta o olhar objetificador: “Quero uma imagem que se afaste da lógica da exposição e se aproxime da presença. Que não seja sobre mostrar o corpo negro, mas sobre escutá-lo, acompanhá-lo, estar com ele.”
Feijão busca criar um novo vocabulário visual e conceitual que não reproduza o apagamento ou a espetacularização da corporalidade negra: “Não quero oferecer respostas visuais prontas. Talvez meu trabalho seja sobre o que não se vê, ou sobre o que se recusa a ser visto da maneira esperada”, concluiu Feijão, que em seguida apresentou um vídeo que já se debruça sobre sua pesquisa.
ROSANA PAULINO
A artista Rosana Paulino (SP), que não pôde participar do Seminário por incompatibilidade de agenda, gravou um vídeo para Arte!Brasileiros, que foi exibido após o encerramento da última mesa.
Em sua fala, ponderou que, desde que se iniciou nas artes visuais, há cerca de 30 anos, não compreendeu seu pensamento e sua práticas como propriamente contra-hegemônicas.
Seu envolvimento com o ofício partira, ela disse, de “uma necessidade absolutamente gigantesca” de falar quem ela era, discutir de onde vinham e questionar por que “a gente não percebe pessoas negras, ou não percebia, nesse ambiente da arte brasileira, sendo que esse é um país em que oficialmente 58% da população já se coloca com negra”, argumentou.
Rosana também questionou por que a arte feita por pessoas minorizadas sempre foi colocada como uma arte naïf, folclórica, “vamos dizer assim, de menor estatura”. Só depois de muito tempo, prosseguiu a artista, ela percebeu “esse local de contra-hegemonia”.
“Para mim, o que importava menos era pensar uma estrutura política nesse sentido. Na minha época, eu diria que foi por desespero. O modo como eu iniciei as minhas pesquisas vem muito do fato de eu não me encontrar, no início da carreira, dentro das técnicas clássicas, como a gente aprende na universidade”.
Representação
Rosana ponderou que sempre quis olhar para as suas raízes e que, desde criança, tinha paixão por um álbum de fotografias de sua família e queria “usar aquelas pessoas, aquelas imagens que não via dentro da história da arte”.
“Nunca fui muito de pintura. Até hoje as pessoas falam que eu pinto, mas eu acho que mais no campo do desenho. Eu sei costurar, aprendi desde criança”, prosseguiu. “Juntando essa questão técnica a uma observação do ambiente ao meu redor, vai surgir, por exemplo, um trabalho que eu considero que é o primeiro da minha carreira, o Parede da Memória”.
Nessa obra, Rosana reuúne fragmentos de fotografias antigas de sua família colados sobre tecido para produzir uma série de patuás, amuletos iguais ao que ela via no alto da porta de entrada da casa de seus pais. “Ninguém passava debaixo de um elemento desses sem ser tocado, sem ter a sua curiosidade despertada”, lembra. Tecido e costuras também apareceram anos depois em obras de Rosana como a instalação Assentamento e Atlântico Vermelho.
Rosana argumentou também que, como artista, sempre buscou práticas do cotidiano que foram relegadas, que foram “tidas como menores”, como a cerâmica, tratada com queima primitiva, “como indígenas faziam, como os negros faziam, e fui buscar lá atrás essa tradição”. Já em séries mais recentes, como Senhora das Plantas, a artista partiu de uma “investigação sobre o feminino, esse psicológico feminino que a gente não encontra. Olhando questões como o eterno, o sagrado, vemos que tem deus até do Ártico, né? Mas não tinha [uma deusa] negra. E resolvi pensar essa psicologia para o Brasil através do meu entorno, das plantas, que eu adoro”.
A educação
Rosana também ressaltou o papel da educação, em especial de professores e professoras que têm usado o trabalho de artistas afro-brasileiros. “A partir disso, as crianças vão crescendo com outra referência. Na luta antirracista, anti-colonial, anti-hegemônica é absolutamente fundamental, porque você só desrespeita os direitos daqueles que não são considerados humanos”, argumentou.
Por fim, a artista acredita que avanços aconteceram, que não se pode pensar apenas a contemporaneidade, pois no passado muitos ajudaram a esses caminhos, trazendo essas questões antes mesmo que elas fossem colocadas como anti-colonizadoras ou contra-hegemônicas. E ela ressaltou: ainda falta muito.
“O principal é nós termos pessoas desses grupos subalternizados dentro dos espaços de poder. Precisamos de pessoas nos museus, nas instituições culturais, pessoas negras, mulheres, indígenas, pessoas que foram subalternizadas. Nós precisamos ter essas pessoas também nos espaços de decisão”.
O VIII Seminário Internacional Arte!Brasileiros foi encerrado com uma apresentação, também no palco da Casa da Música Sônia Cabral, de Douglas Germano (SP), compositor, violonista, que atua na cena musical desde a década de 1980. Com cinco álbuns lançados — Duo Moviola (2009), Orí (2011), Golpe de Vista (2016), Escumalha (2019) e Partido Alto (2021) —, sua obra transita pelo samba e suas vertentes. Foi diretor musical da Cia. Teatro X, assinando trilhas para nove espetáculos, incluindo Calígula (2002), que lhe rendeu o Prêmio Shell de Melhor Trilha Original (2003).
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Banda Douglas Germano, Douglas Germano (voz/violão), João Poleto (sax/flauta) e Henrique Araújo (cavaquinho)
Banda Douglas Germano, Douglas Germano (voz/violão), João Poleto (sax/flauta) e Henrique Araújo (cavaquinho)
Banda Douglas Germano, Douglas Germano (voz/violão), João Poleto (sax/flauta) e Henrique Araújo (cavaquinho)
Banda Douglas Germano, Douglas Germano (voz/violão), João Poleto (sax/flauta) e Henrique Araújo (cavaquinho)
WORKSHOPS
Parte da programação do Seminário, os workshops aconteceram nas manhãs dos dias 20 e 21/3, no auditório do Museu de Arte do Espírito Santo, onde também se deram as inaugurações da instalação Wifi Grátis (ou Intromisssão), de Carlo Schiavini & Elvys Chaves, no Museu de Arte do Espírito Santo, com curadoria de Clara Sampaio e Nicolas Soares, curador e diretor do MAES, e da exposição Abstrações, com obras do acervo da instituição.
Deri Andrade, criador e responsável pelo Projeto Afro – plataforma de mapeamento e difusão de artistas negros-, e curador do Instituto Inhotim Brumadinho, MG), fez uma apresentação intitulada “Estratégias em curadorias decoloniais”.
Com mediação de Ananda Carvalho, curadora e professora do Departamento de Artes Visuais da Universidade Federal do Espírito Santo, Andrade discorreu sobre a maneira como projetos de pesquisa e exposições vêm se transformando a partir do letramento contra o racismo estrutural e da luta pela diversidade.
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O apresentador Deri Andrade, curador do Instituto Inhotim, responsável pelo projeto Afro Brasil e Ananda Carvalho, curadora e professora do Departamento de Artes Visuais da UFES, na mediação com o público
O apresentador Deri Andrade, curador do Instituto Inhotim, responsável pelo projeto Afro Brasil e Ananda Carvalho, curadora e professora do Departamento de Artes Visuais da UFES, na mediação com o público
Margarete Sacht Góes, professora GAEU/UFES, e a educadora e curadora Gleyce Heitor
Margarete Sacht Góes, professora GAEU/UFES, e a educadora e curadora Gleyce Heitor
No encerramento dos workshops, encontro de público, apresentadores e mediadores
No encerramento dos workshops, encontro de público, apresentadores e mediadores
Andrade relembrou o projeto expositivo “Abdias Nascimento e o Museu de Arte Negra”, que o Inhotim realizou entre 2021 e 2024, em parceria com o Instituto de Pesquisas e Estudos Afro-Brasileiros (Ipeafro). Dividido em quatros, o programa de mostras foi uma ação de curadoria compartilhada, um modelo inédito na história da instituição.
Um caso de estudo de institucionalização de uma iniciativa independentente, trazido à tona por Andrade, foi a mostra Encruzilhadas da Arte Afro-Brasileira, desdobramento do Projeto Afro que reuniu, entre dezembro de 2023 e março de 2024, no CCBB SP, trabalhos de artistas como Arthur Timótheo da Costa, Maria Auxiliadora, Rubem Valentim e Mestre Didi e Lita Cerqueira.
No dia 21/3, foi a fez de Gleyce Heitor, diretora de educação do Inhotim, comandar o workshop “Por uma articulação interdisciplinar em arte e educação”, com mediação da professora Margarete Sacht Góes, curadora do programa educativo da Galeria de Arte Espaço Universitário (GAEU/UFES).
Cada vez é mais imperativo um diálogo interdisciplinar entre a cultura e a educação. A arte tem sido um elo fundamental na construção de reflexões sobre o sujeito, seu desenvolvimento e sua relação com o meio ambiente. O workshop discutiu dois casos de implementação destas estrategias. ✱
Assista ao VIII Seminário Internacional Arte!Brasileiros: Narrativas contra-hegemônicas
Cacau, Óleo sobre tela, 1988. Fotos: Acervo MAES, Secult
Por Nicolas Soares
Existe um entendimento equivocado que faz com que uma pintura atribuída como primitivista seja exercício de uma tentativa disruptiva do academicismo erudito. A propósito, os primitivos são todos aqueles, todas aquelas, que já ocupavam na cadeia social a borda da racialidade – em que se foram organizados os povos não-europeus – operada pela dedicação eurocêntrica ao colonialismo. A medida civilizatória está amparada na cultura como reguladora dos corpos e subjetividades: as “tribos primitivas” sobrechegam da esfera do “outro lá, e eu cá” que sustentou as disciplinas antropológicas e etnográficas, as quais desenharam, entre muitas coisas, a anatomia normativa, e desta forma também o escopo da representação clássica ocidental. Tudo que está fora deste campo foi atribuído como selvagem e mais tarde catalogado como alegorias exóticas da não-civilização, do não-humano e do não-sujeito e, principalmente da não-cultura.
Os modernismos de avant-garde se dedicaram a olhar para o mundo recém-conhecido com certa curiosidade anedótica, cultivando a ambiguidade de retratar seu tempo e defender o fetiche da dessemelhança, amparados pelo estatuto do “ter”, que diz respeito a todo ato de colecionar. Colecionar imagens do além-mundo selvagem. Porém, o modernismo de terceiro-mundo brasileiro se empenhou na construção simbólica e imagética da identidade nacional, provocando o ânimo das narrativas, lendas e figuras que poderiam se despertar e corroborar para uma arte desvinculada dos academicismos das escolas e movimentos tradicionais, fazendo frente a uma brasilidade cultuada pelos herdeiros do colonialismo. Com efeito, negligenciou-se a estrutura pela qual a própria elite das artes se constituiu.
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Sem título,
Óleo sobre tela, 1997 - Foto: Edson Chagas
Sem título, Óleo sobre tela, 1998 - Foto: Edson Chagas
Colhendo cacau, Óleo sobre tela, 1971 - Foto: Edson Chagas
Casamento na roça, Óleo sobre tela, 1980
- Foto: Edson Chagas
Bois, Óleo sobre tela, 1977 - Foto: Edson Chagas
Art naïf e outras vertentes, que se movimentaram contra determinados regimentos da arte, não dizem necessariamente respeito ao que depois a arte denominaria como primitivo: este que se alinha ao agreste, ao indomesticado, ao inculto, ao ignorante; porque aqui “primitivista” são aqueles filhos e aquelas filhas da colônia em que seus saberes, fazeres e modos de elaborar a representação estão afastados da norma sociocultural em imagem, conduta e importância. Porque o primitivismo foi [ou, porventura, ainda é] a inteligência pela qual os arquétipos coloniais justificaram a dominação e a subordinação de um outro – seu modo de vida, seus artefatos, suas imagens e seus territórios. À semelhança, maneirismos em termos pictóricos e formais ramificaram um estilo destituído de qualquer origem, forçando a apropriação deste outro pelo núcleo da cultura e pelo sistema da arte.
Aqui faremos o exercício de rever a produção da artista capixaba Nice Nascimento Avanza: a “artista do cacau”, a “grande artista primitivista”, a “artista naïf” da “exuberância das cores”, largamente identificada como tal pelo contexto das artes e imprensa. Nice, mulher negra, que se entendeu artista autodidata por intermédio de amigos que a incentivaram.
Esta artista que teve uma produção extensa entre as décadas de 1960 a 1990, com projeção do seu trabalho nacional e internacionalmente, que viveu de arte e circulou pelo mundo, que se apaixonou pelo cacau, pelo campo e pelo cultivo; viveu de arte.
Nice, considerada uma das principais artistas pictóricas do Espírito Santo, esteve encoberta pelo estigma do primitivismo, menos como forma e linguagem, e sim, mais, ao que parece, como reforço da folclorização de estrutura colonial. Quando nos deparamos com o repertório apresentado pela artista, e no contexto em que estamos, somos capazes de articular questões outras que fogem do exotismo e ingenuidade atribuídos ao seu fazer como pintora. Emergem de maneira contundente expressões da cultura tradicional popular capixaba, as iconografias das religiões de matriz africana e judaico-cristã – a favor da crença dos sujeitos da roça, a cultura sertaneja, a lavoura e seus cuidados, os frutos, as flores e os animais…
Se trouxermos à tona algumas dessas articulações, perceberemos que, por trás de um trabalho que delineia as iconografias das religiões de origem afro e cristã, por exemplo, há discussões que se aprofundam no sincretismo dessas manifestações como estratégias de sobrevivência de um povo. À frente, temos uma vasta produção de artistas contemporâneos que trazem, a partir dos rituais, elaborações de campo performativo na arte; e de seus objetos, deslocamentos das padronizações do artesanato para os estatutos da arte de uma cultura.
Da mesma forma, a pintura da plantação cacaueira apresentada em Nice nos provoca emergências de discussões como o agronegócio, a monocultura, o desmatamento, a desapropriação de terra, o genocídio indígena, a agricultura familiar, a descolonização do alimentar-se e sua moeda de elitização… O cacau pintado em óleo sobre tela, em cores fortes, iluminado, vivaz, não está mais passível de uma leitura ingênua.
Neste ano de 2025, o Museu de Arte do Espírito Santo – MAES organiza o projeto NICE CONTEMPORÂNEA (com previsão de exibição para 2026) que consiste numa revisão discursiva do trabalho da artista Nice Nascimento Avanza – que faz parte de seu acervo – 25 anos depois da sua última exposição no MAES, Nice Retrospectiva, em 2000, por ocasião de seu falecimento.
Nice Nascimento Avanza (1938, Vitória-ES – 1999, São Paulo-SP) ✱
*Nicolas Soares – Artista, curador e Diretor do Museu de Arte do Espírito Santo
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A Companhia Mungunzá de Teatro, um dos coletivos mais inovadores do cenário paulistano, foi surpreendida nesta quarta-feira (28) com uma ordem de despejo emitida pela Prefeitura de São Paulo. O documento, datado de 26 de maio, concede apenas 15 dias para a desocupação completa do Teatro de Contêiner, espaço que se tornou um marco cultural e social no centro da cidade.
A justificativa oficial da prefeitura aponta o local como um “ponto estratégico para habitação”. Para a companhia, no entanto, a decisão soa como um descaso com um trabalho de quase uma década que transformou a região.
Criado em 2008, o grupo Mungunzá desenvolve há 16 anos uma pesquisa cênica continuada, buscando alinhar arte e vida. Em 2017, essa busca resultou na criação do Teatro de Contêiner. Mais que uma sede, tornou-se uma ocupação artística pulsante, reconhecida por sua gestão cultural de impacto em áreas de vulnerabilidade e por sua arquitetura sustentável e comunitária.
Marcos Felipe, ator e produtor da Cia. Mungunzá, relembra como o espaço, há 9 anos fincado no coração de São Paulo, “mudou radicalmente a geografia afetiva do território”. Ele conta que o teatro foi pioneiro ao focar seu trabalho na própria territorialidade, na população do entorno. Uma diferença crucial, pois, embora cercados por outros equipamentos culturais, nenhum deles tinha, até então, “essa promoção com a própria população do centro de São Paulo, todos trabalhavam numa dinâmica de uma população que vinha de fora”.
O impacto é traduzido em números: ao longo desses nove anos, o Teatro de Contêiner “ofertou mais de 4.000 ações artístico sociais, sendo 83% delas todas gratuitas à população e atingimos um total de meio milhão de pessoas”. Um trabalho reconhecido nacional e internacionalmente, agraciado com prêmios e que se tornou referência, balizando políticas públicas replicadas em outros municípios.
Diante dessa trajetória, a ordem de despejo chega com um peso ainda maior. “Nos causa um imenso espanto o tamanho da violência de receber um mandado judicial de despejo pelo prazo de 15 dias”, conta Marcos Felipe.
A sensação é de que a história construída ali está sendo ignorada: “A gente achava que a cidade de São Paulo deveria regularizar, chancelar o espaço e levantar esse espaço como um emblema da própria cidade e não desativar e destruir esse equipamento para construção de mais um prédio numa cidade que só tem prédio”. Marcos Felipe aponta que ao longo dos últimos anos foram erguidos muitos edifícios no centro de São Paulo e nenhum deles serviu, de fato, para a população vulnerável: “Há um processo de gentrificação do centro de São Paulo e a desativação do Teatro de Contêiner para a construção de um prédio faz parte do processo de elitização, de trazer pessoas da classe média para o centro e expulsar os moradores mais pobres para as bordas da cidade”.
Sobre alternativas, a prefeitura teria mencionado a possibilidade de outros terrenos, mas sem apresentar propostas concretas. A Cia. Mungunzá questiona a lógica: “Se existem outras alternativas para o Teatro de Contêiner, por que esses edifícios não podem ser construídos nelas?”
Agora, a companhia se mobiliza. O caminho é “fazer com que a sociedade civil se engaje nessa luta”, buscando apoio para que essa “força pública freie esse ímpeto extrativista do governo e do prefeito”.
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