Acima, retrato de Hudinilson em seu ateliê, década de 80.
O que pode a arte? Hudinilson Júnior sempre fez o que bem quis e a resposta a essa irreverência foi tornar-se um ponto fora da curva dentro do universo da arte brasileira. Sua trajetória é marcada pelo colapso do sujeito, explosão da relação com o objeto e radicalização de performances. Com vigor poético sofisticado, somado às experiências corporais e relacionais, Hudinilson deixa uma produção intimamente ligada a São Paulo, seja em performances, grafites ou arte em xerox.
Muitas de suas obras surgem na busca da simultaneidade entre pensamento e visualidade, como no dia em que surpreendeu a cidade com a imagem do seu pênis xerografada em um imenso outdoor, próximo ao parque do Ibirapuera. As reações provocadas pelo atrevimento apontavam para o desmonte das hierarquias do espaço expositivo, destruição do poder de localização da obra e ao mesmo tempo revelava a irreverência do sujeito.
Obra “Sem Título” do artista, produzida na década de 80.
Todo movimento de acionar a des – ordem perpassa pelas obras que tomam agora os 600 metros quadrados da galeria Jaqueline Martins, cuja proprietária é também a curadora da mostra. As novidades são as pinturas sobre tela, realizadas quando o artista ainda era estudante de arte na década de 1970. Uma tensão curiosa permeia a pluralidade do trabalho de Hudinilson, um dos pioneiros do movimento da arte xerox no Brasil. Melhor personagem de sua própria obra, ao criar Exercício de me ver (1981), desorganiza o pensamento crítico com a simulação do ato sexual com uma máquina de xerox. É instigante segui-lo nessa experimentação produzindo outros sentidos para o homem e a máquina. Como não lembrar de Hélio Oiticica quando sentenciou: “experimentar o experimental”? Hudinilson se expressa, sem pudor, por meio de várias linguagens que, em algumas circunstâncias, passa a ser instrumento de especulação. Para o crítico Jean-Claude Bernardet, “a fragmentação do corpo pela xerox, converte-o em paisagens abstratas, nas quais os fragmentos se esvaem”. Em sua performance com a máquina copiadora, ele utiliza seu corpo como matriz para a reprodução e investigação de possibilidades visuais.
Em 1979, Hudinilson cria o grupo 3Nós3, com os artistas Rafael França e Mário Ramiro. A união por afinidades eletivas era de amigos que pactuavam arte e forma de fazer arte. Até 1982 eles intervêm em vários pontos de São Paulo, praticando a reapropriação lúdica e crítica da cidade. O repertório de ações vai desde o ensacamento de monumentos públicos à intervenção no buraco de respiração de um túnel, à lacração de portas de galerias de arte. Todas entendidas como marco revolucionário contra as determinações racionalistas e controladoras da metrópole. Mesmo atuando com o grupo, ele jamais abandona sua produção individual que dura mais de três décadas.
Desde o início, Hudinilson mantém uma forte relação com a colagem, ponto de partida para uma fase comentarista. A isso se somam experimentos na xilogravura, suporte pelo qual a maior parte dos artistas brasileiros passou, utilizando decalques de imagens fotográficas. Hudinilson passava longas horas escolhendo fotos de corpos nus que retirava de revistas americanas. Em 1984, abandona esses modelos e centra toda a sua atenção em torno dele mesmo, quando se dedica a Narcise/Estudo para autorretrato (1984). Nesse “ensaio” dialoga com o mito de Narciso e cria sua própria identidade visual. O projeto envolve uma série de trabalhos, como uma espécie de “ópera”. Narciso passa a ser obsessão para ele que, nos últimos cadernos de colagens, revela seu interesse pelo estudo do nu masculino.
Hudinilson Jr, Amantes e Casos
Na década de 1980, o lugar da arte de Hudinilson é a rua, onde inventa grafites com desenhos incorporados à escrita, numa reivindicação de espaço de liberdade total. Seu mentor e cúmplice, Alex Vallauri (1949-1987), foi o primeiro artista brasileiro a aderir ao grafite. Como ele, Hudinilson trabalha com máscaras ou estênceis na busca de um novo espaço formal para criar, uma resistência em vão, como se fosse possível alguma naturalidade na arte.
Em vida Hudinilson se salvou de experimentar a vertigem ilusória de pertencer ao mercado de arte e de participar da internacionalização por meio das maratonas repetitivas de feiras e bienais. Só depois de sua morte seus trabalhos chegam ao exterior e desembarca, em junho, na Art Basel, na Suíça, a mais antiga e reverenciada entre as feiras de arte do mundo.
Hudinilson Jr. Até 06 de setembro de 2019 Na Galeria Jaqueline Martins Rua Dr. Cesário Mota Junior, 433 – Vila Buarque, São Paulo
O fotógrafo Hélio Campos Mello tornou-se referência não apenas pelo fotojornalismo, nem tampouco por ter sido correspondente de guerra, ou por ter dirigido várias redações, mas pela singularidade com que transforma o registro documental em expressão sensível. Em contraposição à espreita da informação ou à necessidade de retratar uma realidade dolorosa, a exposição Discretas Janelas, em cartaz no Balcão (rua Doutor Melo Alves, 150), convida o público a conferir imagens que tangenciam geometrias, arquitetura e poéticas
e um certo mistério.
As vinte fotografias que compõem a exposição demonstram que as janelas aqui não são apenas passagens de luz, mas trincheiras de observação como bem ensinou o cinema em Janela Indiscreta, de Hitchcock, e nos clássicos faroestes onde cada olhar escondido por trás de uma janela envelhecida e empoeirada podia testemunhar extermínios arrasadores. Aqui, no entanto, o disparo é da câmera fotográfica, discreta, mas reveladora.
Com imagens que ora se esmaecem, ora transbordam de significados, a mostra propõe um olhar que é, ao mesmo tempo, político, poético e humano. A fotografia, neste contexto, permanece enraizada no cotidiano, e Hélio revela essa dimensão ao transformar certos instantes em cenas que se aproximam do voyeurismo, registros da vida que acontece diante ou por trás das janelas.
Elementos da arquitetura estão presentes na compacta mostra, assim como o geometrismo, que nos remete às artes plásticas. “Tive muitas referências que aprofundaram meu olhar desde Caravaggio (1571-1610), que conheci em uma aula, em Florença, onde fiz curso de fotografia”. Ele comenta o quanto se surpreendeu com o mestre do barroco, que aplicava em suas pinturas as técnicas da fotografia: controle de luz, sombra, corte, profundidade, cor, enquadramento. “Embora eu não atue diretamente com as artes plásticas, colaboro com a Arte!Brasileiros, o que me mantém em contato com esse universo. Assim, mesmo que de passagem, as obras de arte me tocam e despertam o meu olhar”, observa.
Entre as duas dezenas de fotos expostas, ele comenta uma delas em que funde numa fotografia, a cena de uma mulher sentada frente à uma grande janela do Whitney Museum de Nova York com a obra do pintor Edward Hopper, pertencente ao acervo, intitulada Woman in the Sun (Mulher no Sol), de 1961. O quadro exibe uma personagem em sala banhada por luz natural, que entra por um grande janelão ao fundo, exatamente como a cena registrada por sua câmera, em que a arte se mistura com a vida real. “Gosto quando uma obra de arte participa da cena. Quando ela não está isolada numa parede, mas conversa com o espaço, com as pessoas, com o momento”, afirma. Essa percepção foi cultivada ao longo de décadas de trabalho de campo e está latente nesse cenário que demonstra a interação entre o objeto fotografado e o cenário circundante. As duas mulheres, a da foto e a do acervo, compõem e sobrepõem um imaginário único.
Hélio atuou como enviado especial em momentos cruciais da história recente: cobriu os anos pesados da ditadura militar brasileira, esteve na linha de frente da invasão do Panamá, (1980) e registrou ainda a tensão da Guerra do Golfo, (1990-1991). Seu trabalho é marcado pela imersão total nos acontecimentos.
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Foto: Hélio Campos Mello
Foto: Hélio Campos Mello
Foto: Hélio Campos Mello
A exposição se inicia com duas obras que funcionam como marcos temporais e afetivos, evocando uma atmosfera sensual e intimista. Ambas retratam a mesma mulher em momentos distintos de uma história de amor que atravessa quatro décadas. A primeira imagem, datada de 1973, mostra a jovem nua, deitada de lado, registro inaugural de um romance que viria a se perpetuar. A segunda, realizada em 2024, reafirma a profundidade dessa união e confirma o vínculo duradouro do casal. Aqui temos a mesma espécie de jogo cênico: a mesma posição fotográfica, a mesma complementaridade dos volumes dos corpos e a mesma atmosfera intimista do quarto.
Em meio aos retratos, fotografias biográficas, a mostra também abre espaço à paisagem urbana, destacada por duas fotografias, em que luz e cor se impõem, resultando em uma imagem de caráter quase pictórico, que transforma o imenso bloco de cimento em uma composição vibrante e de linguagem “modernista pop”. Em ambas há um olhar para a arquitetura.
Hélio caminha pelas ruas às vezes fotografando com uma pequena câmera, que faz imagens imprimíveis ou com o celular “porque é prático e portável”. Ele lembra que o Photoshop foi criado em 1987 e lançado em 1990 e que no início algumas pessoas questionavam a nova ferramenta. “Em qualquer tempo ou circunstância não importa o instrumento que você está usando. O importante é o que está sendo registrado em seu cérebro e enviado para o olho”. Aparatos fotográficos mudam constantemente e as novas tecnologias ajudam muito os profissionais. “Quando embarquei para o Golfo, como correspondente de guerra, eu tinha 75 quilos em minhas costas, e pesava 70. Hoje, se eu fosse cobrir outra guerra, eu viajaria tranquilo com meu celular e traria ótimas imagens”, garante.
Com uma carreira construída entre zonas de conflito e o dia a dia de uma grande cidade como São Paulo, ele transita com naturalidade entre a ficção e a realidade, sempre atento ao gesto poético do enquadramento. Depois de cobrir guerras e crises políticas, Hélio passou a explorar temas mais amplos, como a presença da arte na vida urbana, os gestos anônimos nas cidades, a memória silenciosa dos espaços. Seu acervo, hoje, é testemunho visual de várias épocas, um mosaico de imagens que revela tanto o tumulto dos grandes eventos quanto os instantes de quietude entre eles.
Hélio cursou economia no Mackenzie, mas foi na fotografia, estudada em Florença (Itália), que encontrou sua linguagem mais duradoura. Ao longo de sua vida, construiu uma história consistente como fotógrafo e jornalista, com passagens por algumas das principais redações do país. Atuou como repórter fotográfico nos jornais O Estado de S. Paulo, Jornal da Tarde e Última Hora, além de colaborar com revistas como IstoÉ, Senhor e Veja. Foi diretor de fotografia da Agência Estado e, no jornalismo editorial, exerceu funções como secretário de redação da revista Senhor, diretor de redação da IstoÉ e fundador e diretor da revista Brasileiros.
Neste momento, ele prepara-se para o lançamento de seu site, previsto para breve, além da publicação de um futuro livro, com curadoria de Rosely Nakagawa, figura maior na história e na crítica da fotografia brasileira.
Muitas bienais provocam um campo de tensão entre a exposição e seu título. O fio condutor da 14ª edição da Bienal do Mercosul é a ideia de Estalo, aquele momento em que tudo se transforma. A palavra polissêmica, popularesca, tanto pode se referir ao teatro, dança, fotografia, esporte, violência e está sempre na boca do povo. O tema inusitado foi escolhido pelo curador Raphael Fonseca e seus curadores-adjuntos Tiago Sant’Ana, Yina Jiménez Suriel e Fernanda Medeiros. “A ideia foi pensar em um título sem o caráter acadêmico, científico ou situacionista”, comenta o curador.
Prevista para o ano passado, a mostra foi adiada devido às enchentes que atingiram o Estado. Agora, retorna com força, ocupando 18 espaços expositivos com obras que abarcam desde as produzidas pela inteligência artificial a peças ancestrais de matrizes indígenas, além de outras mais lúdicas ou engajadas no político e na sustentabilidade.
Com uma vasta gama de conceitos, esta aguardada edição reafirma Porto Alegre como um polo artístico. Seja de perto ou à distância, familiar ou inusitada, inovadora ou revisitada, cada obra busca dar voz ao conceito central, revelando-se em camadas que ora provocam reflexão, ora despertam rejeição.
Chama a atenção o filme/instalação Echoes of a Wet Finger da jovem Vitória Cribb no Farol Santander, um estridente testemunho da fusão entre tecnologia e identidade em que as novas estéticas digitais reconfiguram nossa percepção e interação com a arte. Neste trabalho, a artista de 22 anos, sucesso de crítica, metamorfoseia sua interioridade e insere o espectador em uma imersão sensorial distópica, ao narrar um ataque raivoso que desestabiliza os limites entre o humano e o bestial. Dentro desse território onírico, ela cria seu avatar, bem ali onde o digital e o orgânico colidem sem distinção entre sonho e vigília. A protagonista é absorvida por um redemoinho de dissociação, enfrentando traumas e delírios que se espalham como um vírus de dados corrompidos. Não há como escapar. Como ela comenta: “Não há firewalls contra o inevitável”.
Sala de Rodolpho Lamonier
Ainda no mesmo edifício, aparece o nome mais estrelado dessa edição, Nam June Paik (Coreia do Sul, 1932-2006), o mágico pioneiro da videoarte e da videoinstalação. Figura chave da vanguarda dos anos de 1960/70, ele é homenageado pela Bienal que exibe um vídeo/performance, realizado com canal único, uma dança psicodélica com movimentos apreendidos pelo sentido. Paik foi reverenciado na Bienal de Veneza e recebeu retrospectivas memoráveis no Whitney Museum e no Guggenheim. Suas obras adensam o acervo do MoMA, Smithsonian, Nam June Paik Art Center, na Coreia do Sul e os de muitas outras instituições pelo mundo.
A questão de tempo se faz presente em várias obras. A artista chilena Nicole L’Huillier apresenta um dos destaques da 14ª Bienal do Mercosul: Brújula, uma escultura inspirada nos giroscópios que investigam navegação e sintonia vibracional. Com uma membrana central de silicone que simultaneamente capta e emite sons, a obra reflete sobre dualidades e reciprocidades, incorporando influências de princípios andinos e narrativas polirrítmicas. Interativa e instável, Brújula responde ao vento e à sonoridade dos visitantes, transformando-se em um espaço de experimentação coletiva e ressonância sensorial.
No mundo contemporâneo, a colaboração entre instituições é essencial para ampliar o alcance da arte. Nesta edição, a Bienal do Mercosul se une ao Projeto Ling, que mantém um espaço fixo para a exibição de obra de diferentes artistas. Sob a curadoria de Paulo Henrique Silva, o projeto recebe neste ano o artista mato-grossense Gervane de Paula, que apresenta um mural inédito marcado por elementos emblemáticos da cultura do Centro-Oeste, com destaque para a figura central de um cavalo caramelo. Para ele, sua participação na Bienal tem um significado que vai além de sua trajetória individual. “Minha presença nesta edição é um momento especial não somente para mim, mas para todos os artistas mato-grossenses que não têm a oportunidade de mostrar seus trabalhos fora da rica região em que vivemos”, afirma. Ele ressalta a força do agronegócio no Estado, mas critica a falta de incentivo à cultura. “Não temos um circuito de arte estruturado, faltam galerias e colecionadores. Minha participação nesta Bienal pode provocar mudanças”.
Uma contemporaneidade experimental aborda o conceito de sincronicidade e as suas singularidades na obra, Night and Day (I Think of You), no Santander. Cláudio Goulart, artista que imigrou para Amsterdã aos 22 anos, apresenta uma videoinstalação que combina diferentes mídias para levar o espectador a uma experiência imersiva. Goulart evoca a insondável vastidão do cosmos, onde o fulgor das estrelas ressoa como um chamado ancestral. No entanto, confinada no espaço expositivo, a obra se vê limitada por suas próprias fronteiras, ao tentar expandir-se rumo ao infinito galáctico. O resultado é uma tensão entre a ambição do ilimitado e a realidade do contorno físico, revelando a fragilidade da tentativa humana de capturar a imensidão do universo.
Como parte de uma narrativa utópica, político/poética, Zé Carlos Garcia assume a ampla entrada do Museu Iberê Camargo. Ao ocupar o grande “salão”, com peças trabalhadas em madeira, ele transforma o espaço em um território expandido de sua investigação. “Passei 16 anos esculpindo para escolas de samba, ao mesmo tempo em que frequentava o Parque Lage”.
Sob o título Suite, as peças, dispostas quase em círculos, evocam uma dança silenciosa e se reportam à suíte musical, em que um mesmo tom ressoa em diferentes movimentos. No entanto, por trás da aparente suavidade, há uma perturbação latente. Suas figuras desafiam a integridade do corpo: deformações, intersecções inesperadas, línguas que emergem para conectar-se a outras cabeças, instaurando um jogo entre comunicação e dissolução da identidade. “As madeiras são extraídas de minha área de manejo florestal consciente, e utilizo as árvores invasoras”, defende. Arte Suite dialoga com Solidão (1994), a pintura inacabada de Iberê Camargo, feita no final de sua vida. Se ele tensionava o espaço pictórico com figuras espectrais, Garcia o faz tridimensionalmente, esculpindo corpos que oscilam entre a presença e a dissolução, entre a poesia e o desassossego.
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Vídeo de Vitória Cribb. Foto: Leonor Amarante
Obra de Gervane de Paula. Foto: Leonor Amarante
Detalhe da obra de Gervane de Paula. Foto: Leonor Amarante
Instalação de Valerie Brathwaite. Foto: Henrique Faria
Estúdio Fotográfico de Paul Mpagi Sepuya. Foto: Leonor Amarante
Suite, Zé Carlos Garcia. Foto: Leonor Amarante
A Bienal se espalha por Porto Alegre. Foto: Leonor Amarante
Raphael Fonseca e Leonor Amarante
No mesmo local, a jovem Maya Weishof, 1993) exibe pinturas quase alegóricas, aproximando-as da realidade apreendida no cotidiano, trabalhando-as sobre superfícies como tela e tecidos. A artista utiliza de fragmentos, distorções, caricaturas e criaturas híbridas na concepção de imagens de corpos e paisagem.
A representação oficial desta edição conta com cerca de 77 artistas vindos de 35 países, com obras espalhadas pelos quatro cantos da cidade, tanto pelos bairros da classe alta, quanto pelas periferias para aproximar a Bienal de quem vive mais distante. Para enfrentar essa tarefa, Raphael contou com a experiência de Thiago Sant’Ana, curador e artista visual. “Ele é natural de Santo Antônio de Jesus e residente em Salvador. Sant’Ana se destaca pela atuação em projetos dentro e fora do Brasil, incluindo colaborações frequentes em São Paulo”, diz Raphael Fonseca. Sant’Ana tem um olhar amplo sobre a produção artística brasileira e, segundo o curador, contribuiu significativamente para as discussões em grupo. “Também adensaram o projeto os demais curadores convidados”, afirma Raphael.
A vibração festiva desta edição pulsa no coração da cidade, onde a artista peruana Fátima Rodrigo transforma o espaço urbano em um grande palco interativo. Suas instalações ganham vida entre o karaokê e as pistas de dança, espalhando energia no Pop Center e no Espaço Força e Luz. Nesse circuito lúdico, o Museu da Cultura Hip Hop se une à celebração, reforçando o espírito de coletividade e expressão. Fátima tenta sair do cotidiano do circuito artístico tradicional, buscando novos diálogos e experiências. “Me inspiro na música e na dança como forças de celebração e convivência social, além da estética vibrante dos programas de TV populares na América Latina”, explica. Suas intervenções são convites abertos: pedestres e visitantes se tornam protagonistas, integrando seus cenários e transformando o cotidiano em um espetáculo vivo, onde arte, corpo e cidade se fundem em um só movimento.
Valerie Brathwaite, um dos grandes nomes da arte na América Central (Trinidad e Tobago), segue ativa aos 87 anos e viajou a Porto Alegre para prestigiar a Bienal e acompanhar a montagem de Soft Bodies, sua imponente instalação composta por peças superdimensionadas. Apesar da idade, continua a criar esculturas de grande escala, explorando a tridimensionalidade por meio de tecidos preenchidos que ganham volume e forma. Dispostas no chão do Museu Iberê Camargo, suas obras rompem com a rigidez da tradição escultórica, evocando a flexibilidade e a maleabilidade dos corpos em interação, suas reações, adaptações e transformações diante dos embates entre si e com o espaço ao redor.
A fotografia encontra uma expressão singular na obra do artista estadunidense Paul Mpagi Sepuya (1982), cuja investigação visual desafia as convenções tradicionais do meio ao explorar identidades queer, intimidade e os mecanismos de construção da imagem. Seu trabalho se desdobra em um jogo sofisticado de autoimagem, reflexo, comunidade, pose, ficção e masculinidade, expandindo-se para exposições imersivas, instalações e fotolivros. Reconhecido internacionalmente, seu acervo integra algumas das mais prestigiadas instituições do mundo, como o Guggenheim, Hammer Museum, LACMA, MoMA, Museu Stedelijk e Tate Modern.
Randolpho Lamonier, também fascinado pelo universo das imagens, transita por diversas mídias, com especial destaque para a arte têxtil, a pintura, o vídeo e a instalação. Sua obra Teoria Geral do Babalu Atômico configura-se como um espaço feérico, dominado por um vibrante tom de rosa, onde palavra e imagem dialogam incessantemente. Neste ambiente sensorial, temas que vão do micro ao macropolítico se entrelaçam a crônicas, diários e interseções entre memória e ficção. Seu trabalho já integrou exposições em instituições de prestígio, como o Denver Art Museum, o MASP e o Another Space, em Nova York.
O mais emocionante desta edição é ver a Bienal ocupando novamente espaços icônicos da cidade, como o Farol Santander e o Museu de Arte do Rio Grande do Sul, e trazendo de volta o agito da Usina do Gasômetro, todos duramente afetados pela catástrofe do ano passado. Como co-curadora das 2ª e 3ª edições ao lado de Fábio Magalhães, lembro o quanto me doeu ver esse patrimônio tão rico ser engolido pelas águas. Fim do trabalho, agora, volto para São Paulo com o coração leve, feliz por testemunhar essa retomada.
O Congresso Nacional aprovou nesta quinta-feira, 20, o projeto de lei orçamentária (LOA)
de 2025 (PLN 26/2024). O texto, aprovado três meses após o prazo, trouxe uma notícia
terrível para o setor cultural: os recursos para a Política Nacional Aldir Blanc (PNAB), mais
plano de fomento à cultura do País, foram reduzidos em cerca de 85% (caíram de R$ 3
bilhões para R$ 480 milhões).
Imediatamente ao anúncio do corte, o Fórum Nacional dos Secretários e Dirigentes de
Cultura de todo o País anunciou que seus representantes desembarcarão em peso em
Brasília no próximo dia 27, “mobilizados e articulados”, para tentar reverter essa decisão.
Caso se concretize, o baque na Lei Aldir Blanc (LAB) inviabilizará a mais importante política
cultural pública que o País conseguiu erguer em sua História – os recursos vão para os
entes federativos, municípios, estados e Distrito Federal, para apoio a projetos. O
contrassenso é que o Congresso Nacional, ao mesmo tempo que cortou a LAB, reservou
R$ 50 bilhões para emendas parlamentares.
“A PNAB representa uma conquista histórica da cultura brasileira, consolidando uma
política pública permanente de fomento, construída com ampla pactuação federativa”,
disse a nota do Fórum, presidido pelo secretário de Cultura do Espírito Santo, Fabrício
Noronha. O corte foi operado pelo relator da LDO, senador Angelo Coronel (PSD-BA), e
não pelo governo, que tinha se comprometido a manter os recursos quando enviou o
projeto de lei ao Congresso. Os ativistas acreditam que podem reverter a previsão de
gastos. Para valer, o projeto agora depende da sanção do presidente Lula e da publicação
no Diário Oficial da União.
Aprovada por unanimidade no Congresso Nacional em pleno governo de Jair
Bolsonaro, inimigo das políticas culturais, a Lei Aldir Blanc é uma legislação de despesa
obrigatória, que não pode ser cortada ou contingenciada. Os recursos da Política
Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura (PNAB) destinam-se a ações e projetos de
todo o País, sem distinção de legenda partidária. O governo federal previa destinar
anualmente R$ 3 bilhões até 2027 para o setor, e a aplicação é feita pelos próprios
entes federativos por meio de editais e prêmios. Tornou-se a maior política cultural do
país em termos de investimento direto da União.
La noche oscura, 2024. Tinta a óleo, encáustica, tecidos, plásticos e metais sobre madeira, 190 x 170 cm. Fotos: Fotos: Jomar Braganca
Nuno Ramos, o curioso, o intrépido, com uma energia latente que traduz em matéria, volta a Belo Horizonte (MG) em março, em exposição na galeria Albuquerque Contemporânea, com mais de 15 obras realizadas durante 2024, com curadoria de Pollyana Quintella e . Victor da Rosa.
Nuno sempre esteve em movimento. Interessou-lhe desde muito jovem a literatura. Escreve, pinta, cria instalações e performances motivadas pelas circunstâncias adversas pelas quais o Brasil passa. Jorra sua carga pictórica em objetos, lançando mão de grandes camadas de tinta e explorando a cor, uma de suas marcas registradas.
A arte!brasileiros falou com Nuno acerca de seu trabalho, suas inquietudes, referências e de seus projetos para 2025. Leia a seguir:
ARTE!✱– O que você estava pensando quando começou a fazer essa série de obras, em 2024?
Nuno Ramos – Ela vai completar um ano certinho: comecei em fevereiro, esvaziando o meu ateliê, que estava insuportavelmente cheio. Tinha começado esse processo um ano antes. Mandamos para duas empresas de depósito mais de 3000 itens: árvores, barco, avião, coisas assim. Era um absurdo de coisas. E então ele estava vazio, e eu comecei a encher de novo. Foi uma coisa bacana de ver, o meu ateliê, que tem 600 metros quadrados, vazio. Foi uma sensação incrível. Tinha coisas e tenho, mais do que o normal.
Meu percurso é de uma diversidade estilística gigantesca. Trabalho com pintura, com desenho, com escultura, com instalação. Eu escrevo. Fiz muita performance, teatro, alguns pequenos filmes até agora, uma coisa de dança. Uma chamava Os Desastres da Guerra, que era ali em cima das gravuras do Goya, onde os atores liam uns textos das mães que perderam os filhos. Fizemos Marcha à Ré, em parceria com o Teatro da Vertigem, durante o governo anterior, realmente ali tentando falar de uma coisa que estava acontecendo. Agora fiz uma intervenção diferente, um concerto sinfônico inédito, criado a partir da trilha sonora do filme Terra em Transe, de Glauber Rocha, com a colaboração de Eduardo Climachauska. O canto de Maldoror: Terra em Transe em Transe. Laura Vinci na concepção cenográfica.
Enfim, para dizer que a pintura talvez seja o leito mais constante e o único constante de tudo que eu fiz e de tudo o que eu faço. Eu comecei a fazer essas pinturas, com muita matéria, lá por volta de 1987, 1988. Os quadros pesam muito, e eu sempre que posso volto a eles.
A parte mais visual fica por conta dos desenhos. Desenhei muito, mas a pintura, ela tem um leito dela mesmo, algo que não sei definir. Claro que ela mudou muito. Por exemplo, ela começa, lá em 1980, como uma pintura de época, de pouco contraste tonal. Agora, ela está muito colorida. É isso que eu vi. É uma coisa que se faz histericamente colorida. E mudou muito. Mas de alguma forma eu estou dentro das regras pessoais básicas, que tecnicamente seria pintar no chão. Eu faço tudo no chão. E tem uma espécie de dripping (gotejamento) amalucado que vai recebendo o movimento. Eu sinto como se eu estivesse indo para o ateliê alimentar um bicho que está ali, deitado, esperando para eu trazer o alimento dele. E ele não tem dó. Obviamente não tem projeto, não tem nada parecido com isso. E eu acho que tem uma diferença com o resto do que eu faço. Acho que o horizonte do pessimismo, que atravessa muito do que eu faço, está um pouco ausente aqui. Não que seja otimismo, acho que é o contrário. Acho que existe um desespero pela alegria, pela felicidade, pela positividade, que não sinto tanto no resto de meus trabalhos. Esse contraste é forte. Há um contraste com as instalações mais sóbrias.
A pintura é uma coisa muito solta, chegando perto do exagerado, tem uma historieta da minha vida que eu sempre conto. Quando eu tinha 40 anos de idade, eu fiz uma retrospectiva. Veio me ver um curador inglês, não me lembro do nome, conversamos a tarde inteira. Na hora de ir embora, eu fui acompanha-lo até o táxi. Ele achou que as pinturas eram de outro artista. Eu nunca defini se isso é bom ou ruim: saber qual desses artistas é você, dentro, em cada momento.
ARTE!✱– E o que você acha? Depende de seu estado de espírito?
Nuno Ramos – Todos nós temos períodos mais soturnos e períodos mais light. Mas eu faço tudo simultaneamente. Depende muito de minha agenda, do que proponho para mim, dos recursos que eu tenho, da própria pintura. Às vezes eu preciso que uma galeria ajude a pagar, porque elas são assim, caríssimas, de fazer. Não sei se é apenas um estado de espírito. Talvez seja alguma coisa mais pesada, mais trágica. Sei que a pintura reage com certo desespero apolíneo. Vamos falar assim.
Ao mesmo tempo sou muito calmo, mas o trabalho é muito, muito ansioso, muito identificado com muitas coisas o tempo todo, me pondo em situações de absurdo. Como agora, por exemplo, no concerto do Municipal. Só pra você fazer ideia, tinha um coro de 80 vozes. Era a orquestra inteira com 70 músicos. Então, você imagina, eu não sei nem ler música. Eu estou sempre em situações assim, meio limite. Rolou, e foi muito legal.
Mas na pintura eu sei quem é que procurou essa situação limite. Na pintura é como se fosse eu voltar para uma identidade, não pensada. Uma identidade sem roteiro. Não tem um script que domina.
Eu queria ser escritor antes de ser artista. Eu passei a adolescência querendo ser escritor. A pintura é sem palavra. Eu agora tenho dado título, mas a palavra não manda, enquanto que na escrita eu sinto que a palavra está o tempo todo operando.
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Sem título, 2024. Tinta a óleo, encáustica, tecidos, plásticos e metais sobre madeira. 185 x 410 cm
Sem título, 2024. Tinta a óleo, encáustica, tecidos, plásticos e metais sobre madeira. 190 x 170 cm
Los Pasos Perdidos, 2024. Tinta a óleo, encáustica, tecidos, plásticos e metais sobre madeira. 210 x 440 cm
Sem título, 2024. Tinta a óleo, encáustica, tecidos, plásticos e metais sobre madeira. 190 x 170 cm
ARTE!✱– Frente à sua obra, lembro-me de Joseph Beuys, Anselm Kiefer…
Nuno Ramos – É, tem uma coisa de uma força que eu sinto como semelhante. No caso do Kiefer é diferente, porque ele está sempre trabalhando com uma perspectiva mais roteirizada, né? Ele tem toda uma teoria sobre aquilo , é um mundo espiritual etc., que está aí, sempre pairando. Tem uma coisa parecida. Ele foi um artista importante para mim no começo. A matéria dele tem a ver, sim, e os materiais que ele usa… uma espécie de lama. Porém mais simbolizada. Acho que se foi transformando numa espécie de teatralização do drama contemporâneo, de um ponto de vista que foi ficando cada vez mais conservador, na minha opinião, entendeu? Algo assim como se fosse um europeu culto, tomando um Petrus enquanto o mundo incendeia.
Há poucos anos, visitei o ateliê dele lá no sul da França, e achei um pouco isso. O que ele tem, que é muito impressionante: aquele chão, em perspectiva, rústico, feito de pintura e de paus queimados, e o próprio chão. O céu já não funciona tanto. Tem pontos de fuga, vai escapando.
Porém, acho que quando vi as banhas (graxas e gorduras animais que o artista utilizava nas suas obras) do Beuys, as pedras com azeite, isso tudo me pegou para sempre. Acho que é uma influência dessas que não sai, porque não é uma influência só de aparência, é uma influência poética mesmo. Incrível. Visceral. A primeira vez que eu vi as banhas foi uma coisa fortíssima que eu nunca me esqueci. Por outro lado, minhas pinturas são coloridas, tentando seduzir. Não sei a quem, tentando falar com não sei quem. São superloquazes, e eu sinto certo desespero. Essa coisa de hoje em dia. que é esse excesso de rede, de fala, de som, de ser, de sedução, de conexão.
ARTE!✱– Em Beuys, a matéria que ele buscava ecoava um trauma. Como ecoa a sua, para você?
Nuno Ramos – Minhas pinturas não são austeras, nem recusam isso. Elas querem ecoar a si mesmas. Por outro lado, elas têm uma carga de matéria tal, que é extremamente penosa, é quase um corpo. Aquilo são toneladas de tinta que eu vou pondo, vou pondo.
Eu nunca usei de modo simbólico, muito menos biográfico, como o Beuys fazia. Eu, por exemplo, usei muita vaselina, não apenas de sabão e breu. Usei a areia. São só materiais que eu usei em quantidades assim de tonelada. Mas a vaselina foi um material que me pegou muito. Algo intermediário entre o sólido e o líquido, é uma espécie de indecisão entre dois reinados. Acho que pertenço um pouco a isso. Esse corpo acrescido dá uma espécie de ética para mim, como se eu não pudesse mentir muito.
Quer dizer, quando você tem que cuidar da própria matéria, de ela ficar de pé, não cair numa taça e escorregar, não derreter. De lidar com ela, com as características físicas dela, parece que o trabalho ganha uma verdade, só nisso, independente da imagem, né? Quer dizer, para mim, há uma distinção entre a imagem, que, aliás, é o que me incomoda em geral: haver uma imagem resultante, e a matéria que faz a imagem que eu gostaria que fosse viva. Não que eu consiga, mas que pudesse respirar, que pudesse ser feita de fungos que crescessem, que fossem coisas autônomas. Então a matéria para mim é esse espaço de alguma coisa que eu não controlo, de que eu preciso ficar amigo, pedir licença e ver se ela fala nos meus termos. Atribuir a ela sua própria verdade. Deixá-la pesar, deixá-la suar, deixá-la respirar. Isso tudo é o que me atraiu nesses materiais, todos os que usei a vida toda.
Na inauguração da mostra Los Pasos Perdidos, Nuno Ramos “refaz o gesto de desfiguração progressiva que fundamenta o próprio Suprematismo. Ironicamente, a destruição aqui tem ares contemplativos (a lentidão, as mandalas de areia), o que rememora a mística malevichiana. Porém, finalizado o ritual, (a máquina varre a obra), o que sobra não é o almejado grau zero mas um punhado de cinzas, um rastro desordenado, o registro de um movimento que deforma a composição e entremeia suas cores produzindo, em última instância, a própria imagem de seu apagamento.” Texto curatorial de Pollyana Quintela e Victor da Rosa.. Foto: Patricia Rousseaux
ARTE!✱– Então, além da tinta…
Nuno Ramos – Há 30 anos tem muito tecido e muito metal. Tem latão, tem alumínio, não tem objetos. Isso é importante. Não é uma colagem no sentido de pegar uma coisa do mundo. Eu construo a tinta. O material. Porque ela é uma lava, sim, você mistura o óleo com a encáustica nela quente. Trabalho com a tinta quente, pelando, muitas vezes com luva, outras vezes ainda no limite da mão, mas é quente. E então aquilo vira um grude, um negocinho que parece um pouco uma lava mesmo, um negocinho que você joga, uma areia quente, alguma coisa assim, e então aí elas vão surgindo.
ARTE!✱– O que teremos na exposição além das pinturas?
Nuno Ramos – Inventei uma espécie de contramovimento. Ainda não temos imagens da obra que está sendo desenvolvida. Serão três pedras, e nós vamos fazer três quadros do Malevich. Três quadros do Malevich, de pó de mármore, não de pigmento colorido. Uma réplica de pó. Então o quadro tem, sei lá, oito cores. A gente usa oito. A gente faz uns modelos de papelão em computador. A gente separa as camadas, faz as camadas de papelão grosso e aí, com o pó, a gente refaz certinho, como uma mandala, uma mandala do Malevich. Então, se o quadro tem um metro e meio por um metro e vinte, a minha réplica de pó tem o mesmo tamanho. Colocamos em toda a extensão dele um rastelo, como uma vassoura mais dura, que vai andar três centímetros por dia.
Então, ao longo da exposição vou apagar o Malevich, digamos assim. Serão três apagamentos. Os meus quadros vão estar aí e o dele vai estar sendo meio que apagado. Vai ser um movimento meio de vida, de morte, de construção e desconstrução. Para fazer esse varrido, estou desenvolvendo um mecanismo lá em Minas. Num espaço onde Allen Roscoe trabalha, que faz muitos trabalhos para mim, um cara genial, um arquiteto incrível, um cara que fez muito, muitos trabalhos com Amilcar [de Castro].
ARTE!✱– E por que escolher um quadro do Malevich
Nuno Ramos – Estou usando Malevich porque primeiro, ele está na raiz de toda a pintura do Século 20, cubismo, construtivismo ruso, dessas raízes a dele acho que foi a que mais entrou no nosso construtivismo, muito marcado pela influência russa, os contra-relevos do Helio Oiticica parecem retirados de um quadro dele. Os próprios bichos da Ligia Clark. Uma raíz mais solta, acho que está muito próxima de nós.
Então de um lado tem meus quadros quase que vomitando essa origem com 300k de tinta estertorando essa base e aquela origem sendo desfeita, apagada virando matéria de novo.
ARTE!✱ – Projetos? Depois de Belo Horizonte?
Nuno Ramos – Em junho eu inauguro exposições no MACRS (Museu de Arte Contemporânea do Rio Grande do Sul). É um espaço novo que estão abrindo em Porto Alegre, assim como em Curitiba.
Vamos fazer duas exposições, mas, curiosamente, uma delas é para refazer um projeto, o Morte das Casas, que eu fiz com a Flavia Albuquerque, em que eu enterrei as casas. Três casas, que chamei de Três Lamas. O museu quer um trabalho à luz das enchentes. Mas eu fui lá, logo depois de começarem, desci em Floripa, peguei um ônibus, não tinha aeroporto ainda em Porto Alegre, e o desastre era tamanho, numa escala e de uma violência, que não dava para fazer nada. Aí eu achei interessante refazer esse trabalho com essas casas afogadas, refeitas de materiais. Mas isso deixamos para ver e conversar mais para frente. ✱
O Brasil em marcha-à-ré
Por Giulia Garcia
Em agosto de 2020, plena pandemia, Nuno realizou uma performance-fílmica, Comissionada pela Bienal de Berlim, que homenageava as vítimas de coronavírus e se opunha ao “retrocesso civilizacional”, ocupando a Av. Paulista com carros conduzidos em marcha-à-ré.
A carreata ocupava a via emitindo uma sinfonia incomum. Não buzinas, nem músicas, mas o som alto dos respiradores utilizados nas unidades de tratamento de covid-19. “No Brasil, a gente está assistindo a uma marcha triunfal da violência e do descaso [com o coronavírus], acho que o que propomos com a performance é uma pequena reversão dessa energia”, explicou, à época, Nuno Ramos. “É como se a performance ajudasse a instaurar um afeto de solidariedade dentro de uma sociedade cada vez mais anestesiada. Me apropriando um pouco do que Judith Butler e Vladimir Safatle tem falado: a solidariedade se torna um afeto revolucionário”, complementou o dramaturgista do processo, Antonio Duran.
Enquanto ocorria, a performance era filmada por Eryk Rocha. O cineasta a transformaria num curta-metragem a ser exibido na Bienal de Berlim, que aconteceria de 5 de setembro a 1 de novembro de 2020 na Alemanha.
Fabio Cypriano é crítico de arte, professor e diretor da Faculdade de Filosofia, Comunicação, Letras e Artes da PUC-SP. Nesta edição, Cypriano assina as matérias sobre o livro Ecologia Decolonial do Malcom Ferdinand e a entrevista Lia D Castro
Jotabê é repórter e biógrafo, entre outros, do cantor Belchior . Foi repórter de O Estado de S.Paulo e da Folha de S.Paulo, entre outros. Jotabê entrevista nesta edição o Secretário de Cultura do Espírito Santo, Fabrício Noronha.
Leonor Amarante jornalista, curadora e editora. Trabalhou no Jornal O Estado de S.Paulo, na revista Veja, na TV Cultura e no Memorial da América Latina. Nesta edição escreve sobre o lançamento do livro Incontornáveis do artista Antonio Manuel.
Eduardo Simões Jornalista, formado em Ciências Sociais pela USP, trabalhou na Folha de S.Paulo, nas revistas Brasileiros, no jornal Valor e atualmente colabora com a edição da revista arte!brasileiros digital e impressa.
Maria Hirszman é jornalista e crítica de arte. Trabalhou no Jornal da Tarde e em O Estado de São Paulo. É pesquisadora em história da arte, com mestrado pela USP. Neste número entrevista Gleyce Heitor, diretora do educativo de Inhotim e o historiador Marcus Vinicius Sant’Ana
Arquiteta e gestora cultural, Claudia Afonso atua desde meados de 2023, à frente do Museu Vale, instituição que integra o Instituto Cultural Vale. Como Diretora Artística, Executiva e Relações Institucionais do museu capixaba, é responsável pela “concepção de projetos e mostras, publicações, programações culturais, cursos e seminários”, como informa sua descrição na plataforma LinkedIn. Claudia também elabora e acompanha o Plano Museológico, Estratégico e Planos Anuais de Trabalho, incluindo editais e leis de incentivo. Por fim, juntamente com a equipe do museu, é responsável pela elaboração e implementação de políticas de inclusão, diversidade e equidade, alinhadas às diretrizes do Instituto Cultural Vale.
Leia abaixo entrevista concedida por Claudia Afonso à Arte!Brasileiros:
ARTE!✱ – Você estava em Berlim quando soube da abertura da vaga de diretora do Museu Vale?
Claudia Afonso – Sim, foi no início de 2023, quando ainda estava em Berlim. Morei lá durante seis anos, me dedicando à pesquisa e ao trabalho como arquiteta de exposições em diferentes escritórios e para diferentes instituições culturais, dentro e fora da Alemanha.
Queria tentar um novo desafio. Eu me lembro que, quando estava pensando em me candidatar à vaga, liguei para a Marta Bogéa, com quem trabalhei por muitos anos e que é capixaba. Ela é uma grande amiga e, naquele momento, ainda dirigia o MAC-USP em São Paulo junto com Ana Gonçalves Magalhães. Perguntei o que ela achava. Ela falou: “Claudia, vai, porque você tem esse olhar internacional. Vitória é uma cidade portuária, ou seja, olha para o horizonte. Isso é superbonito.”arteb
ARTE!✱ – Desafio de um território novo e de substituir um diretor que gerenciou o Museu, com sucesso, durante quase 25 anos…
Dar continuidade a um trabalho tão significativo e consolidado é, sem dúvida, um desafio e um grande estímulo. O Museu Vale foi criado em 1998, a partir do desejo da Vale de preservar a memória do território, das histórias das comunidades que vivem ao longo da Estrada de Ferro Vitória a Minas e se relacionam com ela. O espaço se estruturou com um centro de memória, formado por documentos e registros doados por ex-ferroviários e outras fontes ligadas à ferrovia.
O Museu faz parte de uma rede de quatro equipamentos culturais gratuitos e abertos ao público, geridos pelo Instituto Cultural Vale, junto com o Memorial Minas Gerais Vale (MG), o Centro Cultural Vale Maranhão (MA) e a Casa da Cultura de Canaã dos Carajás (PA). Essa rede integra a Vice-Presidência de Sustentabilidade da Vale.
ARTE!✱ – O fechamento da antiga sede coincide com a tua entrada? A antiga sede do Museu Vale foi fechada em 2022. Agora estamos construindo a nova sede, no Porto de Vitória. Ocuparemos o Armazém 4, com previsão de abertura para 2026, com projeto do escritório capixaba Diocelio Grasselli Projeto e Planejamento e implantação coordenada pelo Instituto Pedra.
Eu me formei em arquitetura, trabalhei muitos anos como arquiteta de exposições em diferentes escritórios e instituições culturais de São Paulo, me especializando em gestão cultural, práticas curatoriais, museologia e museografia. Nesse sentido, acompanho o projeto do novo Museu Vale também como arquiteta, focada na minha especialidade, com um olhar que permite entender necessidades específicas de expografia, luz, os espaços de circulação e de armazenamento necessário, além de outras especificidades que um projeto como este apresenta.
Algo que eu trouxe para a gestão no Museu Vale, junto a uma reestruturação mais geral, são as formações de produção de exposições, ouvindo as demandas do território. Essa formação já trouxe módulos de Curadoria, Produção, Arquitetura de Exposições, Design Gráfico, Iluminação, Fotografia, Montagem e Acessibilidade, trazendo oportunidades e considerando também a geração de renda para os públicos participantes.
Desde o .Aurora (ponto Aurora), espaço autônomo de arte que co-criei e geri junto a cinco artistas por quatro anos (2013 a 2017) no centro de São Paulo, a escuta sempre foi essencial para as programações que desenvolvíamos. Além das minhas formações acadêmicas, tanto o .Aurora, quanto o Centro Cultural São Paulo, onde coordenei as exposições por quatro anos, foram escolas fundamentais para mim, onde aprendi muito sobre o trabalho e a gestão em conjunto, criando programas conectados à comunidade artística, já muito ligados a formações, oficinas, conversas e trocas, em um momento de muita experimentação, onde outros tantos espaços autônomos eram criados na capital. Essa experiência de gestão em um espaço público, outro autônomo e agora um privado, é extremamente enriquecedora.
ARTE!✱ – Neste ínterim como estão funcionando?
Desde o fechamento da antiga sede, o Museu Vale se encontra em um momento que chamamos de Extramuros, em que levamos nossas atividades educativas e exposições para espaços culturais em todo o estado, o que nos permite desenvolver parcerias e ampliar alcance. Foi um desafio para mim, como profissional chegando de fora do estado, conhecer o território e apresentar nossa programação na tentativa de ocupar esses espaços — criando, de fato, uma rede de parcerias, entendendo as particularidades de cada local e a possibilidade de abrigar nossas ações.
Transitar o Tempo é a primeira exposição que realizo, de fato, como coordenadora-geral e diretora do Museu Vale. Foi uma parceria com a Casa Porto das Artes Plásticas e a Prefeitura de Vitória, por meio da Secretaria de Cultura. A mostra, curada por Nicolas Soares, artista e diretor do Museu de Arte do Espírito Santo – MAES, e pela pesquisadora Clara Pignaton, reúne mais de 30 artistas, com obras provenientes de galerias, acervos e, principalmente, comissionadas, no Centro de Vitória. Os artistas, em sua maioria capixabas e residentes no estado, apresentam trabalhos que dialogam com o passado e o presente do território, destacando a importância da preservação da memória cultural do Espírito Santo.
ARTE!✱ – O que vem pela frente?
Além da continuidade da reestruturação do Museu, assim como de um melhor e maior entendimento do território, considero fundamental criar uma relação com os diferentes equipamentos administrados pelo Instituto Cultural Vale, que hoje é o maior patrocinador privado de projetos culturais no Brasil e que, desde 2020, já patrocinou e articulou mais de 800 iniciativas culturais em todo o território brasileiro.
Tenho um grande desejo de promover intercâmbios entre os espaços de atuação do ICV. Cada um acompanha culturas e identidades distintas, de acordo com as regiões, então seria de grande importância trazer para o Espírito Santo essas experiências — e vice-versa.
ARTE!✱ – Claro, porque também é uma forma, aí sim, de construir pontes de conhecimento, de abertura para os saberes de cada uma das regiões.
São regiões, a princípio, muito diferentes, mas que também guardam similaridades. São dois espaços na região Sudeste, em Minas Gerais e no Espírito Santo; um na região Norte, no estado do Pará; e um no Nordeste, no Maranhão. Podemos construir uma série de conexões simbólicas e de memória – como a Ferrovia Vitória-Minas, que liga Espírito Santos e Minas Gerais, e a Estrada de Ferro Carajás, que liga o Pará ao Maranhão, além das cidades-ilha Vitória e São Luís. Acabamos pensando a cultura de forma transversal.
ARTE!✱ – Vânia Leal, que foi curadora da I Bienal das Amazônias e hoje participa do Centro Cultural Bienal das Amazônias, fala em “amorosidade”. Essa reação espontânea de querer entender o outro. Eu senti isso em Belém, em Fortaleza e sinto isso em Vitoria.
A amorosidade do coletivo. Eu não consigo conceber qualquer trabalho que não seja feito assim, nesse sentido, com muitas mãos, ouvindo o outro e vendo o que podemos pensar e fazer juntos. Do ponto de vista da gestão de uma instituição, isso pode, às vezes, trazer desafios. Criar espaços menos verticais e mais colaborativos requer tempo e, dependendo do contexto, exige uma mudança de paradigma.
Uma das coisas mais especiais aqui no estado é que há, de fato, possibilidades reais de fazer as coisas acontecerem. Sinto que existe uma leveza e uma predisposição para construir juntos.
Em pouco menos de dois anos à frente da direção, conseguimos estabelecer pontes e caminhos importantes para a instituição. É fundamental contar com pessoas dispostas a produzir e valorizar a cultura capixaba, seja em instituições culturais públicas, galerias de arte privadas, ou na Universidade Federal do Espírito Santo. É uma turma muito boa!
Esse incentivo a iniciativas culturais que ampliam o olhar sobre o território e suas complexidades é uma das diretrizes do Instituto Cultural Vale, que por sinal é patrocinador da Bienal das Amazônias desde que ela foi criada e segue apoiando a segunda edição, que acontecerá durante a COP.
ARTE!✱ – Quais são os próximos passos ainda no momento Extramuros?
Nossa programação continuará acontecendo em instituições parceiras, localizadas em diferentes cidades. Também teremos 2 editais este ano, uma série de formações, além de programas educativos que incentivam a arte e a cultura capixaba. Outro projeto em desenvolvimento para este momento é a digitalização do nosso Centro de Memória, tornando-o ainda mais acessível. São mais de 76 mil itens, entre negativos, mapas, livros, fotos, jornais e materiais de divulgação.
E quanto a mim, continuarei, com certeza, criando e aprendendo muito. ✱
Num movimento inverso ao de tradicionais potências culturais, como São Paulo, Rio e Minas, contaminadas pela guerra cultural da extrema direita e assistindo à atrofia de suas antigas glórias, o pequeno Espírito Santo veio comendo pelas beiradas, como se costuma dizer. Nos últimos anos, o estado consolidou suas políticas públicas para a área da cultura e se tornou uma agradável surpresa de êxito no setor. Em maio de 2022, inaugurou o Parque Cultural Casa do Governador, uma das maiores galerias a céu aberto do país, à beira mar, com 93 mil metros quadrados, abrigando 32 obras de arte site-specific (ao exemplo de Inhotim), promovendo uma interseção rara entre arte contemporânea e natureza. Em janeiro de 2026, vai coroar seus investimentos com a inauguração do Cais das Artes, projeto de museu e teatro para grandes eventos do premiado arquiteto capixaba Paulo Mendes da Rocha (1928-2021), Prêmio Pritzker de Arquitetura. “O Espírito Santo era o segredo mais bem guardado do Brasil”, disse recentemente o governador Renato Casagrande. “E agora a gente quer contar isso para todo mundo”.
E qual foi o segredo do desabrochar cultural do Espírito Santo? Estaria sua cultura atrelada a uma estratégia econômica e fiscal (trata-se do estado que mais realiza investimentos e com a maior poupança corrente do país em 2024, segundo a Secretaria do Tesouro Nacional)? Arte!Brasileiros sentou-se à mesa com o jovem Fabrício Noronha, secretário de Estado da Cultura do Espírito Santo (e presidente do Fórum Nacional de Secretários e Dirigentes Estaduais de Cultura), de apenas 41 anos, para conversar sobre o fenômeno. Com franqueza, Fabrício é cristalino: para ele, não há mistério, a estratégia consiste fundamentalmente na continuidade, no esforço paciente e perseverante de políticas universalizantes.
ARTE!✱– Nós queríamos entender um pouco como você chegou nessa secretaria, em que momento; o que você encontrou, em termos de dificuldades, e como vocês conseguiram, a partir do que encontraram, iniciar um trabalho.
Fabrício Noronha – Primeiro, eu acho que uma coisa importante de pontuar é que eu venho de um trabalho já de muitos anos no campo da cultura, da produção cultural, tanto como artista quanto como produtor, fazendo curadorias, produzindo eventos, pensando muito também a cultura e, enfim, as linguagens artísticas como plataformas de transformação; antes, com as iniciativas privadas, mas já com espírito público, pensando muito a cidade, pensando muito o Estado. Então, isso pôde me subsidiar. Venho de um repertório tanto de observar outras iniciativas de outros lugares quanto observar o próprio trabalho que a secretaria vinha fazendo, olhando de fora e vendo coisas que poderiam ser melhoradas. É nesse momento que o governador (Renato) Casagrande ganha a eleição e me convida, nessas primeiras conversas, para discutir alguns desses highlights, e coisas que precisavam ser feitas, que eu via como estruturantes, já aparecem, e a gente já inicia ali uma pactuação em torno (e depois soube também que foi esse também um dos motivadores do convite para a secretaria) da perspectiva de um olhar transversal para a cultura. Porque eu, apesar de ter uma atuação na música, nas artes, uma atuação na produção, transitei muito na literatura também, sempre transitei muito nas outras linguagens. Não tinha uma atuação identificada como alguém do teatro, alguém da literatura ou alguém do cinema, enfim. E aí eu consegui trazer isso nessas primeiras conversas de planejamento, e entendo hoje que foi até esse o motivo da percepção e da decisão do governador lá naquele momento, de trazer alguém que tivesse essa transversalidade ali no DNA.
ARTE!✱ – Estamos falando da eleição de 2018?
É, essa conversa, a primeira, foi em dezembro de 2018, e eu assumo no dia primeiro de janeiro de 2019..
ARTE!✱ – No meio disso teve uma pandemia, certo? O desafio grande nessa pandemia foi justamente que os artistas não tinham palco. Como foi atravessar isso e ainda ter números bons para apresentar?
Antes de entrar mais na coisa da pandemia, só quero concluir esse ponto em relação a isso que eu percebi, que encontrei quando eu cheguei, né? Então foi assim: o que eu encontrei, e eu já tinha essa percepção antes, foi uma secretaria em um contexto muito focado em torno da política do fomento direto dos editais, que é a principal forma que a gente tem de apoiar os artistas. Mas uma secretaria atuando pouco em outras frentes ou diversificando pouco suas formas de financiamento. Então, nesse primeiro momento, a gente foca no primeiro ciclo. Aí vem a pandemia no meio, atrapalhando esse planejamento, dificulta a gestão de pavimentar novos mecanismos, trazer experiências e boas práticas de outros lugares, e então passamos a um ponto de vista muito de estruturação de legislações, de organização de processos. Nesse meio tempo, a gente começa a estruturar uma lei de incentivo de ICMS, que o Espírito Santo não tinha ainda, e que é fundamental para todo esse processo e, consequentemente, esses resultados que a gente alcançou hoje. Ela foi aprovada quando? Ela foi aprovada um pouco depois da pandemia. A gente tá agora no quarto ciclo, 2024 é o quarto ciclo, então em 2021 é que ela começa.
Foi sendo gestada nesse meio tempo aí da pandemia e não foi um… Não é nunca um processo tranquilo, né? Você criar novas leis, novos mecanismos que vão impactar no orçamento público. Então, houve muita conversa com as secretarias de Fazenda, com a do Planejamento, para você pactuar essa grande entrega, e hoje a gente tá trabalhando com algo em torno de R$ 25 milhões por ano. Que é um volume, para o Espírito Santo, muito bom e até, se você olhar o ranking dos estados, um número considerável num contexto nacional. Só na lei de incentivo do ICMS. E aí tem outros resultados. Tem um outro processo que a gente faz de estruturação de lei que teve muito a ver com a coisa da pandemia, que é o que a gente convenciona hoje chamar de Fundo a Fundo. É o nome do programa. Então, naquele processo todo, da construção da Lei Aldir Blanc, né, que foi a lei emergencial, e eu participei muito ativamente disso – e posso falar em outro momento mais detalhadamente desse bastidor e desse processo -, qual era a potência ali por trás daquele mecanismo? Era uma descentralização de recursos, naquele caso emergencial, para poder destravar a inoperância que o governo federal estava tendo no desdobramento, no enfrentamento da pandemia. Mas, ao mesmo tempo, era o que o setor cultural, no seu acúmulo, sei lá, dos últimos 20, 30 anos, discutia, que era coisa do Sistema Nacional de Cultura, dos papéis dos municípios, dos papéis do Estado, de um desejo (de criar o) que algumas pessoas chamam de SUS da Cultura, ou seja, um modelo parecido com o do SUS ou do Fundeb, de transferências via fundo, nos quais você consegue, utilizando a capacidade orçamentária que o governo federal tem, irrigar essa cadeia toda, principalmente do fomento direto. Então, naquele momento, no meio da pandemia, a gente ao mesmo tempo estava executando e trabalhando uma ação emergencial própria, uma das primeiras do Brasil, um edital de apoio emergencial. Tivemos um insight assim: OK, tem todo esse aspecto, né? Mas olhando friamente, tem uma coisa muito forte que vem depois disso, e que foi se consolidar com a Lei Paulo Gustavo, com a Política Nacional Aldir Blanc, esse gesto de transferência, essa descentralização. No meio da confusão, a gente manda para a Assembleia Legislativa o projeto de lei que iria regulamentar a aplicação da Lei Aldir Blanc no Espírito Santo e, para nos dar segurança jurídica, a gente faz uma alteração na Lei do Fundo, possibilitando a transferência dos fundos municipais. E estabelece uma política, a partir daí, com aquilo já resolvido legalmente, para abrir uma porta para o fundo trabalhar. Quando a confusão da pandemia diminui, a gente começa a regulamentar isso e lança um programa de coinvestimento de recursos em cultura com os municípios, no primeiro momento com foco no fomento direto. Estabelecemos uma tabela a partir do porte de cada município, na qual a gente chega com até R$ 4 para cada R$ 1 que o município coloca no seu fundo municipal. Tem quatro para um, três para um, dois para um e um para um, com os municípios maiores colocando um real para um real do Estado, nessa lógica. E a gente lança um programa que chama, convoca os municípios a isso. Obrigando, ou trazendo como contrapartida que, para receber o recurso, precisa ter o fundo. E o cenário de 2020 era que só 15 dos 78 municípios do Espírito Santo tinham um fundo. E, a partir desse programa, num primeiro momento, simplesmente com o movimento político em torno da própria Aldir Blanc, a gente vai expandindo isso e, ano a ano, aumentando.
Então, em 2021 a gente chega a 26; em 2022, a 43 municípios; e hoje a gente tá com quase 100% dos municípios do estado, pouco mais de 60 municípios. Estão com seus fundos de cultura rodando, não só ativos, porque desses 15 de 2020 só dois estavam rodando, né? Porque a gente sabe também que, na cultura, tem essa fragilidade: você tem a legislação, mas não tem o orçamento. Ao provocar com essa contrapartida, esse coinvestimento, o prefeito olha: “Pô, se aqui eu coloco R$ 100 mil e vai virar R$ 500 mil, então eu vou colocar R$ 100 mil reais. Se não tem isso, eu não vou botar nada, ou vou deixar isso no final da fila das minhas prioridades”.
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Parque Cultural Casa do Governador, aberto ao público, à beira do mar com mais de 50 obras de arte e eventos permanentes de educação e recreação para o público.
Rodrigo Sassi, Corpo Estranho, 2023, Madeira certificada.
Estados Originários, 2023, de Renato Ren
ARTE!✱ – Você deu um dado de que o Espírito Santo foi o estado que teve a maior execução da Lei Paulo Gustavo. Algo em torno de 101%, 102%. Essa organização ajudou, você acha?
Essa organização dos fundos? Total, porque esse processo todo, para além de ter sido de uma implementação de uma política, da criação desses fundos, foi uma grande escola de gestão. Porque você, junto com o estabelecimento dessas regras e dessas metas, você também desafia a gestão municipal a uma responsabilidade maior. Dessa forma, a pessoa que vai cuidar desse cofre e dessa política não pode ser mais o primo da filha da vizinha, do cunhado. Entendeu? Não pode ser mais aquela coisa: “Ah, o meu primo é….”. Ou então um cargo político ou uma pessoa que é o último da lista ali – que é a realidade, né? E que tem mudado, na verdade, mas que era muito a realidade daquela época. Então com isso você sobe a régua. Você diz: “Vamos falar sério aqui: tem recurso, mas tem prazo; você tem que cumprir isso aqui, porque senão o recurso não chega, senão você não presta contas, e depois vai ter problema com o Tribunal (de Contas)”.
Então isso teve um efeito também no dia a dia, não só nesses dados agora da LPG, e nem tanto nesse caso específico (e esse diz mais a respeito ao que nós fizemos no fundo estadual), mas quando a gente olha outros dados da execução da própria Aldir Blanc I, da LPG e agora da PNAV, e quando a gente anda também, né, roda o Espírito Santo pelo interior, a gente sente. Enfim, para ter ideia assim de número, a gente tá falando de um fundo de cultura estadual que nessa época executava em torno de 350 projetos, e hoje a gente está batendo mais de 500, mas assim, em torno disso, ou seja, a capacidade da secretaria (e era só a gente, mais dois municípios, que era Cachoeiro e Cariacica, lançando editais) era perto de 350 projetos.
Com esse programa, a gente passou a rodar 1.100 projetos financiados, somando todos esses (no último, foram 54 municípios, mas no outro foram 45), enfim. Todos esses editais pequenos, médios, que esses municípios lançaram. E a capacidade do município de chegar aonde a gente nunca conseguiria chegar, porque por mais que a gente faça esforço de divulgação, de rede social, disso e daquilo, a proximidade do cidadão com a municipalidade é outra. É aquela de você encontrar o prefeito no supermercado, o município pequeno brasileiro é isso, encontra o gestor ali, então tem uma outra dinâmica. A secretaria estadual de cultura fica lá em Vitória, um negócio quase inatingível, sei lá, é muito desfocado do ponto de vista, por exemplo, de um mestre da cultura popular, de uma comunidade quilombola no interior do estado. Poucos vão acessar mesmo, mas não porque a gente não faz o nosso trabalho, é porque é da natureza mesmo dos papéis, né? Então, no papel do município, você tem uma política lá de salvaguarda do patrimônio cultural para o quilombo com essa proximidade, e você pode acessar de fato aquele cidadão. Então, não tem mágica nenhuma nisso porque isso tudo tá respaldado nesse acúmulo que eu falei anteriormente, que foi essa discussão sobre o Sistema Nacional de Cultura, que a gente vê há quanto tempo isso acontecendo? Aí, correndo no tempo, vai culminar nesse momento que a gente tá hoje, com a Política Nacional Aldir Blanc, que estabelece recorrentemente esse recurso e até nos faz refletir sobre o os caminhos da nossa política, porque de alguma maneira a gente tá disputando o mesmo cliente ali, no final das contas, então a gente tá também, nesse remodelar, levando o Fundo a Fundo para outras frentes. Por exemplo: a do patrimônio. A gente tem uma linha hoje dentro do Fundo a Fundo específica para o patrimônio, para a reforma, que é um outro gargalo. Tem lá o teatro da cidade, o museu caindo aos pedaços, o prédio histórico e tal. E a gente começou a estabelecer, via Fundo a Fundo, a transferência de recursos, mas, nesse caso, sem essa coisa do 1 para 4, mas com 100% ou quase 100% dos recursos do governo (tem 1% do município), para a gente conseguir tanto fazer projetos arquitetônicos quanto colocar equipamentos, e também comprar mobiliário, ar-condicionado, possibilitar acessibilidade para equipamentos tombados.
ARTE!✱ – E quem faz esses diagnósticos? São os próprios municípios? Tipo: nós temos aqui, precisando de reforma, a casa do Roberto Carlos.
Que é um dos pontos do programa, inclusive. É um exemplo real. Que, aliás, é um belo atrativo turístico. Todo mundo vai para lá para ver. É um dos pontos turísticos mais visitados do estado. A casa tinha uma coisa (uma construção) muito em cima ali dela, uma construção que meio que espremia, e esse projeto (de reforma), inclusive, abriu. Sim, o diagnóstico vem do município, mas aí tem um outro ponto importante: toda política dos editais segue a participação e o controle social dos Conselhos de Cultura. Então, foi nessa mão que a gente saiu de 15 para mais de 60 fundos, e a gente saiu de 15 e foi para mais de 60 conselhos municipais de cultura que têm que validar os projetos. E é um pré-requisito que (o conselho de cultura) seja paritário, no mínimo paritário com a sociedade civil, então alguns daqueles 15 que já existiam tiveram que ser reformulados porque tinham mais gente do governo do que da sociedade.
ARTE!✱– Para entender, porque isso é muito importante: quer dizer que, como parte dessa repavimentação da qual você fala, houve uma proposta de construir conselhos? E tudo tem que ser escolhido nesse conselho?
Essa sua pergunta é muito boa para trazer isso. Ah, e como que escolhe o que vai fazer? Primeiro: ao mesmo tempo que tem tanta demanda para equipamentos, nós não temos tantos projetos arquitetônicos. Ah, tá lá caindo os pedaços, mas não tem um projeto, não tem um pensamento e uma priorização ali dentro da gestão, então a gente estimula que os municípios escolham, né? Então, a gestão vai ser provocada por essa oportunidade de recursos. E a gente não está falando de pouco recurso: houve um primeiro com 30 milhões de reais e um segundo com 40 milhões de reais para patrimônio. Então, você tem um parâmetro. Por exemplo: agora, no PAC, o Iphan lançou um negócio também de 36 milhões para o Brasil todo. Então, a gente lançou essas duas oportunidades. Na primeira, que foi a de 30 milhões, nós tivemos um pouco menos de 20 milhões em projetos inscritos, e todos foram aprovados. A necessidade é tão grande que nem se você falar: “Tenho 30 milhões aqui, inscrevo até tal dia”, não tem essa preparação. Então é um processo também de amadurecimento dessa importância e dessa priorização dentro da gestão pública. E qual foi o pulo do gato? A permissão de inscrever projeto. O município inscreve o projeto em um ano e, no outro ano, ele pega aquele projeto e faz a obra. Os mais atentos estão fazendo isso. Como resultado, a gente tá indo para o terceiro ciclo do Patrimônio, com 53 parcerias com prefeituras, entre obras, projetos arquitetônicos e compras de equipamento, em um total de 26 milhões de reais. Isso já pactuado. Porque são todas parcerias que a gente tem, projetos que a gente financiou, projetos arquitetônicos, (agora) virem obras no terceiro ciclo e assim sucessivamente, com a política se estabelecendo. Cria um ciclo virtuoso aí de projeto e obra.
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primeiro Hub Público de Economia Criativa.
Fotos: Gustavo Louzada
galeria Homero Massena, exposição de Ana Luzes, Gênesis a Criação, curadoria Nataly Volcati. Fotos: Gustavo Louzada
Retomada, em 2024, das obras do Museu Cais das Artes, localizado na Enseada do Suá, em Vitória. Idealizado originalmente pelo arquiteto Paulo Mendes da Rocha, falecido em maio de 2021 e o Estúdio METRO Arquitetos Associados, de São Paulo.
O Museu contem uma área expositiva de 3000 m2 e o Teatro uma capacidade para 1300 espectadores preparado para abrigar usos múltiplos, shows, espetáculos teatrais, de dança e exposições de arte. Foto: Danilo Ferraz
Retomada, em 2024, das obras do Museu Cais das Artes, localizado na Enseada do Suá, em Vitória. Idealizado originalmente pelo arquiteto Paulo Mendes da Rocha, falecido em maio de 2021 e o Estúdio METRO Arquitetos Associados, de São Paulo.
O Museu contem uma área expositiva de 3000 m2 e o Teatro uma capacidade para 1300 espectadores preparado para abrigar usos múltiplos, shows, espetáculos teatrais, de dança e exposições de arte. Foto: Danilo Ferraz
Retomada, em 2024, das obras do Museu Cais das Artes, localizado na Enseada do Suá, em Vitória. Idealizado originalmente pelo arquiteto Paulo Mendes da Rocha, falecido em maio de 2021 e o Estúdio METRO Arquitetos Associados, de São Paulo.
O Museu contem uma área expositiva de 3000 m2 e o Teatro uma capacidade para 1300 espectadores preparado para abrigar usos múltiplos, shows, espetáculos teatrais, de dança e exposições de arte. Foto: Danilo Ferraz
ARTE!✱– E como funciona isso com outras secretarias dentro do Espírito Santo? Por exemplo: qual é a relação com a Secretaria de Educação? Porque sempre preocupa o impacto dessas políticas junto à população, sua ressonância na qualidade de reflexão da população.
Eu acho que esse, no final das contas, é o nosso grande objetivo, né? E esse é um ponto também, voltando a esses valores iniciais, de colocar o cidadão, o conjunto da sociedade, como fim. Porque, muitas vezes, as políticas de cultura viram um fim em si para o setor, para a sobrevivência das produtoras, dos fazedores de cultura, artistas, a cultura popular, enfim. Todo esse ecossistema da cultura, ele existe para produzir, para ser um canal, um veículo ou de difusão, ou de criação, ou de pesquisa, enfim, de tudo isso que a cultura, em toda sua complexidade, traz. Mas no final das contas, também importa impactar as pessoas. É um paradigma complexo aí de trabalhar, até (e principalmente) nesse diálogo com a classe e com o processo todo da sociedade civil. É um modo de ver um pouco diferente. Tudo isso que a gente pensa, né, e boa parte do que a gente pensa, tem essa essa premissa, né? Então, ah, qual é o impacto, no final das contas, nesse cidadão?
Há uma dificuldade, por uma política de estado, e a gente está lidando com coisas em contextos muito distintos, tanto do ponto de vista político, quanto do ponto de vista local específico. A gente acredita, por exemplo, que essa política de proteção do patrimônio vai estabelecer, de maneira ampla, uma nova relação desse cidadão ali daquele local com aquele patrimônio, e várias pesquisas demonstram isso. O quanto você ter um museu, um teatro próximo, o quanto isso trabalha na sua relação de pertencimento com aquele lugar, na sua relação com a sua própria felicidade, com a expectativa que você tem do futuro para os seus filhos. Tem toda uma coisa que parece muito intangível, mas que a gente consegue visualizar muito quando a gente conversa com as pessoas e quando a gente olha para essas pesquisas e esses dados, que é o impacto que essas ações têm. Por mais que tenhamos vivido um processo muito forte no bolsonarismo, um processo de ataque, de criminalização, tipo “ah isso é um bando de… de pessoas que não servem para nada… demole isso aí logo, faz um hospital”. Enfim, se a gente do campo progressista não prioriza, se o campo progressista não se decide a pegar um orçamento proporcional ao da segurança e coloca naquilo, não acontece. A gente sabe o quanto esses projetos, como no exemplo dos CEUs, no final das contas vão ter impacto na segurança, na saúde. Se não houver uma decisão disso, a gente vai continuar dando volta, né? É um desafio de trazer a cultura para esse centro da discussão do poder dos governos centrais. E isso é difícil.
A gente tem uma dificuldade muito grande de medir, de ter indicadores e dados que tragam esses resultados, até pela natureza subjetiva, intangível da cultura, porque a gente tá falando de felicidade interna bruta, a gente tá falando de pertencimento, a gente tá falando de senso de comunidade, muitas das vezes, mas também a gente tá falando de geração de emprego e renda, de PIB, de redução da criminalidade naquelas comunidades. Então, tudo isso tá posto. Mas a gente tem uma dificuldade muito grande de envelopar isso e “vender”, digamos assim, colocar num rol de prioridades.
No trabalho que a gente que a gente fez, sobretudo pela visão do governador, e aí você também depende muito, dentro desses processos, de ter uma pessoa, um governador ou um prefeito, que tenha essa visão, ou que minimamente consiga entender que esses processos são estratégicos para essa transformação toda do conjunto da sociedade, da economia e do do bem-estar. E isso a gente tem lá. Então, o (governador Renato) Casagrande foi me dando esse espaço e me pautando muito nesse lugar, e a gente conseguiu ir expandindo esse leque dentro, óbvio, das nossas capacidades orçamentárias, da nossa capacidade de equipe também. Mas a gente foi fazendo muita coisa e abrindo muitas frentes. E o Espírito Santo, ele carrega também algumas particularidades. Ele é um estado muito pequeno que tá localizado geograficamente do lado de grandes potências culturais e econômicas do Brasil, e muito perto aqui de São Paulo também. Você tem Minas Gerais, você tem o Rio de Janeiro, a Bahia, que somando aí você tem a própria ideia de Brasil, daquilo que foi construído no século XX, então você tá diante de uma síntese disso que a gente tem do Brasil, então há um grande sufocamento, e até uma crise de identidade.
ARTE!✱ – O Espírito Santo é um dos maiores plantadores de café no Brasil, tem uma das plataformas de alumínio mais importantes etc., etc. Mas ainda se sabe pouco de sua história e seu desenvolvimento, não?
É, isso é um tema bem complexo e uma dor assim muito grande lá para a gente. Um ponto ruim. Até esses dias teve um evento em que o governador usou a frase: “Ah, o Espírito Santo era o segredo mais bem guardado do Brasil e agora a gente quer contar isso para todo mundo”. De fato, esse ponto que eu tava falando, de a gente estar cercado dessas potências culturais e econômicas, responde um pouco dessa questão. Outro aspecto é que o próprio mercado, pela sua dimensão geográfica e populacional, é muito pequeno, ou seja, os grandes talentos, em todas as áreas, eles saem do Estado, né? Do Roberto Carlos a um engenheiro de programação. Você tem uma dificuldade muito grande de, por ter um mercado pequeno, de reter esses talentos. Isso é um processo histórico que começa a se quebrar agora – algo simbolizado por um cantor, o Silva. O Silva é um grande nome da música brasileira e mora em Vitória e até hoje vive lá. Inclusive questionam muito isso a ele: “Ah, por que você ainda tá em Vitória?”. Um pouco nesse olhar, de desprezo, nesse olhar de: “ah esse lugar, né?”. De um ponto de vista mais filosófico, histórico e conceitual, a gente tem uma relação muito de falta de conhecimento ou de desprezo à nossa história.
É preciso conhecer a história, é aquela clássica “se você não conhece de onde que você veio, você também não vai saber quem você é no hoje”. E o Espírito Santo tem um pensamento que é muito martelado na academia, na imprensa, na própria produção cultural, (uma idealização) em torno da imigração italiana e alemã. Há consenso em torno de um Espírito Santo “descendente”. Mas, quando você vai olhar para a realidade estatística ou você vai andar na rua, o Espírito Santo é um lugar que reflete a diversidade cultural do Brasil. É o Espírito Santo preto, quilombola, o Espírito Santo indígena, um Espírito Santo muito diverso. É um processo de identidade a se resolver. Imagina, né, no ponto de vista até individual, de psicanálise: se você pensa uma coisa, fala uma coisa sobre você, mas a sua realidade não bate com isso… Existe historicamente, e eu tenho refletido muito sobre isso, um descolamento entre o discurso de quem somos e o que de fato nós somos. Então, a gente, na política pública, tem um papel a desempenhar a partir de um olhar da diversidade, um olhar desse Espírito Santo preto, indígena, para além desse Espírito Santo que é também descendente de italiano, de alemão, pomerano, e a gente tem comunidades pomeranas lá incríveis, que também fazem parte desse arcabouço das comunidades tradicionais do estado, que falam a língua pomerana, então não se trata de um descarte de nada disso, mas é um olhar para esse caleidoscópio do que de fato somos. A partir do momento que a gente começa a admitir isso, e eu acho que isso é um processo contemporâneo que a gente tá vivendo lá, dessa geração nova que está chegando, a gente vai começar a se resolver. Senão, a gente vai o tempo todo ficar dando murro em ponta de faca.
ARTE!✱ – E há também uma estratégia de trazer grandes talentos nacionais para o Espírito Santo, para desempenhar papeis na cultura. Você fez questão de trazer grandes talentos para Vitória, como o Omar Salomão, que está hoje cuidando da curadoria do Parque Cultural Casa do Governador.
Eu uso muito o termo “furar a bolha”. Porque qual a consequência disso desse problema de posicionamento, que o Espírito Santo tem? As coisas que acontecem ali não reverberam. Esse programa, por exemplo, do qual eu falei anteriormente, o programa de Fundo a Fundo: isso é um protótipo que se discute há 30 anos em termos de política pública do Sistema Nacional de Cultura. E eu acredito que, se tivesse acontecido em qualquer outro Estado de maior expressão, isso seria um grande case e estaria todo mundo falando. A gente fala o tempo todo, dou mil entrevistas sobre isso, já escrevi vários artigos, vou em vários eventos e falo e tal, mas aí… não é uma coisa que chame a atenção.
ARTE!✱– Para provocar: mas aí também não é resultado do obscurantismo dos próprios setores da centro-esquerda, que não dão importância à cultura? Que nunca entenderam a importância real do investimento na arte e cultura. Isso é uma coisa que agora apareceu, de uns 10 anos para cá, devido a uma pressão que vem acontecendo, mas é como se eles tivessem sempre uma visão, um pensamento de elite.
A gente do campo progressista não dá atenção a essa questão e concordo, não é prioridade, não tá no centro. Mas o outro lado, digamos assim, a extrema direita brasileira, ela entendeu isso. Por que a cultura, junto com a universidade e a ciência, eram os três assuntos, os alvos principais principais que eles trabalhavam. Por que? Não é porque “eu não vou com a cara do Caetano Veloso” e não sei o quê, não. É porque eles entendem que, dentro lá daquelas estratégias Steven Bannon deles, de algoritmos e tal, que isso, no final das contas, como o Gil disse no discurso dele de posse lá, “é a argamassa que nos une”, né? Vejamos agora o que está acontecendo com Ainda Estou Aqui: uma coisa muito simples, uma indicação, e o tanto que esse trem tá movendo; criou-se um lugar lá no Rio onde foi filmado o filme, virou um ponto de visitação, teve impacto no audiovisual, enfim, toda uma discussão sobre isso. A gente sabe desse poder, a gente tem os dados que mostram esse poder, né, para redução de violência, que é o ponto que eu tava falando anteriormente, mas a gente não pega e: pô, então é isso? então vamos construir CEU ao invés de comprar sei lá o quê para não sei o quê? É uma decisão. Uma hora, no frigir dos ovos, é uma decisão de para onde vai o dinheiro.
ARTE!✱ – E o Cais das Artes, o que significa dentro disso? Por que agora se trata de uma obra gigantesca, que a gestão decidiu concluir. E não tem a ver com a coisa pedagógica do Fundo a Fundo, não é? Que é quase uma pedagogia da política pública de cultura. E essa pedagogia é lenta. Ela se deu um processo, é agora que ela tá dando frutos. Mas o Cais das Artes, a chamada âncora na paisagem é uma coisa, um investimento muito grande e tal. Como você situa isso dentro da política pública?
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Exposição no MAES, de Luciano Feijão e Juliana Pessoa, Anticorpos, 2023. Foto: bruno Zorzal e Tom Boechat
Exposição do acervo do MAES, Abrigar-se, 2024. Fotos: divulgação
No MAES exposiçãs do artista Rick Rodrigues, Fiar. Fotos: divulgação
No MAES exposiçãs do artista Julio Tigre, O Inquilino. Fotos: divulgação
Eu acho que, voltando ao ponto do “furar a bolha”, chegamos ao Cais. Eu acho que existe uma série de processos. O Fundo a Fundo, né, é um. Tem um outro ponto sobre a estratégia da gestão, que quando a gente, quando o governador se reelege e a gente continua no governo, conclui-se um primeiro ciclo, esse da pavimentação, na qual a gente criou uma lei de incentivo de ICMS robusta, organizada, com participação efetiva das empresas, e esse mecanismo pedagógico do Fundo a Fundo, outras legislações ali e enfim. Nesse segundo momento, a gente entra por outra fase que, dentro da nossa estratégia, tem muito a ver com difusão e formação. Coisas que vão dizer respeito a esse assunto que a gente tá agora, desse “Espírito Santo para o mundo”, ou dessa relação com a nossa identidade muito mais efetiva, porque, no final das contas, vai organizar essa visão múltipla do Espírito Santo. Esse reconhecimento, ou seja, ter uma difusão dessa multiplicidade efetiva, os artistas circulando, as pessoas se reconhecendo ali em outros corpos, e do outro lado, o processo educacional, você formar pessoas a partir de um pensamento de multiplicidade, organizar as instituições, mostra uma outra característica positiva do Espírito Santo, fruto dessa construção política e dessa organização que você identificou lá. Nós temos uma capacidade institucional muito grande de dialogar. Dialogamos com o sistema S, com a universidade, com a Federação das Indústrias, com todos esses atores institucionais que eu vejo conversando e convivendo com a realidade de outros estados, né, por conta do Fórum de Secretários.
Tem lugares (no Brasil) em que você não consegue estabelecer um diálogo de convergência, de planejamentos com outras instituições; é tudo no máximo bilateral, porque há interesses difusos, grupos e pessoas remando para direções diferentes em contextos caóticos. Como o nosso vizinho lá do Rio de Janeiro, o de Minas Gerais, e não tô falando especificamente de governos agora, tô falando do ponto de vista mais histórico. Por outro lado, o Espírito Santo, em consequência também disso, é um estado organizado, a gente consegue fazer uma lei de incentivo à cultura pela visão do governador, mas também porque a gente está com a nota A do Tesouro, porque tem dinheiro em caixa, porque tem o Fundo Soberano, tem uma reserva, são contextos macropolíticos que favorecem isso tudo. Mas, voltando à questão conceitual, nessa segunda rodada a gente começa a trabalhar e ter tempo e foco na questão da difusão e da formação. Criamos um hub no centro da cidade, o Hub AS+ uma escola livre ligada à questão da economia criativa e do desenvolvimento de setores. Priorizamos quatro setores, estrategicamente, olhando para essa realidade a partir de dados, indicadores, de estudos, de conversa, dentro de uma estratégia de desenvolvimento. E isso começa a dar resultado junto, você tem uma pavimentação de recursos chegando e um outro movimento de formação e de fusão para qualificar esses investimentos, para subir a régua dessas coisas todas que estão acontecendo.
Tem um dado do final de 2023, que é um retrato de um momento (que depois muda), que mostra a gente em terceiro lugar – saímos da décima posição para o terceiro lugar em participação da porcentagem da economia criativa dentro da economia capixaba. Só perdendo para Rio de Janeiro e São Paulo, que são grandes potências. Em porcentagem. Então a força de trabalho, formal e informal, da economia do Espírito Santo chegou nesse topo. São dados que oscilam e tal, mas é incrível. E aí você vai ver o investimento per capita, porque são muitas camadas… A gente falou muito do Fundo a Fundo, mas ele se reflete de uma maneira geral nessa política do fomento direto e indireto. São muitos recursos, muitos projetos acontecendo, o que evidencia uma necessidade muito grande de qualificação, sobretudo desse setor, desse setor-meio de produção cultural, de fornecedores, de gente para escrever projetos, de prestação de contas. A gente acelera bastante esses modelos de formação, contando com parceiros como o Museu Vale, que dá também, com a Cláudia Afonso, essa visão também. Todo mundo senta à mesa e fala: “Galera, Senac, Sesc, vamos todo mundo fazer oficina de formação de projeto?”. E, aí, isso vai refletindo, vai chegando a outras ações de difusão. Hoje, por exemplo, a gente tem um programa de circulação, com R$ 100 mil de recursos de passagem por mês para circulação dos artistas do Espírito Santo no mundo e no Brasil, que é, enfim, sem ficar comparando, mas é um valor expressivo, se você comparar pesquisar os dados aí do Governo Federal e de outros estados. Então a gente tá posicionando os nossos artistas nos lugares. A gente tá todo ano participando ativamente da SIM São Paulo, estava o André Prando aqui, que é um cantor lá do Espírito Santo, participando. Estamos nos posicionando, criamos um programa de circulação interna que chama Cultura em Toda Parte. Está indo pro quarto ciclo, e anualmente a gente financia 200 shows, apresentações de teatro, oficinas, tudo circulando por dentro do Espírito Santo, milhões de investimento. E aí, do lado da Lei de Incentivo à Cultura, vamos financiando grandes, grandes e médios projetos, como é o caso da parceria com a Arte!Brasileiros lá no seminário. A gente tem hoje uma realidade de projetos de qualidade, de fazer e de acontecer, muito melhor do que uma realidade de poucos anos atrás, é uma régua profissional que subiu.
Acho que a grande consagração disso, e aí eu chego na sua pergunta, é a iminência da inauguração do Cais das Artes que, na sua história foi pensado como um equipamento da redenção do Espírito Santo. Mas ainda numa perspectiva de reproduzir esse viralatismo, esse “a grama do vizinho é mais verde”. Agora, a gente vai poder receber os grandes espetáculos, as óperas de São Paulo vão ter onde se apresentar com nosso fosso maravilhoso. Mas, por outro lado, temos que olhar para o Cais também como uma plataforma para a gente conectar tudo isso. Toda essa efervescência e esses projetos que foram criados nesses anos todos, incubados e realizados, desse, daquele e daquele outro tamanho, para que eles se conectem a essa plataforma. E, da mesma maneira que a gente vai receber, a gente também projete o nosso festival. Entendeu? Na verdade, eu tô abrindo a estratégia. O Cais das Artes é para grandes exposições? É, mas num calendário de um ano, mesmo recebendo as exposições de outros artistas, a gente tem capacidade, tem pessoas formadas e tem artistas para produzir as nossas.
Porque se a gente não pavimenta isso também, você não ia ter a lei de incentivo para estar dando dessa musculatura, você não ia ter esse pensamento mais diverso para olhar para dizer: “A gente também pode”. E é uma coisa de fato grandiosa, né? É um projeto de Paulo Mendes da Rocha, é fabuloso e a gente tem recebido algumas pessoas já para ver, é uma loucura. O custo? Acho que está em 280 milhões, não tenho certeza, precisa checar (na verdade, foram investidos até agora R$ 310 milhões no Cais das Artes). Trata-se de uma obra que começou em 2010 e teve diversas paralisações.
ARTE!✱ – A secretaria vai ter que assumir também a gestão, né? E como vai ser a absorção, agora, de um custo tão alto e contínuo?
Desde que retomamos a obra, a gente está entendendo esses modelos, né, visitando muitos espaços, conversando com muita gente especialista para desenhar o nosso modelo, dentro da nossa capacidade orçamentária, dentro da nossa realidade local e dentro desse pensamento também, do Cais como essa plataforma de mão dupla, e de um projeto que, no final das contas, e aí tem um desafio, que é o de você transformar uma coisa que é um assunto muito duro, muito negativo e que as pessoas (ainda) olham para aquilo como um grande símbolo da inoperância e da burocracia do estado brasileiro, para um espaço de orgulho, de pertencimento, de passear com a família no sábado à tarde.
ARTE!✱ – Como você vê a importância de construir parcerias com pessoas ligadas às suas áreas, e não necessariamente oriundas de meios políticos ou empresariais, para manter a gestão mais ligada ao setor artístico?
Isso me ajuda a responder toda aquela questão inicial sobre como chegamos até aqui. Porque uma das premissas, lá atrás, foi a gente montar uma equipe e nossa estrutura de pessoas que fossem correlatas a essa atuação e tivessem um pensamento, conceitualmente, dentro disso tudo que a gente tá falando. Que a gente tivesse uma autonomia, um pensamento de uma gestão mais horizontalizada, menos centralizadora. Apesar das decisões passarem por mim, das coisas todas terem aquele direcionamento, se você não estabelece uma relação de confiança com o conjunto de pessoas, e também não dá autonomia para que essas pessoas tocassem as suas áreas, a gente não teria conseguido alcançar hoje, com 6 anos de gestão, tantos resultados. Porque até a minha própria capacidade física, de tempo, não daria conta de tocar e estar tomando tantas decisões. Então, isso é uma coisa fundamental para mim. Ter uma equipe, ter um alinhamento e ter essa relação de confiança. Descentralizar. E isso não é só na gestão pública e na gestão de cultura, é um princípio, algo que já vinha também nas coisas que eu fazia antes. É óbvio que, ao estar num numa posição de liderança, se quer ter o controle de tudo, mas, no final das contas, você tem que dosar, saber se quer 10 coisas do seu jeitinho bonitinho ali ou se você quer 60, 70 coisas que estão numa energia autônoma, e que algumas delas vão ter um problema ou outro, mas que estão fluindo.
Então é esse o caminho que eu tenho na minha gestão. A gente construiu um espaço cultural do zero, digamos assim, né? Porque todos os outros espaços a gente herdou, eram espaços que já existiam, como o Museu de Arte, com seus tantos anos. E tem os espaços que a gente gestou e criou. Um é o Hub AS+ e o outro o Parque Cultural Casa do Governador e agora o Cais das Artes, que também está nesse processo. Isso permitiu ter um desenho do zero e pensar “que instituição é essa que a gente quer?”. Pegando o caso do Parque Cultural Casa do Governador. A gente tinha um desafio que era, tem um espaço, que era uma casa de praia, a residência oficial de praia do governador, um negócio que tem quase 100 anos, que tem receptivos, reuniões ordinárias, o governador despacha de lá, recebeu lá o Roberto Carlos, o Nelson Mandela, e tem toda uma história institucional ali de quase 100 anos. Era um local fechado para a comunidade. Eu mesmo morava lá perto e via aquilo ali como algo inatingível, uma puta praia linda, incrível, uma linda casa. E de repente o governador entra em 2019 e fala: “Ó, a gente quer abrir. A gente quer transformar isso num espaço público e aí eu quero que tenha arte e um diálogo com a questão da natureza, do meio ambiente”. E aí ele convoca uma reunião com vários secretários e nos encomenda pensar isso. A gente constrói um processo junto com a universidade, isso é muito bacana, com o IFIS, o Instituto Federal e com a Universidade Federal, com o departamento de arquitetura, com os departamentos ligados às questões de sustentabilidade, sobretudo de energia. Foram quase 30 pessoas trabalhando para o que veio a ser o parque, a partir também do pensamento de uma relação com a academia, o que é fundamental também porque a gente tem ali um substrato muito interessante para trabalhar depois. E desenhamos um programa a partir de concursos de chamadas públicas de obras, de esculturas de grandes proporções para o Brasil inteiro. É o primeiro edital do Fundo Estadual de Cultura que pessoas do Brasil inteiro podem participar. E a gente começa a estabelecer uma coleção dentro de um recorte site specific, trazendo esse conceito da integração e da relação da arte com a natureza. No primeiro, se não me engano, foram 21 obras, uma parte temporária e uma parte permanente. Fiizemos isso duas vezes e hoje a gente chegou a 32 ou 33 obras lá de artistas de todo o país e muitos do Espírito Santo também. Com ações afirmativas e tudo isso, para que a gente tenha uma pluralidade também de vozes e de corpos ali nessa coleção.
ARTE!✱ – A direção está pensando em abrir para o parque um conceito de uma FLIP, digamos assim, uma pequena de uma feira de literatura? Outra coisa interessante é a ideia de ter uma escola lá dentro.
É uma área de 90 mil metros quadrados, um costão rochoso, tem praia. Nesse desenho do zero, que eu estava comentando, a gente teve um tempo de experimentar o lugar, de fazer eventos, de ver que impacto esse gesto de abrir o espaço causaria, e vimos que o desejo das pessoas de conhecer esse espaço era muito maior do que a gente imaginava. Então, quando a gente abriu, foram 2.500 ingressos esgotados em minutos. Uma coisa que eu nunca vi nesses anos e anos de carreira como produtor, e acredito que é uma coisa que impressione até para grandes cidades como São Paulo. E não é um super show, uma super atração, é uma programação de artistas de lá, uma coisa de música do Espírito Santo, de teatro do Espírito Santo, que esgota em minutos. A gente foi preparando e entendendo essas vocações. Uma delas, por exemplo, foi essa da escola. Vimos que um ponto que a gente precisava trabalhar melhor, e a gente tinha pouco braço, era essa parte de formação, da arte e educação, dessa própria relação com a natureza. Então a gente, quando lança a chamada, né, para esses parceiros que agora a gente tem lá, a gente traz essa provocação de ter uma escola que integre esse debate, esse pensamento e discurso que as obras e o próprio parque tem da relação da arte e do meio-ambiente, mas que também traga a (experiência da) mão na terra, um viveiro, uma coisa ligada ao debate da agrofloresta, da bioconstrução, de todo esse debate contemporâneo. Para que o parque, a partir de agora, e aí é uma cena dos próximos capítulos, ele também incida de maneira mais efetiva sobre esse debate, as mudanças climáticas, a plataforma educacional. E também para a gente furar essa bolha, porque a gente tá falando de grandes nomes da arte contemporânea, a gente tá falando de um espaço com características muito diferentes, tem gente que diz que é um “mini-Inhotim”, é parecido com não sei o quê, mas é diferente porque a gente trabalha sobre outras perspectivas até mesmo da materialidade das obras, né? E é uma coisa que não sei se tem outra da mesma maneira em outro lugar. E eu não sei se as pessoas estão sabendo disso, entendeu? ✱
Há inúmeras hipóteses sobre a marcha e contra-marcha que estamos sofrendo nas conquistas que se alcançaram a partir dos anos 1980, quando parecia que “os bons” ganhávamos ou começávamos a ganhar terreno sobre os “maus”. Depois de tanto lutar contra fascistas e ditadores de consciências, parecia que poderíamos nos dedicar à arte, à literatura, à ciência, aos investimentos em saúde sem manicômios, a cada um viver sua orientação sexual tranquilamente. Ocorre que a falácia estava em achar que apenas o voto e a democracia garantiriam a premissa da igualdade social e do respeito pelo outro, com a conquista definitiva de um lugar ao sol para todos.
Contudo, o capitalismo e o colonialismo estruturaram uma dependência que deixou marcas indeléveis e que garantiram que tudo continuasse igual. A dominação imperial e os arranjos do status quo internacional apenas mudaram de nome. O poder nunca mudou de mãos e os vigaristas (na Argentina chamados pelo povo de “estafadores”) continuam dando as cartas. Mas isso não é uma frase de efeito. Ver Donald Trump ganhando nos EUA, com ares de novo imperador, pode até causar risos, mas causa espanto imaginar que alguém, em 2025, possa dizer que vai arrasar (mais do que já está) Gaza, para construir hotéis de luxo para o turismo.
Toda esta insensatez está até aliada a uma tecnologia poderosa que muda a nomeação da geografia do planeta. O Google chamando o Golfo do México de Golfo de América nos faz pensar que Marx estava certo, em 1848, quando afirmava que, enquanto não mudarem de mãos os donos das forças de produção, aqueles que lutam pela civilização continuarão tendo que se defender nas trincheiras. No nosso caso nas trincheiras da cultura.
A arte dá o recado, desde sempre, e não para. Já deu nos anos 1970 com os movimentos de ruptura e denúncia contra a guerra do Vietnã. Épocas que lembramos nesta edição através do artigo de Leonor Amarante sobre o livro com obras inéditas do Antonio Manuel, Incontornáveis, que é um livro de resistência. Esta edição coincide com a abertura do nosso 8º Seminário Internacional: Narrativas Contra-Hegemônicas, na cidade de Vitória (ES), que traz fortes narrativas e trabalhos consistentes que surgiram na contraofensiva do intento de apagamento e do negacionismo da memória social e econômica que prevalecem no mundo e no Brasil.
Pesquisadores e historiadores, como Marcos Vinicius Sant’Ana, de Espírito Santo, e Guilherme Marcondes sociólogo e antropólogo, de São Paulo, trarão à luz vários desses acontecimentos na história brasileira. Artistas como Lia D Castro e Feijão abordarão suas pesquisas e obras na defesa do corpo trans e do corpo negro. Especificamente Lia D Castro, em entrevista a Fabio Cypriano, fala sobre como sua obra parte de um diálogo com clientes homens cis héteros brancos em busca de questionar o racismo estrutural.
Sandra Gamarra, artista peruana residente na Espanha, responsável pela magnífica ocupação do Pavilhão da Espanha na última Bienal de Veneza, trará sua experiência como imigrante no solo colonial. Educadoras e pesquisadoras como Gleyce Heitor, diretora do projeto educativo do Inhotim, Luciara Ribeiro pesquisadora do Projeto Sertão Negro e José Eduardo dos Santos do Acervo da Laje, de Goiás assim como o artista e curador Nicolas Soares, diretor do MAES e Deri Andrade responsável pela curadoria do Instituto Inhotim falarão da importância e o desafio de gerenciar Instituições tradicionais dos seus trabalhos dentro delas e a maneira de conquistar espaços que valorizem a diversidade e a inclusão.
Em parceria com a Universidade Federal de Vitória (UFES), as professoras Ananda Carvalho e Margarete Sacht Goes, curadora do educativo da Galeria de Arte Espaço Universitário/UFES, irão ministrar workshops para tratar da importância da articulação interdisciplinar em arte e educação. Pensador e escritor Malcom Ferdinand, da Martinica, estará presente no Seminário para tratar da crise ambiental e o limite em que nos encontramos tem seu livro, Ecologia Decolonial analisado pelo crítico Fabio Cypriano.
O nome desta edição homenageia a perfomance fílmica Marcha-à-ré, de Nuno Ramos, realizada em agosto de 2020. Nuno é, como ele diz, extremamente “polifacético”, e assim como ousou promover junto ao Teatro da Vertigem uma paralização na Avenida Paulista em São Paulo, estreia no começo de março, em Belo Horizonte, na Albuquerque Contemporânea, oito obras realizadas em 2024 e com tal ímpeto que poderiam ser hasteadas como bandeiras. ✱
Nas últimas décadas vem ocorrendo uma transformação profunda na forma como os museus, sobretudo aqueles ligados à arte contemporânea, vêm desenvolvendo seus trabalhos em educação. A busca intensa pela ampliação de público e facilitação da relação entre a obra e o visitante, estratégia dominante desde as últimas décadas do século passado, foi abrindo espaço para uma forma diferente de se pensar a educação em contextos artísticos. A pedagogia do contemporâneo dá lugar a uma abordagem de reconfiguração das instituições, desfazendo monopólios do conhecimento, redemocratizando espaços e acervos e, sobretudo, transformando os espaços em centros de transformação social, amplificando vozes e narrativas.
“Eu considero a educação como uma luta mesmo, social, dentro das instituições”, afirma Gleyce Heitor, pesquisadora e educadora que participa do VIII Seminário Internacional Arte!Brasileiros: Narrativas Contra-Hegemônicas, que acontece nos dias 20 e 21 de março em Vitória. Atualmente dirigindo a área de educação de Inhotim, depois de passar por vários museus e escolas de arte de destaque – como a Escola Livre de Artes do Galpão da Maré (ELA, o Parque Lage; o Museu de Arte do Rio (MAR) e a Oficina Francisco Brennand – Gleyce acompanhou de perto a construção de novos modelos de ação. E deve, em palestra e oficina, falar sobre a experiência de sua geração, compartilhando reflexões e metodologias sobre “como produzir práticas contra-hegemônicas em contextos hegemônicos”.
A profunda transformação pela qual vêm passando os centros de arte contemporânea no Brasil tem, segundo a pesquisadora, íntima relação com uma mudança fundamental: a ampliação do acesso às universidades. Ela mesma teve acesso à universidade como cotista e assiste de perto essa transformação. “Tudo que é cânone, tudo que a gente conhecia, começa a ser repensado. Currículos passam a ser questionados, os corpos docentes passam a ser questionados, e somos nós que vamos – como estagiários – começar a trabalhar nessas instituições e amplificar o espaço de luta e questionamento de um modo específico de saber, eurocentrado, branco”, sintetiza.
Gleyce vê com otimismo essas mudanças, que se irradiaram para outras esferas da sociedade, criando “um circuito de arte mais diverso e mais plural, tanto do ponto de vista dos artistas como dos modos de fazer educação, como das parcerias com movimentos sociais”. É importante que museus venham tentando refletir e dar voz a grupos que são constitutivos dessa diversidade brasileira, sendo uma espécie de microcosmo daquilo que o Brasil, sem esquecer – no entanto – que os museus ainda seguem sendo instituições “com formato similar ao que sempre foi, um formato moderno, ainda baseado nas coleções, nos especialistas, numa ideia específica de história da arte”.
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visita com Françoise Vergès ao Museu do Homem do Nordeste, no contexto da consultoria para diagnóstico da subrepresentação de negros, indígenas e mulheres na exposição de longa duração. da exposição de longa duração, visando a revisão da proposta curatorial - Recife, 2023.
Abaixo, Fórum de Escuta com Moradoras e Moradores de Brumadinho. Inhotim - Foto: Brendom Campos
Aula aberta com Denilson Baniwa no Programa de Formação e Deformação, coordenado juntamente com Clarissa Diniz e Ulisses Carrilho - EAV Parque Lage, 2019. Foto: Acervo Pessoal
Moradoras e moradores dos quilombos de Sapé, Ribeirão, Marinhos e Rodrigues, no lançamento do livro Saberes e Memórias: o que o nosso povo contou - Inhotim, 2024.
Moradoras e moradores dos quilombos de Sapé, Ribeirão, Marinhos e Rodrigues, no lançamento do livro Saberes e Memórias: o que o nosso povo contou - Inhotim, 2024.
O exemplo de Inhotim é claro dentro dessa estratégia de propor ações contra-hegemônicas em contextos hegemônicos. Além do fato de o centro se fundar desde sempre na ideia de criação – numa relação direta com os artistas, que produzem obras comissionadas especialmente para o espaço – e de conexão entre arte e natureza, outras dimensões de trabalho foram sendo agregadas. Dentre elas, Gleyce cita a incorporação de artistas negros, indígenas, de origem popular – uma dívida desde a arte moderna, quando foram assunto, mas não autores – e a relação com as comunidades do entorno. Segundo a educadora, o importante é criar processos de encontro, convivência, atuando sobre a dimensão pública do museu, como por exemplo medidas como a garantia de acesso aos moradores de Brumadinho, com políticas de gratuidade, mobilidade e pertencimento. Um outro compromisso fundamental é com o desenvolvimento comunitário, investimentos em formação e geração de empregos.
“Não estou preocupada com o consumo da arte contemporânea, não é meu problema, nem é problema da educação”, pontua Gleyce. Os desafios são outros. E são muitos. Segundo ela, estamos falando de modos de vida, de grupos que estão vulnerabilizados não só pela pobreza, mas pelo risco de existência mesmo. “As favelas, as comunidades indígenas, os quilombos estão sempre negociando a possibilidade de existir ou não existir, de viver ou morrer, e acho que as instituições têm que ter muita responsabilidade quando se comprometem com essas questões”, alerta. Sobretudo se levarmos em conta a crescente precarização do setor de cultura, do ponto de vista das relações de trabalho.
O mesmo acontece em relação à educação. Apesar de entender a dimensão poética e política da ideia de “desaprender”, presente no título da mesa da qual fará parte em Narrativas Contra-Hegemônicas (A deseducação potencial), ela a considera perigosa, num contexto de constantes ataques contra o sistema de ensino, de sucateamento das escolas, das universidades, dos professores. “Temos uma perspectiva de déficit de profissionais para a educação básica no Brasil em pouquíssimo tempo”, pondera. “Concordo que temos que desaprender muito do que aprendemos. Mas a gente vive num país onde as escolas são lugares muito além do aprendizado. São às vezes lugares onde a pessoa faz sua única refeição; são espaços muito importantes de acolhimento para que mães possam trabalhar… Então, mesmo com todas as críticas, a educação formal ainda é sim uma bandeira no Brasil”, conclui ✱
Á esquerda, Liliana Sanches (1983)
Hacer el amor, 2024
Á direita, detalhe de tapeçaria de Euzira Neves, S/t 1981, acervo de artes visuais da Universidade Federal de Espírito Santo - claraboia imagem
A Casa Porto das Artes Plásticas, no Espírito Santo, apresenta, até 30 de março, mais de 30 trabalhos, em sua maioria feitos por artistas capixabas e do Nordeste expandido que, a partir de suas diferentes interpretações ou seus desejos, criaram obras que dialogam com a história e o tempo de um território que os circunda, social, política e culturalmente.
“Nas encruzilhadas da contemporaneidade, uma pedra foi jogada hoje, e sua ressonância se expande: ontem um som ecoou no futuro”, diz o texto do catálogo da mostra.
Uma das coisas que a arte propicia é essa possibilidade de encontrar, no passado, referências para o presente e, nesse momento, ao criar essa associação, permitir reflexões sobre quem somos, de onde viemos e “por que estamos”.
A mostra tem como grande valor expositivo juntar diferentes linguagens num espaço relativamente pequeno, se comparado com salas de museus e, apesar disso, permitir transitar (não só o tempo) pelos módulos construídos, com leveza, possibilitando deter-se diante das obras e observá-las.
Alguns dos diálogos criados pela curadoria, baseados em mestres da tradição capixaba e artistas contemporâneos, resultaram em uma associação estética e ética digna das melhores bienais. O retrato da ceramista Antônia Lopes Rodrigues – conhecida como Dona Antônia, nascida em São Mateus, Bahia, em 1910 – e suas nove peças de cerâmica, produzidas a partir das tradições do aquilombamento, conversam com a fotografia, o registro da performance Speirein (2021), de Rubiane Maia, nascida em Caratinga (1971). Rubiane vive entre Folkestone, no Reino Unido, e Vitória (ES), e atualmente faz parte do coletivo internacional Speculative Landscapes, que desde 2020 trabalha questionando o que as instituições podem ser quando não são moldadas por histórias de violência, segmentação e extração de territórios.
Acima, de Dona Antônia (Bahia, 1913 – São Matheus, 2013). Fotografia do acervo da família Ao lado, Fotografia Registro de Performance da artista Rubiane Maia (Caratinga, 1979), Speirein, 2021. Cerâmicas produzidas por Dona Antônia
Também impacta a junção de duas obras de Meuri Ribeiro (1995), de Ipatinga: Mestrão e Lambe-Lambe, ambas de 2023.
As jovens artistas capixabas Kika Carvalho (1992) e Liliana Sanches (1983) estão presentes na mostra, respectivamente com um óleo sobre tela de grandes dimensões e com uma natureza morta delicada, Hacer el amor (2024), pintada em blocos de madeira.
Luciano Feijão, artista nascido em Vitória, em 1976, e que estará presente no VIII Seminário Internacional de Arte!Brasileiros: Narrativas Anti-hegemônicas, desenvolve uma pesquisa permanente do corpo negro em serigrafias sobre tecido de algodão cru. Na exposição, ele apresenta Antianatomia (2024), obra montada em suportes de madeira.
Dilma Goes, nascida em Itapemirim, em 1944, tece sem tear, e cria uma tecedura singular por meio do entrelaçamento de entretela de algodão e madeira. A obra Refazenda (1984) – tapeçaria de sisal cru e tingido, cadarço e madeira –do tecelão contemporâneo Ronaldo Mateus Lima, acompanha o trabalho de Dilma.
No centro de uma das salas, duas esculturas exploram memórias. Bárbara Carnielli construiu Placenta: neutro-vivo (2024), utilizandoseixos, pedras que, como denomina a geologia, já foram erodidas. A artista diz que “a água conforta os atritos da formação rochosa”. A instalação evoca a conexão vital entre mãe e filho. Ao lado, Onde há rede, há renda, três cavaletes com almofadas de bilro e renda, foram produzidos pelo Grupo Barra de Renda de Vila Velha, em 2015.
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No pátio a frente da Casa Porto das Artes Plásticas, A obra Navegantes, 2023-2024,
de Marcos Martins (Fortaleza 1974)
Onde há rede, há renda (2024) , detalhe de cavaletes de bilro e renda.
Obra do Grupo Barra de Renda (Vila Velha, 2015)
Onde há rede, há renda (2024) , detalhe de cavaletes de bilro e renda.
Obra do Grupo Barra de Renda (Vila Velha, 2015)
Placenta: neutro – vivo (2024) de Bárbara Carnielli (Vitoria, 1988) Instalação, escultura, cordões e detalhes das “pedra seixo”
Luciano Feijão (Vitoria, 1976), Antianatomia Negra, 2024. Serigrafia sobre tecido de algodão cru
O grupo nasceu e cresceu na Barra do Jucu, Vila Velha (ES), e resgata a tradição da produção de rendas de bilro, esquecidas por mais de 50 anos. O Barra de Renda iniciou seus trabalhos de oficinas no Museu Vivo da Barra do Jucu, reunindo algumas mestras do ofício que passaram a ensinar a técnica para mulheres jovens. A obra do grupo ilustra o trânsito de gerações e valoriza a manutenção das culturas populares tradicionais.
Acervo: A ética e a Consolidação da Democracia (1994), um conjunto de pequenas pinturas a óleo de Reuto Fernandes, nascido em 1962, em Caravelas (BA), traz cenas da vida cotidiana e dos movimentos populares.
No pátio de entrada duas obras se destacam: Navegantes (2023-2024), do cearense Marcos Martins, uma escultura de pau a pique, com troncos de eucaliptos, terra e galhos; e um conjunto de pequenas lajotas com nomes do vocabulário tradicional português e indígena, Calçada Portuguesa (2024), de Renato Ren.
Transitar o Tempo reflete a intenção do Museu Vale de expandir suas atividades extramuros, ocupando espaços, em parceria com a Prefeitura de Vitória, por meio da Secretaria de Cultura, ampliando a circulação e o acesso do público e destacando uma iniciativa de preservar a memória local. ✱
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Este texto foi escrito com base em textos da pesquisa da equipe curatorial