A comunidade científica enfrenta um período de trevas. O governo afiou a tesoura e cortou 44% do orçamento do MCTIC (Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovação e Comunicação) em março. Dos R$ 5 bilhões previstos para 2017, R$ 2,2 bilhões estão contingenciados: ou seja, o dinheiro “até existe”, mas ninguém pode gastar. O corte vai render para 2017 o título do pior orçamento em ciência nos últimos 12 anos.
A tesoura tem um porquê, justifica o governo. O PIB caiu 3,6% em 2016 e chegamos à pior recessão da história. Quando os ministérios da Fazenda e do Planejamento divulgaram que o rombo público seria ainda maior que o previsto inicialmente, quase todas as pastas passaram por cortes para tentar segurar o déficit. A meta era cortar R$ 42,1 bilhões (28%) de onde desse. Só o Ministério da Saúde ficou de fora.
O problema, argumenta a comunidade científica, é que a ciência já vinha sofrendo cortes “generosos” nos últimos anos. Em 2013, o orçamento era de R$ 10,2 bilhões e foi sendo reduzido progressivamente até chegar aos R$ 2,8 bilhões de hoje (ou R$ 3,2 bilhões, se contados recursos de outras iniciativas de ciência atreladas ao PAC – Programa de Aceleração do Crescimento). Soma-se a isso o fato de que a ciência já tem um orçamento bem menor se comparado ao de outras áreas. O setor consome cerca de 1% do PIB, enquanto o gasto com saúde fica em torno de 8%. Para completar, tivemos a fusão do ministério com a pasta de Comunicação na era Temer.
“Resultados exemplares, como o aumento em quatro vezes da produtividade da agricultura, a melhoria da exploração de petróleo em águas profundas ou ainda o enfrentamento de epidemias emergentes… tudo isso está ameaçado.”
Luiz Davidovich, presidente da ABC (Academia Brasileira de Ciências)
Diante do cenário, cientistas estão boquiabertos. “Olha… a situação é grave, muito grave”, desabafa Helena Nader, presidente da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência). “É aquela imagem de alguém se afogando e chega uma mão para afundar ainda mais”, diz Marcos Barbosa, professor de Filosofia na USP. “Os cortes ameaçam o futuro do País”, diz Luiz Davidovich, presidente da ABC (Academia Brasileira de Ciências).
A Brasileiros perguntou ao MCTIC qual a perspectiva para o ano diante dos cortes. A resposta oficial é que a pasta tenta negociar para recuperar o orçamento. O que se comenta nos bastidores, contudo, é que isso dificilmente ocorrerá. Resta aos cientistas chamar a atenção para o impacto da tesoura: os cortes afetarão a formação de pesquisadores de todo o País; paralisarão laboratórios por falta de insumos e de materiais; impedirão pagamentos de projetos de pesquisas já aprovados; e dificultarão medidas implementadas de internacionalização da ciência brasileira. “Resultados exemplares, como o aumento em quatro vezes da produtividade da agricultura, a melhoria da exploração de petróleo em águas profundas ou ainda o enfrentamento de epidemias emergentes… tudo isso está ameaçado”, alerta Davidovich.
Os cortes em ciência também chegam em um momento em que fundações estaduais de apoio à pesquisa passam por dificuldades. Essas entidades, que financiam pesquisas e bolsas de pós-graduação, também enfrentam as crises dos Estados e a recessão. A Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado de São Paulo), a mais rica fundação do País, fica com 1% das arrecadações tributárias em São Paulo. Em janeiro, no entanto, deputados redirecionaram R$ 120 milhões da entidade para institutos de pesquisa. Foi a primeira vez que a Fapesp ficou com um orçamento abaixo do previsto por lei desde a sua criação em 1960.
No Rio, a situação da Faperj (Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro) é tão grave que há atraso no pagamento de bolsas. “É uma perda grande porque esses alunos sobrevivem disso”, diz Tatiana Roque, professora da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). “No Rio, formamos uma rede para estudo do Zika em todas as frentes, mas tudo está parado.”
Também cerca de 70% da ciência brasileira é feita dentro das universidades públicas do País – e elas estão em crise. A situação na Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) chegou a tal ponto que em janeiro a reitoria avisou o governo que a universidade poderia fechar. Na USP, uma intensa política de demissões voluntárias abalou o funcionamento de vários serviços da universidade e a creche foi fechada. O atual reitor, Marco Antonio Zago, estabeleceu um teto para os gastos. A medida foi apelidada de “PEC do fim da USP”.
Com tudo isso, o consenso é de que o cenário não só afeta o momento presente e o futuro: ele inutiliza o investimento já feito. Para os pesquisadores, enquanto o País se perde em meio à visão estreita do ajuste, o atraso social e científico não será recuperado facilmente. “O Brasil corre o risco de perder a competência construída ao longo de muitas décadas”, diz Davidovich.
Enquanto a tônica por aqui é segurar o orçamento em tempos de crise, a SBPC e a ABC sustentam que outros países têm visões opostas. A União Europeia, por exemplo, tem a meta de aplicar 3% do PIB em ciência até 2020. A China quer chegar a 2,5% do PIB. Coreia do Sul e Israel investem mais que 4% do PIB. “Ciência é desenvolvimento. A cada US$ 1 aplicado em ciência, retornam US$ 7”, alerta Helena.
Cortes são falta de visão?
A ideia de que ciência traz retornos certos para a economia precisa ser mais bem problematizada no caso brasileiro, dizem pesquisadores do tema. Para Renato Dagnino, da Unicamp, e Marcos Barbosa, da USP, o discurso da ciência como alavanca do desenvolvimento deve levar em conta a estrutura da economia brasileira e o fato de que políticas que apostaram nessa faceta da ciência não deram certo.
O mote ciência-desenvolvimento chegou com mais força ao Brasil em meados dos anos 2000 com a política de inovação. “Inovação aqui é a ideia de uma invenção rentável”, explica Barbosa. A política tinha por objetivo dar incentivos às indústrias que desenvolvessem projetos mais originais e de maior valor agregado – tarefa que, no Brasil, é historicamente exercida em estatais como Embraer, Embrapa e Petrobras.
“A imagem que está se formando de que esse governo é obscurantista, que não gosta da ciência, é equivocada. É apenas o reconhecimento de que os dados obtidos são irrelevantes para o mercado.”
RENATO DAGNINO, PROFESSOR DA UNICAMP
“Foi um fracasso total”, diz Barbosa. A última Pintec (Pesquisa de Inovação), referente ao período de 2012 a 2014, mostra que 36% das empresas fizeram algum tipo de inovação, valor que ficou abaixo do observado entre 2006 e 2008 (38%). O índice preocupa porque as empresas contaram com grande incentivo governamental para inovar. E essas taxas de inovação incluem itens como a compra de máquinas e softwares – quando se pensa em “inovação real”, os dados despencam.
Do mesmo modo, a falta de investimento da indústria em inovação não pode ser explicada simplesmente por uma “ausência de cultura das empresas”, diz Barbosa. O pesquisador cita trabalhos que mostram as razões pelas quais a inovação não deslancha por aqui. São três: ainda estamos concentrados na produção de commodities, que é menos dinâmica em tecnologia; em muitas indústrias, não há escala para venda mundial; e o nosso setor produtivo é muito “internacionalizado”, com multinacionais que apenas replicam aqui o conhecimento produzido lá fora.
Assim, os cortes podem ser em parte explicados porque a ciência não está logrando os resultados esperados para uma economia neoliberal. “A imagem que está se formando de que esse governo é obscurantista, que não gosta da ciência, é equivocada” diz Dagnino. “É apenas o reconhecimento de que os dados obtidos são irrelevantes para o mercado.” Já Helena Nader, da SBPC, diz que o Brasil estava começando a mostrar para o empresariado a importância da inovação. “Não foi um extraterrestre que tirou o petróleo do pré-sal. Foram centros de pesquisas de todo o País, financiados ao longo de todos esses anos pela Petrobras.”
Por uma outra ciência
Se o investimento em ciência não interessa para os interesses do mercado, que os cientistas se voltem para as necessidades diretas da população, defende Dagnino. Ele diz que muitos dos problemas da nossa sociedade padecem de um “déficit cognitivo”: ou seja, não temos conhecimento disponível para pensar sobre nossos imbróglios, muitos deles históricos. “Você sabe que mais da metade da população brasileira não tem saneamento básico, né?”, pergunta o pesquisador. “Se quisermos resolver o problema com tecnologia convencional, teremos um custo econômico e ambiental absurdo porque essa tecnologia não foi renovada. Sem falar que não geraremos trabalho e renda, não vamos fomentar setores da economia que poderiam usufruir desse poder de compra do Estado”, explica.
Dagnino defende uma revisão na política científica brasileira para que sejam priorizadas no Brasil as chamadas “tecnologias sociais”, um ramo do conhecimento que tem ganhado defensores na esquerda. É a ideia de que a ciência feita com dinheiro público deve ser usada para melhorar as condições de vida da população diretamente. Segundo ele, também a esquerda hegemônica não deve considerar a ciência como neutra. Há um tipo de ciência que pode, sim, promover mais igualdade.
Na aula magna de apresentação dos cursos de pós-graduação da USP desse ano, o neurocientista Miguel Nicolelis afirmou que a ciência não vive sem utopia. Parte dessa utopia, disse, deve levar o cientista a pensar para além dos artigos publicados ou da bolsa recebida. “O cientista tem um compromisso com a humanidade e pode ter uma posição política.”
Se para uns essa utopia é a tecnologia social, mais próxima da população; ou a esperança de um Brasil mais competitivo com empresas inovadoras, o fato é que a ciência precisa levar esse debate para a sociedade. Na última pesquisa de Percepção Pública de Ciência e Tecnologia (2015), feita pelo MCTIC, 87,5% dos entrevistados não conseguiram citar uma instituição que se dedique a fazer pesquisa no Brasil. E 93,3% nem sequer lembraram de um único cientista brasileiro.
Impulsionada pelos cortes e pela crise, a ciência tem tentado buscar o diálogo. Prova disso é que pela primeira vez por aqui tivemos a “Marcha pela Ciência”, que no dia 22 de abril ocorreu em 15 cidades brasileiras. Em São Paulo, a marcha mostrou as divisões que povoam a comunidade científica. No evento, a fala de um convidado que criticou reformas do governo foi interrompida. A justificativa foi o apartidarismo da marcha. Também quando um passante pediu voz, a organização só permitiu a intervenção depois de manifestações favoráveis dos presentes.
Talvez não à toa, a ciência é pouco citada nas pautas de movimentos sociais – boa parte dos cientistas quer distância dos debates políticos, e boa parte da esquerda não a inclui em suas reivindicações. A comunidade científica tem, então, o desafio de levar um projeto de nação para a sociedade brasileira. E, por que não, uma utopia? Que País a ciência pode ajudar a construir e por que ela merece os recursos públicos? Que venha o debate. E que todos participem dele.