Exposição "Conteúdo Sensível", de Simone Cosac Naify
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Simone Cosac Naify não chegou à arte em linha reta. Seus primeiros anos profissionais se desenrolaram em outras arenas — design gráfico, arteterapia, artes decorativas — campos que, por um
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Simone Cosac Naify não chegou à arte em linha reta. Seus primeiros anos profissionais se desenrolaram em outras arenas — design gráfico, arteterapia, artes decorativas — campos que, por um tempo, pareciam circundar as bordas de algo maior, mas não totalmente formado. O caminho foi gradual, muitas vezes moldado mais pelo que a vida exigia do que por qualquer visão singular. Seu trabalho não é o produto, mas o processo de alguém navegando por camadas de experiência. A prática artística de Cosac Naify se tornou um reflexo dessa navegação, cada trabalho se torna uma conversa com algo não resolvido, uma maneira de testemunhar o que significa suportar.
Seu processo está intimamente ligado ao arco de sua própria vida. A arteterapia, uma prática com a qual ela se envolveu no início de sua jornada, a expôs à maneira como o trabalho criativo pode funcionar não apenas como expressão, mas como um mecanismo de sobrevivência. A mudança para as belas-artes não foi sobre rejeitar uma pela outra, mas sobre juntá-las em algo que pudesse falar mais diretamente às complexidades que ela encontrou.
O trabalho de Simone não é facilmente categorizado, funciona como reflexão e investigação. Ela não oferece conclusões, mas se envolve com o que é difícil de articular. Seu trabalho pede ao espectador que se sente desconfortável, para testemunhar a persistência silenciosa da vida, mesmo que ela esteja à beira da dissolução. Seu trabalho não pretende consertar o que está quebrado, em vez disso, ele se destaca como um registro de ter olhado atentamente para a fratura.
“Aquele que luta com monstros deve acautelar-se para não tornar-se também um monstro.
Quando se olha muito tempo para um abismo, o abismo olha para você”
Friedrich Nietzsche
Em sua primeira exposição individual no Brasil, Simone Cosac Naify apresenta um recorte de sua produção, notadamente os trabalhos cuja centralidade do discurso recaia sobre a maternidade, a dor e as violências sistêmicas que insistem em fazer das relações humanas um constante campo de batalha. Cerca de 30 obras – pinturas, desenhos, aquarelas, objetos e esculturas – compõem a mostra e dão corpo ao que a artista definiu como um Conteúdo Sensível. O conjunto que veremos nesta exposição dá vazão a sua visão de mundo, a experiência sensível do tempo presente, bem como revela um desejo inequívoco de bradar contra a bruteza dos sistemas políticos e econômicos que impõem uma marcha destrutiva para o mundo e suas sociedades.
Simone Cosac Naify se aproximou do universo da Arte ainda nos anos de 1990, quando fez seu master em design gráfico e iniciou um processo gradual de aproximação com a sua pesquisa atual. No princípio dos anos 2000, estudou e trabalhou com arte terapia, uma experiência fundante para a artista, que lhe rendeu muitas inquietações sobre o assunto apresentado em suas obras atuais. Desde então, transitou pelos terrenos das artes gráficas, decorativas e olfativas, consolidando para si uma carreira multimeio, através da qual expressa sua compreensão estética da realidade. A violência, a dor, a maternidade e a liberdade se estruturam como índices para o entendimento do conjunto expressivo que apresenta.
Conteúdo Sensível está dividida em dois eixos de significação, agrupados conforme o nome da série de trabalhos ao qual cada obra se vincula. Mater Dolorosa e Mater Crucis, encontram na ideia de maternidade uma plataforma de elocução discursiva que alerta e denuncia, concomitantemente, as facetas da dor, da violência e do poder masculinizado que impera no mundo desde a Antiguidade. Os signos visuais verificados nos trabalhos – cordão umbilical, tesoura, placenta, farpas, cordas, fetos – curiosamente revelam uma dualidade entre a expiação e a pulsão de vida, em um misto de expressividade latejante e denunciante.
Nos trabalhos agregados no grupo Mater Dolorosa a artista dá forma à ideia de maternidade. Sem romantizar a condição subjetiva e física de toda mãe, Simone Cosac Naify produz imagens transfiguradas, mutiladas, fragmentadas, num ato que mimetiza o maternar como espelho da existência humana. Ricos em contrastes, onde os vermelhos se sobressaem sobre o fundo claro, os trabalhos apresentam corpos paradoxalmente fictícios e reais, uma vez que não existem, mas dão conta de uma realidade muito profunda e subjetiva de milhares ao redor do mundo. Neste sentido, a artista divide com muitas outras mulheres a experiência avassaladora de ser mãe e a gravidade de saber-se nesta condição.
Mater Crucis, por sua vez, evoca uma severidade necessária em tempos tão sombrios. Mães carregando seus filhos mortos, formas fechadas, olhos soturnos, símbolos religiosos justapondo-se aos corpos, são as estruturas reflexivas de imputação que a artista tem estruturado nos últimos anos. Como nas imagens que se multiplicam exponencialmente nas redes sociais, a verdade é uma instância velada por trás de cada superfície cromaticamente trabalhada. Cada obra apresenta um discurso efetivo contra as patentes da morte que tentam a todo momento aniquilar a vida, seguindo o percurso histórico em que a luta pelo poder se sobrepõe ao respeito pela própria humanidade.
Se, por acaso, as imagens que vemos nos chocam, isso fazem apenas porque procuram nos alertar dos perigos da indiferença. O abismo nietzschiano, que nos olha de volta quando o miramos, pode ser descoberto em cada obra. Portadora da voz que emana das profundezas da existência, Simone Cosac Naify alerta, com seu trabalho, que não há possibilidade de superação da dor e da miséria humana sem empatia, por esta razão lança mão de um tema recorrente na história da arte. A maternidade, que já tematizou obras de outros artistas, em alguns momentos suavemente, como em Eliseu Visconti, Georgina de Albuquerque, ou na agonia moribunda de Flávio de Carvalho, encontra um significante peculiar no trabalho de Simone. Expressa uma vivência que parte da condição unívoca de ser mulher, artista e mãe, porém, agora em um mundo dilacerado e em permanente convulsão.
Conteúdo Sensível, neste sentido, funciona como um lugar propício para uma reflexão aprofundada sobre o momento presente, sobre as condutas humanas e os usos do poder em diferentes esferas. Simone Cosac Naify possibilita com a sua exposição, uma interação possível com o mundo que parte do simbólico, assim como apregoado pela “Linha da Expressão” (De Fusco, 1988), mas, que se ancora na realidade tal qual uma experiência sensível que atravessa a razão e encontra, em nossas emoções, um elo entre os afetos e a razão. Resta, portanto, o convite para adentrarmos na seara destas imagens, e deixar que elas nos convoquem a refletir sobre a gravidade dos seus alertas.
Shannon Botelho
2024
Serviço
Exposição | Conteúdo Sensível
De 01 a 27 de novembro
Terça a sábado, das 11h às 18h
Período
1 de novembro de 2024 11:00 - 27 de novembro de 2024 18:00(GMT-03:00)
Local
New Gallery – Vera Havir
Padre Garcia Velho, 173 - Pinheiros, São Paulo - SP