Heloísa Marques, Dor aqui, 2022. Foto: ©Cortesia da artista
Heloísa Marques, Dor aqui, 2022. Foto: ©Cortesia da artista

Por Adélia Borges

Bordados, crochês, tricôs e toda sorte de trabalhos têxteis ficaram por muito tempo segregados, nos cânones sociais e artísticos, a uma feminilidade dócil e bem-comportada, restrita ao único espaço que caberia às mulheres – o lar. A exposição Andar pelas bordas: bordado e gênero como práticas de cuidado”, em cartaz até 21 de outubro na Arte132 Galeria, em São Paulo, é uma excelente oportunidade de apreciar um panorama da produção têxtil contemporânea no Brasil que revoluciona essa compreensão. Na seleção de obras de 47 mulheres ou coletivos de mulheres, a curadora Lilia Moritz Schwarcz mostra como o bordado tanto “serve ao afeto, à estética”, como “se presta ao campo das reivindicações políticas e sociais por direitos”.

A iniciativa não é a primeira dedicada a esse novo olhar sobre o têxtil. A própria curadora começa o alentado texto do catálogo elencando uma dezena de mostras coletivas realizadas no Brasil na última década, tais como “Transbordar: Transgressões do Bordado”, curada por Ana Paula Simioni no Sesc Pinheiros, em São Paulo – cuja visitação e reverberação certamente sofreram devido ao fato de ser apresentada em plena pandemia, em 2020. Podemos destacar também exposições individuais recentes de artistas que têm ou tiveram no têxtil um suporte importante, e que só nos últimos anos têm sido retiradas da invisibilidade, tais como Madalena dos Santos Reinbolt, Rosana Paulino e Sonia Gomes. 

As três estão em “Andar pelas bordas”, ao lado de outros nomes consagrados, como Adriana Varejão, Anna Maria Maiolino e Nazareth Pacheco, e de jovens como Rebeca Carapiá, Vivian Caccuri, Sol Casal e Tadáskia. A seleção ganha em densidade e amplitude com a inclusão de seis coletivos de bordadeiras. BordaLuta, Linhas de Sampa, Linhas do Horizonte e Pontos de Luta têm assumido mais diretamente o bordado como um instrumento de luta política por democracia e direitos humanos, inclusive com intervenções em espaços públicos. Artesãs da Linha Nove, que nasceu junto ao Instituto Acaia, em São Paulo, representa as dezenas de associações e cooperativas de mulheres que têm no bordado não só a fonte primordial de renda, mas também uma prática coletiva de fortalecimento mútuo. E Matizes Dumont, de Pirapora do Bom Jesus, em Minas Gerais, é um dos grupos que mais têm difundido o bordado em oficinas e exposições país afora. 

Embora o bordado predomine, há espaço para outras técnicas, como a escultura têxtil de Eva Soban, obras de crochê de Ana Maria Tavares e tapeçaria de Madeleine Colaço. Os ricos grafismos kene, que estão a caminho de serem reconhecidos como patrimônio imaterial pelo Iphan, estão nas tecelagens de algodão das indígenas Maria Ayani Huni Kuin e Tamani Huni Kuin. Essa mistura de autoras de diferentes procedências, gerações e contextos, sem distinções ou hierarquizações, é um dos pontos altos do recorte curatorial, que “amarra” as escolhas vinculando as práticas têxteis às funções tradicionalmente vistas como femininas de “tomar cuidado” e de curar.

Se “a arte da curadoria tem a ver com a raiz da palavra cuidar”, como diz Lilia Moritz Schwarcz no texto do catálogo, cabe lembrar aqui a coerência com que ela vem atuando em sua trajetória relativamente recente no campo da curadoria de exposições, em que contesta as divisões entre arte erudita, arte popular e artesanato e traz à luz produções até então predominantemente invisibilizadas. Antropóloga, professora da USP e da Universidade de Princeton e prolífica autora, Lilia também se tornou uma figura de destaque na cena política e cultural brasileira, com 533 mil seguidores no Instagram.

A exposição é dedicada a Telmo Porto, que abriu a Arte132 Galeria em 2021 e faleceu pouco antes da abertura da mostra.


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