Foto: Mídia Ninja

Antes da queda do muro era corrente o uso da expressão “finlandização” para descrever um processo de defesa depende diante de um vizinho muito poderoso e potencialmente invasivo. Durante a guerra fria a Finlândia realizou uma série de acordo amigáveis e concessões comerciais que garantiu que ela não se tornasse mais uma república satélite da União Soviética. Para uma pequena população, deste país então geograficamente estratégico e cobiçado por um inimigo potencial, este sacrifício permitiu o desenvolvimento de um plano continuado de investimentos em educação. Desta maneira trocou-se um período de suspensão calculada da soberania externa por um futuro baseado na soberania interna.

Há cinco anos a Finlândia chegou ao primeiro lugar no PISA, exame internacional que mede resultados do ensino básico. Uma recente expedição de educadores brasileiros,  observou que estes resultados podem nos ensinar o contrário do que parece. Em primeiro lugar isso não é resultado de nenhum método de ensino revolucionário ou da oferta massiva de recursos tecnológicos. Em vez de se preocupar em tornar os melhores, melhores ainda, os finlandeses apostaram na ideia de trazer os que estavam para trás, para a frente. Em vez de controlar os professores com planejamentos e relatórios infinitos eles transferiram ao professor grande autonomia, com um currículo mínimo pequeno, claro e bem definido. Sua autonomia passa, por exemplo, pela escolha diferencial do método de alfabetização, conforme a criança, pela definição do grupo de trabalho sobre cada projeto, e até mesmo pelo caminho curricular a ser percorrido. Em vez de culpar professores pela falta de formação, investiram em cursos longos e cobiçados, para que alguém se torne professor de física ou química, literatura ou artes plásticas. Não há provas ou exames seletivos, mas uma convivência continuada do professor com o aluno, que lhe confere autoridade para discutir escolhas profissionais, assuntos médicos e decisões familiares de forma individualizada. A partir desta convivência a escola torna-se apoio e recurso permanente para o projeto de vida do aluno. Ou seja, todos os problemas, bem como as soluções, que incluem, mas não se reduzem nem ao seu projeto profissional nem à sua relação de aprendizagem, passam pelo professor. Apesar disso há escolhas claras. No primeiro ano do ensino médio, eles podem escolher entre o ensino acadêmico e o início imediato de uma formação prática. Neste segundo caso ele estudará em verdadeiras oficinas, por exemplo, de conserto de automóveis, que servem a população prestando serviços gerais. Todas as agremiações partidárias tem assento garantido nos conselhos e órgãos de ensino, sendo sua reformulação independente das eleições gerais e consequentemente da alternância de interesses de quem está no poder.

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A grande lição finlandesa não está em sua organização. Aqueles fascinados pela importação de soluções ficarão consternados com o fato de que a Finlândia tem 5.5 milhões de habitantes, 3 milhões na capital Helsinque. Há, no total 56 escolas, a maior delas com 4 mil alunos. Comparar este problema com a escala brasileira, com toda sua extensão e diversidade não é apenas desleal, mas ela nos leva ao erro tentar reproduzir condições semelhantes, tais como 25 alunos por classe, formação hiperqualificada, ensino prático (que envolve gastos imensos com a construção de oficinas) em vez de olhar para os motivos que produziram este estado de coisas. Uma vez lá percebe-se imediatamente as razões: ensino gratuito para todos, em todos os níveis; pouca desigualdade social, de forma que os mais ricos e os mais pobres não se sobrepõe aos que vão para a universidade e os que vão para o ensino prático. O resultado mágico parece emanar do seguinte fator decisivo: reconhecimento social conferido aos professores. O salário dos professores é um pouco abaixo da média nacional, mas o fato decisivo é que a diferença entre o maior e o menor salário é relativamente pequena.

Agora voltemos os olhos para o atual processo de finlandização às avessas da educação brasileira. Ela está baseada na criação de um grande inimigo interno: professores indolentes, que não cumprem o que deles se espera, universitários elitistas de esquerda e demais desqualificados sociais. Uma vez criado este poderoso inimigo interno é preciso realizar um número expressivo de concessões externas para manter nossa dependência para com interesses comerciais. Lembremos o caso da Kroton, de propriedade de um político com trânsito federal, um negócio de, o negócio que mais cresceu no Brasil da última década, chegando a valer 5 bilhões e meio de reais graças ao financiamento massivo do Estado via FIES.

Criamos uma situação de distanciamento e impessoalidade que contribuem para a recorrente violência entre alunos e professores

Controlamos pesadamente o cotidiano de nossos professores sem oferecer nenhum plano estratégico de excelência, progressão ou formação continuada. Pagamos mal e pior, entendemos que este gasto é uma despesa, um ônus para o resto da sociedade. Cortamos verbas em pesquisa destruindo investimentos mantidos a duras penas, durante décadas. Fechamos faculdades de primeiro nível, raras e difíceis de construir, como a UERJ. Saturamos nossos professores com dois ou três empregos em vez deixá-los participar mais da vida de seus alunos. Criamos uma situação de distanciamento e impessoalidade que contribuem para a recorrente violência entre alunos e professores. Estimulamos a judicialização das relações escolares, quando não sua militarização como vemos no estado de Goiás, destruindo qualquer sentido de comunidade e desincumbindo nossos professores de qualquer autonomia.   Enquanto na Finlândia a medicalização é um problema lateral por aqui a lógica contratualista e controladora faz com que os problemas de aprendizagem, adaptação e inclusão sejam remetidos para outro departamento (o médico), com o qual não mantemos nenhuma relação senão a de transferência de problemas e a limpeza de consciência. Em vez de fazer de nossos professores agentes sociais para entender e enfrentar a miséria, material e cultural, participando da vida de seus alunos, inflamos sua profissão com obrigações curriculares, esperanças messiânicas e ódio pelas famílias “mal-estruturadas”. Enquanto temos que lutar contra uma excrescência chamada escola sem partido, os finlandeses inventaram o princípio da escola para todos os partidos.

Foto: Agência Brasil

Reconhecimento é uma substância que se produz enquanto se a pratica e cujo resultado depende de como se a pratica O reconhecimento constitutivo dos professores decorre de que eles representam a “regra do jogo”. Eles são os fiéis depositários dos valores que são os nossos, notadamente na ideia de que transmitem aos alunos a promessa de que outro mundo é possível e desejável. Portanto a forma como reconhecemos nossos professores é também a maneira como eles reconhecerão seus alunos. Mas o reconhecimento regulativo dos professores decorre de como eles estão sendo atual e definitivamente reconhecidos. Isso passa por um ministro da educação que não é reconhecido por seus pares. Isso passa por um projeto de reforma do ensino médio que, independente de erros ou acertos, saiu do bolso de um burocrata nos momentos finais, depois de quase uma década sendo discutido por educadores. Falta de dinheiro não é desculpa para maus tratos e escassez de recurso não justifica falta de reconhecimento, aliás o caso africano é exemplar neste ponto. Que tal aprender alguma coisa com a Finlândia? O sacrifício de hoje deve ser em nome de um futuro melhor amanhã. Que tal seguir os princípios finlandeses de igualdade, gratuidade, autonomia, comunalidade e praticidade na educação em vez de palavras de ordem como austeridade, gastos e despesas, controle e competição? 

Ou seja, um Estado que não reconhece seus próprios processos de regulação, que quer se fazer ele mesmo “dono da bola” e “senhor da regra do jogo” está a praticar uma finlandização às avessas, ainda que sob aplauso das elites ignaras ou pela graça do novo irracionalismo à brasileira.


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