Capa do livro "Emergências Culturais: Instituições, Criadores e Comunidades no Brasil e no México" (Edusp), organizado por Néstor García Canclini
Capa do livro "Emergências Culturais: Instituições, Criadores e Comunidades no Brasil e no México" (Edusp), organizado por Néstor García Canclini

Milhões de postos de trabalho no setor cultural foram atingidos em cheio no período mais crítico da pandemia de covid-19. Durante o confinamento, avanços tecnológicos e novos hábitos do público aceleraram mudanças na indústria cultural e provocaram uma revisão acerca de financiamentos, políticas públicas e estratégias de exibição, entre outras questões. A fim de analisar esse panorama, a Editora da Universidade de São Paulo (Edusp), em coedição com o Instituto de Estudos Avançados da USP (IEA-USP), lançou recentemente o livro Emergências Culturais: Instituições, Criadores e Comunidades no Brasil e no México. Feita em parceria com o Itaú Cultural, a publicação foi organizada pelo antropólogo argentino Néstor García Canclini e inclui ainda a participação dos pesquisadores Juan Ignacio Brizuela, Sharine Machado C. Melo e Mariana Martínez Matadamas.

A arte!brasileiros conversou com o professor Canclini – que há cerca de 20 anos estuda as crises em instituições culturais e os movimentos artísticos – a respeito das principais conclusões de Emergências Culturais e extrapolou o que é abordado pelo livro a fim de discutir outros aspectos urgentes do setor cultural no momento e no futuro próximo. Leia a seguir.

O antropólogo argentino Néstor García Canclini. Foto: Leonor Calasans
O antropólogo argentino Néstor García Canclini. Foto: Leonor Calasans

ARTE! – Quais os maiores desafios encontrados ao longo desse processo de pesquisa? Houve também surpresas, positivas e/ou negativas?

Néstor García Canclini – Algo que foi muito significativo poder comparar dois países gigantes como o Brasil e o México, com políticas culturais de muitas décadas, bastante estruturadas, com investigações já feitas em cada um dos dois, porém, com contrastes. Esse confronto, em uma situação como a da pandemia, revelou inúmeras surpresas. No caso do Brasil, há mais estudos sobre a relação com Argentina, a importância do Brasil dentro do Mercosul, mas, poucas análises e comparações com o México. E, no caso do México, há um foco na economia, na cultura e nas imigrações, porém mais com os Estados Unidos do que com a América Latina.

Outras das surpresas importantes foi descobrir que no período do governo Bolsonaro, o Brasil foi, durante a pandemia, o país que mais entregou fundos de emergência para atividades culturais em toda América Latina. Há um estudo comparativo, que foi feito no primeiro ano da pandemia, em relação aos aumentos de emergência no orçamento de cultura em dez países latino-americanos. O Brasil está em primeiro lugar, com um aumento real de 143% do fundo dedicado à cultura em 2020. Em seguida vêm a Argentina, com 41%, em terceiro, o Equador, com 24%, e em quarto, Chile, com 15%.

Eu gostaria de mencionar brevemente duas explicações principais que dão esse lugar de tanto destaque ao Brasil. Em primeiro lugar, sabemos que o governo Bolsonaro não foi favorável ao desenvolvimento cultural, rebaixou o Ministério da Cultural a uma Secretaria e, com isso, reduziu os fundos. Entretanto, temos que dizer que existem duas explicações principais, que destacamos e analisamos no livro: no Brasil surge um movimento de milhares de artistas, criadores, gestores e animadores culturais logo no começo da pandemia. A pandemia começa em março de 2020 e, em abril, já se criam movimentos virtuais, que era a única forma de se comunicar para a maior parte dos museus, centros culturais etc. O público não podia ir às salas de cinema, de teatro etc., mas fez isso de forma virtual.

Houve milhares de artistas e gestores culturais que se reuniram para ver onde podiam obter fundos, pedir de forma solidária e coletiva, e chegaram a redigir uma lei, a Aldir Blanc, que foi proposta ao Congresso, porque sabiam que o melhor caminho não era a Secretaria de Cultura nem o Governo Executivo, mas sim o Congresso, onde havia pluralidade e havia muitos legisladores com disposição para colaborar com essas redes virtuais, para redigir a lei Aldir Blanc, que entregou mais de R$ 3 bilhões, ou seja, uns US$ 500 milhões, para distribui-los em municípios e nos estados. Houve obstáculos, inclusive da Secretaria de Cultura do governo, por meio da complexidade dos requisitos de uso do orçamento. Também por conta dos detalhes de controle financeiro que estabeleceram, mas o dinheiro foi distribuído a, aproximadamente, 75% dos municípios.

Essa mobilização enorme, que conseguiu a maior arrecadação de fundos na América Latina, foi resultado de uma organização sociocultural dos artistas e gestores culturais, que ocorria no Brasil desde 2004, quando foram criados os Pontos de Cultura no Brasil e um sistema nacional cultural a partir de uma iniciativa do Ministério da Cultura encabeçado por Gilberto Gil.

A segunda explicação importante que encontramos é a federalização do sistema nacional de cultura no Brasil. É uma federalização muito distinta se compararmos com o que ocorre no México, que é um Estado muito centralizado. Sabemos que essa federalização, durante a pandemia, favoreceu, por exemplo, que os estados comprassem vacinas de forma independente.

ARTE! – Entre crise neoliberal, pandemia e o impacto de novas tecnologias, qual fator se revela mais contundente sobre as relações entre instituições, os artistas, as políticas públicas e o público em si? A emergência recente da inteligência artificial vai reconfigurar este cenário de algum modo? 

Canclini – A pergunta é muito importante porque identifica três fatores que internacionalmente são muito significativos para o desenvolvimento cultural. Eu diria que os três, e a pandemia tem a limitação temporal de ter afetado alguns países severamente, durante dois anos o desenvolvimento cultural, mas a organização mundial da saúde declarou há cerca de um ano que ela já não era mais o principal problema social e econômico do mundo. A pandemia não é, nesse momento, uma questão decisiva para o desenvolvimento cultural, como são a crise neoliberal e o impacto das novas tecnologias. Isso não quer dizer que a pandemia não siga mostrando suas consequências, porque há muitas que tiveram que ser encerradas. No primeiro ano, em média, foram perdidos mais de 800 mil postos e empregos na América Latina.

As tecnologias mais recentes, como o ChatGPT, mostram que os artistas estão perdendo trabalho e aumentando a orientação manipuladora do público em benefício das corporações e da audiência massiva. Entretanto, há um papel articulador que a tecnologia virtual facilita de movimentos sociais, como esse movimento que mencionamos no Brasil de artistas e gestores culturais mobilizados em uma emergência e que conseguem fundos e público por meio de vias não tradicionais. Ainda quanto à inteligência artificial, é muito cedo para avaliar essa tecnologia, mas existem algumas evidências de que vão tirar o trabalho de artistas. Vi há pouco notícias da Espanha, onde os dubladores são muito importantes, que esses profissionais estão perdendo empregos porque os computadores podem simular a dublagem.

ARTE! – No período em que foi foram feitas as pesquisas para o livro, houve uma consolidação das mudanças nos hábitos de consumo de cultura? Em caso afirmativo, como isso afeta a instituições?

Canclini – Sim. Estamos diante de um campo de investigação que necessita de maior estudo e de mais apoio dos recursos públicos para estimular a investigação acadêmica independente. Entretanto, há algumas pesquisas que eu gostaria de mencionar em países como Argentina, onde em 2022 foi realizada uma pesquisa de consumo cultural por parte do Sistema de Informação Cultural do país, um sistema público, e que mostra um retorno a visita a espaços físicos depois da pandemia. Às vezes, números superiores às estatísticas de público anteriores à pandemia. Mais visitas a museus, mais espetáculos presenciais, shows, feiras populares etc. Vemos que não se perdeu a relação do público apesar da conectividade da internet, mas que o retorno após o confinamento foi muito potente. Continuam conectados, mas buscam uma relação híbrida entre o acesso virtual e o acesso presencial.

ARTE! – Em que medida as iniciativas institucionais e de política pública no campo da cultura, citadas no livro, vêm sendo bem-sucedidas e por quê? Que problemas ainda permanecem à margem das discussões e por quê?

Canclini – Uma lista grande de perguntas que requerem mais pesquisas. Sabemos que há uma desestabilização institucional política e socioeconômica em toda América Latina, mas que isso ocorre de modos distintos. E isso afeta a cultura, porque, notoriamente, os governos de direita são menos sensíveis ao desenvolvimento cultural público e tendem a ceder as iniciativas às empresas privadas. Mas, isso também mudou nos últimos anos, em parte por conta do triunfo de governos de direita em muitos países latino-americanos, em parte por conta da deterioração geral da situação econômica e social na América Latina e da redução da capacidade de consumo das classes média e baixa. As classes médias estão descendo de patamar, um pouco ao contrário do que ocorreu no primeiro governo Lula no Brasil, em que se dizia que 40% da população havia saído da pobreza e ido para a classe média. Agora está acontecendo o inverso. E não é um resultado só do neoliberalismo, mas de uma complexa trama de processos de mudança no desenvolvimento cultural. Isso é o que é necessário estudar um pouco melhor. E também há uma dificuldade das instituições públicas de cultura para adaptar e adequar a sua comunicação ampla à sociedade, assim como a participação dos artistas, criadores e empreendedores nas novas condições que as novas tecnologias contemporâneas criam.

ARTE! – Saindo um pouco do escopo do livro, quais as implicações do cenário político convulsivo em todo o continente – e também no restante no mundo – sobre instituições, artistas e políticas públicas?

Canclini – Um aspecto que eu destacaria é que, assim como ocorreu uma desestabilização e um empobrecimento institucional, temos que mencionar a baixa capacidade das instituições de cultura, sociais, médicas, etc., de responder às demandas dos coletivos, das comunidades. E aqui destacaria, sobretudo, as demandas que cresceram nos últimos anos, dos movimentos feministas, indígenas, afro-americanos, ecológicos etc. Existem avanços, como por exemplo a descriminalização do aborto, a legitimação dos diferentes tipos de matrimônios, Mas também vemos o alto nível de conflito das reivindicações indígenas que não são atendidas, assim como as dos movimentos afro-americanos. Os movimentos indígenas são, historicamente, mais combativos na América Latina, mas na realidade temos 50 milhões de povos originários no continente, ao passo que são 150 milhões de afro-americanos, menos organizados.

Às vezes algumas manifestações chamam atenção a essa emergência por parte das instituições culturais. Eu destacaria a Bienal do Mercosul, realizada em Porto Alegre em formato virtual durante a pandemia, quando a curadora foi a Andrea Giunta. Ela elegeu as agendas dos grupos indígenas, das mulheres, de representantes de gêneros diversos e a criação artística com signos de gênero e de afro-americanos. E essa Bienal foi um salto de reconhecimento. Neste momento, a BIENALSUR, que tem sua base na Universidad Tres de Febrero, em Buenos Aires, mas inclui representantes artísticos de dezenas de países, da África até a Ásia, está tendo dando respostas a esse tipo de demanda que surge, dando por exemplo, uma importância muito grande aos movimentos ambientais. Então, existe essas erupções de respostas, mas é muito mais forte a intensidade e o volume das demandas.

ARTE! –  Outro tema emergente atualmente, o da restituição e das reparações, também não aparece entre os assuntos abordados no livro. Mas gostaria de saber se já é possível entender seu impacto nas instituições ou se ainda está tudo muito embrionário.

Canclini – Há uma longa história da relação entre instituições públicas estatais e povos originários. Há um boom recente, e há soluções, entre aspas, no caso de México e outros países da região Andina da América Latina, que criaram soluções, mas que não foram soluções, foram maneiras de arranjar uma convivência de forma muito precária. Hoje, há uma emergência mais enérgica com reivindicações às quais não se pode responder com repressão. Não se trata apenas de atender a essa emergência, mas também de encontrar novas formas de convivência social entre as muitas diversidades étnicas, de gênero etc., porque parte do que estamos vivendo globalmente nessa etapa do século XXI é uma explosão que torna muito difícil a convivência entre as culturas. Para mim, enquanto antropólogo, a intercultural idade é o grande tema e o grande desafio da antropologia contemporânea. A antropologia contemporânea, para mim, não é o estudo da cultura ou da cultura separada. Tem de ser isso, mas deve também entender os problemas da interculturalidade.

ARTE! – Esta entrevista será publicada no contexto de nosso I Seminário Latino-americano: Relatos, Memória e Reparação, que abordará, entre outros assuntos, a construção de narrativas contra-hegemônicas nos últimos anos. As instituições culturais da América Latina estão abertas a essas narrativas? Essas narrativas, que vêm de grupos minoritários, têm alguma chance de aprimorar nossas democracias ou a resistência a elas é muito forte?

Canclini – Se consideramos um período como as duas primeiras décadas do século XXI, vemos todas as composições socioeconômicas e políticas, o aumento da pobreza, etc. por um lado; por outro, há efeitos positivos, conquistas dessas emergências explosivas de identidades e de atores sociais novos. Não gosto de usar a palavra identidade porque parece abstrata. São atores sociais que têm formas: de povos originários, dos distintos feminismos, dos afro-americanos etc. E conquistaram muitas coisas: as cotas universitárias no Brasil e em outros países, benefícios e direitos para as mulheres e também a possibilidade de as pessoas terem outras opções de gênero. E isso está institucionalizado, foi convertido em leis. Não há como diminuir a importância de se ter muitas mais mulheres nos parlamentos e em algumas presidências, de se ter a presença de presidentes de povos originários, como no caso da Bolívia. Sabemos que isso não é uma evolução ascendente e incessante. A corte dos Estados Unidos acaba de anular as cotas para afro-americanos nas universidades. E há algo que eu gostaria de destacar para finalizar. Às vezes, as conquistas não consistem exatamente em conseguir aquilo que se propôs, que se pedia às instituições, nem na aprovação de novas leis. As conquistas consistem em manter vivas as demandas, em não esquecer que há povos originários, que há afro-americanos, que não deve haver discriminações de gênero. Os museus estão mudando, de forma lenta, mas reconhecem essa diversidade. Em 2018, o coletivo Nosotras Proponemos fez uma exposição, no Museu Nacional das Belas Artes na Argentina, em que iluminou somente as obras realizadas por mulheres na coleção da instituição. E aí vimos o papel minoritário que as mulheres têm nas coleções dos museus em todo o mundo.


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