Um convite para representar o Brasil na Bienal de Veneza, a montagem de uma exposição panorâmica de grande porte na Pinacoteca de São Paulo — uma das mais importantes instituições de arte do País — e os 40 anos completos. Tudo isso, em meio a um Brasil fervilhante de eleições e efemérides históricas. 2022 se apresenta de forma emblemática para Jonathas de Andrade.
Quem visita a Pinacoteca Estação, em São Paulo, tem a oportunidade de conhecer um pouco de seus 15 anos de trajetória artística. O rebote do bote, em cartaz até fevereiro de 2023, reúne 20 das 40 obras produzidas pelo alagoano durante sua carreira, e vai desde seus primeiros trabalhos — Amor e felicidade no casamento (2008) e Recenseamento moral do Recife (2008) — até uma obra inédita, comissionada para a mostra — Decalque Estilhaço (2022), primeiro exercício de autorrepresentação do artista, que sempre se dispôs a mostrar a figura do outro e do coletivo. A expografia, porém, propõe um olhar não cronológico, colocando lado a lado projetos de diferentes períodos, mas que travam entre si diálogos e conflitos. Assim, convida o público a refletir sobre os conceitos, dinâmicas e dispositivos que permeiam essa trajetória artística.
A curadoria de Ana Maria Maia busca, mais do que um enfoque nas obras em si, um olhar para a política das relações que as envolve: “ou seja, o que extrapola as imagens, que por vezes está nos bastidores ou nas sutilezas delas, que diz respeito ao modo dele trabalhar. As abordagens que ele faz, as pessoas com que ele trabalha como colaboradores, como modelos e como fornecedores. Essa espécie de performance oculta, esse jogo de corpos que ocupam certos lugares, para mim é o que existe de mais importante no trabalho do Jonathas”, afirma Maia, que acompanha o artista desde a faculdade de jornalismo, que cursaram juntos no Recife nos anos 2000.
Jonathas de Andrade faz coro: “Olhar pra minha história não é olhar pra história desse autor antigo, que pega a pena e escreve; é uma autoria muito tramada pelo outro”. E completa: “Diante das pautas do hoje, passei a entender que não é falar pelo outro, mas é falar com o outro. Isso que é saboroso, inspirador e desafiador pra mim. É reconhecer a potência da resistência, que é tão múltipla, tão potente, e entender como é que isso de algum jeito me inspira e explicita minhas próprias questões, contradições, privilégios e fragilidades”.
A individual compõe uma programação voltada a revisões históricas na Pinacoteca, ao lado de Ayrson Heráclito: Yorùbáiano, Atos Modernos, Enciclopédia Negra etc. “Achamos que ele era um bom intérprete e um bom aliado nesse gesto de escovar as histórias brasileiras a contrapelo”, diz Ana Maria Maia, atualmente curadora-chefe da instituição. “É um artista com muito fôlego para discutirmos História. Chega trazendo esse aporte de um cara que se arrisca a mexer num vespeiro de narrativas hegemônicas, que são racistas e violentas, que exercem violências de gênero, de raça, de classe.”
A ambiguidade como palco do mundo
Ao construir um museu dedicado ao homem nordestino, em 2013, Jonathas já dialogava com essa leitura da curadora. Cartazes para o Museu do Homem do Nordeste retrata 77 trabalhadores da região. Ao fazer referência à instituição criada por Gilberto Freyre em 1979, a obra dá palco às convenções e estereótipos sobre a identidade do nordestino — atrelada à virilidade e ao trabalho braçal —, propõe um olhar às dinâmicas sexistas — ao que faz o uso da palavra ‘homem’ como humanidade, mas, simultaneamente, transforma o trabalho “num museu do homem, do macho e do homoerotismo”, explica Maia — e provoca o público da arte contemporânea a repensar questões de desigualdade social. “Esse trabalho é feito para desestabilizar e constranger, justamente porque é magnético. As imagens são, de fato, muito intensas e problemáticas, falam o quanto a gente não olha para aquelas pessoas”, completa Andrade. A obra, hoje exposta no acervo da Pinacoteca, tem um desdobramento em O rebote do bote: a Caravana Museu do Homem do Nordeste, que estende as reflexões do projeto original a partir da interação com outras pessoas.
Ambas as obras trazem um ponto central do trabalho do alagoano: a ambiguidade. “Assim como a vida, os projetos não precisam ser sobre uma coisa só, são estilhaços de possibilidades e de tensões. São sobre afeto-amor, mas também carregam diferenças, estranhamentos, que são partes das relações humanas”, compartilha. E complementa: “Acredito que é importante que a ambiguidade seja um tempero nos trabalhos, para que as obras possam requisitar de quem vê, do próprio repertório da pessoa, para que ela, então entenda o que vê com amor ou violência, como certo ou errado. Acho que esse meio termo tem um potencial pedagógico e de debate gigante.”
O rebote do bote explicita ainda mais essa proposta ao que a extrapola para a expografia. Um exemplo é a proximidade entre a Caravana do Museu do Homem do Nordeste e A Batalha de Tejucupapo — obra baseada em um episódio histórico de expulsão dos holandeses por uma comunidade de mulheres na Zona da Mata de Pernambuco, usando seus utensílios domésticos. “É uma história de protagonismo feminino e, até hoje, um conjunto de mulheres que mora nessa cidade encena a batalha, um pouco para deixar vivo esse legado de luta das mulheres da região. A proximidade dos trabalhos tensiona essa narrativa dedicada ao universo masculino”, explica Ana Maria Maia.
Ao propor essas desestabilizações, nas obras e na expografia, o trabalho de Jonathas de Andrade busca expor questões pungentes da realidade brasileira. “Os projetos não têm a intenção de reescrever a história totalmente, mas de revirar ela ao avesso, problematizá-la, dar palco às suas contradições”, diz o artista.
O risco do flerte
Esse olhar para a história tem uma tônica particular: as relações pessoais. A ambiguidade que o artista propõe em suas obras se dá no âmbito dos encontros.
Por um lado, pode-se pensar no contato com o público. “Estou convidando-o a completar e brincar com o que a obra está propondo. É muito saboroso, porque tem uma capoeira aí, é dança e luta ao mesmo tempo. Completar aquilo depende muito do outro, é só a interação que define”, diz o artista. Talvez o maior exemplo nesse sentido seja O peixe, também presente em O rebote do bote. O vídeo mistura documentário e ficção ao retratar pescadores em seu labor diário, mas propondo que eles abracem o peixe até a morte do animal. “Você tem o carinho e a violência”, explica o artista. A depender de quem e como assiste, é possível um efeito distinto do trabalho: “a pessoa pode rejeitar o assunto, bem como ficar completamente inebriado pela paixão que a imagem evoca”.
As relações pessoais também estão presentes na construção dos projetos, ao pensarmos nos corpos que os compõem. Esses encontros carregam suas ambíguidades, trazem uma série de tensões e desconfortos.“No próprio processo de concepção e criação, esses trabalhos trazem mil questões, que é o que me faz de fato crescer. Então não é sobre ser questionado ou não, é sobre como essas estruturas são vivas o suficiente pra me desafiar a me reelaborar, a me confirmar ou reinventar nos processos”, explica o artista.
Questões essas das quais somos lembrados ao andar na exposição da Pinacoteca Estação e ler, numa porta no canto da última sala: “Departamento de ética e culpabilidade”. “Foi muito bonito revisitar o Departamento de ética e culpabilidade, entender que nele tem um processo de aprendizado e o impulso do Jonathas de voltar a tomar seu assento como indivíduo. Isso envolve negociar a aparição da sua própria imagem. Isso envolve entender e cuidar tanto da formulação de trabalhos, quanto da formulação dos seus mecanismos de crédito, de repartição de lucros. Entender a dimensão ética para um artista com visibilidade e que fala dessas feridas coloniais, desde um lugar de homem que nunca se racializou e que sempre teve privilégio socioeconômicos, e também tem a ver com delimitar muito bem o seu lugar como aliado e os seus limites”, diz a curadora Ana Maria Maia.
Para Andrade, a retrospectiva ajuda a compreender como os trabalhos ganham tempo histórico, como a percepção deles vai mudando no passar dos anos, ao que novas discussões sobre o decolonial, o lugar de fala e o olhar antropológico se travam. Assim, os trabalhos parecem ganhar uma nova camada de ambiguidades, ao que dão palco às próprias tensões de seus processos e permitem repensar as dinâmicas do mundo das artes no hoje, criar repertório para esses debates, em especial quando pensamos na relação do artista que retrata o outro e o coletivo.
“O rebote do bote tem a ver com essa dimensão das consequências, do desejo pelo outro, do desejo de abocanhar aquele outro desejo, que é da ordem de um apetite sexual, mas também de aprendizado, de convívio, de revisão histórica”, declara Maia.
“A arte é esse organismo vivo, e eu quero me desafiar a ser esse organismo vivo também. É um desafio gigante, porque a gente cria, mas também reproduz muita coisa. A gente tem consciência e às vezes não tem. Então, o desafio é que a arte me coloque a ser uma célula viva, em transformação o tempo todo”, completa o artista.
O artista entra em cena
Com essas questões, chegamos à última sala de O rebote do bote, com a primeira autorrepresentação dessa trajetória, Decalque estilhaço. A obra põe Jonathas de Andrade em foco.
Nascido em Maceió, Alagoas, o jovem cursou anos de Direito em Florianópolis, Santa Catarina. Foi durante a graduação que se envolveu mais intensamente com os movimentos sociais e com temáticas que até hoje traz em seu trabalho. “Entendi um Sul muito intenso socialmente, uma relação muito europeia e conservadora. Foi um momento que me senti muito nordestino, uma experiência que ainda não tinha experimentado sendo um jovem classe média em Maceió. Foi uma hora de tomada de consciência de corpo.” Andrade, então, decide trocar de área, tranca o curso e se matricula na Faculdade de Jornalismo da Universidade Federal de Pernambuco. É nesse momento que conhece Ana Maria Maia – na época também estudante e hoje curadora de sua individual -, passa a fotografar exposições de arte e monta, como trabalho de conclusão de curso, sua primeira exposição individual – Amor e felicidade no casamento.
Na sequência, tem seu portfólio lido pelo curador Eduardo Brandão e é convidado a montar uma exposição no Itaú Cultural, em São Paulo. Através de Moacir dos Anjos e Cristiana Tejo, faz uma exposição no Banco Real do Recife. A partir desses encontros, outros se travam, Andrade viaja pela América do Sul, se une ao coletivo Dois Pontos, participa de sua primeira bienal – do Mercosul – e posteriormente da Bienal de São Paulo, curada por Moacir dos Santos, com assistência de Ana Maria Maia.
Através desses encontros ao longo da vida, cruza saberes e perspectivas. Descobre seus caminhos profissionais no diálogo entre pessoas, linguages artísticas e campos de conhecimento. “Uma série de coisas que podiam ser pra nada, mas que a arte amarrou. Então devo muito a esses encontros, e devo honrar esses encontros”, completa o artista.