Os Budas de Bamiyan, no Afeganistão, foram destruídos pelo Talibã há 20 anos. Foto: Reprodução The Art Newspaper
Os Budas de Bamiyan, no Afeganistão, foram destruídos pelo Talibã há 20 anos. Foto: Reprodução The Art Newspaper

Nas últimas semanas, guerrilheiros do Talibã vêm conquistando territórios no Afeganistão. Eles tomaram controle de sua primeira capital provincial no dia 6 de agosto e, há pouco, no dia 15, se apossaram da capital do país, Cabul. Sobre a retomada do grupo extremista após a retirada final das tropas estadunidenses do país, a jornalista brasileira Adriana Carranca escreveu: “A volta dos talibãs era esperada. A última vez que estive no Afeganistão, já controlavam 80% das províncias e estavam a 30 minutos da capital Cabul. Os EUA falharam. Em 20 anos de guerra podiam ter transformado o país, mas optaram por drones… O Afeganistão é um país jovem e as novas gerações não queriam (não querem) o Talibã. Tinham muita esperança de que os EUA trariam liberdade e desenvolvimento”. Carranca explica que isso não ocorreu, no entanto, pois com a saída dos EUA, o dinheiro investido (por empresas de segurança, principalmente) também vai embora. Ela complementa que “desde 2014, os afegãos constituem o segundo maior grupo de refugiados, atrás apenas dos sírios. Muitos morreram na travessia para a Europa. Milhares foram deportados”.

O contexto

Para entender um pouco do contexto de tal agitação política, o jornalista iraniano Jason Motlagh resume: “Por 50 anos, o Afeganistão passou de golpes de Estado a conflitos. Em 1973, um general afegão depôs o rei e se declarou presidente. Cinco anos depois, comunistas afegãos o assassinaram e tomaram o poder. A União Soviética invadiu no ano seguinte para apoiar os comunistas, desencadeando uma guerra de guerrilhas que durou uma década. Os EUA canalizaram bilhões de dólares através do Paquistão para os combatentes mujahideen anti-soviéticos de todo o mundo islâmico – incluindo o jihadista saudita Osama bin Laden – e eles acabaram forçando os soviéticos a se retirarem. Um acordo de divisão de poder falhou e os militantes se dividiram em facções beligerantes. O Talibã emergiu no caos e tomou o poder em 1996”.

Já a fotojornalista Lynsey Addario, que cobriu o Afeganistão por duas décadas, reporta (em artigo para o The Atlantic) que à época de sua primeira viagem ao país, em maio de 2000, o Talibã havia implementado sua interpretação da Sharia, a lei islâmica. “A educação para mulheres e meninas era proibida em quase todas as circunstâncias, e as mulheres (exceto para médicas selecionadas e aprovadas) não tinham permissão para trabalhar fora de casa ou mesmo sair sem um tutor homem”. Após a invasão estadunidense seguida do atentado de 11 de setembro, o Talibã caiu. “As mulheres rapidamente se mostraram inestimáveis ​​para o trabalho de reconstrução e administração do país. Houve uma grande onda de otimismo, determinação e crença no desenvolvimento e futuro do Afeganistão”, escreve Addario. Agora, esses ganhos parecem estar desaparecendo, segundo relatos coletados por ela. “Embora não possa tirar quem as mulheres afegãs se tornaram nos últimos 20 anos – sua educação, seu desejo de trabalhar, seu gosto pela liberdade – o medo permeia o país”, ela conta.

"Colegiais em Kandahar, Afeganistão, 7 de fevereiro de 2009. Em novembro anterior, 16 garotas haviam sido pulverizadas com ácido por simpatizantes do Talibã enquanto caminhavam para a escola. A maioria voltou a comparecer, apesar das constantes ameaças à sua segurança", Lynsey Addario. Foto: Publicado originalmente no The Atlantic. Crédito inteiramente reservado à fotógrafa e ao The Atlantic.
“Colegiais em Kandahar, Afeganistão, 7 de fevereiro de 2009. Em novembro anterior, 16 garotas haviam sido pulverizadas com ácido por simpatizantes do Talibã enquanto caminhavam para a escola. A maioria voltou a comparecer, apesar das constantes ameaças à sua segurança”, Lynsey Addario. Foto: Publicada originalmente no The Atlantic. Direitos autorais inteiramente reservados à fotógrafa e ao The Atlantic.

Segundo Motlagh, mais de três em cada quatro afegãos hoje têm menos de 25 anos: “Jovens demais para se lembrar do reinado de medo do Talibã e, especialmente nos centros urbanos, acostumados demais com as liberdades para estarem ansiosos para abandoná-las”, aponta. Para o jornalista, alguns habitantes nas áreas rurais vêem o retorno dos fundamentalistas como inevitável e preferível, mas muitos afegãos moldados pela realidade pós-2001 são desafiadores, não querendo voltar a um passado reacionário e repressivo”. Haji Adam, um líder tribal que conversou com Motlagh, questiona, no entanto: “Durante 20 anos, o mundo inteiro veio e o dinheiro entrou no Afeganistão, mas como isso nos ajudou? Se a água estivesse sob nosso controle… se houvesse eletricidade, teríamos produtos em vez de guerra. Se as estradas tivessem sido pavimentadas, não haveria tanta destruição”.

Salvar o patrimônio para salvar a história do povo afegão

Não perdendo de vista a preocupação primeira com a turbulência humanitária dos últimos dias, pensa-se na sobrevivência da herança cultural do Afeganistão. Segundo Gareth Harris e Dorian Batycka, em artigo para o The Art Newspaper, na última vez que Cabul esteve sob controle do Talibã, 20 anos atrás, cerca de metade de sua herança cultural foi perdida. Os autores explicam que a interpretação da Sharia praticada pelo grupo “proíbe a representação de ícones, corpos humanos e outras divindades, o que no passado resultou no apagamento sistemático de minorias e mulheres, que agora precisam ser acompanhadas por tutores do sexo masculino e vestir o véu”.

Os Budas de Bamiyan, no Afeganistão, foram destruídos pelo Talibã há 20 anos. Foto: Reprodução The Art Newspaper
Os Budas de Bamiyan, no Afeganistão, foram destruídos pelo Talibã há 20 anos. Foto: UNESCO/A Lezine. Reprodução Wikimedia Commons.

Em fevereiro deste ano, o Talibã declarou que pretendia “proteger, monitorar e preservar de forma robusta” as relíquias do país, apesar do seu histórico infausto. Em entrevista a Andrew Lawler, da National Geographic, Mohammad Fahim Rahimi, o diretor do Museu Nacional do Afeganistão não se tranquiliza com a alegação: “Infelizmente, a declaração não é clara, especialmente no que diz respeito à herança pré-islâmica”. Peças despedaçadas intencionalmente por saqueadores durante a guerra civil e em 2001 levaram anos para serem reconstruídas pelos conservadores do museu, entre elas muitas esculturas de madeira e pedra.

A preocupação de Rahimi com a herança pré-islâmica não é irracional. Lawler explica que como uma “importante artéria” na Rota da Seda que conecta a Índia com o Irã e a China, o Afeganistão está repleto de vestígios de cidades antigas, mosteiros e caravançarais que hospedavam viajantes. Como exemplo prático, o diretor do Instituto de Arqueologia do Afeganistão, Noor Agha Noori, cita o ataque do Talibã à Mes Ayanak, um antigo complexo budista. “O local inclui um depósito que continha originalmente cerca de 8.000 artefatos budistas”, diz Noori. Devido à falta de segurança, as autoridades já haviam transferido cerca de 3.000 desses artefatos para a proteção do Museu Nacional, no entanto. Outras transferências, como de artefatos vindos das cidades de Herat e Kandahar foram impossibilitadas pela abrupta queda do governo, “nós não esperávamos que isso acontecesse tão rápido”, lamenta Noori. Espera-se, no entanto, que algumas escavações arqueológicas tenham continuidade, pelo momento, incluindo uma missão na citadela de Cabul. Em março, com o apoio da Turquia, foi dada largada à reconstrução do local de nascença do poeta Rumi, no século 13, na cidade nortenha de Balkh. Da mesma forma, tal empreitada ainda não foi interrompida.

O Museu Nacional do Afeganistão. Foto: Michal Hvorecky.
O Museu Nacional do Afeganistão. Foto: Michal Hvorecky.

Muitos estão céticos sobre as alegações do grupo extremista. Omar Sharifi, professor de ciências sociais da Universidade Americana do Afeganistão, fugiu de Cabul para Delhi, por ter recebido ameaças diretas de membros do Talibã, conta a Lawler. Outras fontes acrescentaram que funcionários do patrimônio cultural em todo o país receberam textos e telefonemas de funcionários do Talibã acusando-os de trabalhar com organizações internacionais, reporta Lawler. Tendo essas ocorrências em mente, para Mohammad Rahimi, a tarefa é dupla: a preservação dos mais de 80.000 artefatos sob cuidado do Museu Nacional do Afeganistão, mas também garantir a segurança de sua equipe. Ambos Rahimi e Noor Agha Noori disseram que estiveram em contato com seus funcionários em cidades controladas pelo Talibã e que essas pessoas parecem estar seguras por hora. No entanto, não há modo para que possam sair do país se necessário.

Um curador de museu com um profundo conhecimento do patrimônio do Afeganistão (que preferiu manter-se anônimo) conversou com o The Art Newspaper sobre esta problemática. Sobre a declaração do Talibã mencionada no começo do texto, afirma-se: “No curto prazo, espero que a cultura não seja destruída, mas são os efeitos de médio e longo prazo na sociedade que me preocupam particularmente. Privar uma sociedade de cultura prejudicará uma nação já traumatizada, que estava apenas começando a ver os benefícios de uma geração de exposição à cultura… Mas a história tem um efeito cíclico e nenhum governo permanece no poder para sempre”. Em contraponto, alerta: “Os leopardos mudam de manchas? Basta olhar para a estrutura de comando do Talibã e seus apoiadores para sentir que não haverá muita mudança em relação a 2001”.

Podemos fazer algo?

Nesse meio tempo, no Twitter (link abaixo), a comunidade da Wikipedia criou uma chamada para contribuição em verbetes sobre herança cultural do Afeganistão. Essa é uma forma singela de ajudar a salvaguardar esse patrimônio em um portal aberto e de fácil acesso. Da mesma forma, a TIME Magazine listou algumas formas que pessoas fora do Afeganistão podem contribuir, mesmo que minimamente (confira aqui). Outros portais de notícias ressaltaram a importância de acompanhar o jornalismo no Afeganistão e, principalmente, as mulheres jornalistas. Entre elas, listam-se: Clarissa Ward, Khushbu Shah, Ruchi KumarYalda Hakim


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