"Pau-Brasil", 1974, Glauco Rodrigues. Foto: Jaime Acioli/Cortesia Bergamin & Gomide

A mostra Acontece que Somos Canibais!, de Glauco Rodrigues (1929-2004), tem clima de escola de samba, cheia de cores e alegorias, nascidas sob a influência da arte pop. As pinturas expostas na galeria Bergamin & Gomide são como um gesto de resgate do artista que ficou esquecido por um tempo. Para Lilia Schwarcz, que assina o texto da mostra, isso ocorreu “talvez porque ele não correspondesse ou não se encaixava de maneira óbvia nos cânones do modernismo da época”. Thiago Gomide, proprietário da galeria junto com Antonia Bergamin, lembra que eles expuseram Glauco há quase dois anos na coletiva A Burrice dos Homens (2019), com curadoria de Fernanda Brenner, do Pivô, e que pretendem trabalhar com ele, sem exclusividade.

“Retrato de Henriette Amado”, 1970, Glauco Rodrigues. Foto: Ding Musa/Cortesia Bergamin & Gomide

O universo de Glauco é povoado de personagens díspares, vindos de várias épocas, convivendo simultaneamente no presente, passado e futuro. Tudo aparentemente desconectado, mas realizado genialmente dentro de uma lógica cognitiva com um mundo ora esfuziante, ora apocalíptico. Isso chama a atenção do crítico francês Nicolas Bourriaud, que dedicou uma sala a Glauco na mostra L’Ange de l’Histoire (Anjo da História), em 2013, na École Nationale de Beaux Arts, em Paris. Na ocasião, a revista Art Press publica matéria e coloca a obra de Glauco na capa. Em 2019, Bourriaud volta a expor Glauco na Bienal de Istambul, quando foi curador geral, e quebra o paradigma de que a arte brasileira tem sempre que passar pelo projeto construtivo, dos concretos e neoconcretos.

A exposição paulistana reúne, em sua maioria, obras dos anos 1960 e 1970 feitas no clima da contracultura, guerra do Vietnã e ditadura brasileira. As pinturas são singulares, progressistas e reafirmam o lastro de um artista múltiplo, aparentemente simples, mas conceitualmente sofisticado, que transitou por vários segmentos da arte. Pintor, artista gráfico, gravador, executou figurinos e cenários para teatro, capas de discos e revistas, colocando saberes a serviço de uma revolução pessoal com imagens incluídas cruamente sobre telas de fundo sempre branco, como fragmentos gravitando no espaço. Só começou a pintar a base de seus quadros no final da ditadura militar.

Todas as obras tratam da história do país carnavalizadas dentro de um universo eclético em que mescla desde a imagem de São Sebastião, padroeiro de Bagé, sua cidade natal, e do Rio de Janeiro até garotas de biquíni, natureza tropical, fotos de amigos, Corcovado, índios, cachos de banana e passistas de escola de samba. O ideário de Glauco é profano, mesmo quando retrata Cristo e alguns santos, tudo embalado com as cores da bandeira brasileira que tingem todos os seus quadros. Com isso, ele confirma suas intenções carregadas de críticas ao momento político social da época, como a tela Acontece, Que Somos Canibais! que nomeia a exposição.

Glauco nasce em 1929, em Bagé, Rio Grande do Sul, onde começa na arte como gravador, depois transfere-se para Porto Alegre e se junta aos gravadores Carlos Scliar e Vasco Prado. Em 1958 chega ao Rio e, um ano depois, integra a primeira equipe da revista Senhor (1959-1964), onde trabalha com Jaguar, Paulo Francis, sem deixar sua arte de lado. Com a premiação no IX Salão Nacional de Arte Moderna, viaja para a Europa e participa da Bienal Jovens de Paris, em 1961. Um convite o leva a viver em Roma de 1962 a 1965 e lá participa da Bienal de Veneza de 1964, quando conhece a pop art americana. Vê Robert Rauschenberg receber o Leão de Ouro e sagrar-se quase herói. Afinal, ele foi o primeiro artista norte-americano a receber o grande prêmio na Bienal mais antiga do mundo (1895). A pop art impacta Glauco. Ele volta ao Brasil e começa sua mitologia brasileira, com estética pop futurista misturada a um tropicalismo crítico.

No Rio integra a mostra Opinião 66, no MAM do Rio, ao lado de Lygia Clark, Hélio Oiticica, Antonio Dias e Carlos Vergara. Cria obras sobre o discutível “milagre brasileiro”, com a tela Nossa Comida Abundando Está! (1977). Denuncia o colonialismo e a exploração dos indígenas em Persona (1974). Faz crítica social por meio da lenda Coati-Purú, integrante da série Visão da Terra: A Lenda de Coati-Purú (1977). Em sua pintura O Derrubador Brasileiro – D’aprés Pedro Américo, Victor Meirelles, Almeida Junior e Pedro Moraes, ele revisita criticamente a obra desses artistas.

A arte de Glauco, teorizada por críticos como Frederico de Morais, Ferreira Gullar e Roberto Pontual ganha novos contornos com Bourriaud. Na entrevista ao cineasta José Teixeira de Brito para o documentário Glauco do Brasil, de 2015 (publicada depois no livro Glauco Rodrigues – Crônicas anacrônicas e sempre atuais do Brasil, de Denise Mattar), ele afirma: “O que fica evidente na obra de Rodrigues é que ele recupera fragmentos da história, restos de imagens que provêm de tempos e lugares heterogêneos. Desse ponto de vista ele é muito contemporâneo. A partir de um pequeno fragmento, reconstituir o edifício destruído é uma característica da arte atual que Glauco Rodrigues antecipou”, conclui Bourriaud.


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