Obra de No Martins que foi exposta na 21a Bienal Sesc_Videobrasil. Foto: Divulgação.

Leia aqui a primeira parte do texto de Márcio Seligmann-Silva. E a seguir a segunda parte: 

Histórias atravessadas: imagens dialéticas

Fazer das artes uma plataforma de construção de novas subjetividades e de lançamento de formas alternativas de convívio em comum implica uma integração de histórias recentes que ainda nos atravessam e nos dominam. No caso brasileiro, a história de nossa violência é paradigmática no sentido de ter sido e continuar sendo sistematicamente apagada. Grada Kilomba, em seu livro seminal Memórias da Plantação, afirma com relação a esse imperativo da arte e da escrita: “A ideia de que se tem de escrever, quase como uma obrigação moral, incorpora a crença de que a história pode ‘ser interrompida, apropriada e transformada através da prática artística e literária’”, citando bell hooks.[1] Apenas através de uma apropriação criativa de nossas histórias e narrativas da violência poderemos imaginar e moldar novos futuros. Como na imagem de Sankofa, um pássaro, cujo nome na língua Twi de Gana, significa “volte e pegue”, e que é replicado no símbolo dos Ashanti em forma de coração. Esse pássaro, associado ao provérbio “Não é errado voltar para aquilo que esquecemos”, porta um ovo precioso e é representado sempre com a cabeça voltada para trás, buscando forças no passado, nas histórias escritas com sangue e que são submetidas ao esquecimento, ao recalque, ao memoricídio.

A tarefa da reconstrução decolonial e artística da história é fundamental e, aqui, curadorias e obras como a que pudemos ver na 21a Bienal Sesc_Videobrasil são absolutamente fundamentais. A arte aqui se revela como essa segunda técnica de que Benjamin nos fala (capaz de produzir outra physis) e como uma fabulosa técnica de gerar narrativas com potencial de servir de suporte para ações transformadoras. Antes de mais nada isso se dá pela produção de novas subjetividades, não mais esvaziadas e preenchidas artificialmente por histórias eurocêntricas e incapazes de produzir autênticos sujeitos políticos. Essas obras e curadorias permitem um novo posicionamento subjetivo diante de questões chave, essenciais. Ao adentrar o espaço da 21ª Bienal e mergulhar na (política da) imanência de suas obras, nossos corpos e nossa autoimagem são afetados. A narrativa que denuncia as violências coloniais, falocêntricas, de gênero, racistas, de classe e contra a natureza serve de contraponto aos discursos oficiais que, em sua estrutura teleológica-progressista, procuram sempre justificar as ações do mercado e dos poderes centrais, como se tratassem de uma segunda e inexorável natureza. Essas contranarrativas querem-se abertas e voltadas para o empoderamento de subjetividades antes cerceadas, censuradas e tentativamente eliminadas. Essas novas subjetividades pós-coloniais e pós-nacionais exigem também novas responsabilidades.

Essas responsabilidades, podemos pensar com Benjamin, se voltam aos mortos (que foram sacrificados pela história do Esclarecimento e da primeira técnica), suas histórias e sonhos, e também para os viventes de agora e do futuro. As obras de arte promovem o “tempo do agora” de que Benjamin fala: o tempo de Sankofa. São “imagens dialéticas” definidas por ele como “a memória involuntária da humanidade redimida”.[2] Ou seja, o agora que está na base do conhecimento da história estrutura, para Benjamin, o reconhecimento de uma imagem do passado que, na verdade, é uma “imagem da memória. Ela aparenta-se às imagens do próprio passado que surgem diante das pessoas no momento de perigo”.[3] Nosso momento, não tenhamos dúvidas quanto a isso, é esse momento do perigo. Em vez da busca da representação (mimética) do passado, “tal como ele foi”, como as posturas tradicionais historicistas e positivistas – em uma palavra, representacionistas – da história postulavam-no, Benjamin quer articular o passado historicamente apropriando-se “de uma reminiscência”. O historiador, e isso vale para o artista e qualquer um que se volta para recolecionar essas imagens com passados que nos atravessam, deve ter presença de espírito para apanhar essas imagens nos momentos que elas se oferecem: assim, ele pode salvá-las, paralisando-as,[4] como um fotógrafo do tempo. Essa história construída com base na memória involuntária despreza e liquida o “momento épico da exposição da história”, ou seja, sua representação segundo uma narração ordenada monologicamente. “A memória involuntária nunca oferece […] um percurso, mas sim uma imagem. (Daí a ‘desordem’ como o espaço-imagético da memória involuntária)”.[5] Essa imagem é lida e, portanto, é hieroglífica: misto de palavra e imagem. Nas obras e na curadoria da 21a Bienal, a “desordem” e a não epicidade imperam. Cada leitor também torna-se um curador de segunda ordem. Citemos as palavras de Benjamin:

A imagem é aquilo em que o ocorrido encontra o agora num lampejo, formando uma constelação. Em outras palavras: a imagem é a dialética na imobilidade. Pois, enquanto a relação do presente com o passado é puramente temporal, a do ocorrido com o agora é dialética – não de natureza temporal, mas imagética. […] A imagem lida, quer dizer, a imagem no agora da cognoscibilidade, carrega no mais alto grau a marca do momento crítico, perigoso, subjacente a toda leitura.[6]

O perigo é também o de cair no esquecimento, assim como o de se manter não lida e encoberta pela narrativa tradicional – épica, linear –, que apresenta, na visão benjaminiana, apenas o triunfo dos vencedores. Na imagem, em vez do narrado, encontramos uma densificação do histórico que o arranca do fluxo da dominação. O artista crítico cultural materialista agarra o ocorrido e mergulha-o no agora, como um fotógrafo que sequestra um aqui e agora e o arrasta para outros cronotopoi. Suas constelações tensas explodem as falsas totalidades da representação histórica tradicional que nos ordena.

Construir a solidariedade: a partilha entre o terror e a compaixão

Com Hans Jonas, vale lembrar, nossa responsabilidade se volta também para a Natureza como um todo, como lemos nas palavras sábias de Davi Kopenawa em seu livro-depoimento A queda do céu.[7] Em vez de levantar como estandarte de luta a promessa de um paraíso futuro, esses dispositivos artísticos atuam sobretudo pela construção de narrativas testemunhais que lançam uma nova luz sobre o passado e sobre nosso sistema de dominação presente. Nessas narrativas não se trata tanto de instituir novos heróis, mas de se desmontar a lógica da historiografia dos heróis e da hagiografia dos santos. Agora, parte-se de uma nova ética das relações micropolíticas, calcada em uma autoimagem de corpos fragilizados e abertos a estratégias de solidariedade.

Esse ponto é central, uma vez que a história da arte, assim como a história da política, pode ser retraçada como a história da construção de uma partilha na sociedade, levada a cabo sobretudo pelo dispositivo trágico, tal como ele já havia sido percebido e descrito por Aristóteles. Se para esse filósofo as paixões centrais despertadas pela tragédia são éleos e phóbos, compaixão e terror, o funcionamento do dispositivo trágico depende de conseguirmos calibrar os personagens e as situações passíveis de despertar essas paixões. Na definição mínima mas essencial da Poética aristotélica, lemos que a compaixão “tem lugar a respeito do que é infeliz sem o merecer, e o terror, a respeito do nosso semelhante desditoso”.[8] Este “nosso semelhante” constitui peça fundamental da argumentação: o dispositivo trágico revela-se, com esta noção, como um meio de construção e de formação do próprio. No centro do processo trágico espreita um mecanismo de criação de tipos que tanto agrega os “iguais” como permite a exclusão do “diferente”. Esse dispositivo secreta o “próprio” e o “outro”. Portanto, se o conceito de “purificação” e o de “pureza” rondam, como um espectro, este dispositivo, é também porque ele é este meio de traçar identidades grupais.

Não por acaso, as ações catastróficas por excelência que devem ser imitadas pelo poeta trágico são descritas por Aristóteles como as que envolvem a luta entre amigos e familiares. Daí notarmos nas tragédias a tendência para a apresentação da história de certas famílias, como a dos labdácidas. Isto não apenas torna as ações mais facilmente compreensíveis e terríveis, como mostra Aristóteles, mas também, ao propiciar terror e compaixão, reforça-se o culto destas famílias míticas e de uma origem fundadora. O dispositivo trágico estabelece fronteiras entre os que merecem compaixão derivada do terror e aqueles que produzem apenas terror sem compaixão. Toda uma política da amizade e da inimizade[9] pode ser traçada a partir da aplicação desse dispositivo que, vale lembrar, atua em praticamente toda obra de arte. Portanto, o desafio de criar obras artísticas voltadas para romper com o círculo vicioso no qual nos lança o dispositivo trágico exige uma reinstauração das fronteiras do campo artístico, de seus agentes e personagens. Como promover solidariedade sem reproduzir terror e ódio? Inspirados em Brecht e em Harun Farocki, podemos pensar em uma empatia não trágica, em uma solidariedade que agrega, mas mantém o “efeito de estranhamento”.

A própria precariedade, que é a marca da arte contemporânea – com o uso de materiais considerados não nobres, muitas vezes abjetos, e com sua temporalidade que amiúde tende ao efêmero da performance – é também marca de outra antropologia na qual essa nova arte da memória e do desesquecimento se calca.[10] Ou seja, esses novos dispositivos artísticos, que se insurgem contra a imagem do museu como arquivo que constrói a ontologia do próprio – ou, ainda, contra a ideia do museu como prisão (já criticada por Flusser) ou necrotério de imagens estanques –, que demandam diálogo com a sociedade, que instauram novas subjetividades e narrativas, atualizando passados de modo a instituir contranarrativas de resistência, essas obras clamam por mudanças políticas profundas. Não é de se admirar, portanto, se a censura e a violência contra artistas voltem com intensidade neste momento.

João Pedro e George Floyd: a repetição traumática

Concluo essas palavras sob o impacto dos recentes assassinatos de João Pedro Mattos Pinto, de 14 anos, ocorrido em São Gonzalo no dia 18/05/20, e o de George Floyd, de 46 anos, ocorrido em Minnesota no dia 25/05. Os dois foram mortos covardemente por integrantes de forças policiais e em situação de total vulnerabilidade. Estes dois eventos repetem a longa história de genocídios que é a Modernidade, desde a chegada dos europeus às Américas até os dias de hoje.

As obras de No Martins que fizeram parte da 21ª Bienal, da série #JáBasta!, podem ser lidas como uma contundente resposta a essa história da violência.

No Martins é parte de uma nova geração de artistas que compõe a contemporânea arte negra afrodescendente brasileira. Essa série #JáBasta! funciona como um catalizador para formular as demandas políticas antifascistas e contra a necropolítica que têm atuado sobre a população negra desde os tempos da escravidão. A impressionante força e originalidade da arte negra brasileira contemporânea responde à terrível ascensão de neo-fascismos que repetem hoje seus desígnios genocidas. Essa arte profundamente decolonial, produz uma ruptura da cumplicidade entre o “dispositivo estético” e o “dispositivo colonial”. Ela diz um basta ao cubo branco (por demais branco) e a todos os classicismos.

Não se pode mais falar de modo inocente de “democracia racial” ou comemorar nossa cultura “sincrética” e a “miscigenação” sem perceber o trauma que está na origem dessa hibridização. Com as mudanças profundas ocorridas no campo das artes nas últimas décadas do século XX ocorreu uma ascensão do sujeito, do agente da arte, que antes estava em parte submetido ainda ao campo da representação: ele era representado. Uma série de artistas afrodescendentes, quase todos formados em artes visuais, e coletivos artísticos passaram a interagir na cena cultural brasileira desse ponto de vista da virada decolonial, que No Martins nos apresenta. Esses artistas vão imaginar a negritude nos espaços da diáspora. Imaginar no sentido de criar imagens, mas também de criar um campo de ação lúdico e político.

O #JáBasta! deve ser ecoado por nós e traduzido em novas modalidades de vida em comum, nas quais a política do ódio e a necropolítica se tornem apenas parte de nossos livros de história e onde esse tipo de crime não possa mais acontecer. O fato do assassinato de João Pedro ter repercutido no Brasil de modo muito menos intenso do que ocorreu nos E.U.A. com o assassinato de George Floyd, mostra apenas o quanto ainda temos que trilhar nesse caminho de construção de uma sociedade autenticamente pós-colonial. A Empresa Colonial, lamentavelmente, ainda está forte e robusta por aqui.

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[1] Grada Kilomba. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019. p. 27.

[2] Walter Benjamin, Gesammelte Schriften. Vol. V: Das Passagen-Werk. Frankfurt am Main: Suhrkamp Verlag, 1982, p. 1233.

[3] Walter Benjamin, Gesammelte Schriften. Vol. I. Frankfurt a.M.: Suhkamp, 1974, p. 1243.

[4] Idem, p. 1244.

[5] Idem, p. 1243.

[6] Walter Benjamin, 1982, op. cit., p, 578. Tradução citada: W. Benjamin Passagens. W. Bolle e O. Matos. (Org.). (C. P. B. Mourão e I. Aron, Trad.). São Paulo: UFMG e Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2006, p. 505.

[7] Davi Kopenawa; Bruce Albert. A queda do céu. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

[8] Aristóteles, Poética, trad. Eudoro de Souza, São Paulo: Ars Poética, 1993, p. 67.

[9] Carl Schmitt pensou a política como tendo o par amigo-inimigo como sua pedra de toque em Der Begriff des Politischen [O conceito do politico] (1927/1932). Ele também teorizou a tragédia, como em seu livro Hamlet oder Hecuba. Der Einbruch der Zeit in das Spiel [Hamlet ou Hécuba. A irrupção do tempo no drama] (1956).

[10] Remeto aqui ao meu artigo “Antimonumentos: trabalho de memória e de resistência”, in Psicol. USP vol.27 no.1 São Paulo jan./abr. 2016, p. 49-60.


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