Nuno Ramos.
Nuno Ramos. Foto: Manoel Marques

Cerca de 20 mil tijolos caindo de uma carroceria de caminhão recebem os visitantes da mostra de longa duração Migrar: Experiências, Memórias e Identidades, no segundo andar do Museu da Imigração, na zona leste de São Paulo.

Os tijolos e a carroceria são parte da instalação É Isto um Homem?, de Nuno Ramos, artista acostumado a provocar o espectador como na histórica Bandeira Branca, a obra que mobilizou a opinião pública em torno da presença de urubus durante a 29ª Bienal de São Paulo, há seis anos.

A única obra de arte contemporânea no Museu da Imigração foi escolhida a partir de uma concorrência com duas artistas – Rosângela Rennó e Carmela Gross – e criada por inspiração do livro É Isto um Homem?, de Primo Levi (1919-1987), judeu e italiano sobrevivente de um campo de concentração. “Sou muito fã desse livro porque ele apresenta um debate ético sobre os limites da vida em uma situação hedionda”, conta Ramos à ARTE!Brasileiros durante a montagem de uma grande mostra no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) de Belo Horizonte, intitulada O Direito à Preguiça.

Reinaugurado há dois anos, o Museu da Imigração aborda os diversos fluxos migratórios que São Paulo recebeu desde o século XIX e, com a obra de Nuno Ramos, evita logo na entrada uma narrativa que mitifique a temática. “É sobre a carga que destrói”, resume Ramos. Compõe ainda a instalação uma vitrine de vidro contendo uma cadeira com um tijolo sobre seu assento de frente para uma caixa de som. Dela se ouve um trecho do livro de Levi em sete idiomas na voz do próprio artista – o som tem sido elemento recorrente nas obras de Ramos.

Para a execução da obra, o edifício histórico onde ele se encontra, construído a partir de 1886 para servir de hospedaria a imigrantes europeus, precisou passar por reforços estruturais. Não é incomum que obras do artista se tornem desafios de produção, já que faz parte de seu conceito trabalhar nos limites da matéria. Tem sido assim, aliás, desde os anos 1980, quando Ramos começou a pintar, acumulando tinta de forma tão exagerada nas telas que muitas dessas obras precisam de manutenção constante.

Seria essa poética uma forma de deixar o acaso agir na obra? “Acho que não. Basicamente eu tento liberar o material, mas sempre com certo controle”, explica Ramos. No caso de É Isto um Homem?, os tijolos caíram do caminhão por conta de uma torção provocada por macacos hidráulicos, operação que o artista já havia testado em outro lugar antes.

Ramos é desses artistas que reinventam seus procedimentos de forma constante. Aliás, poucos artistas visuais são tão multifacetados como ele. Escritor de vários livros – o premiado ÓJunco e O Pão do Corvo, entre eles; compositor – Mariana Aydar lançou no ano passado um disco só de composições suas; e ensaísta, Nuno Ramos se destaca por sua versatilidade.

“É isto um homem?”
“É isto um homem?”, vista da exposição no Museu da Imigração, São Paulo, 2014

A passagem de telas abstratas da década de 80 para obras com temática política é outro dos diferenciais de Ramos entre os artistas de sua geração, especialmente aqueles com quem dividia o ateliê da Casa 7  – Paulo Monteiro, Rodrigo Andrade, Carlito Carvalhosa e Fabio Miguez –, que, em 1983, passou a sediar a pintura paulista inspirada no neoexpressionismo alemão.

Nesse sentido, 111, instalação de 1992, criada logo após o massacre no Carandiru, representa a entrada de Ramos na arte que aborda questões da realidade sociopolítica do País.  Nela, cada vítima era representada por um paralelepípedo coberto por asfalto e breu e, em cada, uma impressão em clichê de chumbo informava o nome do morto, além de uma cópia de notícia de jornal sobre o episódio e cinzas de páginas queimadas da Bíblia. “Eu me impressionei muito com a fisicalidade da violência e busquei criar um memorial dela que não fosse literal”, explica.

Já Bandeira Branca, aquela feita para a 29ª Bienal, em 2010, foi criada em um período de euforia econômica brasileira, muito distinto do momento atual. A imensa instalação, selecionada pelo curador Moacir dos Anjos, colocava no centro do pavilhão da Bienal um cenário pós-apocalíptico, com volumes escuros e sombrios e os urubus ao redor, como se estivessem em meio a ruínas. Seria uma imagem perfeita para representar a tristeza dos dias de hoje. “Eu me orgulho de ter feito aquilo em um momento de otimismo histérico. Pena que o debate com os urubus tenha levado o trabalho para um discurso ecológico”, comenta.

Em abril, Ramos inaugurou no CCBB mineiro a mostra O Direito à Preguiça, tendo como peça central uma imensa instalação no pátio do edifício centenário  com andaimes metálicos que são usados como instrumentos de sopro. “O trabalho é a música”, diz ele.

Como em vários de seus trabalhos, Nuno Ramos parte do pensamento de outros intelectuais, e no caso agora é do genro de Karl Marx, Paul Lafargue (1842 – 1911), que escreveu o panfleto “O Direito à Preguiça”, em 1880, quando as jornadas de trabalho na França ultrapassavam 12 horas diárias. Hoje, por conta da internet e da constante troca de e-mails, novamente os horários de trabalho se estendem de forma abusiva, comentário inerente e irônico na nova instalação do artista.

Assim, os andaimes, típicos do ambiente de trabalho de construção civil, se tornam um objeto lúdico: um instrumento musical  – graças a um compressor que assopra ar nos tubos e toca de forma lenta O Samba de Uma Nota Só, de Tom Jobim e Vinicius de Moraes. Aqui, novamente, Ramos parte de elementos cotidianos, como os tijolos e a carreta, para transformar seu significado. “O meu lugar é onde a matéria vira sentido e o sentido vira matéria”, define.

Sem correr o risco da ilustração, O Direito à Preguiça se revela como um bom exemplo da estratégia poética de Nuno Ramos: “Não quero chegar no real como um valor, quero buscar aquilo que está escondido, onde nasce o que é essencial.”

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