Detalhe de escultura de Leonor Antunes em foto de Fernando Netto/MASP.

A exposição Leonor Antunes: vazios, intervalos e juntas em cartaz no Museu de Arte de São Paulo – Masp parece configurar à primeira vista um desafio ao erudito, mas vai além com um discurso complexo e provocador. As inúmeras referências às obras de arquitetos, artistas, designers do século 20, contidas na produção da artista portuguesa radicada em Berlim, dão corpo a uma espécie de arquivo sobre a produção de nomes fundamentais do experimentalismo moderno, entre eles Anni Albers, Charlotte Perriand, Franco Albini, Clara Porset, Egle Trincanato, Eileen Grey, Eva Hesse, Franca Helg, Gego, Lygia Clark e Ruth Asawa. Todos refletem a ruptura e criação de novos códigos nas artes e promovem indiretamente um encontro entre as suas produções.

Dentro dessa constelação, Lina Bo Bardi, arquiteta que assina o projeto do Masp, é o eixo central da mostra que se estende para a Casa de Vidro, no Morumbi, também projetada pela arquiteta e onde morou com seu marido, Pietro Maria Bardi. A curadoria é de Adriano Pedrosa e Amanda Carneiro em uma exposição que se destaca das demais em cartaz no museu por algumas singularidades. Instalada no primeiro subsolo, a mostra se conecta diretamente com o desenho de Lina: Vazios, intervalos e juntas é uma alusão aos espaços criados por ela em sua arquitetura e dá título à mostra. A peça Villa Neufer, uma escultura feita a partir de uma escada de Albini, abre a exposição. De uso cotidiano, mas com particularidades artísticas e de design, que Amanda denomina espaço vernacular e não canônico, a escada exibe cordas vermelhas que se referem aos trepantes de Lygia Clark e ao mesmo tempo dialoga diretamente com a emblemática escada vermelha de Lina que une dois pisos.

Os trabalhos de Leonor Antunes, em sua maioria, são verticais e geométricos e ocupam um espaço todo envidraçado onde as esculturas parecem flutuar. No piso, Planos em Superfície Modulada, 1952, pintura geométrica de Lygia Clark se dilata por todo o território da exposição. Esta obra marca o deslocamento da pintura para fora da moldura e dá início à sua famosa série Bichos. Pesquisadora apaixonada, na busca incessante de associações entre a produção de vários artistas, Leonor Antunes promove descobertas que se revelam ao longo da mostra. Albini, amigo e cúmplice de Lina no conceito do saber ver e fazer, aparece em vários trabalhos da artista. “Ambos são autores de experiências radicais no contexto italiano do pós-Guerra. Quer Albini, quer Lina viveram a idade adulta durante o regime fascista na Itália, o que lhes trouxe muitas oportunidades de experimentação em termos expositivos simbólicos”.

Dentro do repertório desses artistas há trabalhos que espelham uma contaminação que permite trocas e demonstram historicidade. Os biombos da entrada da sala são feitos a partir de detalhes de duas cadeiras: uma desenhada por Lina para o Masp, e outra por Albini para a Villa Neufer, na Itália. Uma das pernas da cadeira de Lina se funde à perna da cadeira de Albini. Há este tipo de associação, mas este é só um exemplo”. Desse recorte parcial, pode-se acompanhar alguns sistemas construtivos inventados pelos artistas. Chama a atenção um elemento ampliado a partir de uma peça que Lina viu na casa da cubana Clara Porset, no México. Leonor Antunes, em 2015, fez uma exposição na Kunsthale Basel, na qual ela associa a figura de Lina com a figura de Clara. Ambas têm percursos semelhantes, são mulheres que emigram para um outro país onde desenvolvem um trabalho extraordinário ligado ao mobiliário e ao desenho, envolvendo a comunidade indígena e a popular mexicana.

Leonor Antunes constrói peças que intervêm na arquitetura onde são mostradas e o recorte no Masp é desafiador. “Expor neste museu é uma das minhas conquistas. Quando o Adriano Pedrosa me convidou fiquei muito feliz, não só porque admiro e trabalho sobre o universo da Lina há anos, mas também porque o Masp respeita a herança da arquiteta, e a revê na contemporaneidade. Ali se faz um trabalho sério”. A montagem privilegiou a relação da arquitetura do museu com o exterior, abriu as cortinas e deixou a cidade entrar com sua luminosidade natural promovendo a articulação do coletivo e privado. “Como o edifício é tombado e não pude furar o teto, inseri umas grelhas de madeira embutidas dentro dos cubos da sala, como se já pertencessem ao local e daí pude suspender alguns trabalhos”.

A artista vive em Berlim desde 2005, cidade que ela considera responsável pela internacionalização de seu trabalho. “Se tivesse permanecido em Portugal teria sido muito difícil, ou mesmo impossível. Essa mudança foi fundamental na reestruturação do modo como geri minhas pesquisas e consegui materializar o meu trabalho”. Ela fala de uma metrópole desejada por artistas de várias áreas e países, onde muitos passam e alguns ficam e trabalham. “Hoje em dia, assim como em muitos outros lugares, é assustador assistir ao `renascimento` da extrema direita”. A artista tem posições ideológicas definidas sem se preocupar como o mercado de arte. Quando representou Portugal na Bienal de Veneza em 2019, chegou a declarar que se os partidos de direita PSD ou CDS estivessem no poder ela se recusaria a participar. “Minha escolha não é partidária e sim ideológica. Hoje Portugal é um dos poucos países que têm governo de esquerda. Não possui pavilhão próprio em Veneza, (como o Brasil), e a iniciativa de participar da bienal é do Ministério da Cultura, com orçamento muito reduzido”. Ela comenta que o pavilhão dos Estados Unidos é privado e caso fosse governamental nenhum artista que ela conhece representaria o governo de Donald Trump. Comento a falta de mobilização dos brasileiros e a discreta participação de artistas e intelectuais na luta por mudanças. “Os artistas são os primeiros a não se calarem diante de governos reacionários. A arte também é uma forma de demonstração de desencanto com o mundo, ou não. É muito triste o que se passa com o Brasil. Infelizmente a onda populista também atinge outros países e todos nós sabemos onde estão as fontes”.

Leonor Antunes: vazios, intervalos e juntas está em cartaz simultaneamente às exposições de Anna Bella Geiger e Gego e fecha o eixo temático Histórias das mulheres, histórias feministas, que ocorreu ao longo de 2019 no Masp.


Leonor Antunes: vazios, intervalos e juntas 
Até 12 de abril de 2020
Masp: Avenida Paulista, 1578

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