Embora não contemple os anos mais recentes, a mostra João Câmara – trajetória e obra de um artista brasileiro – em cartaz ate 20 de janeiro no Museu Afro Brasil – traz a oportunidade para que uma nova geração de paulistanos entre em contato com a produção do pintor pernambucano João Câmara, com obras de 1970 até o início dos anos 2000.
Além de apresentar o artista ao público mais jovem (sua última grande exposição em São Paulo ocorreu em 2004, na Pinacoteca), a exposição – com curadoria de Emanuel Araújo – faz sua obra figurativa emergir na capital paulista em um momento em que ventos sopram fortes em direção contrária à noção de que a “verdadeira” arte brasileira contemporânea deva ser necessariamente não figurativa e herdeira dos valores formais e/ou comportamentais supostamente (e somente) originárias das vertentes construtivas.
Hoje, apesar da resistência dessas correntes, mais e mais jovens artistas repropõem um tipo de produção figurativa em que as várias contradições da sociedade brasileira são descritas com um viés político acentuado e, em grande parte, apenas literal.
Para muitos, o binômio “arte e política” deve se manifestar por meio de vídeos, performances, mas sobretudo pinturas, em que a denúncia das mazelas do país tende a transformar suas produções em panfletos, libelos explícitos contra a barbárie que nos assola, deixando em segundo plano qualquer dimensão poética. Creio que muitos deles sintam um conforto grande produzindo obras desse tipo. O espírito juvenil que os embala parece torná-los satisfeitos com a denúncia pura e simples, com a marcação de um território em que a política quase sempre se sobrepõe à arte.
Todos eles estarão seguros desse posicionamento? Difícil dizer. No entanto, alguns colecionadores parecem adorar o que produzem esses rapazes e moças. E, apesar da crise que se abate sobre o mercado de arte, esses continuam produzindo e aqueles comprando. (Resta saber até quando).
É nesse contexto diferente, de recepção mais favorável dessa “nova nova figuração” que, aos poucos, se expande pelo mercado de arte local, que uma reavaliação da obra de João Câmara pode interessar. O propósito desses parágrafos, é claro, não é esgotar a questão, mas apenas levantar alguns pontos para discussão.
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Foram poucos os momentos em que a arte figurativa [1] e comprometida politicamente teve algum espaço mais relevante na história da arte no Brasil, pelo menos durante o século passado. Portinari, entre os anos 1930 e 1950, os clubes de gravura no pós-guerra e mais alguns poucos artistas, foram sendo devidamente colocados em segundo plano, sobretudo após o advento e rápido fortalecimento das vertentes não figurativas entre nós. A partir dos anos 1960, apesar do rápido apogeu (e imediata crise) da “nova-figuração”, a arte figurativa no país e, dentro dela, aquela de viés político, foi cedendo espaço para as vertentes construtivas e informais e, logo depois, para aquelas de cunho conceitual/comportamental.
É claro que os artistas figurativos permaneceram, mas poucos se mantiveram com alguma visibilidade na corrente principal da arte brasileira contemporânea (mesmo aqueles surgidos com a “volta à pintura” dos anos 1980). Os que sobraram atuaram ou foram percebidos mais como artistas pertencentes a determinadas regiões do Brasil, apenas uma vez ou outra obtendo alguma recepção menos preconceituosa. Como exemplos poderiam ser citados Antonio Henrique Amaral, de São Paulo, Humberto Espínola, do Mato Grosso do Sul e o próprio João Câmara, de Pernambuco.
Por que esse fenômeno? Antes de procurar as razões na própria produção desses artistas, talvez seja mais produtivo, num primeiro momento, examinar o ambiente formado com o que foi entronizado como “a” arte brasileira contemporânea – o que remeteria a conversa aos anos 1950, às bienais de São Paulo e aos artistas surgidos em São Paulo e no Rio de Janeiro no âmbito das vertentes construtivas.
O concretismo, o neoconcretismo e a vertente paulista posterior ao concretismo, o popcreto [2], e, concomitante, os desdobramentos do neoconcretismo, significaram, de fato, uma grande ruptura com a arte modernista da primeira metade do século passado, colocando alguns dos artistas ligados a essas vertentes no âmbito da “grande” arte internacional do pós-guerra – uma construção produzida, como se sabe, por membros do circuito hegemônico da arte, cuja capital se tornou Nova York.
Possuir artistas desse calibre entre nós parece ter significado, para muitos setores da crítica do Sudeste brasileiro, projetar também uma imagem singular da arte e da cultura brasileiras: ao mesmo tempo em que podíamos espelhar nossos artistas no que supostamente de melhor se produzia em termos de arte nos centros hegemônicos, a arte aqui realizada, por outro lado, podia ser retirada do que então apressadamente se entendia como sendo “arte latino-americana”: uma produção figurativa, “mágico-realista”, folclórica e/ou política (excetuando-se, é claro, os construtivos argentinos e venezuelanos e esquecendo-se, deliberadamente ou não, das vertentes conceituais do continente).
O surgimento das vertentes citadas, com artistas tão expressivos, levantava, portanto, a possibilidade de se pensar em uma “arte internacional brasileira” que, ao mesmo tempo em que se alinhava à arte internacional mais de ponta (afastando-se do “folclorismo latino-americano”) buscava impor-se sobre todas as outras possibilidades de produção de arte no país. Não se deve esquecer que essas vertentes, embora surgidas em São Paulo e no Rio, eram formadas não apenas por artistas paulistas e cariocas, mas por outros artistas vindos de diversos estados brasileiros – o que reiterava o caráter “nacional” da empreitada, em contraposição a qualquer reconhecimento de vertentes regionais da arte produzida no país (questão ainda presente, como será visto, no debate artístico do período).
No entanto, essa aversão que então se constituía contra toda a produção figurativa regionalista ou que lembrasse o “realismo mágico” do continente, teve um sobressalto ainda nos anos 1960. Para ser mais exato, em 1967, quando João Câmara ganhou o Grande Prêmio da edição daquele ano do Salão de Brasília, desbancando ninguém menos do que Hélio Oiticica, um dos maiores artistas brasileiros.
Sobre o embate entre aqueles jurados que defenderam Oiticica e os outros que lutaram e conseguiram que Câmara o vencesse, assim se pronunciou o crítico e presidente do júri daquele Salão, Mário Pedrosa:
O júri do IV Salão de Arte Moderna do Distrito Federal, ao deliberar sobre a concessão do Grande Prêmio regulamentar, deparou-se com alguns nomes de artistas que se impuseram de imediato, ao seu julgamento. De um lado, Hélio Oiticica; de outro, o grupo de pintores pernambucanos (…) Hélio Oiticica, artista carioca de profundas raízes urbanas, representa a vanguarda, em suas invenções originais e aberturas experimentais mais desinibidas, sendo também considerado, hoje, um dos pioneiros do mundo da arte ambiental e sensorial. O júri não podia deixar de cogitar seu nome para o Grande Prêmio. Em face dele, a representação pictórica de Pernambuco traz uma nota nova ao Salão: Câmara, contribuindo com a pintura brasileira com um elemento que faltava: o vigor descritivo do protesto social (…). O júri decidiu conferir o Prêmio a Câmara pela violência e agressividade de sua mensagem pictórica, em si mesma de autêntica plasticidade.[3]
É interessante perceber que, frente à necessidade de enfrentar a situação política convulsiva do Brasil naquele ano de 1967, como visto, o júri do Salão do Distrito Federal foi levado a optar, em primeiro lugar, entre um indivíduo – “Hélio Oiticica, artista carioca de profundas raízes urbana” – e a pintura supostamente regional que então se praticava no estado de Pernambuco. E, dentro dela, pelo “vigor descritivo do protesto social” contido na produção de Câmara, aliado – como Mário Pedrosa deixa claro – ao caráter violento e agressivo da pintura do artista, uma pintura, cuja mensagem, em si mesma, possuía “autêntica plasticidade”.
No texto de Pedrosa se opõem, portanto, o indivíduo (Oiticica) a uma coletividade (a pintura pernambucana); o Sudeste (“Hélio Oiticica, artista carioca”) ao Nordeste (a pintura pernambucana), o experimentalismo (Hélio Oiticica) e a tradição (a pintura pernambucana). Frente ao dilema, ganha a tradição da pintura nordestina, “regionalista”, contra o experimentalismo do artista carioca, com “profundas raízes urbanas” – uma peleja que mereceria receber, um dia, maiores aprofundamentos.
Sem discutir se, apesar da situação do país, o júri deveria, mesmo assim, conferir a Oiticica o Grande Prêmio do Salão, creio que o importante aqui é salientar como Pedrosa, em sua justificativa sobre a concessão do prêmio a Câmara, sublinha um dado que caracterizará toda a produção do artista: o fato de que, tanto o protesto social, quanto a violência e a agressividade percebidas em suas pinturas estão imbuídos de uma “plasticidade inequívoca”, ou seja, algo que poderia ser traduzido como uma lógica interna que retira de sua produção qualquer resquício de superficialidade, de mera ilustração de um tema extraquadro. A realidade ou o fato que é retirado do real para ser transportado à pintura, acaba sendo submetido a uma ordem pictórica intrínseca, criada pelo artista, que a torna absolutamente necessária para realizar-se enquanto pintura.
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Se as vertentes construtivas e informais passaram ao largo da poética constituída por João Câmara (e por vários outros artistas surgidos por todo o país), isso não significa, obviamente, que ele se manteve ilhado, sem deixar-se impregnar por outros parâmetros e procedimentos da arte do século XX. O que parece ter ocorrido com a poética do artista é que ela foi sendo constituída a partir de diálogos internos entre influxos vindos de certos procedimentos e estratégias ligadas às vertentes surgidas a partir do Surrealismo, questões de algum modo presentes também na cultura visual de Pernambuco e do Nordeste, notadamente as gravuras populares.
Imagens míticas, hieráticas, sempre recortadas e “coladas” sobre um plano tendente à monocromia, por exemplo, são procedimentos comuns, tanto em uma como em outra das matrizes do artista. O uso de formas humanas truncadas, a apropriação de imagens prontas e a justaposição das mesmas sem conexões aparentes igualmente povoam o imaginário popular do Nordeste e de muitos surrealistas internacionais – procedimentos que João Câmara lança mão para produzir suas enigmáticas alegorias da cena brasileira.
Essa capacidade do artista em lançar mão de uma série de estratégias, das mais diversas origens, para conferir densidade orgânica entre forma e conteúdo (digamos assim), é onde parece residir aquilo que Pedrosa denominou como sendo a “autêntica plasticidade” da pintura de Câmara.
Na exposição do artista no Museu Afro Brasil, o visitante irá se deparar com inúmeras obras em que esses procedimentos são testados e desenvolvidos para a criação de enigmas imagéticos, mesmo quando, aparentemente, sugerem referências explícitas a momentos históricos específicos.
Nela há uma obra em especial que pode ser considerada uma chave importante para uma compreensão mais ampla sobre a poética de Câmara. Trata-se de Outro troféu, uma litografia/colagem produzida ainda nos anos 1980 em que o artista explicita uma dimensão experimental em sua obra que acaba por ser em grande parte eclipsada (por um olhar menos atento, é certo) quando transplantada para as pinturas. Refiro-me ao jogo entre o desenho – uma abstração – e a colagem de um tecido real, dois universos (representação e realidade) que se justapõem arbitrariamente e que na pintura ganharão uma falsa e insidiosa naturalidade.
E é justamente nesse falso naturalismo, nessa falsa fidelidade ao real que reside o interesse da obra de João Câmara. É exatamente nesse lugar que o artista foge da pecha de ser um “escritor que pinta”. Como mencionou Pedrosa em 1967, a virulência e agressividade da produção de Câmara está centrada na plasticidade de sua obra, na sua capacidade de traduzir para o universo da pintura, na sua capacidade de subjugar ao universo da pintura, a realidade que o incomoda e o motiva a pintar. Não é necessário gostar das gravuras e da pintura de Câmara, é preciso apenas observá-las na singularidade que elas reclamam para si.
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Por tudo isso é que uma visita à exposição do artista no Museu Afro Brasil torna-se importante para os jovens artistas (mas não apenas eles), para aqueles que acreditam que a arte politizada deva ser mais política do que arte. A obra de João continua incomodando a muitos? É claro que sim. Parece que para alguns, uma produção que insiste na pintura e, ainda por cima, numa pintura com “temas” políticos e existenciais – em pleno século XXI! – deva ser banida do universo da “grande” arte brasileira contemporânea. Ledo engano. Gostemos ou não, esse tipo de pintura parece voltar com força, e com o rancor daqueles que foram recalcados por décadas. É neste sentido que a obra de Câmara pode servir como um forte antídoto aos enganos do recalque, pois mostra que a arte não é apenas aquilo que se vê, é um pouco mais.
[1] – Estou ciente de que existem enormes diferenças entre os vários tipos de “arte figurativa” na história da arte brasileira, assim como, é claro, na produção internacional do século XX e XXI. No entanto, para essa conversa, me detenho apenas no fato de que todas operam a partir de signos reconhecíveis. É esta a característica que as une, pelo menos aqui neste texto. As questões que as separam de maneira irremediável talvez possam vir a ser tratadas em outro artigo.
[2] – Embora pensado por Augusto de Campos para se referir à produção de Waldemar Cordeiro do início dos anos 1960, tendo a inserir no popcreto não apenas Cordeiro, mas igualmente Nelson Leirner, Maurício Nogueira Lima e outros. Mas este é um assunto para uma outra conversa.
[3] – “A estranheza de João Câmara”, Tadeu Chiarelli, in CÂMARA FILHO, João. João Câmara, Trilogia. São Paulo: Takano Editora, 2003 v. 1. Pág. XIV. Apud: LOPES, Almerinda da Silva. João Câmara. São Paulo: Edusp, 1995, pág. 36.