Realizado no dia 21 de outubro, em São Paulo, o seminário Gestão Cultural: Desafios Contemporâneos discutiu questões essenciais sobre gestão nos tempos atuais, em um contexto de crises política e econômica vividas no país. Dividido em duas mesas, o evento foi apresentado e mediado pela diretora editorial da ARTE!Brasileiros, Patricia Rousseaux, que destacou em sua fala de abertura alguns dos temas que pautaram o debate.

“Questões teóricas, jurídicas, econômicas e políticas sempre formaram parte de programas acadêmicos e debates. Porém, a precarização dos investimentos estatais, a aceleração das mudanças socioculturais, a discussão sobre questões ambientais e migratórias, a ascensão do debate sobre nossa história colonial, as questões de gênero e os movimentos de intento de censura às liberdades de expressão têm feito da cultura um palco quase primordial de manifestações”, afirmou Rousseaux. “Esta situação apresenta verdadeiros desafios aos gestores e diferentes agentes da cultura e da arte contemporânea. É necessária uma extraordinária flexibilidade, uma visão ampla, democrática e ética capaz de entender as exigências do debate nas instituições públicas e privadas”, completou.

A primeira mesa, que contou também com a participação de Fabio Szwarcwald, diretor-presidente da EAV Parque Lage, e Jochen Volz, diretor da Pinacoteca de São Paulo, começou com a fala de Eduardo Saron, diretor do Itaú Cultural. “Em um momento tão desestabilizado da nossa política nacional, um momento tão conservador – para não usar uma palavra mais dura –, eu tendo a não querer debater onde está o erro do lado de lá, mas sim pensar no que nos permitiu chegar neste momento. Alguma coisa deixamos de fazer para que a sociedade nos visse de uma forma não tão meritória”, afirmou Saron.

Segundo ele, ao mesmo tempo em que a sociedade questiona a necessidade de investimento público em cultura e o governo tenta criminalizar os artistas, “o mundo da cultura poucas vezes atravessa a rua para estabelecer empatia com o outro campo”. A partir deste diagnóstico, Saron propôs uma análise do que aconteceu no Brasil nos últimos 20 anos, período em boa parte caracterizado por um crescimento econômico centrado no boom das commodities e no fortalecimento das estatais como patrocinadoras da cultura.

“E predominou uma política muito centrada na questão da democratização do acesso. Essa era a ideia chave quando Lula assume, por exemplo”. Deste ponto de vista, “girar a catraca” tornou-se um grande indicador de relevância cultural, com muitos projetos pautados no que Saron chamou de espetacularização. Foi também o período de construção de muitos novos edifícios culturais, em certo detrimento do descuido com prédios históricos e espaços já existentes.

O discurso da democratização acabou por legitimar a cultura como “instrumento e mecanismo”, não como fim em si. “E não soubemos dar o salto sobre qual o verdadeiro papel das artes na transformação da sociedade.” Para Saron, a cultura por si mesma deve se localizar como um campo de transformação, e para isso a democratização não basta. Entra aí a palavra “participação”, que ao propor “um campo onde trazemos o indivíduo para a atuação, a gente deixa de se colocar como instrumento e amplia a nossa compreensão no papel da cultura na construção do pensamento humanístico, sob a perspectiva da democracia cultural”.

“E aí o referencial passa a ser a fruição – o prazer do outro no contato com a arte –, o fomento – uma política para as artes no país – e a formação – que é o cerne do nosso papel como transformadores de uma sociedade.” Deste modo, arte e cultura podem enfrentar diversos dos problemas da sociedade, como educação e segurança pública, com uma potência e velocidade maiores do que outras políticas públicas, inclusive com custos menores, concluiu ele.

Após a fala de Saron, Fabio Szwarcwald contou um pouco sobre seu trabalho à frente da Escola de Artes Visuais do Parque Lage, no Rio de Janeiro, onde está desde 2017. O economista e colecionador, que trabalhou em bancos por 22 anos, assumiu a direção da EAV após alguns anos em seu conselho, e em um período de profunda crise na instituição com a retirada de repasses financeiros do Estado.

“A EAV foi fundada durante a Ditadura Militar, então ela já tem esse DNA de um lugar de resistência, de luta. Ela foi criada pelo Rubens Gerchman como um contraponto às escolas academicistas que existiam. Então somos uma escola livre desde o princípio e entendemos que para ser livre a escola precisa conseguir se bancar, pagar as próprias contas”, afirmou. “Então todo o meu trabalho foi para resgatar essa autonomia, essa liberdade de atuação tão importante nos dias de hoje”.

O economista contou que, neste intuito, a EAV focou em uma reaproximação com o público, além de reforçar a atuação da associação de amigos responsável pela administração financeira da Escola. “E a ideia era abrir a escola o máximo possível porque, como disse o Saron, muitas vezes nós que trabalhamos com arte falamos apenas para nós mesmos. E nós tínhamos que nos abrir para a periferia. Quer dizer, se abrir para a sociedade porque é ela que vai nos dar a força de resistência, de manutenção e mesmo de apoio financeiro.”

Através de patrocínios; noites beneficentes; da inserção da EAV nas feiras ArtRio e SP-Arte, com obras cedidas por vários artistas; de uma parceria inédita com a Universidade Candido Mendes, trazendo o curso pago de curadoria; e da criação de duas lojas, a EAV pôde se reerguer. Neste ano, a instituição aprovou também um plano anual de R$ 8 milhões na Lei de Incentivo à Cultura. “Isso tudo foi muito importante para resgatar o programa de formação, gratuito, e fundamental para o desenvolvimento dos nossos alunos. E nós queremos cada vez mais trazer esses estudantes que não teriam condições de pagar um curso”.

Ao aceitar receber a exposição Queermuseu – encerrada após campanha difamatória no Santander Cultural de Porto Alegre e censurada por Marcelo Crivella no MAR –, o Parque Lage organizou uma campanha de financiamento coletivo que captou mais de 1 milhão de reais para montar a mostra. “Isso revelou também a revolta da sociedade de ver, em pleno 2017, uma exposição com 250 artistas sendo censurada no Brasil”, afirmou Szwarcwald.

O diretor falou ainda sobre o programa de formação para professores de escola pública, sobre o Parquinho Lage, com aulas para crianças, e as parcerias extramuros, com aulas em áreas periféricas do Rio. “A gente começou 2017 com 600 alunos e esse ano temos mais de 6 mil, sendo 90% de forma gratuita”, resumiu ele sobre os números da EAV. “As pessoas eram muito saudosistas da escola na geração de 1980, do papel dela no passado, e agora a gente voltou a ser visto, frequentado, em decorrência de um trabalho de encarar os desafios, saber das dificuldades e traçar novos objetivos”, concluiu.

Por fim, o curador e diretor da Pinacoteca de São Paulo, Jochen Volz, iniciou sua apresentação citando um dado curioso para os tempos atuais, que mostra que nos primeiros seis meses de 2019, 30 museus brasileiros tiveram um aumento de 30% de público. “Isso é extremamente interessante porque vai um contra o que a gente poderia esperar neste momento de crise. Então para mim, em um museu como a Pinacoteca, é preciso tentar entender que tipo de situação estamos vivendo e como reagir a ela.”

Segundo ele, em tempos de radicalização, nos quais tudo é polar e dual, pode-se perceber também “uma coisa que é o contrário disso, algo que o Guilherme Wisnik descreveu de modo muito bonito no livro Dentro do Nevoeiro. Que é aquela grande neblina, em que a gente percebe que tudo que sabíamos talvez não seja mais suficiente”, disse Volz. “E que estamos no momento em que as narrativas que achávamos que eram lineares não bastam, pois há muitas histórias, não apenas uma.”

Para o curador, o desafio atual vai além de questões finanças e gestão, e centra-se especialmente na relação com o público. “É o público quem vai nos proteger.” A partir destas constatações, Volz discorreu sobre uma exposição especifica apresentada este ano na Pinacoteca, intitulada Somos Muit+s: Experimentos sobre coletividade, que partiu do questionamento sobre como criar maneiras de refletir junto ao público – “inclusive com aqueles que estão do outro lado da rua e viraram as costas para a cultura”. “Porque a gente acredita que o lugar da arte é o de gerar imaginação sobre outras formas de viver junto, outras formas de imaginar uma convivência democrática.”

A exposição partiu da obra e do pensamento de duas figuras históricas chaves para se pensar a participação na arte: Joseph Beuys e Helio Oiticica. “O Beyus já falava nos anos 1970 que a arte não é um meio para algo, ela é o lugar da imaginação. Ela tem um valor econômico não pelo que ela rende, mas porque a criatividade tem um valor econômico em si”, disse o curador, destacando que a construção de uma vida cultural deve passar por um processo coletivo de participação.

A partir das obras dos dois artistas históricos, a mostra reuniu outros trabalhos contemporâneos, entre eles o de Rirkrit Tiravanija – Untitled 2019 (demo station n.7) –, que ocupou o octógono da Pinacoteca com “um palco aberto, alto demais, disfuncional, que de baixo não dá para ver nada. Mas para quem está em cima a vista é maravilhosa”, contou Volz. “Então há uma inversão de papeis, é um trabalho que fala muito mais sobre poder, sobre as relações entre ‘nós juntos’.”

Para atuar neste palco, a Pinacoteca chamou artistas e coletivos como o Legítima Defesa, o coro da Casa do Povo e o JAMAC, entre muitos outros. “Tivemos ao todo 90 apresentações, com quase mil pessoas ativamente participando. E não é de números que estou tratando, mas de uma proposta para pensar sobre quem é que tem espaço para falar nesta instituição. A ideia de pensar quem tem o poder, romper os privilégios, pensar sobre quais vozes precisam conquistar esses espaços”, seguiu Volz.

Isso significa, segundo ele, que instituições como a Pinacoteca precisam se colocar nesta posição de ouvir, de escutar, de celebrar a diversidade e “de entender que talvez nosso privilégio é poder oferecer um palco aberto”. “Se não conseguirmos criar essa identificação, como é que, caso as situações políticas ou de censura apertem ainda mais, vamos acreditar que seremos defendidos pelas pessoas, inclusive as que não costumam se interessar por cultura?”, concluiu o curador.

Artistas beneficiados por boas gestões

Após o debate com os gestores de instituições, a segunda mesa do seminário reuniu dois artistas, Gabriela Noujaim e Jonathas de Andrade, e duas especialistas em gestão cultural e soluções criativas, Ana Carla Fonseca e Katia Araújo de Marco Scorzelli. Primeira a falar, Noujaim, que é graduada em gravura pela Escola de Belas Artes da UFRJ, contou sobre a importância dos cursos gratuitos que realizou ao longo dos anos na EAV Parque Lage, com professores como Dionísio del Santo, Evany Cardoso, Anna Bella Geiger e Fernando Cocchiarale. “Foram fundamentais para a minha formação como artista. E se não fossem gratuitos eu não teria como fazer”, destacou.

Além de apresentar seu trabalho, que lida com corpo, memória e ancestralidade e levanta questões políticas sobre as causas indígenas e ambientais, Noujaim adentrou o tema da gestão cultural ao falar sobre sua experiência de dez anos com projetos patrocinados pelos centros culturais do Banco do Nordeste. Através da instituição, a artista realizou mais de uma dezena de projetos na região. “Foi fundamental para conhecer o interior do país e a nossa cultura”.

“Esses centros culturais, diretamente ligados ao governo federal, também apoiam alguns pontos de cultura em cidades menores. E atualmente estão enfrentando muitas dificuldades, estão em risco”, contou. “E eu considero fundamental a permanência destes centros, porque nessas cidades são o único movimento cultural existente, que fornece acesso à teatro, cinema, arte contemporânea e oficinas de arte gratuitas.”

O segundo a falar foi o artista alagoano Jonathas de Andrade, que ressaltou a importância das bolsas, incentivos e residências em sua trajetória. “Tenho total clareza de que se eu estivesse começando nessa conjuntura atual, teria muito mais dificuldade em me desenvolver como artista”, afirmou, se referindo ao que chamou de um “processo de sucateamento e de desmonte cultural que vivemos hoje no Brasil”.

Jonathas, que participou da 7a Bienal do Mercosul, da 32a Bienal de São Paulo e fez residências em vários países, contou sobre sua trajetória nas artes iniciada ao final do curso de Comunicação Social na UFPE. Sua primeira exposição de fotografias, montada na Fundação Joaquim Nabuco após um processo de seleção para jovens artistas, resultou também em uma publicação financiada pelo Funcultura. “Naquele momento, em que eu estava tentando me entender como artista, todos os incentivos, bolsas e possibilidades públicas foram fundamentais no desenrolar das coisas.”

A primeira mostra de Jonathas em São Paulo, por sua vez, aconteceu no próprio Itaú Cultural, e ao longo dos anos artista contou com apoios do Banco Real, da Funarte e de bienais, entre outros. “E isso me faz pensar que é urgente que tanto as instituições quanto as empresas que tenham condições desenvolvam programas voltados para as artes”. “Nesse momento crítico temos desastres ecológicos, genocídios e uma série de questões urgentíssimas. Mas, para pensar a cultura como um articulador disso tudo, para dar fôlego de verdade para esse país, eu acho que apoiar as artes também é urgente, porque estamos lidando com memórias que persistem”, concluiu.

Cases de gestão

A apresentação seguinte foi de Ana Carla Fonseca, mestre em administração e doutora em urbanismo pela USP, assessora para a ONU e o BID em economia criativa e cidades. Ela falou especialmente sobre seu trabalho com a Garimpo de Soluções, empresa que comanda ao lado de Alejandro Castañé, voltada para a economia criativa, soluções de negócios e desenvolvimento de cidades.

Fonseca apresentou cinco exemplos de projetos desenvolvidos ou que tiveram acompanhamento da empresa, entre eles o concurso realizado para selecionar identidades visuais inovadoras para as sardinhas em Lisboa. O processo, que exemplifica como é possível trabalhar com as tradições e com o patrimônio intangível de um lugar de forma original, repercutiu de diversos modos na economia local. Uma antiga empresa de cerâmicas, por exemplo, passou a produzir louças estampadas com as ilustrações selecionadas no concurso, criando um novo e rentável ramo de mercado.

Fonseca falou ainda sobre o trabalho da empresa cubana Habaguanex, que por mais de 20 anos ajudou a revitalizar edifícios da região histórica de Habana Vieja a partir de um projeto cuidadoso de gestão patrimonial; de uma pizzaria no México que criou um modelo híbrido de negócio, no qual a cada cinco pedaços de pizza vendidos a empresa destina um para moradores de rua com problemas com drogas; e de uma empresa chilena que, trabalhando simultaneamente com ancestralidade e tecnologia, criou caixas de som feitas em estrutura de barro, a partir de técnicas tradicionais.

Última participante a falar, Katia de Marco apresentou resumidamente o trabalho da Associação Brasileira de Gestão Cultural (ABGC) – que além do foco no ensino assume um papel de militância em causas culturais –, da qual é fundadora e presidente, e levantou questões sobre os desafios contemporâneos. Katia, que é também coordenadora da pós-graduação em estudos culturais e sociais na Universidade Candido Mendes e diretora do Museu Antonio Parreiras (Niterói), destacou as diferenças marcantes entre as duas primeiras décadas do século 21 no que se refere ao campo cultural no Brasil.

“Nós começamos o século de uma maneira muito promissora, com muitas esperanças, tendo esse binômio cultura e desenvolvimento de uma maneira muito aberta e muito livre”, afirmou. “A cultura surgiu nesse momento em sua dimensão ampliada, interagindo com diversas camadas do conhecimento, da vida instrumental, no intercâmbio com a economia, como suporte de políticas de desenvolvimento, como canal de comunicação entre diversos campos.”

No Brasil, segundo ela, isso foi refletido no trabalho do Ministério da Cultura, pautado em uma visão humanística e social. A partir daí ela traçou um panorama de algumas ideias, conceitos e eventos que ilustraram esse período, num contexto de falência do modelo neoliberal no fim do século 20. Com a realização de diversos encontros e a concretização de acordos internacionais, emergiram conceitos que passam pelas ideias de sustentabilidade, tecnologia, gestão, cidadania, bem-estar e inclusão. Nesta transição aparece também uma necessidade de atuação e empoderamento da sociedade civil, como explicou a presidente da ABGC. “Isso antes do apagão humanístico que estamos vivendo nessa segunda década”, comentou.

Considerando as questões sociais, ambientais e políticas que percorreram essas duas décadas do século 21 e desembocaram no obscuro quadro atual, surgem fenômenos como a escassez dos recursos, o crescimento caótico das cidade, o terrorismo, os fluxos migratórios e a ascensão da extrema-direita. “E nesse cenário, para pensar o futuro do planeta é preciso criar saídas, alternativas, novas institucionalidades, novos modelos de negócio e conceitos”, afirmou a professora. As respostas, muitas vezes, partem dos artistas, “se pensarmos que a arte é como um radar que antevê e ao mesmo tempo reflete o seu tempo”.

“Uma coisa que parecia impensável, e que estamos vivendo, é esse autoritarismo com apelo à censura na arte. E isso está impactando tanto o meio cultural porque no Brasil cerca de 70% dos equipamentos culturais estão atrelados à gestão pública, aos governos. E aí a gente para pensar que talvez seja hora de se desatrelar um pouco do Estado, criar mecanismos de uma autonomia nas instituições artísticas”, defendeu Katia. Surgem soluções como os fundos patrimoniais, por exemplo, entre outras alternativas para “esse momento em que não temos mais aquela atmosfera da primeira década deste século, da cultura sendo expressa em políticas culturais inclusivas e de socialização”, concluiu.


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