Um dos assentos retirados do Pacaembu, agora à venda como um móvel na TokStok/Foto: Divulgação
Um dos assentos retirados do Pacaembu, agora à venda como um móvel na TokStok/Foto: Divulgação

Na última quarta-feira (27), a controversa concessão do Estádio Municipal Paulo Machado de Carvalho, o Pacaembu, teve mais um desdobramento no mínimo insólito: de um conjunto de 8 mil assentos, 600 foram transformados em cadeiras e banquetas pela TokStok, com preços que chegam até quase R$ 1800. Os itens foram doados à loja, e a renda será revertida para a fundação Gol de Letra. Logo após o anúncio da comercialização dos assentos, houve uma saraivada de críticas na internet.

“Não há nenhuma bondade aqui. Isso é fazer caridade com o chapéu alheio, no caso o chapéu do meu, do seu, do nosso Pacaembu”, escreveu Deborah Neves, em sua conta numa rede social. Doutora em História e especialista em Patrimônio Cultural, Deborah afirma que “as cadeiras […] se tornaram objeto de desejo”, “um ativo que poderá ser vendido pelo valor do fetiche”, enquanto “a concessionária privada […] está dragando o Pacaembu, esvaziando seu sentido, seu valor e deixando apenas o simulacro de um dos mais importantes estádios do País”.

Para urbanistas ouvidos pela reportagem, a doação dos assentos, que são bens públicos, de um patrimônio tombado por órgãos do Estado e do município, deveria ter ocorrido diretamente para uma entidade sem fins lucrativos, que decidiria a sua destinação. O repasse imediato ao setor privado permitiu que uma marca realizasse, a partir da iniciativa, uma ação de marketing, com uma roupagem de responsabilidade social. Uma crítica que reverbera outra passagem do texto de Deborah Neves: “A Fundação Gol de Letra deveria recusar essa reversão e cobrar que as pessoas doem diretamente sem dilapidar a história, a memória, a honra e o patrimônio do futebol”.

Diretor geral da Gol de Letra, Sóstenes Oliveira conta à arte!brasileiros que a fundação foi procurada em junho, não pela Allegra ou pela TokStok, mas pela agência de publicidade da empresa de decoração. “Fomos consultados pela DPZ se toparíamos participar. Naquele momento, havia ainda a possibilidade de que mais de uma entidade fosse beneficiada. A gente jamais iria atrás da Allegra ou coisa parecida, mas nós aceitamos. Enquanto convidados, e como não entendo os meandros do contrato de concessão, achamos bonita a iniciativa de dar uma utilidade, com apelo estético, ao que iria ser descartado. É claro que se trata de uma ação também de marketing, e que isso beneficia a marca”.

Após o anúncio feito ontem (28), de que o vereador Celso Giannazi (PSOL) acionou o Ministério Público paulista e o Tribunal de Contas do Município de São Paulo contra a venda, Oliveira consultou advogados, que consideram “a campanha um ato com base legal”. A verba, segundo ele, será destinada a projetos e programas da fundação, que acontecem no Rio de Janeiro e em São Paulo.

A reportagem procurou a Allegra e a TokStok para esclarecer a linha do tempo e os critérios para a doação e a avaliação dos assentos, assim como detalhes do processo de adaptação deles para móveis, mas não obteve essas informações. A concessionária afirmou, por meio de sua assessoria de imprensa, que a avaliação ocorreu “entre janeiro de 2020 e agora”, e ressaltou que não eram itens originais, mas sim “assentos que foram implantados nos anos 1990 e seriam descartados no processo de reforma das arquibancadas leste e oeste”, o que não subtrai deles o caráter de bem público, tampouco seu valor como memória do patrimônio. Comunicou ainda que seu porta-voz está fora do Brasil até o dia 5/8 e não ofereceu uma alternativa para entrevistas.

Já a empresa de decoração, também via assessoria, não indicou um representante, afirmando que iria apenas “seguir o posicionamento oficial, feito em conjunto com a Allegra”. Ambos divulgaram uma nota em que qualificam a ação como uma “iniciativa socioambiental” e ressaltam que “não há qualquer restrição legal ou contratual”. A Prefeitura de São Paulo, por meio da Secretaria Municipal de Esportes (SEME), confirmou a ausência de restrições, declarou que cabia à Allegra “realizar a destinação e/ou descarte dos materiais e equipamentos existentes no Complexo do Pacaembu” e que “o reaproveitamento das cadeiras evitou seu descarte, dando a elas um novo propósito.”

Em entrevista à arte!brasileiros, Margareth Matiko Uemura, coordenadora do Instituto Pólis, organização da sociedade civil (OSC), de atuação nacional sobre questões relacionadas ao direito à cidade, considera que doar algo público para o privado é “muito estranho”, que a cessão dos assentos deveria ter sido feita diretamente a uma entidade sem fins lucrativos, como a própria Gol de Letra, não para uma empresa privada.

“A concessão não deveria permitir o desfazimento do patrimônio público. Afinal, o poder público não está doando aqueles bens, a concessionária não pode fazer o que quer. As concessões são longevas, mas, ao fim, o patrimônio volta ao poder público. No caso agora do Pacaembu, voltará sem essas cadeiras. É uma questão relevante, e as regras devem ser claras no processo de concessão e para a população”, afirma a arquiteta e urbanista.

A controvérsia anterior

A venda dos assentos é mais um episódio do controverso processo de concessão do estádio, do qual a Allegra saiu vencedora em janeiro de 2020, quando assumiu a gestão do Complexo Esportivo do Pacaembu por 35 anos. Até então sob gestão da prefeitura, o equipamento público, inaugurado na década de 40, havia sido tombado em 1988 pelo Conpresp (Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo) e, em 1998, pelo Condephaat (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico), orgão da esfera estadual.

Em maio, a Allegra demoliu as duas arquibancadas centrais (leste e oeste) do estádio, sob a alegação de que precisava criar áreas de circulação de pessoas e ainda iniciar a construção, sob os assentos do lado da Rua Itápolis, de uma arena de e-sports, nome dado a competições com jogos virtuais. A concessionária afirmou, à época, que tinha autorização do Condephaat, o que foi confirmado em nota da Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo, à qual o conselho está ligado. O comunicado informa que “no projeto aprovado pelo Condephaat está prevista a demolição e reconstrução das arquibancadas laterais”. A Allegra divulgou que ambas as estruturas serão refeitas até a reabertura do estádio, em janeiro de 2024.

O arquiteto e urbanista Marcio Novaes Coelho Jr., que foi técnico do Condephaat de 2003 a 2007, e é professor de Preservação do Patrimônio na Faap e na Universidade Presbiteriana Mackenzie, queixa-se de que há falta de informação relativa ao processo como um todo. Quando ocorreu a demolição, Coelho Jr., que também é Diretor de Patrimônio Cultural da Associação Viva Pacaembu, questionou técnicos do conselho sobre onde poderia consultar as aprovações, e eles, por sua vez, indicaram um site sobre o projeto, mantido pela própria concessionária. “Eu entrei lá, e há menção a apenas um dos lados das arquibancadas”, conta.

Para o arquiteto, ainda que a Allegra tenha essas autorizações, trata-se de um bem tombado, e não se pode destruí-lo, alegando apenas que vai reconstruí-lo. “Isso não existe em nenhum lugar do mundo, nenhuma carta de preservação patrimonial fala sobre substituição do que foi demolido. Conceitualmente, é completamente equivocado. E, no caso do Pacaembu, há um agravante: tanto no tombamento do Conpresp quanto no do Condephaat, o primeiro item de reconhecimento de seu valor patrimonial fala como o estádio foi implantado de modo a tirar proveito de topografia do terreno, que formava uma arquibancada natural. Então ela era uma camada fina de concreto sobre a terra. Ainda que seja um valor simbólico, refere-se à importante relação da arquitetura com o território naquele projeto”, diz.

O argumento ecoa uma postagem em rede social feita à época da demolição por Nabil Bonduki, professor da FAU-USP: “As arquibancadas do Estádio do Pacaembu, tombado pelo patrimônio, assentadas sobre o talude da grota do córrego Pacaembu, em um exemplo da arquitetura em diálogo com o meio físico, foram destruídas pela concessionária Allegra Pacaembu”. Em entrevista à arte!brasileiros, Bonduki diz que, quando olhou o projeto, achou que a concessionária iria escavar sob a arquibancada, “fazendo uma estrutura de concreto por dentro, mantendo a parte de cima intacta”, explica. “Do ponto de vista patrimonial, a demolição foi um desastre.”

Quanto às cadeiras, Bonduki diz que ao menos uma fração dos assentos poderia ter sido recuperada e mantida no estádio, como parte de sua memória. Para ele, se as pessoas estão pagando até R$ 1800 por uma cadeira, é porque tem valor histórico, e isso deveria ser usufruído por todos e não apenas por quem pode pagar. “Mas a Allegra se comporta como se aquilo fosse uma propriedade privada. Há uma concessão do estádio, e eles estão usando tudo o que está lá para exploração econômica. Você está pegando um estádio e transformando quase 100%, na região mais valorizada da cidade, em área comercial. O tobogã foi demolido para ali se erguer um prédio com hotel, restaurantes, lojas etc. O campo, vai virar arena de espetáculos”, exemplifica.

Em nota acerca da demolição, a Secretaria de Cultura e Economia Criativa do Estado de São Paulo informou que “o projeto aprovado foi analisado tanto pela esfera Municipal quanto Estadual, portanto não há irregularidade ou dano ao patrimônio, mas sim uma intenção de ocupar o subsolo, assim como foi feito em diversos bens tombados como Museu do Ipiranga, Estação da Luz, Cidade Matarazzo, Estádio Olímpico de Berlim, entre outros, com vistas à modernização das instalações, ao aumento de área e provimento de serviços qualificados.”

Nabil Bonduki cita a privatização do do Ibirapuera como um contraexemplo ao que vem acontecendo no estádio: “Eu tenho críticas à sua concessão, mas, ele continua sendo um parque, de acesso público, embora com preços abusivo para consumo no local. A empresa o mantém funcionando, com limpeza e segurança, e o uso permanece como original. No Pacaembu, o uso para o futebol vai ser praticamente terciário. Deixou de ser o objetivo principal, um estádio para jogos importantes, do Corinthians, do São Paulo, do Palmeiras e, sobretudo do Santos, que não tem estádio em Sao Paulo, mas com grande torcida. Se não terá o futebol como atividade principal, por que não o venderam de uma vez? Porque eles iriam pagar muito mais do que pagaram pela concessão”.

Um processo bastante nebuloso

A ideia de uma gestão privada do Pacaembu não é nova – no fim dos anos 1990, ele já havia sido incluído na lista de bens a privatizar pelo então prefeito Celso Pitta e, em 2015, quando o estádio completou 75 anos, Fernando Haddad (PT) chegou a abrir um edital, sem sucesso. Foi somente a partir de 2017, com a prefeitura sob a gestão de João Doria (PSDB), que o projeto ganhou tração. Segundo Coelho Jr., a entrada do político, tanto na prefeitura quanto no governo do Estado, tornou esse processo todo “bastante nebuloso”.

“A direção do Conpresp, mesmo depois do fim da gestão dele, continua sendo feita por pessoas aliadas a ele. E logo que Doria assumiu o governo de São Paulo, ele mudou a composição do Condephaat, a quantidade de representantes da sociedade civil. Com a mudança, ele garantiu a maioria, para sempre, nas decisões do Estado”, explica.

Em nota, o Condephaat afirma que “o questionamento não procede” e que o conselho foi reformulado em 2019 “para ampliar a representatividade da sociedade civil e assegurar mais agilidade e rigor técnico nas decisões”. O comunicado acrescenta ainda: “Desde a reformulação, nenhuma reunião quinzenal deixou de ocorrer por falta de quórum, o que lamentavelmente era comum antes da reformulação. Há representantes do Governo do Estado, do Governo Federal, de universidades e de instituições da sociedade civil, além de especialistas em patrimônio material e imaterial com notório saber na área”.

Para Margareth Matiko Uemura, que é também integrante do Conselho Municipal de Política Urbana (CMPU), a concessão é, de todo jeito, inteiramente descabida. “Trata-se de um equipamento público importante, que atende a milhares de pessoas, além de ser bem localizado e um expoente da arquitetura, por isso tem proteção dos órgãos de proteção. Ela soma muitos atributos que deveriam estar sob tutela do poder público”, diz. “Tem um erro nestes processos de concessões e privatizações, em que o município se exime da responsabilidade, que é dele, de prover à população espaços públicos adequados e de boa qualidade, para uso de atividades diversificada e acesso amplo da população.”

 

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