PINACOTECA: 120 ANOS DE ARTE EM MOVIMENTO
De perfil clássico original, hoje a Pina se afirma também como um museu contemporâneo
Por Leonor Amarante
A Pinacoteca do Estado de São Paulo (Pina) comemora 120 anos de uma trajetória marcada pela transformação. Fundada no final do século XIX, com projeto arquitetônico não acabado de Ramos de Azevedo, nasceu com a missão de preservar e estudar a arte brasileira. Ao longo das décadas, o museu ampliou seu acervo, incorporou o modernismo e passou a dialogar com a arte contemporânea, sem romper com suas raízes. O que começou como um espaço de perfil clássico, hoje se afirma como um centro cultural dinâmico, híbrido e em constante reinvenção.
Sob a direção do curador Jochen Volz, desde 2017, a Pinacoteca expandiu-se anexando outras duas unidades: a Pina Estação, que faz parte do Complexo Cultural Júlio Prestes e a Pina Contemporânea, que conta com dois espaços expositivos, a Galeria Praça, dedicada em grande parte às mostras experimentais e a Grande Galeria, que permite expor obras de grandes dimensões em um local de mil metros quadrados. Os três espaços contribuíram para transformar a instituição em um organismo vivo, aberto à diversidade e aos debates de nosso tempo.
Na celebração dos 120 anos do museu mais antigo da cidade, destaco um espaço que simboliza sua constante renovação: a rotunda central da Pinacoteca Luz. Ao longo do tempo, o local abrigou diferentes usos e propostas, de Teatro de Arena a Octógono, mantendo-se sempre aberto à arte contemporânea. Foi ali que o experimentalismo encontrou terreno fértil, permitindo que artistas desafiassem convenções e contribuíssem para transformar a instituição em um espaço de diálogo com o novo e o inesperado. Na década de 1970, o local composto de oito paredes, com sua geometria octogonal transformou-se em uma Arena, com arquibancada tanto para receber o público infantil dentro do projeto educacional, quanto os artistas que ministravam aulas e expunham obras não convencionais.
Em 1973, durante a gestão de Walter Wey (1972–1974), a rotunda da Pinacoteca recebeu uma cobertura transparente. Até então, o espaço era totalmente a céu aberto. A intervenção arquitetônica não apenas protegeu a estrutura, mas abriu caminho para que o local se tornasse um local de experimentação contemporânea. A mudança dialogava com iniciativas de vanguarda que já ocorriam em instituições como o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM), com cursos e performances conduzidos por Frederico de Morais, e o Museu de Arte Contemporânea da USP (MAC), sob a direção visionária do crítico e historiador Walter Zanini.
A crítica e historiadora Aracy Amaral esteve à frente da Pinacoteca entre 1975 e 1979, imprimindo à instituição uma visão contemporânea que refletia sua formação. Um dos marcos de sua gestão foi a exposição Projeto Construtivo Brasileiro na Arte (1950–1962), realizada em parceria com o crítico Ronaldo Brito, uma revisão histórica dos movimentos concretista e neoconcretista. Aracy também voltou seu olhar à nova geração de artistas incentivando, entre outros, nomes como Cildo Meireles, Marcello Nitsche (1942–2009), Mario Cravo Neto (1947–2009) e o argentino Alfredo Portillos, integrante do Grupo CAYC, de Buenos Aires.
Entre 1979 e 1982, sob a direção do crítico e historiador Fábio Magalhães, a Arena da Pinacoteca consolidou-se como um espaço ousado da cena artística paulistana. Em pleno regime militar, o museu assumiu o papel de reduto de liberdade, resistência e experimentação. Magalhães abriu as portas para performances radicais e propostas fora dos padrões tradicionais. Um dos marcos desse período foi o Concerto para piano com luvas de boxe, apresentado em 1980 por José Roberto Aguilar. A ação marcou o nascimento da Banda Performática, coletivo fundado por Aguilar que mesclava música, artes visuais e teatro em happenings intensos e imprevisíveis. No palco, o artista tentava som de um piano usando luvas de boxe, enquanto a violinista Go o acompanhava em cena. A apresentação incluía ainda extintores de incêndio, uma cítara e letras móveis que, ao final, formavam a palavra ARTE.
O grupo reunia nomes como Arnaldo Antunes, Paulo Miklos, Go, Marciano, Tuba, Flávio Smith e Lanny Gordin, entre outros. A performance se alinhava ao espírito do Parangolé, movimento proposto por Hélio Oiticica, que visava dissolver as fronteiras entre as linguagens artísticas, promovendo uma arte total, sensorial e participativa.
No mesmo clima de irreverência, em 1982, o coletivo 3NÓS3, formado por Hudnilson Jr., Rafael França e Mário Ramiro tomaram parte da intocável fachada da Pina. Eles instalaram uma faixa de plástico vermelho que cobria parte do edifício, encapando visualmente a instituição. Essa ação ocorreu simultaneamente à exposição individual dos integrantes, uma ocupação temporária que instigava o público a refletir sobre a relação entre arte, museu e mídia.
Também marcou esse período o artista argentino León Ferrari, cuja obra de forte carga poética e provocadora deixou sua marca na Pinacoteca em 1980, com a performance Percanto. Ferrari imediatamente conquistou o público ao extrair sons incomuns de esculturas compostas por hastes paralelas de ferro. O concerto, único em sua concepção, desafiava as noções convencionais de música e escultura, fundindo matéria e som em uma experiência sensorial.
Como um furacão, tudo muda com a chegada de Emanoel Araújo (1940-2022) à direção da instituição e, esse espaço também se transforma. O novo diretor convida o arquiteto Paulo Mendes da Rocha para fazer o projeto da reforma do edifício da Pinacoteca, o arquiteto Eduardo Colonelli se une a ele e mais uma equipe. O prédio tornou-se um espaço contemporâneo, com soluções arquitetônicas arrojadas, como as duas passarelas metálicas que conectam os quatros eixos da planta.
A partir da reforma da Pinacoteca o Octógono substitui a antiga Arena, assume uma nova vocação: tornar-se palco para instalações, muitas delas de caráter performático. Essa mudança de perspectiva, voltada para uma arte mais participativa e imersiva, transformou o Octógono em um verdadeiro trampolim para trabalhos memoráveis, marcados pelo novo e diálogo direto com o público.
Como afirma Jochen Volz, na apresentação do livro Projeto Octógono: 20 anos (aprendendo com artistas), com organização editorial de Pollyana Quintella: “Com 71 exposições no decorrer de 20 anos, o projeto é um dos mais duradouros programas museais no Brasil.”
O Octógono foi inaugurado com obras do artista italiano Mario Merz (1925–2003), um dos expoentes da arte povera, movimento que propunha o uso de materiais simples e naturais, como pedra, galhos, barro e vidro, em contraponto à arte industrializada. Com a curadoria de Danilo Eccher a exposição trouxe à Pinacoteca obras icônicas de Merz vindas de Buenos Aires e que depois seguiram para o Rio de Janeiro e Salvador. A instalação reafirmou a vocação da Pinacoteca para o diálogo internacional e interdisciplinar. A icônica estrutura em forma de iglu, que eternizou as ousadias de Merz com tubos de neon e sequências numéricas do matemático Leonardo Fibonacci (1170-1250), estabeleceu um elo entre ancestralidade e modernidade, ciência e poesia. Merz contribuiu para que a Pinacoteca entrasse no circuito internacional da arte contemporânea e ampliasse a percepção do público sobre obras não convencionais.
Ressoando as complexidades contidas nos conceitos poéticos da produção de Tunga, a instalação: À Luz de dois mundos, expôs elementos recorrentes de sua trajetória numa atmosfera ritualística que envolvia fios trançados, ímãs, objetos alquímicos, corpos simulados. A obra reafirmava o interesse do artista pela mitologia, processos de transformação e dualidade entre razão e instinto, uma síntese de seu barroco tropical.
Com um trabalho feérico, Olafur Eliasson, em 2011, envolveu o Octógono, com Seu corpo da obra, uma série de intervenções que explora espelhos, luz, cor e percepção, em uma conversa direta entre arte e arquitetura. Seu trabalho, composto de esculturas ópticas, questionavam os limites físicos do museu, convidando o visitante a tornar-se parte da obra e a perceber a arquitetura como um organismo vivo, refletindo sobre a construção de seu próprio olhar.
Na arte, o lúdico pode assumir muitas formas. Nas obras de Rirkrit Tiravanija (Buenos Aires, 1961), essa dimensão frequentemente emerge da interação direta entre público e obra. Foi exatamente o que aconteceu na Pinacoteca de São Paulo, durante a exposição Somos Muit+s: Experimentos sobre Coletividade (2019), com o Coletivo Legítima Defesa. Tiravanija instalou um “palco aberto” e o deixou à disposição do público, livre para ser ocupado como quisesse.
Oficinas, apresentações de dança e teatro, performances poéticas e até aulas de ioga tomaram o espaço, numa celebração da diversidade de expressões. No espírito do “tudo junto e misturado”, instaurou-se uma troca genuína entre arte e público, onde a experiência vivida se tornou parte da própria obra.
A proposta reforçou um dos pilares do trabalho de Tiravanija: a arte como processo coletivo, em que o sentido não está dado de antemão, mas se constrói na convivência e no engajamento. Um gesto plenamente sintonizado com a vocação do Octógono como espaço de experimentação e participação.