*Por Suely Rolnik
Esta conversa aconteceu por Skype num domingo de final de julho. A imagem do rosto de Grada, seu sorriso, seus gestos, o timbre de sua voz não aparecem no texto escrito. No entanto, são essenciais para acessar o lugar em que esta artista se coloca diante dos problemas que movem seu pensamento. Peço ao leitor que faça um esforço de imaginação para impregnar as palavras de Grada com a atmosfera de sua presença.
Suely Rolnik – Pelo pouco que vi de seu trabalho, e que me deixou encantada, sei que é um trabalho xamânico-psicanalítico. O que você está preparando para a Bienal?
Grada Kilomba – Estou a preparar dois projetos para a Bienal. Um chama-se O Projeto Desejo, que é uma instalação de vídeo, e o outro é Ilusões, que é uma performance, uma lecture-performance. São dois formatos diferentes, e isso eu já gosto. Gosto dessa ideia de estar ocupada com um tema, e não ter uma disciplina concreta, e depois o tema aparece em diferentes formatos e em diferentes disciplinas. É totalmente transdisciplinar. E isso para mim é muito importante: essa liberdade, essa flexibilidade de não estar agarrada a uma disciplina, mas focada em um tema, apaixonada e envolvida por ele, e depois, enquanto nós vamos trabalhando nele, é que aparece o formato, a visualização. Para mim, isso faz parte da descolonização do conhecimento. O Projeto Desejo é uma instalação de vídeo que cria três momentos: o público entra num espaço e vai percorrer uma pequena trajetória para ver três filmes diferentes e três estórias diferentes, mas que tem o mesmo som; e o som é uma bateria ritmada, um tambor que faz lembrar um pouco os ritmos africanos. Com o mesmo som eu recebo informações diferentes e vejo coisas diferentes. E o que eu trabalhei aqui foi que nesses três vídeos não há imagens, é o texto que se torna a própria imagem. Trabalho só com o texto, palavras, ritmos e vozes. São narrativas silenciadas a chegarem à voz, a se fazerem escutar, a contarem a sua estória. Essa é a trajetória: os três momentos exploram essa ideia de alguém que quer chegar à voz. É isso O Projeto Desejo: o que eu quero, o que eu desejo, o que é preciso, como eu quero contar a minha estória.
S.R. – É então um ensaio, no sentido da experimentação, sobre como encarnar o desejo, como não abrir mão do desejo, como não sucumbir ao silenciamento. E que estórias você vai contar?
G.K. – Eu comecei com o projeto que mostrei em São Paulo, quando nós nos conhecemos, que era um pequeno vídeo que se chamava While I Write (Enquanto eu escrevo), apenas com palavras. Esse foi o início do projeto, e eu o continuei: Enquanto eu Falo, Enquanto eu Caminho. Há três momentos nessa trajetória. Ela fala exatamente sobre as narrativas que foram silenciadas e como nós conseguimos chegar à voz, e como conseguimos dar voz à nossa história, ou recolher a nossa história, que está fragmentada. São três momentos diferentes que falam sobre isso, e em cada momento o público vai se sentar, ver o vídeo, passar para o próximo vídeo, ver de novo, e depois passar para o terceiro vídeo, ver de novo. Para mim, essa é uma trajetória espiritual e refletiva, porque quero trabalhar com o ritmo, as vozes, a música e o texto e é uma coisa que se sente no nível corporal também, no nível emocional.
S.R. – Os próprios tambores marcam territórios sonoros, os ritmos marcam território e, com isso, já somos levados para esse outro lugar que você chama de espiritual.
G.K. – Exatamente. Trabalhei com a ideia de que as narrativas são silenciadas porque outras vozes falam mais alto; não é que nós não estamos a falar, mas sim que nossa voz não é escutada. Então não é que a gente não tenha estado a produzir conhecimento e narração. A gente sempre fala, a gente sempre entrega conhecimento, mas não escutam nossa narração, não escutam nossa história. Então, eu fiz uma série de gravações em lugares públicos e uso no início do filme essas vozes de fundo que são mais altas do que nossa própria voz, para brincar com essa dialética de que não é que a gente não fala, é a voz que não é escutada. E eu só posso me tornar sujeito falante se a minha voz também for ouvida. Esse é o jogo no início. Essas vozes depois desaparecem enquanto o ritmo e a bateria aparecem cada vez mais altos. E cruzam-se assim. Mas eu queria trazer toda essa teoria que está por trás de falar e silenciar num só projeto, quase simultâneo, pois falar e silenciar vão juntos: eu só posso falar se a minha voz de fato for escutada, e os que são escutados são aqueles que pertencem. Os que não pertencem são aqueles que ninguém escuta. Eu quis trabalhar esse jogo só através do som, e é dessa maneira que ele aparece nesse Projeto Desejo, através da metáfora da bateria e da música. É essa brincadeira entre o escutar, o falar e o silenciar.
S.R. – Esse plano sonoro é uma bela solução: o plano do vozerio de fundo, o plano da voz junto com a palavra, o plano do ritmo dos tambores. Então se a pessoa não estiver totalmente neurotizada, ou seja, se sua subjetividade não estiver totalmente submetida ao antropo-falo-ego-logocentrismo da cultura moderna ocidental, quando ela se deparar com o trabalho, ela dificilmente ficará só no conteúdo das palavras. Ela vai ser afetada pelo ritmo, pela textura das vozes emergindo do vozerio e se fazendo mais audíveis. Com isso você traz uma dimensão muito importante do modo de presença dos negros em toda as ex-colônias da América Latina que tiveram escravos. É que, embora eles tenham sido e continuem sendo totalmente silenciados, como se não existissem, eles ocuparam o espaço sonoro e o continuam ocupando integralmente. A gente não se dá conta, mas ele está lá.
G.K. – É exatamente esse espaço sonoro de que tu falas. É lindo. Como é que se fala dessa dialética do falar e do silenciar, sem falar, sem explicar, mas através do espaço sonoro? Como se transporta esse conhecimento através do espaço sonoro? Essa é a experiência desse projeto. Então eu pensei: vou trabalhar só com os ritmos, só com a percussão, só com as vozes. E, depois, em vez de termos o visual com imagens, como nós estamos habituados, eu vou trazer a palavra que nós imprimimos no papel e que se torna visual. É uma troca de formatos e de lugar das coisas, é isso O Projeto Desejo. Faz sentido para ti?
S.R. – Faz total sentido; a ideia é linda. Isso me remete ao que você disse antes sobre a necessidade do transdisciplinar em seu trabalho. Isso que você chama de tema, algo já tem uma forma e um significado, eu chamaria de um estado que está em nosso corpo, que é real, mas indizível e invisível; um estado que resuta dos efeitos das forças do mundo, de toda memória do mundo em nosso corpo, desde o atual golpe de estado no Brasil ou o perigo de Donald Trump tornar-se presidente dos Estados Unidos até toda a história da escravidão, passando pela Inquisição na Península Ibérica, indo lá para trás… É essa experiência que nos leva a criar algo que a torne sensível e, para fazê-lo, o desejo nos conectará com distintas coisas até começar a se compor algo que traga à luz aquele estado do mundo que nos habita. No teu caso, este estado resulta dos efeitos da violência colonial no teu corpo, especialmente em tua negritude, que te leva a conectar-se com os tambores, o timbre das vozes, te leva a tirar a imagem e a colocar texto em seu lugar, etc. Atraídos por essa experiência que você quer trazer à existência, todos esses elementos entram na composição de seu trabalho. Então, como esse processo pode encaixar-se numa disciplina ou partir dela, se o ponto de partida é uma experiência que não tem palavra, nem som, nem imagem, nem gesto e inventá-los é precisamente o trabalho a ser feito?
G.K. – É exatamente isso. É o que possibilita depois trabalhar com outros artistas que buscam criar sentido para uma experiência que tem ressonância com a nossa e, por isso, nossos caminhos se cruzam.
S.R. – E como é o outro trabalho que você está preparando para a Bienal?
G.K. – O outro trabalho chama-se Ilusões. Era um sonho que eu tinha; eu queria fazer uma performance, ou uma lecture-performance, não sei como chamá-lo. Eu queria trabalhar com a tradição oral, eu sou muito encantada pelos contos de estórias africanas, aquela tradição de contar, trazer o conhecimento através da oralidade, contar estórias. Pensei que é mesmo o que eu quero fazer, contar estórias, trazer essa tradição africana num espaço contemporâneo e muito minimalista, com texto, narração e projeção de vídeo que traz memórias, às vezes imagens do imaginário; é assim simples, bem simples. O que me fez escrever essas estórias é que às vezes sinto que já não há mais nada para contar. Por exemplo, em relação à história colonial, nós queremos desmontá-la, mas estamos sempre a contar a mesma estória. Vivemos numa quádrupla ignorância em relação a essa história: a gente não sabe, não precisa saber, não deve saber e não quer saber. Então em Ilusões decidi contar uma outra história. São duas estórias ligadas a dois mitos: o mito do Narciso, a estória de amor de Narciso com Eco, que eu recapitulo em um contexto colonial, um Narciso que está virado para si próprio e que só representa sua própria imagem, só vê sua própria imagem refletida no lago.
S.R. – É aquele que fala mais alto e não ouve.
G.K. – Exatamente. E Narciso, que só olhava a si próprio, também foi condenado porque não amava ninguém, e foi condenado com a sentença de que ele iria se apaixonar por alguém que não corresponderia ao seu amor. Ele chega ao lago, olha para a imagem e apaixona-se por ela, não sabendo que é ele próprio refletido na água. Portanto, ele nunca recebe o amor recíproco, e ele continua a pedir por esse amor olhando petrificado aquela imagem do lago, pensando que é uma outra pessoa que não lhe responde. E depois vem Eco, que confirma as palavras dele porque ela também foi condenada a não poder dizer mais palavras do que as últimas que ela ouve, porque ela falava demais. Ela só pode repetir as últimas palavras que lhe são ditas. Enquanto Narciso fala consigo próprio dizendo “eu amo-te, volta para mim”, Eco responde “volta para mim, volta para mim, eu amo-te, amo-te”. Ela só repete as últimas palavras de Narciso. Em Ilusões eu brinco um pouco com essa mitologia, com essas histórias como metáforas da tragédia colonial. É uma repetição infinita e uma representação infinita de si próprio que não representa a realidade, mas só aquela imagem colonial, branca, patriarcal que se repete constantemente e que está apaixonada por si própria e se idealiza a si própria, e condenada porque não vê mais nada a não ser sua própria representação. É uma representação, um tipo de enunciado em que as outras pessoas não existem. E ao mesmo tempo também tem a confirmação e o consenso de Eco, que está tão fixada no Narciso que sempre repete e confirma aquilo que ele diz. Neste narcisismo colonial e patriarcal em que nós vivemos, como vamos recuperar outras narrações e outras histórias? O trabalho é uma performance em que conto estas estórias tradicionais.
S.R. – É um dispositivo incrível para trazer à tona a relação colonial em sua pulsação viva, e não em sua representação ideológica. É a experiência da presença viva do outro no corpo, que na subjetividade branca ocidental está totalmente anestesiada e, com isso, o outro é uma mera representação, ele não existe. Para mim, é isso o que define fundamentalmente o que chamo de inconsciente colonial-capitalístico. É como um feitiço, que atravessa todas as relações em nossas sociedades e não só entre colonizador e colonizado. Quebrar esse feitiço é a questão e penso que é isso o que você busca em seu trabalho.
G.K. – É isso mesmo. E é tão difícil quebrar esse feitiço, sair desses lugares. É engraçado como a psicanálise está presente em nosso trabalho; eu vejo essa conexão em todas as dimensões de que estamos a falar. E neste Ilusões tem uma outra dimensão importante para a qual eu trago o conto de Édipo. É a dimensão da lealdade. A quem nós somos leais? Por que é tão difícil transformar? E isso aliado a outra pergunta: o que é que estamos a defender? A quem é que nós temos que defender? Então eu estou a fazer uma passagem para falar dos temas pós-coloniais através de várias estórias, de vários contos, e tento fazer uma ligação entre um e outro.
S.R. – E como Édipo entra nesse trabalho?
G.K. – Tem uma parte de que eu gosto muito, porque me fez pensar na violência, especialmente contra a população negra. De onde vem essa violência? Por que o corpo negro é o recipiente de tanta agressividade, de tanta violência? E depois eu consegui ligar com a estória do Édipo, a estória da lealdade, do rival, do verdadeiro rival, as fantasias da agressão contra a figura paterna, contra a figura materna. Fantasias que não se pode exercer porque senão se perde o acesso ao poder, e por isso elas vão ser performadas, executadas no corpo que eu construo como outro. Nesse outro corpo eu posso então exercitar toda a violência e toda a agressividade e assim mantenho a família e a estrutura colonial saudáveis, em segurança e em seus lugares, civilizadas. E toda essa agressividade é uma performance que é feita fora de casa, e é para isso que são criados os outros. É nesse momento que fiz a ligação com o Édipo. De onde vem esta violência? O que nós estamos a defender? Ah, claro, se eu me revoltar, se eu executar essa agressividade dentro do espaço da casa, serei expulsa…
S.R. – E aí que entra a lealdade, mas como submissão e obediência; conservação do status quo.
G.K. – Exatamente. Por que eu não posso ter uma outra narrativa, um outro vocabulário diferente de minha casa paterna? Por que eu não posso falar diferente de meu pai ou de minha mãe? A quem sou leal? Por que essa lealdade? E aí eu acho que faz muito sentido contar as estórias e fazer a ligação com o Édipo. É também uma forma bonita de entrar nessa temática. Achas que faz sentido para ti?
S.R. – Faz total sentido. Quando a subjetividade está reduzida à sua experiência enquanto sujeito e desconectada daquela outra experiência, a dos efeitos das forças do mundo no corpo, como é o caso em nossa cultura, o sujeito interpreta aquela desestabilização que decorre destes efeitos como uma ameaça de fim do mundo, quando, na verdade, é aquele mundo que está chegando ao fim porque um outro mundo está germinando. E para essa subjetividade que ignora o saber-do-corpo, a ameaça da desagregação daquele mundo é também ameaça da desagregação de si mesmo, pois é naquele mundo que Narciso se espelha. Então, para conservar aquele mundo e a si mesmo, a subjetividade tem que projetar a causa de seu mal-estar em um outro, tem que criar um outro como tela para essa projeção e os atores que protagonizam este personagem do outro vão variando ao longo da história. Mas faz tempo demais que o negro está nesse papel…
G.K. – Isso nos leva de volta à ignorância de que nós falávamos. Eu não sei, não preciso saber, não devo saber e não quero saber. E aí estamos sempre no mesmo sítio, não nos desenrolamos dessa história colonial, patriarcal, racista, homofóbica, etc., exatamente por causa desse narcisismo e dessa lealdade. É esse narcisismo e essa lealdade que eu quero explorar nessas Ilusões, mas no formato de contar estórias, de trazer o conhecimento através da tradição oral. Estou a trabalhar com vídeo e imagens e queria recolher também algumas imagens de arquivo. Ainda estou a trabalhar nessas ilusões, nessa performance, mas eu queria fazer uma coisa bem minimalista, bem simples. Eu gosto de focar no contar estórias como no outro projeto, sem muito barulho e muito espetáculo, e acho que isso também é um outro formato, uma outra forma de usar a performance. Eu ainda estou a recolher as imagens.
S.R. – Que imagens você já recolheu?
G.K. – Eu encontrei, por exemplo, uma carta do meu bisavô português, uma carta que ele escreveu quando ele chegou a Angola, para a minha bisavó e para minha avó, que já estava nascida. Ele foi a Luanda como cozinheiro e ele vinha de uma aldeia. Ele descreve na carta a viagem e o que ele vê em Luanda, descreve as pessoas com todo aquele vocabulário colonial, racista. É bem complicado. E eu tenho outra carta, mais recente, de meu pai quando chegou a Angola, e esta tem outra narrativa. E tenho também um documento da minha avó em São Tomé e Príncipe quando seu nome lhe foi retirado. Eu estou a tentar criar uma narrativa, e acho muito bonita essa parte do documento, Suely, porque é do tempo em que a colonização portuguesa usava a assimilação como estratégia: tornar-se o mais similar possível ao colonizador. Por isso, nós temos todos o mesmo nome e uma das formas de assimilação foi a proibição do uso dos nomes africanos. Meu nome Quilomba é o nome da minha avó. Quilomba, como quilombo também, vem do quimbundo, que é uma das línguas mais importantes em Angola.
S.R. – E o que quer dizer quilombo? Porque aqui, como você deve saber, esta palavra tem um sentido político de comunidades de negros que conseguiam fugir da escravidão. E houve centenas de quilombos durante o período colonial, alguns inclusive se juntaram e formaram verdadeiras cidades.
G.K. –Quilombo em quimbundo quer dizer aldeia, ajuntamento, mas depois foi transformado em um termo político, mas guardando o mesmo sentido .
S.R. – E Quilomba era o sobrenome ou o nome dela?
G.K. – Era sobrenome. Nós tínhamos dois nomes, Buzie e Quilomba. Buzie era do meu avô e Quilomba era da minha avó, e Grada era o prenome da minha outra avó. Mas os nomes africanos foram todos anulados durante o tempo colonial. Eu fui ao arquivo em São Tomé e Príncipe procurar os documentos, porque minha avó e minha mãe me contaram como o nome delas foi proibido e desapareceu. E eu encontrei os documentos em que a mãe da minha avó ainda tinha o nome Quilomba e foi retirado, porque ela como muitas outras pessoas foram tiradas do continente à força para São Tomé e Príncipe para trabalhar nas plantações de cacau e de café. Elas vinham de Angola, de Moçambique, de Cabo Verde, e foram levadas para São Tomé e Príncipe, isoladas em plantações diferentes, com línguas diferentes e os nomes foram anulados. É por isso que temos quase todos o mesmo nome, no Brasil, em Portugal, em Angola, Moçambique, Cabo Verde, GuinéBissau, São Tomé e Príncipe, Goa, Timor-Leste. Viramos todos os Fernandes, da Silva, Ferreira, etc., e não se sabe de onde cada um vem.
S.R. – E qual é seu nome de nascimento?
G.K. – Eu tenho uma série de nomes civis. Tentei colocar oficialmente o nome anterior de minha família, Buzie Quilomba, mas a Constituição não está preparada para a história colonial, só é permitido mudar o nome por casamento, divórcio ou adoção. A história colonial não faz parte da Constituição, ela não tem solução para isso, não há sequer um parágrafo sobre como se lida com isso, que, no entanto, diz respeito a uma população inteira. Não se pode recuperar um nome que foi anulado. Então, uns bons anos atrás, eu decidi recuperar meus nomes originais, mas como nomes artísticos, porque, apesar de serem meus nomes, não posso tê-los no passaporte.
S.R. – E qual seu nome no passaporte?
G.K. – Tenho todos os nomes portugueses no passaporte, tenho Ferreira, Pereira… E Grada é o meu prenome que é, como disse, o de uma de minhas avós. Todos os outros nomes eu escolhi. Por exemplo, Quilomba, o nome de minha outra avó. Então eu tenho dois nomes de mulheres no meu nome. Mas o que é bonito nessa história do nome é que, como no Brasil, ela faz parte da nossa história colonial.
S.R. – Você já fez algum trabalho sobre isso?
G.K. – Eu já escrevi uma estória que agora queria incluir no livro que estou preparando, Performing Knowledge (Performando Conhecimento), e essa estória do nome é uma das que aparecem lá.
S.R. – É incrível ter a memória do nome anulada; uma anulação que resulta da violência ao trauma e que continua a se perpetuar na impossibilidade de resgatá-lo.
G.K. – É isso mesmo e não é só o trauma. Tem também a alienação: eu só posso ser eu, ter o meu nome registrado, oficial, civil, sendo o nome do colonizador, ou seja, eu só posso ter uma existência civil oficial através da identidade do colonizador, através de seu nome. Nós não podemos esquecer que durante muito tempo, até os anos 60, eu não consigo me lembrar agora exatamente até quando, a população negra não tinha direito a uma identidade, a uma nacionalidade. Agora eu estou a fazer esse trabalho de arquivo para buscar com que imagens trabalhar para contar essa estória da Ilusões, o que é e o que não é, e quem é que eu posso ser, quem é que eu tenho que ser, para eu me tornar visível. Então tem essa brincadeira com as Ilusões. Como eu recupero essa história?
S.R. – E qual é a origem de seu pai?
G.K. – O meu pai é português e vem de uma zona, Coimbra, em que são todos judeus; havia perseguição em toda aquela região e toda a comunidade judia foi obrigada a mudar de nome. É o caso da família de meu pai. Todos os nomes portugueses que acabam em eira, Macieira, Pereira, Ferreira, são judeus.
S.R. – Então você também tem um pedaço judaico, via seu pai cristão-novo. Assim como tenho um pedaço de negritude, via Brasil. Compartilhamos o trabalho com esses dois traumas.
G.K. – Acho mesmo muito bonito conseguir, em nosso trabalho, fazer essa ponte com o passado, com o corpo e o conhecimento, através do corpo e de sua memória, com essa dimensão espiritual e com tantas outras dimensões.
S.R. – Para mim, a volta ao passado não é a volta às formas de viver, aos sistemas de comportamento e suas representações, aos sistemas morais, a uma certa filosofia. É muito mais a volta a essa conexão com o saber-do-corpo, e, quanto mais se vai para à memória do passado no corpo, mais você se sente autorizada e estimulada a ativar essa conexão. É o que nós fazemos cada uma à sua maneira em nossos trabalhos. É uma espécie de amor pela vida e pelas pessoas, grupos e comunidades que se mantiveram e se mantêm em contato com a vida e a tomaram nas mãos movidas pelo desejo de cuidá-la.
G.K. – É amor mesmo, é por isso talvez que a gente fala de coisas sérias e com uma calma e um sorriso.
S.R. – Esse sorriso vem daí. Mas a gente teve que lutar bastante por esse sorriso. Esse sorriso estava lá desde sempre, mas não parava de levar porrada, de ficar na dúvida, de sumir, até que ele foi se impondo.
G. K – Trago esse sorriso na cara porque já chorei demais.
S.R. – Então chega, não é?
G.K. – É mesmo. Já falamos sobre tanta coisa. Foi tão lindo falar contigo, muito obrigada.
S.R. – Eu é que te agradeço, Foi tão bom te escutar.
*Suely Rolnik é professora na PUC-SP, psicanalista, curadora e crítica de arte e de cultura