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Livro sobre Zé Celso nos abre apetite de vida

O devorador: Zé Celso, vida e arte
Livro: O devorador: Zé Celso, vida e arte

Entrevistas, depoimentos históricos e ensaios inéditos compõem um banquete editorial sobre José Celso Martinez Corrêa — o Zé Celso, fundador do Teatro Oficina. Lançado em maio de 2025, o livro da Edições Sesc presta homenagem ao famoso encenador, que marcou a história da arte brasileira por suas críticas políticas, pela antropofagia posta em palco e pela escolha de uma poética que celebrava a liberdade. O devorador: Zé Celso, vida e arte é organizado pelo jornalista Claudio Leal e compila textos de autorias diversas para nos servir um retrato multifacetado do artista, que faleceu em julho de 2023 aos 86 anos. 

Nascido em 1937, em Araraquara (SP), José ingressou na Faculdade de Direito do Largo São Francisco nos anos 1950; mas ao invés de tornar-se advogado, uniu-se a outros estudantes para criar um grupo teatral. Em 1961, profissionalizaram o Teatro Oficina,“destinado a questionar, provocar, inverter, convulsionar tudo”, como pontua o escritor e jornalista Ignácio Loyola Brandão. 

A companhia mudaria sua composição e sua linguagem estética ao longo dos anos, persistindo ainda hoje como importante coletivo artístico. Se em 1964, o crítico de arte Sábato Magaldi se referiu a uma das montagens do grupo — Pequenos burgueses, do dramaturgo Máximo Gorki — como “o melhor espetáculo realista que o Teatro Brasileiro já encenou”; em 1967, eles surpreenderam. Mudaram os rumos do teatro nacional com a primeira encenação de O rei da vela, texto de Oswald de Andrade. As diversas peças que se seguiram na história do Oficina, propuseram resistência artística à ditadura civil-militar brasileira e uma crítica latente à classe média. Nos anos 1990, deram traços brasileiros à tragédia grega, com a icônica encenação de As bacantes, de Eurípedes e, nos anos 2000, reconstruíram Os sertões, de Euclides da Cunha, para pensar o massacre de Canudos e as possibilidades de desmassacre nas Canudos modernas. Desde a fundação, como grupo amador, Zé esteve na linha de frente da companhia. “Foram mais de trinta grandes espetáculos e ele se excedeu em cada um”, destaca Ignácio Loyola Brandão. No dia de sua morte, consequência de um incêndio no apartamento onde morava, Zé seguia trabalhando, desta vez dedicado a uma montagem teatral de A queda do céu, de Davi Kopenawa e Bruce Albert. 

Assim como nesta matéria, em O devorador, o diretor e o Teatro Oficina são duas esferas que por vezes se misturam. A história do criador e da criatura não são a mesma, mas se entrelaçam e atravessam. Isso talvez seja explicado pelo fato de que, como escreve Bete Coelho para o livro, Zé tinha um “modo de viver em que não se separa vida da profissão”.  

O banquete 

Em um dos primeiros textos dessa leitura, o músico José Miguel Wisnik nos alerta sobre outra característica central de Zé: “seu apetite de vida em ato era assombroso”. A publicação parece espelhar isso, já que só redigir um perfil do artista não daria conta dessa fome de mundo. 

Como conta a artista Monique Gardenberg, “Zé era seu interesse pelas coisas, pelo outro. A quantidade de perguntas que me fazia. Quando falávamos ao telefone, ficávamos horas. O mundo precisava parar, ele queria saber de tudo. O que eu estava lendo, se estava gostando, por que estava gostando, o que tinha achado de determinado filme, no que estava trabalhando”. O devorador se constrói assim, propõe uma longa conversa, que vai do íntimo de José — com textos pessoais de familiares e amigos de longa data, bem como fotos da infância — às esferas amplas de seu trabalho teatral e os registros fotográficos do mesmo.

A publicação leva o título um passo além e parece trazer para si o instinto antropofágico, ao devorar características do próprio Teatro Oficina. Como as peças da companhia, é de longa-duração: construída em 11 atos em mais de 500 páginas altas — um livro de grande estatura, que nos remete à arquitetura da sede do grupo, projetada por Lina Bo Bardi e Edson Elito na Jaceguai 520. Fazendo par aos numerosos coros das peças de Zé Celso, traz um numeroso conjunto de autores e entrevistados — 49 para sermos exatos. Dentre esses nomes, estão grandes artistas da MPB, como Caetano Veloso, Gilberto Gil e Maria Bethânia; nomes que marcaram a história do teatro, como Gerald Thomas e Ruy Cortez; figuras centrais no Teatro Oficina do ontem — como Ítala Nandi e Renato Borghi — e do hoje — como Camila Motta e Sylvia Prado; teóricos que acompanharam Martinez Corrêa na história da arte brasileira e Marcelo Drummond, que acompanhou José nos amores da vida. 

O livro conta ainda com projeto gráfico de Mateus Valadares, que revela uma lombada de costuras aparentes, uma capa tripla que se desdobra em pôster e um caderno de imagens colorido com fotos de diversos períodos da vida-obra do encenador. 

 

A boca que tudo come

“Perdoem este texto pessoal, não tem outro jeito”, grafa Ignácio Loyola Brandão em seu relato sobre o amigo Zé Celso. Não perdoamos, mas agradecemos. Há beleza em sermos conduzidos por alguns textos neste tom, que mergulham no íntimo da celebridade teatral brasileira para nos lembrar que “o Zé era uma pessoa normal. Precisava comer, cagar, tomar banho. Horas no banho enquanto não secasse a Cantareira”, como relata Marcelo Drummond.

Em paralelo, textos como os dos professores Silvia Fernandes e Paulo Bio Toledo permitem um olhar teórico às contribuições do encenador para a cena artística e política nacional. Nos conduzem por suas referências, o contato com Glauber Rocha, o contexto que permitiu o nascimento do Teatro Oficina — junto ao Teatro de Arena e paralelo ao Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). Assim, transformam o livro em um importante material de estudo para pesquisadores da área, para além de um memorial bonito e nostálgico. 

Somos ainda conduzidos a descrições detalhadas e históricas de quem viveu montagens dirigidas por Zé Celso, como é o caso do texto de Camila Mota sobre Os sertões; ou lutou ao lado dele pelo Parque do Bixiga, como a arquiteta Marília Piraju. Nos deparamos também com ensaios poéticos e inventivos em linguagem, como o de Letícia Coura, artista do Teatro Oficina, e os escritos do próprio Zé Celso (que com seus negritos, caixas altas e espaçamentos, dão corpo à palavra). 

Isso porque, o encenador não deixaria um ensaio literário como esse sem alguns momentos de sua interrupção. Ao longo do livro, Claudio Leal cuidadosamente costura textos antigos de Zé, que complementam o panorama de cada capítulo. Assume também a ousadia de colocar no livro concordâncias e discordâncias dessas visões de mundo do homenageado. 

“O Zé provocava. Ele não tinha problema com a adversidade, tampouco com a diversidade”, diz Bete Coelho. E, assim, encontramos diversidade e adversidade ao folhear o livro. As opiniões conflitantes das atrizes Myriam Mehler e Ítala Nandi sobre os gestos radicais no Teatro Oficina são um exemplo. Bem como a sequência de textos sobre O rei da vela. Nela, somos confrontados com a dura preferência de Augusto de Campos pelas poesias e escritos de Oswald frente à encenação histórica do Teatro Oficina e, na página seguinte, é Tom Zé que nos pega à mão, conduzindo pelo pranto emocionado que viveu em 1967 ao sair do teatro de “coração rasgado” com a peça que revolucionaria o teatro brasileiro.

É com essas contracenações que O devorador: Zé Celso, vida e arte conta a história de Martinez Corrêa, da infância às prospecções de um futuro – agora sem Zé. Como pontua o ator Renato Borghi, “Zé Celso mudou o panorama do teatro brasileiro”. De agora em diante, como diz Camila, é preciso “adorar seu trabalho e seu legado que está presente em muitos corpos, estilhaçado em mil pedaços, devorado por muita gente”. 

Ítala Nandi lembra que quando o Teatro Oficina pegou fogo, em 1966, enquanto ela e outros atores choravam, “Zé sumiu e voltou de terno. Ele ficou tirando fotos em cima dos escombros, dizendo: ‘Aqui vai surgir um novo Teatro’”. Frente ao novo incêndio, de 2023, a companhia segue trabalhando essa herança teatral e essa força para fazer um novo teatro. Como encerra Camila Mota, “vai dar um trabalhão… Tudo a fazer!”.

O México de André Toral

André Toral

Em “Relatório de Viagem”, exposição que inaugura neste sábado, 14 de junho, na Graphias, André Toral reúne um conjunto diverso de trabalhos produzidos a partir de um encontro concreto – e simbólico – com o México. Combinando estratégias de reportagem visual, garimpo iconográfico e sobreposição de estereótipos oriundos da memória coletiva, o artista estabelece um painel difuso, sobrepõe tempos históricos distintos e explora um leque amplo de experimentações compositivas e técnicas. Como num jogo de memória, ou numa lógica de quebra-cabeça, o espectador se vê diante de uma espécie de charada visual. 

Toral não apenas associa ícones distintos (como uma indígena de costas, com traje e penteado típico, seres oriundos da mitologia mexicana, fragmentos da arquitetura colonial do país, lutadores mascarados que mais parecem super-heróis ou a indefectível paisagem de cactos), como os desloca de contexto. Um mesmo signo transita de trabalho em trabalho, passeia pelos diferentes suportes, mantendo uma aura de mistério, e dando vazão a uma profunda experimentação formal, que retira dos quadrinhos e da gravura (as duas principais atividades do artista) seus principais elementos.

Para compor aquilo que chama de “seu relatório de viagem”, todas as suas armas parecem ter sido convocadas, num interessante amálgama de técnicas e referências, criando um fluxo imagético contínuo, porém díspar. Água-tinta, água-forte, desenhos preparatórios, aquarelas sobre “impressões fantasmas” (obtidas sem entintar novamente a matriz, capturando apenas as marcas sutis das impressões anteriores), somadas a uma aventura ainda recente pelo campo da pintura (representada por quatro telas à óleo) compõem essa sedimentação de memória imagética de uma cultura da qual só podemos nos aproximar pelas beiradas, propositalmente deixando escapar muito por entre os dedos. Nas palavras de Toral, trata-se de um universo a ser tomado como referência, um motivo escolhido para, “como numa colagem”, elaborar “uma espécie de etnografia do imaginário, pessoal e coletiva, imprecisa e ao mesmo tempo baseada em fontes, contraditória e ordenada como são os sonhos e as memórias”. 

Escavações apontam vestígios do primeiro cemitério público da América Latina

Por Caroline Vieira

Em 1835, na região conhecida como Campo da Pólvora em Salvador, Bahia, foram mortos quatro africanos condenados pela participação na Revolta dos Malês. Os corpos foram enterrados numa cova comum de um cemitério vizinho destinado a indigentes e escravizados. Esta afirmação foi escrita pelo historiador João José Reis e publicada no livro Inventário dos lugares de memória do tráfico atlântico de escravos e da história dos africanos escravizados no Brasil em 2013. 

A morte aplicada a esses africanos, considerados rebeldes, ganha tintas ainda mais violentas ao sabermos que foram enterrados em uma cova comum, em um cemitério que foi apagado da história. Pelo menos era o que parecia até então, quando foi comunicada à imprensa no dia 26 de maio de 2025, que escavações preliminares confirmaram a existência de ossada no antigo cemitério dos africanos no Campo da Pólvora em Salvador, na Bahia. 

A localização aconteceu a partir de uma pesquisa em desenvolvimento por Silvana Olivieri. Ela nos conta que o processo se deu a partir do seu doutorado no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFBA e, também, de sua vivência no candomblé e do seu envolvimento com os debates contemporâneos do campo da filosofia e da antropologia, buscando mostrar como os processos de urbanização têm servido ao que Ailton Krenak chama de “guerra de mundos”. 

“Fazendo pesquisa de campo em Belém, em maio do ano passado, soube que existia um antigo cemitério de pessoas escravizadas, indígenas e indigentes, soterrado pela urbanização. Voltei para casa com uma questão: haveria um cemitério similar em Salvador, que eu desconhecia? Após duas semanas de intensa investigação, não apenas descobri a existência do cemitério do Campo da Pólvora, como consegui identificar sua localização exata, informação ausente dos estudos e trabalhos historiográficos recentes relacionados ao espaço fúnebre”.

“Inicialmente, a evidenciação ocorreu por meio do cruzamento de mapas e plantas de Salvador do século 18 com uma imagem de satélite da área, que foi sendo anexada a outros documentos bibliográficos (livros e artigos de revistas) que mencionavam o destino do terreno do cemitério após sua desativação em 1844, tudo indicando que o cemitério estava localizado sob o estacionamento do Complexo Pupileira, imóvel da Santa Casa de Misericórdia, no bairro de Nazaré”, situa Olivieri. 

A pesquisadora relata que entre a localização espacial do cemitério até a montagem de uma comissão envolvendo arqueólogos houve um grande processo. “Juntamente com Samuel Vida, professor da Faculdade de Direito e coordenador do Programa Direito e Relações Étnico-Raciais da UFBA, elaboramos um dossiê reunindo toda a documentação relativa à localização do cemitério do Campo da Pólvora e, no fim de julho (2024), encaminhamos ao IPHAN, acompanhado de uma solicitação de apoio institucional para realizarmos uma pesquisa arqueológica no estacionamento do Complexo Pupileira, em busca de restos mortais das pessoas sepultadas no antigo cemitério”, explica. 

“Inicialmente, as tratativas com a Santa Casa para obtermos a autorização para realização da pesquisa arqueológica foram conduzidas pelo IPHAN. Diante das dificuldades encontradas, em dezembro, pedimos apoio também do Ministério Público da Bahia, mais especificamente do Núcleo de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural – NUDEPHAC. No fim de março, através de um Termo de Cooperação Técnica elaborado por quatro promotores do MP, a Santa Casa finalmente autorizou a realização da pesquisa. Coordenada pela arqueóloga e antropóloga Jeanne Dias, que havia se juntado a nós ainda em julho, a pesquisa financiada pela empresa Arqueólogos com recursos próprios aconteceu entre os dias 13 e 23 de maio de 2025, sendo achados remanescentes ósseos humanos nas duas primeiras sondagens”.

Nesse primeiro momento, segundo informação da arqueóloga Jeanne Dias, “a pesquisa teve um caráter de diagnosticar, ou seja, localizar a presença dos vestígios desses enterramentos no local, cujo êxito foi alcançado no dia 19 de maio quando identificamos os fragmentos ósseos humanos a partir de 3 metros de profundidade”. Uma das maiores dificuldades relatada pela arqueóloga foi justamente a enorme densidade do aterro, o que dificultou a chegada até uma camada arqueológica considerada interessante para a pesquisa.

Os primeiros vestígios foram identificados a partir do quinto dia, numa área equivalente a aproximadamente três vagas, pois o cemitério também foi “enterrado”, como uma forma de ocultar esse episódio da história do Brasil na Bahia e dos escravizados. Com os achados da pesquisa, o cemitério pode ser identificado como um dos maiores cemitérios públicos da América Latina. A estimativa é que lá tenham sido enterrados mais de 100 mil corpos ao longo do período em que o espaço funcionou com essa finalidade. Segundo fontes históricas, o cemitério foi primeiro administrado pela Câmara Municipal e, logo depois, foi assumida a responsabilidade pela Santa Casa da Misericórdia. 

Historicamente, sabia-se da existência desse suposto cemitério ali pela área do Campo da Pólvora, mas a pergunta que fazemos aos envolvidos é a seguinte: Por que a demora em identificar, localizar e reconhecer esse espaço?

Os estudos e trabalhos historiográficos recentes, explica a pesquisadora Silvana Olivieri, que “falavam do cemitério do Campo da Pólvora, especialmente o livro A morte é uma festa, de João José Reis, publicado em 1991 e reeditado em 2022, não revelavam sua localização exata, nem o que aconteceu com o lugar após ter sido desativado pela Santa Casa, em maio de 1844. Essa lacuna na historiografia certamente contribuiu para a demora em achá-lo. Pode ter contribuído também a afirmação de Reis de que os restos mortais pertencentes ao antigo cemitério foram transferidos para o novo cemitério do Campo Santo. Ora, se os restos mortais tivessem sido realmente removidos, não haveria praticamente nada mais a se achar ali, com o local perdendo seu interesse arqueológico. Essa hipótese caiu por terra ao acharmos os restos mortais durante as escavações”, contextualiza Olivieri.

“A Santa Casa, por sua vez, embora declarasse publicamente não saber a localização do cemitério do Campo da Pólvora, nos encaminhou em dezembro a escritura de compra e venda da Pupileira, onde consta que o imóvel compreende “o terreno que serviu antigamente de cemitério”. Isso nos permite concluir que a instituição sempre soube que o antigo cemitério ficava na parte frontal do seu imóvel, escondendo essa informação da população, colocando um estacionamento em cima dos mortos”, ratifica. 

A descoberta dos ossos humanos no Cemitério do Campo da Pólvora remonta a 150 anos de história acerca desse espaço forjado no século 18. Um local altamente precarizado e que revelava como a sociedade baiana enxergava aquelas pessoas. O fato é que grupos humanos foram enterrados sem nenhum rito religioso. Perguntamos a Silvana como era feito o transporte dos corpos pela Santa Casa e se aquelas pessoas puderam, ao menos, ser identificadas. 

Novamente em A morte é uma festa, uma das principais referências da nossa pesquisa, João José Reis diz que “os sepultamentos no cemitério do Campo da Pólvora eram realizados em valas comuns e superficiais, geralmente em condições bastante precárias e indignas, sem nenhuma cerimônia religiosa ou rito fúnebre, nem há registro de capela. O transporte dos corpos para o cemitério era feito nos banguês, esquifes mais simples e baratos da Santa Casa, que detinha o monopólio do serviço funerário na época. Os Livros de Banguê, coleção de 11 volumes muito bem conservada pela Santa Casa, trazem informações preciosas sobre as pessoas levadas nos banguês para sepultamento no cemitério entre os séculos XVIII e XIX, incluindo a etnia, completa Silvana. 

Apesar desse terrível fato histórico, com a descoberta do espaço, real localização e a finalização das escavações no dia 23 de maio, o antigo cemitério do Campo da Pólvora foi registrado pelos arqueólogos no Cadastro Nacional de Sítios Arqueológicos do IPHAN como “Cemitério dos Africanos”, portanto já se encontra salvaguardado e protegido pelas normativas do IPHAN para esse tipo de patrimônio cultural e histórico, e agora a Santa Casa tem a responsabilidade de preservá-lo. Assim que o relatório arqueológico for concluído, o Ministério Público deve convocar uma audiência pública para ouvir as comunidades negras de Salvador sobre o cemitério, e se decidir quais devem ser os próximos passos. Uma das ideias que pretendemos discutir na ocasião é a criação de um memorial/museu, como já ocorreu/vem ocorrendo com outros cemitérios de escravizados localizados em cidades como Nova York, Rio de Janeiro e São Paulo”, finaliza Silvana Olivieri. 

A arqueóloga Jeanne Dias espera também que haja por parte da população um interesse em acompanhar os desdobramentos a partir das audiências públicas mediadas pelo Ministério Público, com a entrega do relatório final. Para Dias, esse tipo de descoberta proporciona “um acerto de contas com a História, gerando um engajamento na sociedade Brasileira e sobretudo na sociedade baiana, no que tange à discussão acerca do racismo e da discriminação social. O achado pode ser também uma oportunidade para falarmos um pouco mais sobre a história desses indivíduos nesse período sombrio, um período recente, mas que deixou máculas na sociedade e que, até hoje, a gente sente. E para pensarmos acerca da formação de uma memória coletiva sobre populações negras que vieram de África e que foram desumanamente tratadas e indignamente enterradas”. 

Por fim, que essa importante descoberta, encabeçada pelas duas pesquisadoras, Silvana Olivieri e Jeanne Dias, sirva, senão para dar dignidade àqueles que foram enterrados como seres abjetos, para iluminar o presente, impedindo que condições semelhantes se repitam nas favelas das capitais brasileiras.

Uma breve escrita sobre o desenho

O corpo da linha: notações sobre desenho, de Edith Derdyk
O corpo da linha: notações sobre desenho, de Edith Derdyk
Por Tatiana Eskenazi*

Vim pelo caminho difícil,
a linha que nunca termina,
a linha bate na pedra,
a palavra quebra uma esquina,
mínima linha vazia,
a linha, uma vida inteira,
palavra, palavra minha.
Paulo Leminski

No princípio, era a linha. Do primeiro traço humano, registrando o gesto, à elaboração da linguagem. Antes mesmo, do humano: a linha que dá forma ao mundo. Partindo de um paradoxo, “como um traço contínuo de uma só dimensão pode ser um corpo?”, e nos paradoxos reside um imenso potencial criativo, em seu novo livro O corpo da linha: notações sobre o desenho, a artista e escritora Edith Derdyk percorre um trajeto que não é linear, mas que segue um fio da meada em torno da linha e suas infinitas possibilidades, e propõe uma investigação sensível e profunda sobre o ato de desenhar.

O livro se organiza como uma costura de fragmentos (pequenos ensaios, aforismos, imagens e provocações) que se conectam por um fio condutor: a linha. Essa linha, no entanto, não é apenas formal. É também existencial. “A linha é condutora de uma experiência que atravessa o corpo, é território de trânsito entre o dentro e o fora”. Não à toa, por vezes, temos a impressão de tratar-se de um grande poema, um manifesto, ou um livro de artista. 

E se o corpo da linha quem dá é a mão que alinhava, assim a autora o faz. A linha como processo, em um alinhavar contínuo, “o gosto pelo caminho sem destino”. A intenção é esgotar a linha em todas as suas possibilidades — ainda que isso seja impossível. “E, porque inalcançável, impulsiona o eterno desejo de deslocamento, vocação da linha.” Porque aqui, nada importa mais do que o processo, a investigação, da arqueologia da linha a novas formas de ver e traçar futuros possíveis.

Articulando referências de diferentes áreas — filosofia, literatura, artes visuais — para aprofundar seu pensamento, somos conduzidos por um coro de autores, artistas e pensadores ao longo do trajeto. Foucault, Deleuze, Deligny, Simondon, Ponty, Valéry, Lispector, Mario de Andrade, Fernando Pessoa e muitos outros aparecem como vozes que se entrelaçam à sua reflexão, dando corpo ou ajudando a construir esse corpo em movimento da linha. Essas referências, no entanto, não se impõem como autoridade: são partilhadas como companhias de percurso, numa construção coletiva. “Não é uma citação que justifica, mas uma citação que pulsa, que vibra junto”.

Em O corpo da linha, Derdyk propõe pensar o desenho como uma forma de conhecimento sensível e intuitivo. Mais do que uma técnica, o desenho é apresentado como experiência do corpo, gesto de pensamento e modo de habitar o mundo. “Desenhar não é apenas traçar, é inscrever-se, é um modo de escuta, uma forma de estar presente”. O desenho como a língua mais antiga, “tão antiga  e tão permanente que atravessa o arco das civilizações, nosso convívio coletivo.” 

Uma das ideias centrais do livro é que o corpo está presente em todo gesto de desenhar: “O corpo inteiro está na ponta do lápis…” E não só o corpo físico, mas também o corpo simbólico, poético, político. “A linha é o corpo em estado de pensamento. É o corpo que pensa enquanto se move”. Ao desenhar, traçamos caminhos, criamos sentidos, fazemos escutas visuais, deixamos nosso rastro no mundo. 

Derdyk questiona as hierarquias tradicionais que opõem palavra e imagem, pensamento racional e sensível, teoria e prática. “O desenho não é ilustrativo, é constitutivo. Ele não representa, ele apresenta”. Recusa a normas que aprisionam os desenhos e o livre pensar, que reduzem nossas possibilidades de habitar o mundo. “Escapar da submissão do gesto que, sob o comando do olhar, por vezes subjuga todos os outros sentidos à informação da linha como contorno, e a decorrente suposta fidelidade ao referente, será aqui o nosso aprendizado, o nosso desafio.”

Para nos guiar por esse desafio de abandonar a ideia de linha como contorno, as formas fixas e estáticas, herança da linha cartesiana, a autora propõe dezoito novas possibilidades de linhas, cada uma acompanhada por citações que as disparam: linha-lama, linha-imensurável, linha-membrana, linha-aparição, linha-cartopográfica, linha-deriva, linha-é, linha-acontecimento, linha-emancipada, linha-performativa, linha-horizonte, linha-transitiva, linha-rasura, linha-nômade, linha-projétil, linha-fantasma, linha-teia e linha-destino. 

O livro também é uma defesa da potência do fazer manual, da lentidão, da atenção ao detalhe (práticas que resistem ao ritmo acelerado do mundo contemporâneo), e da valorização do erro como potência. “A linha que erra abre possibilidades. O erro, nesse contexto, não é falha, é desvio criativo”. O traço vacilante, a linha que hesita, o gesto interrompido: tudo isso ganha valor como parte do processo. Assim como a vida, o desenho é feito de incertezas. E é justamente aí que reside sua força.

Por fim, O corpo da linha não é somente um livro sobre desenho. É uma obra sobre o gesto de existir com atenção, curiosidade e entrega. Um convite à escuta, ao movimento e à presença. Como diz Derdyk: “O desenho é o intervalo entre o olhar e o gesto. É o tempo suspenso do corpo que pensa”. Só com um olhar atento, presente e curioso — entregue à escuta e ao movimento — é que podemos caminhar juntos. E só caminhando juntos, numa construção coletiva, é que podemos chegar a um lugar que interesse: a novas possibilidades de futuro.

*Tatiana Eskenazi (São Paulo, SP) é fotógrafa, poeta e escritora. Publicou os livros de poemas “Seu retrato sem você” (Quelônio, 2018) e “Na carcaça da cigarra” (Laranja Original, 2021). Ministra cursos e oficinas literárias e colabora com revistas e jornais.

Decolonizar, um ato cotidiano

Clara Sampaio, Mirella Schena e Felipe Gomes da Atmo Cultura junto a Patricia Rousseaux realizadores do evento

Esta edição especial de Arte!Brasileiros é resultado de um encontro. Um encontro de profissionais excepcionais, de diferentes estados e cidades brasileiras que trabalham incansavelmente na e pela cultura brasileira há anos. De pessoas cujo caráter e cuja empatia viabilizaram um trabalho impecável de quase oito meses, com o objetivo de realizar o primeiro Seminário Arte!Brasileiros Internacional fora das cidades hegemônicas, São Paulo e Rio de Janeiro.

Apesar dos brutais cortes de investimentos do governo bolsonarista, do obscurantismo em que o governo tinha mergulhado o país, encontramos, no Espírito Santo, uma intenção pública e política de investir em cultura e educação.

Parte da equipe de São Paulo e Vitória, com artistas, curadores e o Secretário de Cultura do Estado – ES, Fabrício Noronha

Assim, graças à Lei de Incentivo à Cultura Capixaba (LICC), à Secretaria de Cultura de Espírito Santo, na pessoa de Fabricio de Noronha, seu Secretario de Cultura, e ao patrocínio da EDP, empresa que atua em todos os segmentos do setor elétrico, e à parceria entre a ATMO, empresa de cultura de Vitória (ES) e Arte!Brasileiros conseguimos levar, nos últimos dias de março de 2025, duas dezenas de convidados nacionais e internacionais, pesquisadores, curadores, educadores, artistas e gestores de instituições hegemônicas e não hegemônicas, para um evento inesquecível. No Museu de Arte de Espírito Santo – MAES e na Casa de Música Sônia Cabral, centenas de participantes ouviram e debateram sobre narrativas apagadas da história brasileira, sobre iniciativas solidárias de ponta, suas atuações e sugestões de como trabalhar no coletivo e sobre a importância das interlocuções teóricas e territoriais Sempre dizemos que decolonizar é um ato cotidiano, na ciência, na educação, na cultura, na arte.

A defesa da democracia, da justiça social, depende da elaboração permanente de metodologias críticas e projetos de estratégias na defesa de uma civilização que está ameaçada ecológica e humanamente. Acompanhem estas páginas e comprovem esse encontro especial. ✱

Boa leitura!

Colaboradores da edição especial Vitória – ES

Luiza Lorenzetti é jornalista, especialista em Mídia, Informação e Cultura pelo CELACC-USP. Foi coordenadora de comunicação do FETESP – Festival Estudantil de Teatro do Estado de São Paulo. Atualmente, é Gerente Web da arte!brasileiros

Coil Lopes é desenvolvedor multimídia, designer, videomaker e programador. Atuando na ARTE!Brasileiros desde sua fundação, integra criação e tecnologia, produzindo fotografias, vídeos, newsletters e gerenciamento do portal.

Eduardo Simões Jornalista, trabalhou em O Globo, na Folha de S.Paulo, e atualmente colabora com a edição da revista arte!brasileiros digital e impressa.

Clara Sampaio Artista, curadora e pesquisadora de arte. Integra o coletivo ATMO como curadora e gestora de projetos, além de participar de exposições, residências, cursos e publicações. Escreve sobre a instalação Wi-Fi Grátis, montada na biblioteca do Museu de Arte do
Espírito Santo (MAES).

Nicolas Soares é artista, pesquisador, curador e gestor cultural formado pela Escola de Belas Artes da UFBA, em Salvador, e Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Artes da UFES, em Vitória. Diretor do Museu de Arte do Espírito Santo, assina um artigo sobre Nice Nascimento.

Fotos: arquivo pessoal

Território, espaço e pertencimento

Fotos: Ana Luzes

Ana Luzes é artista visual capixaba, nascida no centro de Vitoria e criada no Morro do Quadrado. Desde muito jovem a sua paixão foi a fotografia, fazendo dela uma forma de documentar seu entorno. Já com 22 anos, se graduou em Fotografia pela Universidade de Vila Velha (UVV) e resolveu começar a retratar a periferia, mostrar suas raízes, suas historias. Participou da exposição virtual “Séries sobre o isolamento” no Museu Vale em 2021 e atuou com fotografia documental na matéria “Sobreviver para cuidar: Os degraus da vida de Lenir”.

Em 2022, participou da projeção O URBANO ENTRE A REALIDADE E A UTOPIA no Festival de Fotografia Tiradentes e Rotterdam Photo. Com imagens da serie Só se afoga quem sabe nadar (2021), tiradas no Rio Santa Maria, que beira a Ilha das Caieiras.
Em 2023, participou das exposições BRIDGING HORIZONS: Brazilian Photography Today, nos Estados Unidos e Otros Brasiles: La fotografía como expresión de la resistencia, na Cidade do México.

Há mais de três anos, Ana Luzes desenvolve uma pesquisa sobre as criações que existem dentro da favela, em parceria com o Instituto Serenata de Favela. Ao todo, ela dá aula de fotografia e conduz oficinas para 200 crianças.

Na exposição GENESIS: A CRIAção, a artista apresentou, na Galeria Homero Massena, em Vitória, instalações fotográficas baseadas nas 7 etapas de criação do mundo, segundo o primeiro livro bíblico Gênesis, que narra desde um ponto de vista religioso, a origem do mundo. Ao registrar imagens que dialogam com a realidade das periferias, a artista, moradora do bairro Santa Tereza e a iniciativa “cria” , do Morro do Quadro, apresentam intervenções de fragmentos de um grande universo criativo dos bairros do Quadro, Cabral, Jesus de Nazareth, Inhanguetá e Grande Vitória, enfatizando suas vivências, manifestações culturais e resiliência em meio à desigualdade social e que trazem a tona diversos momentos com palavras chaves da historia bíblica.

“Essa pesquisa e estudo para a produção das imagens não foram feitas nos livros, com nenhuma teoria ou especialista em favela , essa pesquisa foi feita na prática com as comunidades, com muitas visitas, conexões e reflexões que influenciaram nas decisões estéticas ou narrativas. Deste modo, a exposição não foi feita apenas sobre eles mas, fundamentalmente, com eles.” diz a curadora Nataly Volcati*.

A exposição é resultado também de um projeto educacional, que inclui o uso de smartphones e câmeras para fazer registros. Crianças são também estimuladas a participar da experiência fotográfica.

“Gênesis é minha primeira exposição individual, mas me orgulho em saber que foi construída de forma coletiva com as pessoas envolvidas no projeto. É o início de uma trajetória que busca trazer as memórias das favelas capixabas para o olhar de outros públicos. Exibir essas experiências na Galeria Homero Massena, um espaço de referência para pautas políticas contemporâneas, reforça a presença da periferia no Centro Histórico de Vitória”, diz Ana Luzes.

“Todo o meu trabalho é sobre, também, um pouco da minha história. Sempre quis abordar a favela de uma perspectiva diferente, de uma perspectiva que encantasse as pessoas e eu acho que isso acabou gerando um bom resultado”.


* Nataly Volcati, cria do bairro Grande Vitória, em Vitória/ES, é pesquisadora-artista e gestora de projetos culturais. Curadora estreante da exposição GENÊSIS: A CRIAção, ao lado da artista Ana Luzes, Nataly traz ao seu trabalho uma abordagem crítica e consciente das questões étnico-raciais, com uma projeção de continuidade na prática curatorial. Formada em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), com ênfase em Sociologia Urbana, atualmente cursa especialização em Gestão de Projetos Culturais no Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação (CELACC/USP). Sua pesquisa explora temas como memória e identidades afro-brasileiras e das periferias urbanas, permeando sua atuação intelectual, artística e cultural. ✱

‘Aprendi com meu pai a ler as coisas como vivas’

Círculo Máximo
Círculo Máximo, Geovanni Lima (MG), no Parque de Cultura do Governador, com vista ao mar. Fotos: Divulgação

ARTE!✱ – Seu percurso se inicia pela literatura…
Sim. Eu transito bem nesse campo interdisciplinar, gosto disso, tudo o que faço vem de alguma forma da poesia. Uma busca sempre atravessada por um olhar poético, sobre a forma de ler. Meu primeiro emprego foi numa editora, depois fui trabalhar com publicidade, música, artes. Trabalhando um pouco com tudo que ia chegando. Aprendendo enquanto fazia. Letra de música, cenografia, filme, designer. Fiz cenário para Gal, Macalé, Adriana Calcanhotto. Eu acho que tudo isso para mim vai se conectando. Comecei a fazer curadorias e, de alguma forma, a maneira de pensar é atravessada por essa minha formação, acho que familiar. Meu pai [o escritor e diretor artístico Waly Salomão ] era poeta e também conviveu no meio de artes plásticas. Cresci nessa mistura, nesse caldeirão de referências. Minha formação e a minha vida vão juntas.

Vários anos depois de formado, em Comunicação: Jornalismo e Cinema, voltei para a universidade para fazer mestrado, justamente porque na PUC do Rio de Janeiro tinha esse programa que pensava a literatura no campo ampliado (pegando ali da Rosalind Krauss e a forma de entender a escultura como algo muito além das fronteiras do objeto escultórico e do monumento), que se chamava Literatura, Cultura e Contemporaneidade. E lá era isso, a mistura, olhando pra cultura de forma múltipla. Sem aquela bobagem de contar palavras e rimas pra julgar um poema, para mim uma perda de tempo quando tem tanta coisa incrível acontecendo num bom poema. A forma objetiva, pragmática, eficiente de ler um poema ou uma obra de arte é a eliminação das possibilidades, é o desencantamento da arte. Ou como escreveu em algum lugar [o filósofo checo-brasileiro Vilém] Flusser, estão confundindo rigor com rigor mortis. Ou ainda, como me disse certa vez um professor, “o que importa é a possibilidade de invenção de novos sentidos para o mundo”. Ou seja, o que importa é o desvio.

Um projeto do qual tenho muito orgulho virou livro publicado pela Cobogó, Flutua pelas ruínas, flutua, em parceria com a Editora PUC-Rio e o David Rockefeller Center for Latin American Studies. Na sequência entrei num doutorado lá em Harvard, que foi uma loucura, muda tudo, suas referências, seu ponto de vista, tudo se multiplica. Uma experiência de desamparo que te tira o chão, e aos poucos você vai enraizando novamente, se encontrando.

E eu aprendi assim, com meu pai, a ler as coisas como vivas. Você pega um livro, uma obra de arte, e dialoga, conversa. Alterar. Nômade. Não tenho esse olhar sobre a coisa morta, de dissecar. Fico buscando o pulsar nas coisas. Essa foi minha formação: meu pai, Heloisa Teixeira, Marcelo Yuka, Tunga. Humor e bagunça. Criar e colocar pra fora, em movimento.

ARTE!✱ – Como você chegou ao Parque Cultural Casa do Governador? Acha que seu perfil influenciou no convite?
Sim, o Fabrício Noronha, que é o secretário de Cultura de Espírito Santo, tem uma visão muito ampla, criou em 2021 um edital para esculturas nos arredores da Casa do Governador. Foi o primeiro edital nacional de cultural do estado e transformou aquele enorme espaço em um parque. A Casa do Governador já ocupava uma mítica na cabeça de todo capixaba, um terreno na beira do mar, inacessível. As esculturas permitiram o início da abertura para a população. Na sequência, fizeram mais um edital de esculturas, e com o sucesso e a curiosidade, especialmente a partir de um evento quinzenal chamado Parque Aberto – que, como o nome diz, abria o Parque para todos com shows, eventos, food trucks – o governador Renato Casagrande e o Fabrício criaram o Parque Cultural Casa do Governador. É um espaço incrível, um bosque à beira-mar.

E é aqui que eu entro. Junto com o instituto selecionado para gerir o espaço: o IAC. Eu chego para tentar organizar essa personalidade artística do Parque. Os editais foram muito importantes, mas geralmente criam um todo muito disperso. Um dos desafios (são muitos) é dar força a esse conjunto e expandir. Desenvolver as potências que o Parque tem como um local de convivência com a arte, de estímulo, de encontro, de catalisador.

ARTE!✱ – Parece ter sido uma tendência terceirizar a gestão de espaços públicos através de uma empresa dedicada. Você acha que é isso mesmo? As OSCs, elas têm liberdade de contratação, são autônomas?
É uma parceria. O governo é o, digamos, cliente. Tem a escolha, a voz, ou seja, pode determinar a direção. Mas é isso, é uma parceria. A OSC consegue ser mais dinâmica, trazer outras formas de investimentos. É menos amarrado. E eu acho que no meio das artes funciona, porque o espaço artístico é muito idiossincrático. Ele depende de muitas formas de pensamento. É muito importante criar políticas de desenvolvimento cultural, e isso não acontece com editais de produção de obra, de desenvolvimento. É bom existir, mas muitas vezes acaba mais por segregar, porque cria uma competição, do que unir. E para a produção artística, para a criação, o encontro, a troca, o convívio, o acaso, tudo isso é incrivelmente importante.

Algo que é muito importante num centro cultural fazer as pessoas olharem as coisas de forma diferente, movimentar. E se essa estrutura for muito dura, você não consegue ter essa maleabilidade. Existe uma preocupação minha de [o Parque] não se tornar também só um lugar de evento, um lugar que você vai porque tem algo acontecendo, um show, uma feira, por exemplo, e depois vai embora. Fica tudo reduzido a números: passaram tantas pessoas, que incrível. Engorda os dados. Mas quando aquilo poderia ter acontecido em absolutamente qualquer outro lugar, não se constrói nada, se esvazia. É importante tentarmos criar uma relação com o espaço. Por isso o Parque é um espaço que tem que abrigar, receber as pessoas, pelo que o próprio espaço é. Acho que temos o compromisso de se criar legados, de estimular e criar raízes, aprofundar o trabalho no Parque em algo que se transforme em parte da cidade, que vire parte da vida dos moradores.

ARTE!✱ – Que iniciativas já foram tomadas e quais estão por vir?
Internamente estamos cuidando do espaço e das obras – que nunca tinham recebido manutenção. Reorganizando caminhos para desenhar novos sentidos. E estamos articulando para receber obras de artistas importantes para colocar o Parque no roteiro nacional das artes. Não p

osso dizer nomes ainda, mas fiquem de olho, tem coisa boa vindo. Nessa mudança de novos caminhos, vamos mudar a entrada de forma a criar todo um novo fluxo de relação com o parque. Tem um projeto de derrubar o enorme muro e fazer um gradil, arejando mais a conversa com a rua.

Uma das primeiras novidades, agora já em maio, é o ciclo Desnaturada, com curadoria do Ailton Krenak. Serão três dias de mergulho para pensar a própria ideia de natureza, para gerar futuros alimentados pela ancestralidade, renaturalizar-nos. E qualquer oportunidade para ouvir um sábio como o Krenak, ou o Sidarta Ribeiro, é incrível. O Ailton Krenak tá sempre desconcertando, de passo em passo, de uma maneira muitas vezes sutil, ele desdobra a conversa para te levar por caminhos enviesados. É uma alegria trocar com ele. É uma honra poder recebê-lo dessa forma.

Outra invenção que estamos levantando junto com o Nathan Braga, e que acho que vai ser o grande transformador, é criar uma escola dentro do parque. Estamos aproveitando algumas atividades que existiam no Plano de Trabalho que trazia demandas da Secretaria de Cultura e jogando a barra lá pra cima: ao invés de oficinas e atividades de um dia, trazer um projeto mais completo e integrado, uma escola livre capaz de misturar o meio ambiente, agrofloresta com estudos de arte, de desenho. Não uma escola com um viveiro, uma horta, dentro, mas um viveiro-escola onde se vivenciaria encontros com a natureza, do ambiente e da criação como experiência na arte, como uma atitude de integração com a vida. Pensar formas de vida, entender o outro, desnaturalizar para ler o ritmo do que nos cerca. Escola e viveiro integrados para ser um berçário de futuros. Escola Viva de Artes, a nossa EVA.

Um espaço que sempre me estimulou e inspirou foi o exemplo da escola do Parque Lage no Rio de janeiro. Foi um lugar que frequentei de criança, participava da Colônia de Férias no Parque Lage. Ficava lá, rabiscava, ficava correndo pelo parque. E, ao longo da vida, ia encontrar amigos, viver o lugar, conhecer pessoas, trocar ideias. Por isso o Parque Lage foi importante para tantas gerações, assim como o MAM-Rio na década de 1960, ou a UFBA [Universidade Federal da Bahia, em Salvador] com Edgard Santos antes disso. Esses lugares, por sua simples abertura ao convívio, geram coisas que reverberam por décadas.
Enfim, é um círculo que permitirá ir despertando novas inquietudes nos frequentadores. Mas é isso. Nesse momento temos o desafio e a reflexão de criar esse plano. Eu estou voltando para o Brasil justamente para me envolver com tudo isso aí.

ARTE!✱ – Você nasceu no Rio?
No Rio. Na Zona Sul, mas cresci em Salvador, meu pai foi ser coordenador do Carnaval da Bahia, levado por Gil. Depois voltei pro Rio, andando por todo canto. Já morei em tantos lugares, nem sei mais dizer de onde vim. Adoro mapear lugares novos.

ARTE!✱ – Como estão organizados para a gestão do Parque?
Fred Mascarenhas e Mirella Schena são os coordenadores do Parque. Fred no administrativo e Mirella no artístico-cultural. Eu entro como curador: diretor curatorial. Outra peça bem importante é o Nathan Braga, que é o nosso diretor pedagógico. Ele estava morando em Porto Alegre, trabalhando no educativo da Bienal do Mercosul, e importamos ele pra cá. Uma aquisição superimportante para a gente – especialmente agora com o projeto da EVA.

Na diretoria temos ainda a Dani Maia, que cuida da produção, e recentemente entrou a Melissa, para a Comunicação. Mas a equipe toda é incrível. Mirella, Fred e eu começamos montando a equipe, e temos uma sintonia deliciosa, muito produtiva. Meu braço direito aqui no Parque é o David Trindade, que cuida da manutenção e conservação das obras, e é artista também. Aliás temos alguns artistas/criadores na nossa equipe: o Nathan é um artista da pesada, a Mirella também é cenógrafa, o Kaique, da produção, é DJ e formado em arte, entre outros. Isso gera um olhar e um clima especial aqui dentro. ✱

Intromissão

Wi-fi Gráti
Instalação Wi-fi Grátis (ou Intromissão). Foto: Melina Furlan

Por Clara Sampaio
Colaboraram: Carlo Schiavini e Elvys Chaves

Wi-Fi grátis é uma frase familiar em boa parte dos centros urbanos, acompanhada de símbolos que se tornaram parte da linguagem visual contemporânea. Invisível, mas essencial, essa rede conecta pessoas, rompe barreiras físicas e redefine a maneira como o conhecimento e a participação se tornam possíveis. No contexto da obra proposta pelos artistas Carlo Schiavini e Elvys Chaves para o 8º Seminário Internacional Arte!Brasileiros em Vitória, porém, essa ligação se propõe como um gesto de “hackeamento”, uma atitude que questiona as estruturas institucionais e a própria materialidade do objeto de arte.

Como podem os públicos estarem ainda mais ativos e engajados? Quais corpos são incluídos ou excluídos das instituições culturais? Partindo dessas questões, os artistas criam uma escultura que explora o deslocamento crítico entre dentro e fora, arte e público.
Posicionada na biblioteca do Museu de Arte do Espírito Santo (MAES) – um lugar simbólico do papel educativo da instituição – a obra estabelece um diálogo direto entre o espaço do museu, seu acervo e a cidade, acionado por transeuntes, que, por meio de uma câmera na fachada do museu, incorporam uma veste digital.

Por sua vez, dentro da biblioteca, imagens são construídas em diversas superfícies, televisores com “defeito”, cujas particularidades de emissão de sinais e glitches compõem pictoricamente seu desenho. Em um deles é possível ver o modelo humano que gerou o elemento vestível: encontrado em um banco de dados, este corpo vazio, misterioso e sem cor, conecta-se aos seus semelhantes num espaço digital infinito: sem tempo, sem som, sem lugar.

Essa fusão entre o corpo e a tecnologia, expõe a onipresença de sistemas que sobrepõem as dimensões do público e do privado, do indivíduo e do coletivo. É a partir nessa noção de rede, que não apenas une, mas também permite observar e codificar, recombinar e materializar, que este trabalho se situa.

A instalação se estrutura a partir de uma composição vazada em ferro, sustentando televisores, painéis e outros dispositivos, criando um ambiente que remete tanto à transparência quanto à exposição dos meios de comunicação e controle. Para os artistas, “a ferragem exposta não é um detalhe secundário, mas um elemento essencial para que a obra cumpra sua função crítica e conceitual. Ela evidencia os processos e materiais de construção e reafirma a necessidade de espaços artísticos mais abertos, acessíveis e transparentes.”

Nesse embate entre corpo e tecnologia, a fusão entre o humano e a máquina se torna inevitável, e, como nos propõe Haraway 1, “há prazer nessa confusão de fronteiras, mas deve haver responsabilidade nessa construção”. A obra não apenas materializa essa interseção, como também alerta para seus riscos, evidenciando os limites fluidos entre criação humana e artificial, presença e controle, autonomia e vigilância.

Essa experiência convoca as pessoas ao risco: o de serem capturadas, mesmo que momentaneamente, ainda do lado de fora — e instadas a entrar, se quiserem. Wi-Fi Grátis pretende cativar com seu aparente “lugar comum” e convidar a uma reflexão e uma percepção mais profunda das urgências que nos atravessam.

O atrevimento em disponibilizar uma rede de internet em uma instituição ainda sem esse serviço, entende tal questão como urgente, e o gesto como mote e obra. Insere o trabalho na longa tradição da desmaterialização do objeto artístico, mas reafirma sua atualidade ao ressignificar a presença e a democratização dos espaços institucionais. No cruzamento entre tecnologia e estética, questiona-se não apenas o que significa estar conectado, mas para quem essa possibilidade realmente está aberta.

(1) Haraway, Donna J. Manifesto Ciborgue. O Manifesto das Espécies de Companhia. Tradução de Ana Maria Chaves. Lisboa: Orfeu Negro, 2022. ✱

Uma trajetória entre a produção artística e gestão cultural

Nicolas Soares
Nicolas Soares, diretor e curador do MAES, na inauguração da instalação Wi-Fi Grátis. Foto: Divulgação

ARTE!✱ – Nicolas, conta um pouco da sua trajetória. É raro encontrar gestores de instituições tão jovens. Quantos anos você tem?
Nasci em Cachoeiro de Itapemirim, no sul do Espírito Santo, em 1987, e sempre vivi fora do estado. Morei no estado do Rio, em Goiânia e em Salvador. Ingressei na Escola de Belas Artes da UFBA, em 2006, com o entendimento de que queria ser artista. Me identifiquei com a fotografia e, logo no início, entendi que esta seria a minha principal pesquisa.

Produzi muito durante o período da universidade. Na época, tínhamos um grupo de amigos artistas, todos da Escola de Belas Artes. Nós propúnhamos diversos projetos e montávamos exposições, muitas delas independentes, em espaços institucionais como Galeria do Conselho, Instituto Cervantes, Aliança Francesa, Galeria de Arte do ACBEU, entre outros. Individualmente, por meio de seleção em chamadas públicas: os Salões Regionais da Bahia (Funceb), Bienal do Recôncavo e Salão da Bahia, no Museu de Arte Moderna (MAM Bahia). Ocupei, entre os anos de 2008 a 2011, diversos espaços expositivos em Salvador, e essas atividades me colocaram em alguns circuitos.

Minha pesquisa como artista está centrada na imagem, em pensar as questões relacionadas à imagem-cultura e imagem-arte. O corpo sempre foi uma atenção à qual me dediquei (e continuo me dedicando): o corpo do outro, as relações de desejo, as relações de poder que o corpo exerce e às quais se sujeita também na cultura. Em um momento, também fui entendendo o meu lugar como um artista negro munido de uma câmera. Tendo o poder de definir imagens – quais imagens e como! Os discursos e as narrativas. Porque o embate, na verdade, parece indissociável e definitivo: que a existência e a ação do meu corpo – pessoalmente – atravessem o trabalho e as imagens que produzo.

A partir daí, dando um salto histórico nesta narrativa, retorno ao Espírito Santo. Vim para Vitória em 2012, e fiz o mestrado no Programa de Pós-Graduação em Artes da UFES. No meu percurso acadêmico, fui professor substituto, assim como orientador de TCC do Ensino à Distância em Artes, na mesma Universidade, entre 2016 e 2018. Neste momento, exercendo atividades no Departamento de Artes Visuais e inserido numa vivência da academia, entendi que o ensino – dar aula – era um trabalho de arte, de certa forma, como um arranjo curatorial: a possibilidade de organizar conceitos, textos, imagens e artistas. De estender meu trabalho no espaço discursivo que é a Universidade, e por muito, o melhor lugar para ser artista.

ARTE!✱ – E quando você passou a gerenciar espaços culturais?
Fui convidado, em 2019, para entrar na Secretaria de Cultura do Estado do Espírito Santo e assumir a coordenação da Galeria Homero Massena, que é um espaço de artes visuais tradicional no nosso cenário. Um fato curioso é que a Galeria foi o primeiro lugar que visitei quando cheguei em Vitória, em 2012. Em 2015, expus na Galeria uma pesquisa que estava desenvolvendo desde 2011, em Salvador, por meio do Edital de Artes Visuais do Funcultura (Secult). A exposição Esta Aporia: Uma Liturgia do Desejo compreendia uma reunião de fotografias em preto e branco, entre paisagens e gestos simbólicos de corpos nus masculinos na paisagem (que é a linguagem e estética com a qual trabalho há 20 anos), tentando entender como o desejo é uma força que, ao mesmo tempo em que nos impulsiona, também pode nos fragilizar como sujeitos, e, principalmente, forçando a imagem fotográfica em seu lugar devocional. Ainda ao fim da exposição, propus uma ação/videoinstalação no interior da Capela Santa Luzia – capela de arquitetura colonial, datada de 1537, que nos anos 1970 foi a Galeria Arte e Pesquisa da UFES e presenciou diversas manifestações experimentais. Esta pesquisa se desenrolou ainda em Esta Aporia: AMENSAL, apresentada na Casa Porto das Artes Plásticas, em 2016, também selecionada pelos Editais do Funcultura.

Discorri tudo isso para dizer que tenho uma relação afetiva com a Galeria Homero Massena. E ter a oportunidade de contribuir, durante a gestão, para o pensamento deste espaço, para mim, foi um privilégio! Porque uma das relevâncias, em quase 50 anos de Galeria, é que muitos artistas capixabas hoje reconhecidos em suas trajetórias expuseram na Homero Massena. Sempre foi um espaço de experimentações artísticas, respondendo e atravessando estas cinco décadas. De alguma forma, ela nos conta uma história da arte a partir daqui.

ARTE!✱ – Para além das exposições que a galeria produz por meio do Edital de Artes Visuais do Funcultura do Estado, quais foram os projetos que a própria galeria propôs que fortaleceram essa personalidade?
Durante a minha gestão na Homero, em sua missão principal como espaço de arte pública e sua posição na cena artística em todos esses anos de funcionamento, reforcei seu caráter de abertura à nova produção artística. Dessa forma, paralelamente às produções das exposições selecionadas pelos Editais do Funcultura, ativamos uma programação que pudesse estreitar esses diálogos: três edições da Mostra Videografias (2019–2021), Ciclo de Pesquisa e Formação (2019) e duas edições do Fórum da Imagem (2020–2021), todos com abrangência nacional.

As mostras de vídeo tiveram três recortes com artistas não só do Espírito Santo: Videografias do Corpo, Videografias do Meio e Videografias do Convívio — as duas últimas durante a pandemia, sendo umas das primeiras ações da Secretaria de Cultura com apoio de transmissão da TVE. Ainda durante a pandemia, realizamos os dois Fóruns da Imagem: Construção de Imagens Urgentes e Imagens em Trânsito. Foram ações discursivas articulando pesquisadores, artistas e ações educativas – resultando em duas publicações impressas e exposições, com mais de 50 artistas de todo o país. Essas atividades, por meio de chamadas públicas nacionais, me possibilitaram acessar jovens artistas de outros lugares e me trouxeram uma atenção maior a um exercício de curadoria que estava começando a fazer.

Pensar uma articulação para fora do estado é uma preocupação. Logo no início da minha coordenação na Galeria, propusemos um ciclo de palestras que acompanhava as exposições previstas no calendário. O Ciclo de Pesquisa e Formação convidou artistas da cena do Espírito Santo, como Hilal Sami Hilal, e pesquisadoras como Tatiana Rosa, em torno de alguns debates propostos. Como também apresentou e trouxe para Vitória nomes importantes da arte contemporânea nacional, como o pesquisador Guilherme Marcondes, os artistas Ayrson Heráclito e Paulo Nazareth, e a curadora fundadora da Associação Cultural Videobrasil, Solange Farkas. Acredito que este momento tenha sido importante para nos reposicionar também frente a um circuito nacional, além do fortalecimento da própria Galeria como um espaço de discussão da arte contemporânea.
O isolamento histórico do Espírito Santo é quase um trauma, porém nossa pulsante produção nas artes visuais tem vazado as fronteiras e se desvinculado desses apagamentos. Devemos considerar que o incentivo público, a exemplo dos 16 anos ininterruptos do Funcultura, e principalmente na atual gestão do Governo e da Secretaria de Cultura (desde 2019), tem investido no aumento dos recursos e repasses, e contribui de forma significativa para a produção, articulação e intercâmbio da nossa produção em artes visuais, que cada vez mais tem se mostrado nas cenas nacionais e internacionais. Realmente, a produção artística tem conseguido transpor fisicamente o território, e, obviamente, é mérito de cada artista em seus percursos e “corres”, nas frentes de batalha que todos nós, na arte, enfrentamos insistentemente. Tenho muito respeito e orgulho pelo que todos nós estamos contribuindo por esta história.

ARTE!✱ – E quem foi Homero Massena?
Homero Massena foi um dos grandes nomes da arte capixaba – mesmo sendo mineiro –, radicado no Espírito Santo, representou a paisagem do Estado no repertório de seu trabalho. Morou na Prainha, um dos primeiros bairros de Vila Velha, aos pés do morro que abriga o Convento da Penha – que, por sinal, sua subida de pedras foi retratada diversas vezes por ele. Embora esteja ligado ao modernismo, o estilo dele tem muito de impressionismo.

Homero Massena é uma figura fundamental no repertório artístico daqui, e suas pinturas atravessam gerações, como também merecem ser revistas discursivamente, a partir dos debates de agora.
Hoje, a casa em que ele morou é o Museu Homero Massena, com gestão da Prefeitura de Vila Velha. A Galeria Homero Massena, com gestão da Secretaria de Cultura do Estado, inaugurada em 1977, homenageia e, de alguma maneira, fortalece o elo entre a história e a continuidade da arte contemporânea a partir daqui.

ARTE!✱ – Quando você assume a direção do MAES? E como tem percebido sua atuação?
Em fevereiro de 2022, assumi a Direção do Museu de Arte do Espírito Santo, o MAES. O Museu estava fechado há alguns anos, por conta de um processo de reforma que reestruturou fisicamente os espaços internos, tanto administrativos quanto o espaço expositivo. Esse processo ocorreu entre 2016 e 2019; em 2020, o Museu foi reinaugurado em meio à pandemia (na primeira brecha de circulação de pessoas e reabertura dos espaços), com a exposição VIX – Estórias Capixabas, articulando dois artistas do acervo, Dionísio Del Santo e Elpídio Malaquias, com artistas contemporâneos capixabas e de fora do estado.

A pandemia foi um momento muito frágil para os espaços. E em 2022, quando assumi a Direção, a instabilidade provocada pela pandemia contribuía para o afastamento do público do Museu, e ainda não haviam sido ativadas todas as suas potências em sua nova configuração pós-reforma. O desafio que tomei pessoalmente foi – e tem sido – movimentar o MAES e expandir suas atividades com a cena cultural local, além de articular com outras instituições de representação nacional.

O MAES completa 27 anos em dezembro de 2025. Sua missão inicial de ser o grande museu do Estado foi desenhada entre os anos de 1980 e 1990 pelo crítico e curador – também capixaba de Cachoeiro de Itapemirim – Paulo Herkenhoff, em parceria com a gestão do Departamento Estadual de Cultura (DEC) na época. A reivindicação transformou o MAES em um equipamento de interlocução com grandes exposições “de bilheteria” que circulavam nacionalmente pelas capitais do país – exposições que vinham formatadas para ocupar os espaços expositivos aqui do Museu.

Com o passar do tempo, o Museu se desvinculou desses pacotes de exposições e, principalmente a partir de sua entrada como uma linha de fomento para compor a agenda, pelos Editais do Funcultura, em 2016, estreitou de forma significativa suas atividades e pensamentos com a nova produção artística local. Essa virada é o fôlego que estamos articulando agora com a minha gestão. São três exposições selecionadas pelo Edital, porém outras frentes foram demarcadas a partir de 2022, como a abertura de uma sala de exibição permanente do acervo e a ativação da biblioteca, além de parcerias institucionais, tanto com agentes do Espírito Santo quanto de outros Estados e importâncias no cenário da arte contemporânea nacional e internacional.

O programa Acervo em Diálogo, da sala de exibição permanente, aproxima recortes curatoriais a partir das nossas coleções com outros acervos e artistas, como já aconteceu com o Arquivo Público do Estado, a Galeria de Arte Espaço Universitário – UFES e até mesmo com o Grupo de Experimentação Sonora da UFES. Expor o acervo de forma sistemática me parece ser uma oportunidade não só de rever, como também de atualizar o pensamento e as perspectivas do nosso acervo e do próprio Museu.

Entre as parcerias interinstitucionais, podemos destacar a exposição inédita da Associação Cultural Videobrasil, em 2022, REVIRAVOLTA, que aconteceu no MAES e na Galeria Homero Massena simultaneamente. Também tivemos a retrospectiva do artista expoente da videoarte Éder Santos, em 2023, além da itinerância da 35ª Bienal de São Paulo, Coreografias do Impossível, também com extensão até o Palácio Anchieta, em 2024, e a exposição Favela é Giro, do Museu das Favelas, em 2024. Todas elas reforçam o papel institucional do Museu em âmbito nacional – não apenas recebemos as exposições, como também pensamos e produzimos junto, acionando a cena e os profissionais da área no Espírito Santo. Inclusive, podemos destacar o papel do MAES na articulação do VIII Seminário Internacional Arte!Brasileiros, pela primeira vez fora do Estado de São Paulo.
Além disso, quanto ao acervo, nosso olhar e revisitas às coleções também nos impulsionaram em novas incorporações durante esses três anos: pelo menos 30 novos trabalhos e artistas entraram em nosso acervo. Recentemente, lançamos um programa de aquisição que vinha sendo desenhado desde 2022 com a minha entrada: o Edital Diálogo com Acervo faz o exercício de olhar para dentro e propor conexões com a arte contemporânea nacional. Nesta primeira edição, a proposta curatorial se volta para uma artista do nosso acervo, Nice Avanza. E, dessa forma, é 100% direcionado a artistas negros, negras e indígenas – uma inserção direta de dez artistas, que se mostra fundamental na história do MAES e na tentativa de reparação e pluralidade para o acervo. O acervo está sendo composto desde a inauguração do Museu, hoje com mais de 600 obras, e tem cinco principais coleções: Dionísio Del Santo, Nice Avanza, Elpídio Malaquias, Raphael Samú e Maurício Salgueiro. Outros artistas e obras orbitam e compõem o acervo como um todo.

Podemos também destacar uma outra ativação que temos provocado dentro do Museu, com a cena musical. A programação MAES TONS aproxima a produção de artes visuais com a produção musical, e também aproxima e cria interlocuções entre os públicos. Já tivemos três edições com contribuições curatoriais da Faculdade de Música do Espírito Santo (FAMES) e dos Centros de Referência das Juventudes (CRJs).

ARTE!✱ – Conte-nos um pouco da trajetória do MAES…
O MAES foi inaugurado em 1998 com uma exposição dedicada à trajetória e à produção de Dionísio Del Santo, reconhecido como um dos nomes fundamentais do modernismo brasileiro. Dionísio era um artista minucioso nas técnicas gráficas, além de dedicado à pintura, investindo em uma precisão geométrica em suas composições. Nascido em Colatina, aqui no Espírito Santo, viveu e produziu no Rio de Janeiro, mas sempre foi identificado como um artista capixaba.

Inclusive, tem um detalhe curioso e muito interessante: foi ele quem auxiliou na gravação em silk das garrafas de Coca-Cola no projeto Inserções em Circuitos Ideológicos, de Cildo Meireles. Apesar de trabalhar com linguagens tradicionais, Dionísio também contribuiu para um momento histórico da arte experimental. Considerado por muitos um artista concretista, Dionísio, no entanto, não se via assim.

Acredito que seja muito simbólico que a exposição de Dionísio tenha marcado o início do Museu, fruto de uma longa negociação e trocas com a Secretaria de Cultura, como podemos ver em alguns documentos e manuscritos nos arquivos do MAES. Dionísio faleceu logo após a abertura da exposição e nem chegou a participar do evento de inauguração. A partir desse momento, o MAES passou a se chamar Museu de Arte do Espírito Santo Dionísio Del Santo, em sua homenagem. Foi também o início do nosso acervo, com a incorporação de trabalhos após a exposição. Costumamos dizer que o acervo do MAES começa com Dionísio.

ARTE!✱ – Hoje, quem são os artistas do Estado a serem expostos no MAES?
Em todos esses anos de exercício, o MAES já produziu cerca de 120 exposições. Só na nossa gestão, a partir de 2022, foram mais de 20 mostras. Quando consideramos esse histórico ao longo do tempo, vemos que artistas importantes do circuito capixaba passaram por aqui: como já dito, Dionísio Del Santo (1998), a exposição retrospectiva da Nice Avanza em 2000 (que merece um parêntese – desde 2019 tenho me dedicado a revisitar e repropor discursivamente o trabalho da Nice, e faremos essa exposição 25 anos depois da última ocorrida no Museu).

Também podemos destacar Meditações Extravagantes (2012), do artista capixaba Nenna, hoje radicado em Paris. Essa exposição, por exemplo, ocupou desde a calçada do Museu até toda a área expositiva e se estendeu até a Galeria Homero Massena – estratégia que temos repetido com recorrência.

Com a entrada do MAES nas linhas de fomento do Edital de Artes Visuais do Funcultura, o Museu passou a acompanhar mais de perto a produção artística contemporânea local, já que os editais são destinados a proponentes residentes no Estado. Os projetos são selecionados prevendo arranjos expográficos adaptados ao novo espaço após a reforma: amplo, iluminado por luz natural, com janelas que permitem negociações com a paisagem urbana em torno do prédio (prédio este que, agora em 2025, completa 100 anos).

Os projetos recebem recursos do Fundo de Cultura do Estado (Funcultura), hoje com um repasse de R$ 150 mil – o dobro do executado no início da gestão, em 2019. Esse aumento acompanha a inflação e os valores de serviços no mercado, mas também reflete a reivindicação de profissionais da classe artística e nossa atenção no acompanhamento do desenvolvimento de cada exposição.

Nossa expectativa com as três exposições anuais selecionadas é que o Museu amplie sua conexão com a nova produção artística, assim como seja palco para o desenvolvimento de pesquisas de artistas com maior tempo de carreira e reflexões sobre seus percursos. Atualmente, as diferentes gerações da produção artística do Espírito Santo têm se encontrado no MAES.

Importante lembrar que, entre os editais da Secult, o de ocupação dos espaços (MAES e GHM) foi um dos primeiros a ter reserva de vagas destinadas às pessoas negras e indígenas, em 2021 – o que reflete diretamente na produção, nas exposições e no nosso público.

ARTE!✱ – Então, nesse sentido, com foco nas exposições de artistas do Estado, você conseguiria elencar algumas delas?
Desde 2022 até hoje, foram sete exposições projetadas especialmente para o MAES e selecionadas por meio do Edital. Até o fim de 2026, teremos mais sete. De modo geral, as exposições têm explorado as trajetórias dos artistas, refletindo sobre seus processos e pesquisas, a partir de uma elaboração espacial dos trabalhos em novas perspectivas.

Em 2023, tivemos ANTICORPOS, de Luciano Feijão e Juliana Pessoa – dois artistas do desenho que desenvolvem reestruturações sobre a representação dos corpos, considerando entendimentos de gênero e racialidade. Também em 2023, a exposição Sete Caminhos, de Rafael Segatto, em parceria com Welington Santos e Renan Bono, articulou uma relação expandida entre o MAES e o Quintal Bantu – espaço de aquilombamento, resistência e encontros artísticos no alto da Fonte Grande (região no entorno do Museu). A mostra contou com trabalhos instalativos manejando elementos da paisagem marinha, pinturas, trabalhos sonoros e a provocação de andar pelo centro da cidade, traçando sete caminhos e despertando outras percepções.

No mesmo ano, Descarrilho reuniu nove artistas (Alessa Felix & Jessica Sampaio, Filipe Borba, Jaíne Muniz, Jessica Maria, Maria Menezes, Thiago Sobreiro e Yurie Yaginuma), sob curadoria de Clara Pignaton, em residência artística pela estrada ferroviária Vitória–Minas, reelaborando narrativas sobre a exploração de minério e o trânsito entre os dois Estados.
Seguindo essa linha do tempo, destacamos também FIAR, de Rick Rodrigues (2023); O Inquilino, de Júlio Tigre (2024); A Persistência da Palavra, de Fernando Augusto (2024); e Pele Abissal, de Marcos Martins (2025).

ARTE!✱ – Hoje você tem atuado e circulado em diversas frentes na arte; como entende essas relações?
O percurso que tenho traçado nas artes atravessa meu fazer como artista, gestor e curador. Todas essas atuações acontecem em paralelo, mas com interseções. Em quase vinte anos de carreira, meu trabalho artístico tem sido a base e o meio pelo qual chego a outros espaços. Ser o “artista-tudo”, em uma expansão do “artista-etc.”, cunhado por Ricardo Basbaum, tem me feito compreender o exercício do fazer artístico para além da concepção de uma obra, mas como um conjunto de ações múltiplas.

Em 2023, organizei uma exposição em comemoração aos 15 anos da minha produção: POR UMA CRISE DA IMAGEM, que aconteceu na Galeria de Arte Espaço Universitário (GAEU), na UFES. A mostra apresentava quatro trabalhos desenvolvidos entre 2017 e 2023 e refletia sobre a relação entre imagem, cultura e identidade, elaborando as formas pelas quais a imagem influencia a construção de imaginários sociais e como pode sustentar ou se opor às estruturas de poder.

Desde 2015, me debruço sobre um projeto permanente chamado Oretratista. Em 2024, lancei o livro fotográfico e o filme LARGO, resultados da ação que empreendi na Praça Costa Pereira, no Centro de Vitória, com um estúdio fotográfico montado, aberto a quem quisesse ser retratado.

Recentemente, participo de uma exposição coletiva de larga escala, Afro-brasilidade (2025), no espaço de arte da Fundação Getúlio Vargas (FGV Arte, Rio de Janeiro), com curadoria de Paulo Herkenhoff e João Victor Guimarães. A exposição propõe abarcar e relacionar a produção histórica da arte afro-brasileira.

Já entre as ações de curadoria, tanto pelas que tenho exercido dentro da gestão da Secretaria de Cultura – como as propostas na Galeria Homero Massena e, atualmente, no MAES – quanto por outras oportunidades, também se expandiram. Destaco, por exemplo, ter sido responsável pela proposta curatorial e implementação do parque de esculturas no Parque Cultural Casa do Governador (2021–2023), em Vila Velha, sob gestão compartilhada da Secult e da Secretaria de Governo do Espírito Santo.

Por essas iniciativas curatoriais, também posso apontar a participação na curadoria das Novas Aquisições para o Acervo do Banco do Nordeste (2023), atualmente em itinerância com a exposição Nordeste Expandido, que tem circulado por todas as capitais da região e chegará a Vitória em 2026.

Ainda, a curadoria da exposição Transitar o Tempo (2024-2025), com curadoria adjunta de Clara Pignaton, a convite do Museu Vale. Esta mostra reúne trinta artistas capixabas de diversas gerações, com atenção aos saberes e fazeres tradicionais, a artistas que não estão necessariamente inseridos no sistema da arte e a artistas de outras linguagens, como música e dança. É uma exposição que recupera a atenção sobre nós mesmos e, sobretudo, sobre histórias que não estão contadas.

Por fim, também ressalto a oportunidade de contribuir com o VIII Seminário Internacional Arte!Brasileiros – Narrativas Contra-Hegemônicas, pela primeira vez realizado fora de São Paulo, aqui em Vitória.

Digo tudo isso para organizar meu entendimento sobre estar em trânsito, de certa forma, entre os diferentes lugares da arte, e que permitem exercitar constantemente a criação e o pensamento. ✱