Pop Brasil: vanguarda e nova figuração, exposição que aglutina um conjunto significativo de artistas e obras representativas das décadas de 1960 e 1970, é ao mesmo tempo um marco institucional, um resgate histórico e uma reconexão com questões fundantes da cultura brasileira. Apresentada pela Pinacoteca de São Paulo como o mais importante evento do calendário das festividades em torno dos 120 anos da instituição, a mostra também marca o 60º aniversário da antológica mostra Opinião 65, marco do movimento de renovação artística no Brasil, e celebra a renovação do comodato da Coleção Roger Wright, acervo que – juntamente com o do museu – constitui o núcleo central de Pop Brasil.
Por meio de 250 obras produzidas por uma centena de artistas, o visitante tem a oportunidade rara de ver lado a lado trabalhos que tangenciam questões fundamentais do período, como a adesão à linguagem popular, uma forte tendência ao coletivismo – em oposição a uma visão mais purista e autônoma da arte – e uma relação ácida e crítica com as instâncias de poder e os símbolos e atos opressores do regime militar então vigente. A exposição se articula em torno de sete núcleos, criando um mapa amplo das vertentes e caminhos trilhados no período. Mescla obras incontornáveis como A Bela Lindoneia, de Rubens Gerchman, que se notabilizou como a “Gioconda do subúrbio” e que vira tema da música do disco Tropicália, de Caetano Veloso, a trabalhos até agora pouco mostrados. É o caso, por exemplo, de Reparos na Nave 21, de Nelson Bavaresco, que entrou para o acervo da Pinacoteca um ano depois de realizada, em 1969, e nunca mais foi exibida.
Reconhecer que são muitos os ingredientes constitutivos desse momento de crise e renovação é um dos pontos altos da mostra. Já no texto de abertura, essa ideia de imprecisão – expressa inclusive na dificuldade de encontrar um nome único para um movimento de contornos cambiantes – fica evidente. O uso convencional da abreviação silábica “pop” indica uma aculturação e mascara o que há de inovador, disruptivo no movimento brasileiro, subordinação que é quebrada com a recolocação de termos usados para definir o movimento, como Nova Figuração ou Novo Realismo.
Mesmo tendo uma evidente relação com o processo norte-americano e europeu de incorporação da cultura de consumo, das técnicas industriais e de afronta à dita “alta cultura”, o fenômeno que começa a se moldar no início dos anos 1960 confronta-se com uma situação econômica, social e política de um país marcadamente subdesenvolvido. Yuri Quevedo, curador da exposição em parceria com Pollyana Quintella, sintetiza esse caráter ambíguo com o termo “pop feito à mão”, reforçando assim a condição precária, rudimentar e violenta da produção nacional nesse momento. Trata-se, afinal, de uma cena tensa e paradoxal. O homem chegava à lua e a televisão ocupava o cotidiano. Mas o Brasil seguia sendo majoritariamente rural e submetido aos desmandos de um longo período ditatorial.
Cansados do formalismo, de uma abstração descolada da realidade que a antecedeu, os artistas dessa geração retomam com força a potência das ruas, a concretude cotidiana em sua complexidade, real e poética, como se pode ver nos sete núcleos que compõem a mostra. Após reforçar o caráter coletivo, urbano e anti-institucional do movimento com um conjunto amplo de bandeiras mostradas na Praça General Osório, em Ipanema (dentre elas a icônica Seja Marginal, seja Herói, de Hélio Oiticica, bem como um conjunto amplo e potente de pinturas serigráficas de Pietrina Checcacci), a exposição enfrenta a questão ambígua, até mesmo paradoxal, da sedução e aversão em relação à hegemonia da cultura de massas.
A relação com ícones midiáticos e os mitos da modernidade tecnológica – ponto fulcral da pop norte-americana, que por uma feliz coincidência também pode ser vista em São Paulo por meio da antologia de Andy Warhol em cartaz no Museu de Arte Brasileira da Faap – está no cerne do núcleo “Astros e Astronautas”. Enquanto um sensual e tímido Chico Buarque nos é apresentado pelas lentes de Claudia Andujar, Altar para Roberto Carlos (mostrado por Nelson Leirner na mostra inaugural da galeria Rex, em 1966) coloca o dedo na ferida ao associar iconoclastia e devoção, situando-se “entre homenagem e escárnio”, como escreve Pollyana. Afinal, aqui assistimos a uma “cultura de massas submetida à censura e imbuída, encharcada, conduzida pelo Estado como forma de forjar uma falsa ideia de harmonia, integração e unidade nacional, num momento de grande violência”, sintetiza Fred Coelho no catálogo da exposição. Rica fonte de pesquisa, a publicação reúne não apenas imagens de todas as obras selecionadas, ensaios dos curadores e pesquisadores, mas também importantes textos históricos, que situam os impasses e anseios da época, de autores como Ferreira Gullar e Mário Pedrosa.
O próprio título dos núcleos expositivos – como “Poder e resistência”, “Multidão e Espaço Público”, “Construção, Imagem e Subdesenvolvimento” – revela o caráter instável e desafiador da produção do período. A política, num cenário opressivo, torna-se elemento incontornável. Quevedo usa um termo médico – “inflamação” – para tentar descrever esse ímpeto transgressor, que sacode um meio artístico que parecia estagnado. Um incômodo que se faz sentir em diferentes níveis, gerando respostas que incorporam novos materiais, linguagens e ações; ampliando os limites da ação artística, incorporando práticas e agentes artísticos até então excluídos do circuito e isolados sob o título de “naifs”, e, consequentemente, fazendo soçobrar estruturas e certezas. Afinal, “da adversidade vivemos!”, como afirma Hélio Oiticica na conclusão de Esquema Geral da Nova Objetividade, publicado no catálogo da exposição de mesmo nome, realizada em 1967 no MAM do Rio.
Olhando em retrospecto, não são poucas as semelhanças entre aquele período histórico e os dias atuais, e não apenas em termos políticos, o que parece explicar o interesse crescente em revisitar movimentos inovadores de contracultura, como as novas figurações e o tropicalismo. “Ficamos muitas vezes perdidos e a arte tem essa capacidade de nos provocar”, afirma Jochen Voltz, diretor da Pinacoteca ao explicar as escolhas para a programação da instituição no ano em que completa 120 anos. Segundo ele, estamos novamente num momento em que tudo está mudando radicalmente e em velocidade acelerada – realidade virtual, fake news… – é importante olhar para esses momentos de grandes quebras de paradigma e ver como a arte reage.
A eleição do “popular” e do pop como elemento fundamental da arte dos anos 1960 e 1970 (como referência e como produção) e também como fio condutor para a programação de 2025 – iniciada com a exposição Caipiras: das derrubadas à saudade – revela ainda uma intenção de ampliar o raio de ação do museu, incorporando práticas e agentes que por muito tempo ficaram excluídos. E conclui: “As categorias que a gente criou, diferenciando arte popular e arte erudita, ou arte acadêmica, talvez não se sustentem mais”. ✱