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Sem o olhar de Sebastião Salgado

Sebastião Salgado
Foto: Sebastião Salgado

Perdemos um olhar especial, refinado e educado, que durante 50 anos vislumbrou o mundo. Faleceu, na sexta-feira, 23, em Paris, o fotógrafo documentarista Sebastião Salgado, mineiro de Aimorés, (1944-2025).

Sebastião seguiu e retratou a passagem do ser humano pelo planeta. Em suas fotos em preto e branco, a profundidade de um olhar que tentava traduzir a humanidade com generosidade e crítica. Certeira. De formação econômica, foi com este viés e um sólido embasamento cultural que ele documentou o século XX e o século XXI.

Quando Sebastião Salgado decidiu tornar-se fotógrafo, em 1973, o mundo era bem diferente. Analógico. A Guerra Fria ainda ocupava as páginas da imprensa, o muro de Berlim permanecia em pé, o Brasil estava mergulhado no pior período da ditadura militar. Foi neste cenário que Sebastião, que já carregava consigo uma bagagem como economista, com mestrado em São Paulo e nos Estados Unidos e, por questões políticas havia se mudado para Paris no final dos anos 1960, se aproximou da fotografia, abandonando completamente números e planilhas econômicas, e se voltou para câmeras e lentes fotográficas. Ele trabalhava para a Organização Internacional de Café e foi enviado para Angola para coordenar um projeto sobre a cultura do café naquele país. Além de lápis e calculadora levou a câmera – que, na verdade, era de sua esposa Lélia – e vários filmes. Foi lá que nasceu o Sebastião Salgado fotógrafo.

Desde as suas primeiras imagens e por sua visão de mundo forjada na economia e no humanismo, escolheu como tema de seu trabalho registrar a vida de pessoas que viviam à margem da sociedade. Suas fotos nos trouxeram as vítimas da fome na África, os mineradores de ouro na Serra Pelada, os camponeses e povos originários das Américas, os mutilados de guerra do Camboja, as vítimas das guerras, os sem-terra do Brasil e os lugares do mundo ainda preservados da destruição do ser humano. 

Apesar de também ter sido muito criticado pela escolha estética de sua temática, também percebemos sua generosidade e dignidade com a qual olhava para seus retratados. Se fotografou a tristeza, também apresentou a esperança.

Se uma fotografia não muda o mundo, ela pode, sim, servir de gatilho para uma reflexão, para um bom debate. Como afirma a pesquisadora e historiadora Susie Linfield “uma fotografia não está ali para dizer ‘olha o que está acontecendo’, mas para nos advertir: ‘isso não pode acontecer’”.  Talvez por isso as imagens de Sebastião Salgado criaram tantas polêmicas. 

Ele, herdeiro da fotografia documental tradicional, nascida no começo do século XX, como uma fotografia de rua, do cotidiano de apresentar uma denúncia social ou,  ainda citando a Susie Linfield, “depois da fotografia, ninguém mais pode alegar ignorância”, trouxe sua visão bem demarcada para nosso olhar. Suas fotografias apresentadas em exposições pelo mundo permanecem vivas em seus livros, elaborados e editados em parceria com sua esposa Lélia Wanick Salgado, e por que não, coautora de suas obras. Ela mesma, produtora gráfica, autora e ambientalista brasileira, formada em arquitetura pela Universidade Paris VIII, foi a responsável por emprestar sua câmera para o Sebastião, nos anos 1970, e por desenhar e editar suas fotografias e exposições, ao longo destes mais de 50 anos de profissão: Outras Américas, Trabalhadores, Terra, Êxodos, Gênesis, Amazonia, Gold (Serra Pelada). Este é o seu legado, que esperamos permanecerá.

Com a morte de Sebastião Salgado, perdemos todos, inclusive seus detratores. 

A vertigem do popular na obra de Luiz Braga, por Henry Burnett

Luiz Braga, Oleiro (1979)

Minha opção pela Amazônia é simples e natural, passo ao largo dos estereótipos e modismos que anulam quem nela vive e faz sua história. Uma história comum feita de gente anônima, conhecedora da natureza, criativa na sua essência e alegre no seu cotidiano feito de viagens de canoa, banhos de rio, trabalho duro e muita esperança

(Luiz Braga, Arquipélago imaginário, catálogo, IMS, 2025, p. 23)

Por Henry Burnett

Uma exposição que põe em perspectiva a obra de um artista costuma ser um espaço privilegiado de contemplação, mas também de reflexão. Este é o grande acontecimento de Luiz Braga – Arquipélago imaginário no Instituto Moreira Salles (IMS Paulista), que, com a curadoria de Bitu Cassundé, percorre 50 anos de carreira do fotógrafo belenense através de 258 fotos. Tendo assistido uma ou outra exposição em Belém, visto algumas fotos em momentos distintos ao longo dos anos, seguindo o generoso Instagram do artista, nada se compara ao que uma visita a esta exposição revela em panorama. É como penetrar em um filme mudo, ora em PB, ora em tecnicolor. Fantasia e realidade se contrapõem sem cessar durantes as horas que passamos absortos entre as fotos.

Para muitas pessoas que chegaram na adolescência na década de 1980, Belém era uma cidade bloqueada. Os poucos acessos que davam vista para o Rio Guamá ou para a Baía do Guajará eram locais de turismo. Madeireiras, indústrias, bares, estaleiros e afins cercavam algo em torno de 90% da orla. A “escadinha” – lugar simbólico que dava acesso ao rio para os pescadores – era como uma janela, ou uma lente através da qual se via a floresta, os barcos e as pessoas que neles viajavam. A cidade e a floresta pouco se misturavam. Era possível sentir-se em uma urbe total, numa segunda natureza, hoje expandida no limite do absurdo.

Apesar disso, o que as fotos revelam a pessoas mais ou menos privilegiadas talvez não seja algo invisível, mas simplesmente ignorado por elas. Um dos espantos de estar diante da obra de Luiz Braga é a sensação de perenidade dos contrastes econômicos da cidade. Mas dizer isso não é tocar no fundo. Suas fotos (re)atualizam tudo em nossa fraca memória coletiva. Mas é aqui, justamente diante do assombro que causam, que a dimensão ética e política de seu trabalho se revela em conexão estreita com suas escolhas estéticas.

São 50 anos de carreira e milhares de fotos. Escolho seis, uma de cada década, de 1970 até 2020, comentadas em ordem cronológica.

 

Luiz Braga, Oleiro (1979)

Oleiro (1979)

A foto faz parte de um conjunto coeso de imagens dedicadas aos trabalhadores e trabalhadoras do Pará. Neste caso o retratado é um oleiro, ou seja, um homem que faz ou vende objetos de cerâmica. Ele não olha para o fotógrafo, parece ocupado em seu ofício. O torso e o pescoço retesados dão a impressão de estar imprimindo força intensa em algo, mas seu rosto é tranquilo, o olhar concentrado, se há esforço em seu afazer não se pode notar. A foto se irmana com as do fotógrafo alemão August Sander, que também retratou trabalhadores braçais em atividade, sobretudo em Semblante da época (Antlitz der Zeit, Schirmer/Mosel, 2003), uma de suas obras de maior repercussão, e que fazia parte de um projeto maior chamado Os homens do século 20 (Menschendes 20. Jahrhunderts). Gostaria de sugerir que esta irmandade não é apenas estética – sobretudo porque a identidade autoral de cada fotógrafo está preservada em sua singularidade, como não poderia deixar de ser –, ela é nomeadamente ética. Como August Sander, Luiz Braga se ocupou em registrar seu povo e, apesar das diferenças abissais entre as circunstâncias alemãs do período entreguerras e a vulnerabilidade social de muitas pessoas que vivem na Amazônia, ambos salvaguardaram a beleza, a leveza, a graça e, acima de tudo, a luta diária das pessoas anônimas. Este homem belo, representado num contraste entre a prata e o negro, com sua tez brônzea, é dono da sua arte, de sua vida e do seu destino. Nada deve ao progresso que assola o mundo, permanece íntegro em sua função manual. Seu trabalho com o barro e a água em nada o apequena. Basta olhar para ele por alguns instantes para ter certeza que estamos diante de um homem de todos os tempos, que havia no princípio e precisa continuar a existir.

Luiz Braga, Plateia no Ver-o-Peso (1985)

Plateia no Ver-o-Peso (1985) 

Esta foto faz parte da primeira fase da obra do fotógrafo, quando, em suas palavras, “não tinha o hábito de refletir sobre o meu fotografar” (Arquipélago imaginário, op. cit., p. 23). Pode ter sido uma das que permaneceu por décadas no arquivo, como grande parte do que produziu em preto e branco naquele início de carreira. Para Luiz Braga também foi uma “revelação” a sensação de ter visto as fotos ampliadas pela primeira vez a partir dos negativos revelados no laboratório do IMS no Rio de Janeiro – o primoroso trabalho de impressão é um capítulo à parte na exposição. Detalhes de um barco de médio porte aparecem em pano de fundo, cordas, escadas, o mastro; mais ao fundo vemos a borda da floresta e entre eles a Baía do Guajará. A floresta e o rio não têm foco, sequer emolduram a cena, chegam a ser encobertos por algumas cabeças, parecem estar ali apenas para que saibamos estar diante do rio, nas proximidades do mercado do Ver-o-Peso. Nesta foto da primeira década de sua produção, Luiz Braga já havia feito uma escolha decisiva: toda a exuberância amazônica que revelaria vida afora seria humana, e não apenas isso, também escolheria personagens à margem da vida social e economicamente privilegiada de Belém e arredores. Vemos apenas duas meninas na foto, em primeiro plano, e meio rosto de um menino no canto inferior direito. Tudo indica que são trabalhadores da feira, talvez alguns clientes, metade negros, metade caboclos, em um momento de distração. Olham para o chão, com exceção do adolescente negro com a camiseta envolvendo o pescoço, o único que mira o fotógrafo. Não sabemos o que estão contemplando, estão sérios, alguns franzem a testa compenetrados. No centro da imagem um homem com cabelo Black Power quase se destaca, mas todos os rostos tem expressividade singular, não há protagonistas. Nesta foto, Luiz Braga registra duas representações étnicas fundamentais da formação do povo paraense, os negros e os caboclos – estes com fortes traços indígenas. São os excluídos de ontem e de hoje. Não há ninguém que possa ser chamado de branco. Também não há fregueses, só serventes e seus filhos. A foto tem exatos 40 anos. Quase nada mudou do ponto de vista socioeconômico, mas não parece ser tão-somente isso o que os olhos do fotógrafo viram na cena. A pessoas guardam profunda austeridade. A menina no centro da foto, que parece segurar um isopor embaixo do braço esquerdo, mantém o direito na cintura, tem o semblante rígido como se a atração à sua frente precisasse entregar mais para justificar a interrupção nas suas vendas. Ao seu lado, com uma caixa de madeira na mão, a de cabelos longos está menos sisuda que enfadada, tampouco parece convencida. Todos os homens adultos resguardam em suas expressões rigor e severidade. Há um grande mistério no que não podemos ver e essas personagens podem; é o que mantém a perenidade da foto. O que veem nos perturba e incomoda, da mesma forma como nos confunde olharmos seus rostos impassíveis imaginando o que pensam, o que esperam daquilo que lhes era oferecido então, o que resta de seus desejos hoje.

Luiz Braga, Mulher na Transamazônica (1996)

Mulher na Transamazônica (1996)

Não há emblema mais forte do impacto da chegada da modernidade na Amazônia que a abertura da Rodovia Transamazônica pelo Regime Militar em 1972, cuja intenção declarada era integrar a região Norte ao resto do Brasil através de sua ocupação, de seu povoamento, ignorando com sordidez as pessoas que viviam na região há milênios. O desastre desse processo desordenado se faz sentir ainda hoje, sobretudo em relação à degradação do ambiente antes ocupado predominantemente pelos indígenas e seus descendentes mestiços. Em Bye Bye Brasil, de 1980, Cacá Diegues já mostrava um processo irreversível de destruição e decadência nas margens da monumental rodovia, mas também deixava ver belezas inauditas; Luiz Braga leva aquele impulso cinematográfico ao extremo. Na foto uma mulher de baixa estatura, negra, de cabelos ondulados, caminha em direção ao nada. Estamos em um dos muitos trechos sem pavimentação de uma rodovia que nunca foi finalizada, um emblema do próprio país que deveria interligar. Sua bolsa poderia indicar que não se trata de uma mulher indígena, “aculturada”, seu vestido elegante e suas sandálias de couro permitem imaginar uma migrante nordestina; no fundo, não é tão mal desconhecer sua origem e seu destino, porque ela é muitas, representa as mulheres que lá nasceram e vivem ou que foram obrigadas a se deslocar para aqueles ermos em busca de uma vida melhor; ela vai aonde quer. Se por um lado a foto expõe a pequenez desse corpo em meio à mata densa e ao sem-fim da estrada, por outro expressa a fibra de uma mulher de idade indefinida, que precisa caminhar muitos quilômetros todos os dias. Enfrentar a temida BR-230 sozinha, comendo a poeira dos caminhões que a atravessam, diz tudo sobre sua força e seu destemor. Ao seu redor, a floresta parece querer reocupar o espaço rasgado através dela. Esta convivência do humano e da natureza é um dos grandes desafios quando se quer pensar a ocupação da Amazônia. Deixá-la existir em sua complexidade ou ocupá-la, produzindo através dela; que destino lhes resta é a pergunta que devemos responder urgentemente.

Luiz Braga, Promesseiros (2006)

Promesseiros (2006)

Luiz Braga fotografou o Círio de Nazaré incontáveis vezes. Nesta foto vemos um recorte de uma das formas de devoção mais impactantes da procissão, a corda, símbolo máximo da fé dos romeiros. Muitas camadas de sentido atravessam este registro. A primeira e mais impactante delas é erótica. Homens jovens apoiam-se uns nos outros segurando seus bíceps, tão próximos que nada se interpõe entre eles. Raro momento em que a masculinidade cede espaço ao contato entre indivíduos sem que seu orgulho seja ferido, como num efusivo abraço depois de um gol. Os pés descalços, a mistura de suores, a exaustão de horas que parecem não passar iguala todos diante da padroeira. Quando a corda passa o pânico se instala na multidão, não há controle sobre a força e o sofrimento que arrasta. Por outro lado, temos uma segunda camada importante representada neste instantâneo: a revelação da fé na sua integralidade, sem clichês, adornos e subterfúgios. O Círio, como parte da “identidade paraense” juntamente com a comida, a música, a linguagem e seus sotaques não escaparam aos estereótipos do que hoje é reivindicado como “autêntico”, “único” e “simbólico”, sobretudo pelos manipuladores da opinião pública e comunicadores dos mais variados espectros; como não faltam oportunistas nos seus camarotes, chorando em público quando a santa passa, enquanto transmitem ao vivo para o Instagram. Neste e nos demais registros do Círio, Luiz Braga revela um momento de alta representatividade, e consegue a proeza de contornar todas as representações oficiais, embora muitas vezes tentem cooptar seu trabalho; sem sucesso. Homens debruçados uns nos ombros dos outros, prostrados, conduzidos de arrasto, promesseiros ou não, que esperam mais do mundo e da vida.

Luiz Braga, Cavaleiro marajoara (2018)

Cavaleiro marajoara (2018)

Das fotos comentadas aqui, esta é propositalmente a única que nos desloca, que suspende a realidade por um instante ilusório e etéreo. É uma das fotos que arrastam o espectador para um espaço mítico. O cavaleiro e seu animal estão fora do tempo, o espaço em torno deles é uma continuação dos seus corpos. A figura deste homem remete a muitas lendas e mitologias, não só locais, mas transnacionais, não só regionais, mas também seculares. Duas em especial falam mais alto: o mito de Narciso e o sedutor boto, que nas narrativas populares engravida mulheres incautas. Seu chapéu oculta suavemente o rosto, parece contemplar a própria imagem refletida no fio de igarapé sob os pés do animal. A técnica tem aqui um papel decisivo. Seriam outras as impressões se estivéssemos diante de uma foto em cores vivas. O verde abundante da mata possivelmente faria nosso personagem e sua montaria desaparecerem. Compondo a série “Night Vision”, a foto suspende os laços que separam nós e eles, local e universal, até mesmo a “identidade” amazônica é obstruída e anulada propositalmente. O herói é um ser além do mundo. Nesta foto, em especial, Luiz Braga sugere uma integração total do homem com a natureza, elimina suas abissais diferenças, cria um Éden atemporal, agnóstico e fantástico. A frondosa árvore arqueada protege e acolhe, mas é um instante em que não há nenhum temor, porque as coisas só existem como parte do todo do universo. Nesta foto extraordinária, o homem não é nada.

Luiz Braga, Guardiãs no templo (2023)

Guardiãs no templo (2023)

A fé católica não é exclusiva nas comunidades amazônicas, e não é de hoje. Na Ilha do Marajó a presença dos pajés é secular, e predominante. Não causa estranheza que religiões cristãs evangélicas também tomassem seu quinhão. Esta foto mais recente mostra um pequeno templo construído de costas para uma área de floresta. Ao lado, nos fundos, um pequeno banheiro sem reboco parece ter sido construído para outro uso que não o dos fiéis, destoa do prédio, quase o ofende. O azul da tintura misturada à cal faz do pequeno templo uma anomalia entre o chão de terra e a mata. O zelo é total. A forma de captar a intensidade de cores que marca o trabalho do fotógrafo está presente aqui, sob luz natural. Um casal ladeia a porta central, posaram para a foto com orgulho, empunham cabos de vassoura como carabinas. O que resguardam? Sua fé? Seu templo? Sua escolha pentecostal? Comportam-se como o personagem de Dino Buzzati em O deserto dos tártaros, Giovanni Drogo, isto é, cumprem sua função vigilante com grande senso de responsabilidade. Estão ali em frente ao monumental espaço que lhes cerca, a floresta que lhes parece desconhecida, temem que sua fé simplória seja vilipendiada, creem, como todos, que a salvação virá, que nada pode interromper seus laços com essa espiritualidade de empréstimo. Esperam a redenção, e creem piamente que ela chegará.

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Henry Burnett é compositor e professor titular do departamento de filosofia da EFLCH/Unifesp. Publicou Cinco prefácios para cinco livros escritos: uma autobiografia filosófica de Nietzsche (Tessitura, 2008), Nietzsche, Adorno e um pouquinho de Brasil: ensaios de filosofia e música (Editora Unifesp, 2011), Para ler O Nascimento da Tragédia de Nietzsche (Edições Loyola, 2012), Para ler O caso Wagner de Nietzsche (Edições Loyola, 2018) e Espelho musical do mundo (Editora PHI, 2021), além de vários álbuns musicais, entre eles Não para magoar (2006), Canções da infância inteira (2020) – em duo com Julia Burnett – e o álbum duplo antologia_50_solo e antologia_50_parceria (2021). Meio-dia (7letras, 2021) foi sua estreia na prosa literária. Seu livro mais recente reúne uma seleção de ensaios e artigos publicados nos últimos 20 anos em torno do seu tema mais frequente, Música Só: Uma Travessia Filosófica entre a Europa e o Brasil (Edusp, 2024).

Ao celebrar 120 anos, Pinacoteca aposta na diversidade e nas narrativas silenciadas

Jochen Volz
Jochen Volz. Foto: Levi Fanan

Em 1905, a partir da transferência de 20 obras do Museu Paulista da USP e da aquisição de seis pinturas de artistas paulistas – como Almeida Júnior e Pedro Alexandrino –, foi criada a Pinacoteca de São Paulo, primeiro museu da cidade dedicado exclusivamente às artes. Hoje, 120 anos depois, com cerca de 12 mil obras no acervo – nas mais variadas linguagens e suportes, das mais variadas origens regionais e até estrangeiras –, a Pinacoteca se apresenta cada vez mais diversa e conectada aos debates contemporâneos.

Os responsáveis pelas transformações e expansões vividas pelo museu ao longo das décadas são muitos, entre diretores, funcionários, governos e, claro, os próprios artistas, mas é notável o foco especial dado pela atual gestão, de Jochen Volz, na construção de uma nova identidade para a Pinacoteca. Uma cara menos paulista, menos acadêmica e mais atenta às diversas vozes que foram silenciadas ao longo da história, seja de artistas negros, indígenas, periféricos ou LGBTQIA+. 

“Mais ou menos 60% do público que chega aqui está visitando um museu pela primeira vez na vida”, conta Volz. “Aí já fica evidente como nossa obrigação é, sim, refletir sobre dívidas históricas, refletir sobre representatividade e visibilidade de artistas que foram invisibilizados ao longo de séculos.”

Ocupando três edifícios (Pina Luz, Pina Estação e Pina Contemporânea, a última inaugurada há dois anos), além de responsável pela administração do Memorial da Resistência, a instituição do governo do Estado de São Paulo é um dos museus com maior público do país, ultrapassando os 800 mil visitantes por ano em 2023 e 2024. 

Com orçamento de R$ 66 milhões (2024), a Pinacoteca celebra suas doze décadas de existência com 18 exposições realizadas ao longo de 2025, com destaque para as coletivas “Pop Brasil” (com abertura em 31 de maio) e “Trabalho de Carnaval” (em novembro), que enfocam tanto a produção pop dos anos 1960 e 1970 quanto a riqueza cultural popular em nosso país.  

Em entrevista à arte!brasileiros, Volz fala de seus oito anos como diretor-geral da Pinacoteca, dos planos para tornar o museu cada vez mais aberto para a cidade e da importância da cultura para a transformação da sociedade. Leia abaixo.  

Pinacoteca de São Paulo
Pinacoteca de São Paulo. Foto: Beto Assem
arte!brasileiros – Antes de falarmos dos 120 anos da Pinacoteca, eu gostaria de focar um pouco na sua gestão como diretor-geral da instituição. O fato de você estar completando oito anos à frente da Pinacoteca parece mostrar que o trabalho tem dado resultados e recebido uma avaliação positiva. A que você atribui isso?

Acho que uma coisa importante foi que quando eu cheguei já existia uma estrutura muito boa, equipes muito bem estruturadas. E isso resulta especialmente de um processo que vem desde 2005, quando começa o trabalho de gestão via Organização Social – no caso da Pinacoteca, foi a Associação de Amigos que se qualificou como OS de Cultura – que permitiu uma administração com mais liberdade e um pouco mais de flexibilidade deste equipamento que é do governo do Estado. Esse é hoje o modelo de gestão de quase todos os equipamentos culturais do Estado de São Paulo. Ele favorece um processo de profissionalização da instituição, já que nos permite criar relações de trabalho um pouco mais longevas. Você não fica tão diretamente ligado à gestão direta da Secretaria de Cultura. Obviamente, a Secretaria dá as diretrizes, indica quais são as missões, mas você consegue criar equipes próprias muito profissionais – desde educativo, curadoria, conservação e restauro até financeiro e infraestrutura, por exemplo. Foi um privilégio, para mim, assumir a gestão da Pinacoteca em um momento em que todo mundo estava já em trilhas muito claras. 

Um dos primeiros trabalhos que fizemos, em 2017 e 2018, foi uma revisão do plano museológico, que é uma espécie de plano diretor da Pinacoteca. Isso foi muito importante porque é um trabalho coletivo, no qual você chama todas as equipes e tenta organizar as prioridades para os próximos anos, para refletir sobre a missão, sobre a visão, sobre valores, linhas de atuação e assim por diante. Para ficar claro o que a Pinacoteca quer ser e o que ela não precisa ser. E esse processo coletivo ajuda também a construir uma identificação de todos os colaboradores e colaboradoras com a instituição. Neste momento, portanto – e isso está em sintonia com o contexto no qual o Conselho me convidou para assumir a direção –, nós compreendemos com mais clareza que queremos ser um museu de arte brasileira em diálogo com as culturas do mundo. Isso hoje virou nossa missão: somos um museu de arte brasileira, voltada para a produção do século 19 até a contemporaneidade, em diálogo com as culturas do mundo, promovendo esses encontros, além de termos um grande projeto de educação museal.

E se queremos ser um museu de arte brasileira, não podemos mais ser só esse museu paulistano e paulista. Isso significa ampliar a linha de atuação programática e a coleção, olhar para além do Sudeste, além de São Paulo, e olhar também para além de uma formação mais acadêmica. Até porque em muitas regiões do Brasil tornar-se artista, em modo geral, não decorre de uma formação acadêmica. É aquela pessoa que começa copiando o pai ou a mãe, ou copiando o vizinho, ou fazendo parte de uma escola no bairro… Uma enorme produção que antigamente, de modo bastante problemático, chamávamos de arte popular.  

arte!brasileiros – Arte naif, arte vernacular…

Sim, algo que não se sustenta. A partir desse momento de revisão do plano museológico também ficou evidente que precisamos olhar para todas as histórias da arte brasileira que não foram contadas até agora e trazê-las para dentro da Pinacoteca. A produção de artistas mulheres, de artistas negros, indígenas, de artistas periféricos, de artistas de outras regiões e por aí vai. 

Ainda há muito para fazer, como por exemplo diminuir as lacunas do acervo, que é algo que já começamos, mas é um trabalho longo; trabalhar mais na interface com outras linguagens artísticas; e aprender e estudar mais sobre outras regiões do Brasil que talvez ainda não tenhamos alcançado. 

arte!brasileiros – A exposição de longa duração do acervo, totalmente reformulada e inaugurada em 2020, também é um marco significativo neste processo todo…

Sim. Porque, de certo modo, a Pinacoteca sempre teve esse cheirinho paulistano, com um pouquinho de cheiro do século 19. Então eu acho que quando nós reformatamos todo o acervo e abandonamos a ideia de uma história cronológica, passando a organizar mais tematicamente em uma mostra onde a produção do final do século 19 e a contemporânea estão misturadas e colocadas em diálogo, eu acho que isso mudou um pouco essa imagem de um museu paulista e que traz um pouco do passado de uma elite paulistana. Enfim, claro que esse passado existe, mas eu acho que a percepção mudou, assim como o público mudou radicalmente ao longo dos últimos anos. 

arte!brasileiros – Dentro destes oito anos de gestão, você esteve à frente da Pinacoteca durante toda a pandemia, em um dos períodos mais difíceis para qualquer instituição cultural na história brasileira. Para além das iniciativas realizadas, que acompanhamos à época, eu queria saber: tudo voltou a ser como era antes? Ou houve aprendizados e transformações que vieram para ficar? 

Respondendo de modo muito pragmático, a pandemia chegou no momento em que estávamos formatando o projeto da Pina Contemporânea, que foi a grande expansão da instituição. Era um desejo desde 2005, mas foi trabalhado sistematicamente a partir da minha chegada, com a cessão daquele espaço para a Pinacoteca em 2018. Em 2020, na pandemia, já tínhamos iniciado o projeto executivo do novo prédio. E, nesse momento, tanto dentro da equipe do museu quanto com os arquitetos, chegamos à conclusão que o museu pós-pandemia não podia ser igual ao planejado antes da pandemia. Então o projeto foi quase inteiro para a gaveta e se transformou em um outro projeto, que é o que foi construído. Alguns elementos sobre como usar as edificações já existentes permaneceram – como a reserva técnica –, mas em vez de criar muitas galerias novas para expor o acervo, criamos uma grande praça aberta. 

Pinacoteca Contemporânea
Pina Contemporânea. Foto: Manuel Sá
arte!brasileiros – Tornou-se um museu mais arejado?

Sim. No projeto original já havia uma rua passando pelo prédio, um pouco parecida com a rua central do Sesc Pompeia, mas a ideia de ser ainda mais arejado, mais aberto, com espaços de estar junto ao ar livre, isso tudo é um reflexo da pandemia. Então temos hoje um museu que busca promover para o público experiências com arte e cultura de uma forma mais direta. Atualmente, quando temos um evento na praça da Pina Contemporânea, com música por exemplo, as pessoas vêm e nem percebem que estão entrando no museu. Elas passam pelo parque (Jardim da Luz), de repente estão na praça da Pina, aí estão no meio do evento, se deparam com uma obra do Tunga, têm uma programação educativa ou cultural, uma biblioteca aberta para entrar e pegar um livro, ler uma revista… e ainda podem visitar as galerias expositivas. Então não é um museu com um monte de barreiras, escadaria grande, controles etc. 

arte!brasileiros – A ideia de um museu sem catracas, digamos assim…

Exato. Porque acho que a pandemia foi um momento em que nós todos percebemos o quão importante é ter esses espaços abertos e de convivência ao ar livre, que são raros em São Paulo. 

Para além disso, a pandemia trouxe outros debates à tona. Debates sobre qual é o papel da cultura dentro da sociedade, qual é o papel da arte na sociedade, qual é o papel das questões de representatividade. Ou seja, para pensarmos sobre quem fala e quem escuta, quem tem o poder de falar e quem está sendo ouvido, isso mudou radicalmente durante a pandemia. Não é uma questão da Pinacoteca, mas da cultura em si – que é urgente e a pandemia reforçou isso. A pandemia ou, talvez, a gestão política no período de 2019 a 2022 [governo Jair Bolsonaro] foi um momento de grande ataque à cultura que teve como reação um grande fortalecimento da cultura. E, aqui para nós, é preciso ressaltar que houve um investimento muito grande do governo do Estado de São Paulo, que não seguiu essa linha do governo federal de cortar todo o dinheiro da área.

arte!brasileiros – Falando de política, lembrei de uma afirmação sua de que o lugar da arte, neste mundo em crise, é também o lugar de pensar outras formas de se viver em comunidade, mais democráticas, e de conceber outros mundos possíveis. Recentemente o diretor do Museu Afro, Hélio Meneses, falando sobre a dívida histórica que o país tem com as populações minorizadas, disse: “Eu acho que essa dívida que é social, econômica e também cultural, ela não se resolverá apenas a partir do campo da arte e da cultura, embora ele seja fundamental para a elaboração de novas visões. Devemos cobrar de uma engrenagem socioeconômica uma maior responsividade, responsabilidade, equidade e justiça, e não pedir que o campo das artes resolva o que lhe escapa de possibilidade de resolução”. Não me parecem que suas visões são conflitantes, mas, ainda assim, queria te perguntar como enxerga essa questão do papel transformador da cultura na sociedade atualmente. 

Olha, eu concordo 100% com o Hélio, é inquestionável. Acho que o meu ponto, nas afirmações que você citou, é o de não subestimar o papel da cultura dentro da sociedade. Porque se existe um campo que atua entre a esfera privada e a esfera pública, provavelmente é a cultura. E se queremos que um debate seja levado para dentro das casas, escolas e administração pública, a cultura tem um papel importante. Não dá para apostar que ela vai resolver o problema da sociedade, porque não vai, mas ela forma opiniões, ela tem papel educativo fundamental. Por exemplo, um assunto como o racismo estrutural, se você não aprender na escola, no trabalho, ou na imprensa – e hoje é difícil saber quais as fontes de informação utilizadas e se são confiáveis –, possivelmente serão os lugares de cultura que vão poder difundir essa pauta. E falo de algo muito mais amplo do que os museus. O debate que uma série audiovisual levanta, o debate em livros de literatura, no teatro, enfim, em diversas linguagens.

E aí, voltando um pouco para a Pinacoteca, temos esse estudo que mostra que mais ou menos 60% do público que chega aqui está visitando um museu pela primeira vez na vida, porque nunca teve acesso. Aí já fica evidente como nossa obrigação é, sim, refletir sobre dívidas históricas, refletir sobre representatividade e visibilidade de artistas que foram silenciados e invisibilizados ao longo de décadas, séculos. Concluindo, concordo 100% com a fala do Hélio, mas acho importante pensar que o campo em que operamos é muito influente. Quer dizer, não estamos falando de coisas opostas.

arte!brasileiros – Nesse sentido, em sua gestão houve um enfoque crescente na arte produzida por grupos minorizados e marginalizados. Desde “Véxoa”, em 2020, que foi um marco ao mostrar a produção indígena contemporânea, até “Enciclopédia negra”, “Mulheres radicais”, entre outras. Esse é um grande foco da sua gestão? E como fazer com que isso não seja algo meramente protocolar – uma resposta ao que se espera – em um momento em que até mesmo o mercado está voltado para essas pautas? 

Olha, uma forma de atuar que eu acho importante é primeiro fazer e depois falar. Falar menos, escutar mais e pensar mais formas de integrar isso à programação de forma profunda. E quando nós começamos a refletir sobre a reformatação do acervo, em um seminário em 2018, convidamos vários palestrantes, entre eles a Naine Terena – que depois se tornou a curadora de “Véxoa”. E ela fez uma pergunta que provocou uma reflexão grande dentro na instituição, que foi: “Vocês, Pinacoteca, sendo uma instituição paulistana e majoritariamente branca no seu acervo e na sua gestão, qual lugar que vocês querem dar para os artistas indígenas?”. Ela não veio com respostas simples, mas nos questionou: “Vocês querem fazer uma exposição de álbum de figurinhas ou estão abertos a realmente abrir espaços, repensar formas de atuar como instituição?”. Não é por acaso que “Véxoa” é uma exposição tão importante, que não apenas foi uma das primeiras mostras de produção contemporânea de artistas indígenas, mas também teve curadoria de uma pesquisadora indígena. 

arte!brasileiros – E aí a importância de pensar em quem você convida, quem você escuta, quem você traz para o time…

Sim, pensar em como você constrói. Veja bem, quando a Naine nos fez a pergunta, em 2018, a Pinacoteca não tinha nenhuma obra de artistas indígenas contemporâneas no seu acervo. E hoje, depois de seis anos, são cerca de 40 artistas presentes. Então é preciso realmente repensar as formas de se criar um acervo: pensar o que que importa, qual é a nossa responsabilidade. E isso não é algo para se fazer uma vez e depois se virar para outros temas, mas deve virar uma linha de atuação contínua, um compromisso contínuo.

arte!brasileiros – Não é fazer uma exposição, “dar um check” e achar que já está bom…

Não pode ser isso, senão é justamente aquela coisa protocolar. Enfim, e já que você mencionou o mercado de arte, é interessante pensar que possivelmente as coleções particulares da cidade também mudaram após “Véxoa”, após “Enciclopédia Negra” e após “Histórias Afro-Atlânticas” [MASP], entre outras. Porque são momentos em que as instituições inserem debates que mudam tudo.

arte!brasileiros – Já falamos da Pina Contemporânea, um espaço mais aberto para a cidade, mas eu gostaria de aprofundar nessa questão da região tão complexa da cidade na qual a Pinacoteca está localizada. Uma área tão rica culturalmente, com equipamentos importantes, mas também muito degradada, com problemas de violência, desigualdade, com a questão da Cracolândia etc. Como é o trabalho da Pinacoteca para dialogar com essa região, com a cidade real, sem se tornar um bunker, digamos assim, protegido e isolado?

É sempre um desafio, obviamente. Eu acho que tem uma coisa muito importante, vamos dizer, que são as relações de parceria que a gente constrói ao longo dos anos. Então, por exemplo, o educativo tem uma atuação muito forte para além dos nossos muros. E acho que são parcerias com mais ou menos 23 coletivos aqui do entorno. Não todos simultaneamente, mas ao longo dos últimos anos, é uma grande rede de colaboradores, alguns mais distantes, outros mais próximos, mas que ajudam a criar laços que vão para além do próprio museu. Que criam laços afetivos com moradores de rua, com trabalhadores aqui do Jardim da Luz, com as mulheres do parque. Outra coisa é a relação com as outras instituições da região, como o Museu da Língua Portuguesa, o Teatro de Contêiner, com a Casa do Povo, o Museu de Arte Sacra etc. Então, essas colaborações, a compreensão de que nós não somos uma ilha, mas, na verdade, somos um hub muito forte de instituições culturais, também ajuda para pensar em circuitos e possibilidades de parcerias.

E, é claro, quanto mais vivo fica o centro, mais seguro ele fica. Então, optar por um museu sem muro, assim como a Pina Contemporânea, com suas três entradas, é parte disso. E nos últimos dois anos percebemos que a vivência naquele espaço, oferecer uma vivência para quem é morador de rua, ou público do museu, ou passageiro, ou alguém que só quer cortar um caminho para chegar mais rápido na Luz, essas são formas de promover a convivência. Em sentido parecido, fizemos em 2017, ainda antes do prédio novo, uma reforma da entrada na Pina Estação, abrindo mais portas. Nunca é fácil, mas sabemos que menos muros, mais convivência, isso gera também mais segurança.

arte!brasileiros – Falando em diálogo com a cidade e com o público, a Pinacoteca apresentou um aumento expressivo nos números de visitação de antes da pandemia [538 mil pessoas em 2019] para depois [880 mil em 2023]. Isso tem a ver com a inauguração da Pina Contemporânea, claro, mas não só. Pode explicar?  

Sim, houve um aumento, e isso não é só na Pinacoteca, mas em vários equipamentos. Essa percepção de que a visitação pré-pandemia e pós-pandemia tem um salto para cima significa que as pessoas estavam precisando de algo, de vivências, de espaços públicos, de contato com cultura, de contato com a imaginação. Mas, claro, isso também traz grande responsabilidade, porque é um público muito expressivo. Gera expectativas, desejos, o desafio de pensar como podemos ser cada vez mais um museu de todas e todos. E, é claro, existe ainda um potencial gigante de milhões de pessoas que passam por aqui pertinho todos os dias – na Estação da Luz, por exemplo –, mas não entram. Então, acho que o grande desafio da Pinacoteca e de todos os museus é o de criar linguagens e laços com um público que talvez hoje ache que o museu não é para ele. Porque eu acredito muito que o museu não é um lugar que você precisa de conhecimento para poder entrar. Todo mundo é bem-vindo. Mas existem barreiras sociais, históricas, estruturais…

Para nós, por exemplo, o sábado gratuito, que já existe faz tempo, é fundamental. É importantíssimo oferecer a gratuidade para o grande público nesse dia específico, porque ninguém vai, por exemplo, numa terça-feira sair da Cidade Tiradentes para visitar o museu só porque é gratuito. Mas no sábado você consegue combinar talvez com algum compromisso no centro, ou com um desejo de passear em alguma outra região da cidade e, deste modo, pode aproveitar e visitar o museu. E isso de fato acontece. Se um dia normal tem entre mil e três mil visitantes por dia, um sábado tem entre cinco e dez mil. E, ao todo, cerca de 78% do público da Pinacoteca usufrui de algum programa de gratuidade, seja o sábado, seja escolar, para professor, taxista, policial… enfim, todas as gratuidades que nós temos. É muito expressivo.

Almeida Júnior, Caipira picando fumo, 1893
Almeida Júnior, Caipira picando fumo, 1893
arte!brasileiros – Bom, chegamos então aos 120 anos da Pinacoteca. É muita história, nem faz sentido ficar repassando tudo. Mas tem uma fala sua que me chamou atenção, na qual você disse que, por mais que muitas vezes a gente relacione a Pinacoteca ao passado, ela sempre foi um tanto contemporânea ao seu tempo, por estar ligada à produção de artistas de sua época. Que quando foi criada, por exemplo, no início do século 20, serviu para ensinar jovens artistas e adquiriu obras atuais para a época. Pode falar sobre isso? 

Acho que tem muitos marcos ao longo da história. Quando foi fundada, em 1905, ela foi criada como uma Pinacoteca, ao lado de uma biblioteca, dentro de uma escola, basicamente – o Liceu de Arte e Ofícios. Mas, já em 1911, há um decreto que separa a Pinacoteca do Liceu e funda o museu independente, diretamente ligado à gestão pública. Isso é interessante porque, já nesse momento, se definiu que a instituição tem uma missão educativa e pedagógica. 

E por que é que eu sempre digo que desde a sua fundação é mais ou menos um museu de arte contemporânea? Porque as mais expressivas aquisições das primeiras décadas foram de trabalhos feitos no período. Quer dizer, havia duas maneiras pelas quais, na época, entraram obras no acervo. Uma era pelo programa de bolsas de estudos. Artistas ganhavam bolsas para estudar fora e no retorno deixavam obras. Ao mesmo tempo, houve momentos em que o próprio governo do Estado adquiriu trabalhos de artistas. A famosa “São Paulo”, da Tarsila do Amaral, de 1924, foi adquirida em 1929. O “Mestiço”, do Portinari, é de 1934, foi adquirido em 1935. Então, foram comprados quase que de dentro do ateliê, num período em que esses artistas ainda eram, digamos, a “nova produção”. E a partir daí, isso continua. Claro que teve momentos com um olhar mais vanguardista do que outros, mas eu entendo que a Pinacoteca sempre colecionava a produção do seu período. Até mesmo o Almeida Júnior (1850-1899) tinha acabado de falecer quando a Pinacoteca foi criada, não era “histórico” ainda. Aquilo era o mais novo de alguém que foi, talvez, um dos mais expressivos artistas do fim do século 19 no país. 

Depois teve um momento muito importante de participação da sociedade. Lá nos anos 1930 criou-se o Conselho de Orientação Artística, onde intelectuais, artistas e críticos participaram para garantir a qualidade e o bem-estar do acervo. Esse conselho existe até hoje, nesse momento sob a presidência da artista Cinthia Marcelle. Nos anos 1970, por exemplo, na gestão da Aracy Amaral, o educativo se tornou novamente uma linha muito preciosa e importante. Na época, a educação museal ainda era diferente do que se entende hoje, eram mais oficinas, espaços de experimentação, mas isso foi um momento muito importante de entender que o museu é mais do que simplesmente uma coleção de obras. É uma programação, uma atuação e um olhar para a sociedade. 

Nos anos 1990, na gestão do Emanoel Araújo, é um pouco um momento de internacionalização, quando ele trouxe Auguste Rodin, Niki de Saint Phalle e vários outros artistas internacionais. Ele claramente entendeu que, sim, é um acervo de arte brasileira, mas que é importante olhar a produção nacional à luz ou em diálogo com a produção de fora. Isso depois começou a se intensificar. Outro marco super importante é, em 2003, pós-reforma do Paulo Mendes da Rocha, a criação do octógono e do Projeto Octógono, que foi um projeto fundamental e que está hoje na edição 77 ou 78. Essa ideia de criar programas de comissionamento dentro de um museu que tem acervo é um fenômeno que acontece mais ou menos a partir de 2000, com a Tate Modern (Londres), e aqui já vem logo depois, ao mesmo tempo em que começa o Roof Garden Commission do Metropolitan Museum of Art (Nova York). Então, a Pinacoteca é uma das pioneiras nas instituições que sistematicamente trabalham com o comissionamento para inserir diálogos com produções contemporâneas e com o acervo. 

Arte!brasileiros – Bom, sobre as exposições deste ano, propriamente ditas, acho que são 18 aberturas. Seria muito assunto para falar, mas eu queria saber um pouco dos eixos que percorrem boa parte delas, algo que tem a ver tanto com o chamado popular quanto com o Pop no Brasil, que estarão, por exemplo, nas exposições “Pop Brasil” e “Trabalho de Carnaval”…

Eu acho que dá para entender isso, talvez, a partir da exposição que atualmente está em cartaz, “Caipiras: das derrubadas à saudade”, que parte de algumas pedras fundamentais que deram início à coleção da Pinacoteca: “O caipira picando fumo” e “Amolação interrompida”, que são duas pinturas do Almeida Júnior que entraram na primeira transferência do Museu Paulista para iniciar a Pinacoteca, em 1905. E eles são, de certa forma, obras em que o artista acadêmico olha para a pessoa popular. É o caipira, o campestre, o trabalhador do campo, a pessoa anônima, a pessoa comum… Esse naturalismo da época. A produção artística desse período olha para o trabalhador do campo para achar nele o verdadeiro brasileiro. Então já tem uma primeira relação entre o popular e o erudito.

Aí, pensando ao longo das décadas, tem aquela questão que já falamos, de como no Brasil a maioria dos artistas não teve acesso a uma formação acadêmica. Então, olhar para o popular, o chamado popular, é muito lógico e, na verdade, a ideia de separar as categorias entre erudito, acadêmico e popular não se sustenta. A exposição “Tecendo a manhã” fala disso explicitamente. Ela fala de uma experiência de uma vida moderna e mistura produções de autodidatas – ou chamados artistas populares – com Di Cavalcanti, Tomie Ohtake e muitos outros que tiveram acesso a uma formação. 

Na questão da arte Pop, acontece de novo. Porque, para mim, “Caipiras” o “Pop Brasil” e o “Trabalho de Carnaval”, eles todas fazem parte de uma discussão que tem muitas facetas. Nos anos 1960, muitos artistas olham para uma estética popular da rua. Isso não só no Brasil, mas no Brasil abre-se assim a possibilidade de falar de assuntos vivos da sociedade [em período de repressão] de forma um pouco escondida. Então, esse pop não é um pop. Quer dizer, a chamada Nova Figuração olha para as figuras da sua época, para a vida popular – seja do ônibus, seja do bar, seja o jogador de futebol etc. São todas imagens da sociedade, imagens populares que são incorporadas, e muitas mensagens são passadas de modo um pouco mais subliminar.

Então, resumindo, não quisemos fazer uma grande exposição sobre os 120 anos da Pinacoteca. Quisemos, de certa forma, abranger tudo entre “Caipiras”, até o Gabriel Massan, até os anos 1960, até a produção mais recente… Por exemplo, o filme da Bárbara Wagner e do Benjamin de Burca [Estás vendo coisas] é uma representação de um movimento popular pernambucano, pop brega, tecno brega, que é um fenômeno mundial maravilhoso, com uma existência um pouco apartada do mundo da música pop. E isso nos interessa.

arte!brasileiros – Me chamou atenção, nas exposições individuais deste ano, que a grande maioria é de artistas mulheres. Mônica Ventura, Marga Ledora, Ad Minoliti, Dominique Gonzalez-Foerster, Beatriz González, Neide Sá, Juliana dos Santos, Olinda Tupinambá, Lucy Citti Ferreira, Renata Lucas… Isso foi algo pensado, digamos, como uma proposta curatorial, ou apenas aconteceu assim?

Se você olha ao longo dos últimos anos, desde “Mulheres Radicais” é um pouco assim. Faz parte de uma preocupação que é contínua, não é um statement, não é uma retórica, é um processo de como queremos pensar o museu para os próximos 120 anos. Que todas essas narrativas naturalmente tenham espaço, e assim tenhamos a presença de artistas mulheres, artistas homens, artistas negros, artistas brancos, artistas indígenas… todos de forma natural, configurando uma programação. E, como eu disse, tem muita trilha ainda para andar.

arte!brasileiros – Por fim, queria te perguntar sobre o Jardim de Esculturas, situado no Jardim da Luz, que passará por uma reformulação. Como isso está sendo pensado? 

A maioria das coisas que estão vão ficar. Algumas saem apenas para restauro e preservação, afinal muitas das obras estão lá há 25 anos, mas voltam. Grande parte das obras foi instalada no final dos anos 1990 e início dos anos 2000, na gestão do Emanoel Araújo, em um momento bonito de tentar levar o museu para fora de seus muros e, basicamente, criar uma coleção de esculturas que seria impossível de mostrar dentro.

Mas ela ainda é uma exposição predominantemente masculina, branca e paulistana. Então, a ideia é, ao longo do ano, pelo menos acrescentar algumas obras que possam já diversificar um pouco a discussão sobre esculturas. E também entendo que essa é uma missão para os próximos anos, mas é um começo. O nosso atual projeto é para adicionar cinco esculturas, reformar algumas e criar uma outra forma de apresenta-las. A escultura, principalmente em grande escala ao ar livre, é um suporte que por muito tempo tem sido mais masculino… ou em geral mais ligado aos artistas que tiveram um pouco mais de privilégio. Porque não é fácil produzir. Quem tem, por exemplo, acesso a uma fundição para fazer uma escultura em bronze, ou para fazer uma grande escultura? Então eu vejo que isso é um cuidado que queremos ter, para ter um debate sobre a escultura e sobre as várias linguagens artísticas de uma forma um pouco mais diversa. 

Galeria Claudia Andujar Maxita Yano recebe parentes indígenas

Claudia Andujar
Claudia Andujar com artistas na Galeria Claudia Andujar Maxita Yano

Para os povos indígenas, parente é a expressão como eles designam outros membros das comunidades originárias, independentes de sua localização territorial e étnica. Por isso, faz todo sentido que a galeria no Instituto Inhotim dedicada à Claudia Andujar, considerada mãe do povo Yanomami, como diz Davi Kopenawa, receba agora 22 artistas indígenas da América do Sul, incluindo povos da Bolívia, Colômbia, Paraguai e Peru.

Andujar é detentora de uma carreira muito particular ao unir uma expressão estética refinada e experimental com engajamento político radical. Suas fotografias do povo Yanomami, realizadas desde 1971, expressam tanto uma visão paradisíaca, quando o contato com os brancos ainda era praticamente inexistente, quanto os genocídios provocados pela construção de estradas, da invasão de garimpeiros e da extração de madeiras. 

Em 1989, o genocídio Yanomami já era denunciado por Andujar em mostra no Museu de Arte de São Paulo (Masp), situação que segue ocorrendo. Só em 2020, segundo texto de Dario Vitório Kopenawa Yanomami no pavilhão, 20 mil garimpeiros invadiram suas terras e 570 crianças de seu povo morreram.

Vista da galeria com retratos de Cláudia Andujar e Paulo Desana. Foto: Fabio Cypriano

“Eu fiz o que pude”, me sussurrou Andujar, aos 94 anos, presente na reabertura de sua galeria, como um suspiro de quem gostaria de fazer mais. Seu pavilhão em Inhotim foi inaugurado há dez anos, com 426 fotografias, tornando-se logo uma referência mundial para o trabalho da artista, nascida na Suíça e naturalizada brasileira desde 1976, ela chegou aqui em 1955, portanto há 70 anos.

“Nosso trabalho foi contextualizar e potencializar a obra de Claudia Andujar”, explica Beatriz Lemos, curadora da mostra e de Inhotim. Quando inaugurada, há 10 anos, a galeria foi definida permanente, seguindo os exemplos de outras lá existentes, como as dedicadas à Miguel Rio Branco, Adriana Varejão e Tunga. 

Contudo, para Julia Rebouças, diretora artística de Inhotim, a reformulação da galeria de Andujar representa um novo momento no maior museu a céu aberto da América Latina. “É impossível imaginar continuar expandindo e não levar em conta a sustentabilidade. Por isso precisamos repensar as próprias galerias”, conta a diretora. Para ela, a nova configuração aponta ainda como “não se pode mais considerar a cultura sem a inclusão da produção indígena autorrepresentada”.

Claudia Andujar Maxita Yano

O começo dessa nova política com Andujar não poderia ser mais adequada. Se por um lado a galeria, que foi inaugurada com curadoria de Rodrigo Moura, já era impressionante seja pela arquitetura do espaço, seja pela seleção primorosa, a presença de uma nova geração de artistas indígenas atualiza estética e politicamente a luta dos povos originários. Com isso, o espaço passa a se chamar Galeria Claudia Andujar Maxita Yano, que na língua yanomami quer dizer Casa de Terra.

A curadoria seguiu a sequência e expografia original do espaço, que tinha na primeira sala fotos aéreas e de plantas do território yanomami, seguia com sua população retratada em harmonia com a floresta até as invasões e as formas de luta e resistência, que culminaram com a demarcação do território, em 1992, totalizando uma área similar a duas vezes o tamanho da Bélgica. Andujar ainda chegou a realizar uma nova série comissionada para local, de uma assembleia dos povos indígenas em 2014, com fotos coloridas. 

Na nova disposição, cada sala recebe a inserção de artistas em diálogo com a obra de Andujar. Com isso a galeria reúne agora cerca de 300 trabalhos: 200 da própria Andujar e outros 100 dos demais artistas. Uma preocupação importante foi manter o nível estético das imagens. “Imprimimos as fotografias aqui em Belo Horizonte, no melhor estúdio, para garantir a qualidade dos trabalhos”, conta Beatriz Lemos. As obras de artistas indígenas recebem um fundo acinzentado, para que sejam mais facilmente identificáveis.

As obras dos artistas indígenas não foram compradas por Inhotim, estão na galeria em regime de comodato – a mostra deve durar ao menos três anos. Mas é importante o registro que cinco trabalhos, envolvendo seis artistas, foram comissionados para a exposição, apontando aí o apoio ao fomento: financiar novas obras de artistas deve ser missão central de qualquer instituição da área. Entre elas está o painel de grandes dimensões de Olinda Silvana, artista do povo Shipibo-Konibo, do Peru.

Nessa nova configuração, há três eixos que marcam a galeria: a luta e o ativismo indígenas; as redes de aliados e suas conquistas comunitárias; e um debate mais próximo à história da arte que diz respeito à representação, imagem e identidade indígena.

Nesse último eixo estão alguns retratos inéditos de Andujar no pavilhão – Inhotim possui em sua coleção cerca de 500 fotografias dela, portanto 100 não tinham sido exibidas ainda – em diálogo com Paulo Desana, um dos artistas com obras comissionadas. Em “Os Espíritos da Floresta”, ele parte do resgate de memórias comunitárias de pintura corporal de duas aldeias localizadas em Brumadinho, cidade onde está localizado Inhotim. Aqui vê-se uma legítima preocupação da curadoria, com assistência de Varusa, em se aproximar do território onde se localiza o próprio Inhotim e onde vivem comunidades indígenas. Desana fez os registros usando tintas fluorescentes e luz negra, que dá ao conjunto um caráter lisérgico aos retratos.

Outro diálogo está na primeira sala, que conta com uma séria de UÝRA, artista de Manaus, no Amazonas, com uma séria de fotografias onde ela usa seu corpo como suporte para se mimetizar à natureza, colocando em prática o que Davi Kopenawa afirma quando ele diz que “sou floresta”. 

Vista de autorretratos da artista amazonense UÝRA. Foto: Fabio Cypriano

A galeria abriga ainda uma sala documental, que conta a história do envolvimento de Andujar, desde quando ela faz seu primeiro encontro com os Yanomami, em 1971, para a revista Realidade, até seu trabalho de assistência à saúde para vacinação, que resulta em sua série Marcados, passando pela criação da Comissão pela Criação do Parque Yanomami (CCPY), em 1978, que conquista a demarcação em 1992.

No total, são mais de 50 anos dedicados ao povo Yanomami, que variam de denuncias em órgãos internacionais importantes, como a ONU, à participação em mostras nos museus mais relevantes. Sua série Marcados, por exemplo, foi recentemente adquirida pelo MoMA, de Nova York. Toda fotografia realizada neste contexto é vendida com 33% do valor revertidos para eles, por meio da Hutukara Associação Yanomami, que também possui uma sala no pavilhão, com desenhos e vídeos de artistas do território. “Eu fiz o que pude” reflete uma fala humilde que contrasta com a grandeza de seu compromisso e de sua obra, agora residentes na Casa de Terra.

Secretários de Cultura do país defendem taxação do streaming em 12%

SECRETÁRIOS DE CULTURA DO PAÍS DEFENDEM TAXAÇÃO DO STREAMING EM 12%
Foto: Marcelo Maximo

O Fórum Nacional de Secretários e Dirigentes Estaduais de Cultura, reunido na semana passada em João Pessoa, Paraíba, divulgou na sexta-feira, 25, uma moção a respeito da regulação do streaming no País, declarando a necessidade de urgência na aprovação de um marco regulatório para o mercado de Vídeo sob Demanda (VOD) no Brasil. Para os secretários de cultura brasileiros, a alíquota mínima sobre o faturamento bruto das plataformas (Netflix, Amazon Prime e outras) deve ser de 12%.

Para o Fórum, o audiovisual é uma indústria estratégica para o desenvolvimento e seu futuro depender de uma regulação não apenas urgente, mas “justa, moderna e efetiva, capaz de garantir o acesso do público brasileiro à sua própria produção cultural e assegurar a sustentabilidade econômica à cadeia produtiva”. O Fórum Nacional é presidido por Fabrício Noronha, secretário de Cultura do Espírito Santo.

Além dos 12% de taxação, os secretários pedem garantia da titularidade da propriedade intelectual e patrimonial aos produtores independentes brasileiros, assegurando sua autonomia econômica e criativa e centralidade da regulação na garantia do fortalecimento da produção independente brasileira.

A posição dos secretários de cultura brasileiros segue a da ampla maioria do setor audiovisual nacional, já expressa em documento do Conselho Superior de Cultura e em manifesto assinado por mais de 60 artistas (cineastas, produtores, atores, técnicos). A ampla maioria da área audiovisual apoia o Projeto de Lei do senador Eduardo Gomes, do Tocantins, com relatoria da deputada Jandira Feghali (PCdoB do Rio), em trâmite no Congresso – há ainda outros dois projetos de lei em tramitação que são considerados frágeis pelo setor.

A regulação encontra empecilhos para se materializar no Congresso Nacional, no qual os lobbies das big techs tem prevalecido – o Brasil tenta determinar a regulamentação do setor há 12 anos. As plataformas de streaming operam atualmente em um cenário de total assimetria no País, usufruindo do segundo maior do mundo sem recolher impostos e taxas proporcionais à sua operação no País. O catálogo de obras brasileiras nas plataformas internacionais representa menos de 10% do total. Igualmente, o setor também não distribui direitos autorais de forma justa e equilibrada, gerando uma concorrência desleal e provocando uma perda expressiva de receitas para o governo, estimada em bilhões de reais.

Para o evento Marché du Film, que vai ter lugar em Paris, França, entre 13 e 21 de maio, com o Brasil como País de Honra, produtores, cineastas e profissionais do audiovisual brasileiro irão debater questões relativas ao desenvolvimento do setor. Esperam-se discussões acaloradas. No Marché du Film, a expectativa é que o tema do VoD monopolize os debates. Comentários no painel Producers Under the Spotlight já mostram uma militância forte em prol da regulação urgente. Os participantes estão convergindo na ideia de exigir nesse ato internacional um posicionamento claro e empenho do governo brasileiro em relação à questão do streaming. Recentemente, o Ministério da Cultura chegou a expressar seu apoio a uma alíquota mínima de 6% para as plataformas estrangeiras (mas, em reuniões privadas com lobistas, chegou a concordar com 3%).

O Fórum Nacional de Secretários de Cultura decidiu sua posição durante o 2º Encontro Nacional de Gestores de Cultura em João Pessoa. “Sem regulação, os produtores brasileiros têm sido cada vez mais relegados à condição de prestadores de serviço, perdendo protagonismo criativo e econômico sobre suas obras e direitos de propriedade intelectual e patrimonial. A ausência de regras claras aprofunda um processo de desindustrialização do setor, com impactos diretos na geração de empregos qualificados e na soberania cultural do país”, diz o documento do Fórum.

“Uma política industrial sólida requer mecanismos de fomento e planejamento eficazes. O Fundo Setorial do Audiovisual (FSA), principal instrumento de financiamento do setor e base das parcerias com estados e municípios por meio dos arranjos regionais, precisa ser fortalecido — e não enfraquecido. Reconhecemos a importância de diferentes modelos de fomento, mas ressaltamos que a futura regulação não deve privilegiar a renúncia fiscal em detrimento dos recursos destinados ao FSA. É com recursos robustos no fundo que será possível planejar e implementar políticas industriais e federativas para o audiovisual brasileiro”.

Lívia Condurú: uma amazona brasileira

Livia Conduru
Lívia Condurú. Foto: Ana Dias

A primeira Bienal das Amazônias transformou o cenário cultural de Belém, no Pará, entre agosto e novembro de 2023, às margens do Rio Guamá. Fruto da visão da produtora cultural Lívia Condurú em colaboração com as curadoras Sandra Benites, Keyna Eleison e Vânia Leal, o evento contou ainda com a assistência curatorial de Ana Clara Simões Lopes e Débora Oliveira.

Seis meses após o encerramento desta edição inaugural, o Centro Cultural Bienal das Amazônias (CCBA) abriu suas portas, consolidando a presença permanente da iniciativa na região. Em entrevista exclusiva à arte!brasileiros, Lívia Condurú, que preside tanto a Bienal quanto o Centro Cultural, compartilha reflexões sobre os desafios superados, o impacto alcançado e as promissoras perspectivas para o futuro deste projeto que reposiciona a Amazônia no mapa cultural contemporâneo.

Como foi transformar um projeto ambicioso como a Bienal das Amazônias em realidade?

Lançar a Bienal das Amazônias em 2023 foi como construir uma instituição no vazio — do zero absoluto. Sem sede, com equipe reduzida, com orçamento muito abaixo do necessário e, ainda assim, com a ambição de fazer uma Bienal internacional a partir do território amazônico.

O plano inicial previa a ocupação de espaços museais do Estado do Pará e do Município de Belém. Quando perdemos esses espaços, sete meses antes da inauguração, tivemos que reformular tudo. Em 43 dias, reformamos um prédio de 8 mil metros quadrados no centro comercial de Belém e montamos a primeira edição da Bienal das Amazônias.

Foi um esforço coletivo imenso. Realizamos uma exposição com mais de 120 artistas de todos os estados da Amazônia brasileira e de todos os países da Panamazônia. O maior desafio foi simbólico: conquistar a confiança do território — mostrar que não estávamos chegando de fora, mas falando a partir da Amazônia, com suas vozes, saberes e corpos.

Estar aqui hoje, com a segunda edição a caminho, prova que boa parte dos entraves foi vencida — com gigantescos desafios, mas com coerência, persistência e escuta ativa.

Após essa primeira edição, que balanço você faz do impacto cultural, institucional e social da Bienal? Quais foram os principais aprendizados e que desafios ainda precisam ser superados para garantir a sustentabilidade do projeto?

O resultado é tangível e simbólico. Em pouco mais de um ano, transformamos um prédio há muito desativado em um espaço cultural ativo, que apenas em 2024 recebeu sete exposições, onde mobilizamos 167 artistas e exibimos mais de 570 obras. Dessas, seis foram totalmente pensadas pela nossa diretoria artística em diálogo com curadores convidados. Atendemos mais de 21 mil pessoas só em Belém, por meio das nossas apresentações musicais, teatrais, oficinas, rodas de conversa e pelo programa educativo gratuito. 

A Bienal também virou plataforma de articulação institucional. Promovemos o 1º Encontro de Gestores Sul-Sul, em novembro de 2024, em Belém, com representantes de instituições culturais do Hemisfério Sul, criando redes entre América Latina, Caribe, África, Índia.

A partir dessa primeira edição, estruturamos uma itinerância potente, que passou por Marabá, Canaã dos Carajás, ambas no Pará; São Luís (MA), Boa Vista (RR) e agora percorre Manaus (AM) e Macapá (AP). Em julho deste ano, chegaremos a Medellín, na Colômbia, com a primeira mostra internacional da Bienal das Amazônias.

Nosso maior aprendizado é que, enquanto trabalhadores da cultura, nada se constrói sozinho, a Bienal das Amazônias só é o que é, graças ao árduo trabalho coletivo de profissionais que acreditam no que, juntos, estão realizando. E o maior desafio que enfrentamos é o financiamento. Hoje estamos finalizando a estruturação do nosso endowment, um fundo patrimonial que nos permitirá alcançar sustentabilidade institucional de longo prazo. Estamos em negociação com investidores e parceiros estratégicos para garantir que o projeto não dependa exclusivamente de leis de incentivo, que são fundamentais, mas insuficientes quando se busca continuidade, independência e planejamento duradouro.

A mobilidade parece ser um aspecto fundamental da Bienal. Como essa estratégia de circulação tem ampliado o alcance e o significado do projeto para diferentes comunidades amazônicas?

A itinerância é um dos pilares da Bienal. Não queremos que o acesso ao que estamos realizando se limite a um ponto fixo. A Bienal das Amazônias precisa circular no território que a constitui, encontrar diferentes comunidades e dialogar com realidades diversas das Amazônias e além.

Entre agosto de 2023 e abril de 2025, somando primeira edição, ações realizadas no Centro Cultural Bienal das Amazônias, itinerâncias e atividades no barco, já fomos visitados por cerca de 80 mil pessoas. Isso é muito significativo para um projeto independente, realizado por trabalhadores da cultura, sediado na Amazônia, em um país de desigualdades tão marcantes.

O barco — uma balsa com quase mil metros quadrados — é uma obra arquitetônica do artista boliviano Freddy Mamani. Mas é também um símbolo institucional: um centro cultural flutuante que deseja ir ao encontro de diversas cidades às margens dos rios amazônicos, por meio da arte e da cultura.

Neste momento, ele inicia sua navegação pelos rios Pará, Tocantins e Amazonas, com paradas em mais de 10 cidades. Retornando a Belém em agosto com programação cultural aberta ao público. Lembrando que toda a nossa programação é absolutamente gratuita.

Não sei se podemos falar em sucesso, o importante para nós é que tenhamos adesão das pessoas que fazem as Amazônias serem o que são, e acredito que, aos poucos, estamos conseguindo isso. 

O que podemos esperar da segunda edição da Bienal das Amazônias? Como a nova curadoria internacional dialoga com os princípios fundadores do projeto?
A segunda edição da Bienal das Amazônias amplia suas fronteiras. A curadoria-chefe está com a equatoriana Manuela Moscoso, que traz sua experiência internacional com instituições da América Latina e da Europa.

Ao lado dela está, enquanto curadora adjunta, a colombiana Sara Garzón, que tem uma pesquisa focada no Sul Global e nas epistemologias decoloniais; a mexicana Mônica Amieva que é pedagoga, pesquisadora e historiadora da arte, e assinará a  curadoria pedagógica; e o paraense Jean da Silva, pensador e importante articulador climático que assina a co-curadoria do programa público. A identidade visual é assinada pela designer argentina Priscila Clementti e pelo artista paraense Caio Aguiar, vulgo Bonikta.

A edição se expande para além da Panamazônia: vamos nos conectar com o Caribe.

Mas o mais importante é que seguimos com o princípio da coletividade. A Bienal não é construída apenas pelos nomes que assinam a curadoria. Ela é feita por um corpo de profissionais comprometidos — pesquisadores, produtores, montadores, educadores — que constroem junto a materialidade desse sonho.

O que se pode esperar da segunda edição da Bienal das Amazônias? Uma bienal vibrante, crítica, sensível. Uma edição que reafirma a potência cultural e política das Amazônias no presente.

Arte como espaço de liberdade

Ana Mae Barbosa
Ana Mae Barbosa, 2025 (imagem: André Seiti/Fundação Itáu)

Figura fundamental da história da educação artística no Brasil, campo ao qual se dedica há quase 70 anos, Ana Mae Barbosa é agora tema de exposição. A 67ª edição das “ocupações” – exposições que o Itaú Cultural dedica a personagens emblemáticos da cultura nacional – revisita sua trajetória pessoal e profissional, iluminando seu percurso desde os anos formativos em Recife, passando pela experiência com as Escolinhas de Arte (movimento que chegou a congregar 144 unidades em todo o país) e uma intensa atividade exercida junto a diversas instituições de museologia, ensino e arte. Em entrevista à Arte!Brasileiros, a pesquisadora fala sobre seu trabalho e reitera a potência transformadora da arte e o papel imprescindível das imagens na formação ampla, democrática e crítica do indivíduo. 

São quase 70 anos de carreira, com mais de 30 livros publicados. Como foi esse processo de revisão da sua trajetória?

Foi muito mobilizador e questionador, não diria que foi prazeroso. Muitas vezes me perguntei sobre a energia gasta em coisas que não continuaram, sobre o que não é mais possível, como fazer pesquisas no exterior, por exemplo. De outra maneira foi uma certa alimentação para continuar, nesse que é um período de maior fragilidade, para não me deixar envolver completamente pela inércia. Mas fico sonhando e sonhar é bom. 

Como surgiu a abordagem triangular, com ênfase na ideia de contextualização, que você desenvolve como forma de ampliação do ensino de arte para todos?

Comecei o trabalho de arte com crianças, até mais ou menos uns 11 anos. Depois disso, era meio difícil, as crianças tinham uma autocrítica tremenda, diziam: “não tenho jeito para o desenho, eu vou largar”. Não davam importância nenhuma ao que a gente dizia, que essa era uma fase normal. A questão era: como fazer com que a arte continue a ser uma companheira dessas crianças na idade adulta? Como fazer que eles continuem ampliando a sua mente através da arte, se eles não veem arte? Apenas o fazer arte era valorizado. Foi aí que comecei a pensar o que fazer para possibilitar uma expansão, como possibilitar que, por exemplo, um bancário, que passa o dia inteiro num banco cuidando do dinheiro dos outros, quando vai para casa, para um apartamento pequeno, possa usufruir da arte, se deixar tocar por ela. Eu coloco então um terceiro elemento: a contextualização. Que foi a grande descoberta, quase como o fermento do fazer e o fermento do ver a arte. Porque contextualizando você vai ter que se perguntar por que fez, de onde vem o que você faz, o que se faz hoje com o que se fez ontem, e esse exercício é muito maior. Essa coisa da imagem me pegou muito. 

Porque e como o Brasil adota o termo Arte-educação?

Ele surge nos anos 1940, em 1948, por aí, quando se cria a primeira Escolinha de Arte. Com Augusto Rodrigues e Margareth Spencer, uma professora americana que iniciou com ele a primeira escolinha, numa biblioteca do Rio de Janeiro. Ela achava que nós tínhamos mania de copiar o exterior e tínhamos uma cultura extraordinária, que misturava os códigos europeus com os códigos afro-indígenas e que não tinha sentido a gente estar copiando a institucionalização da cultura dos outros. Desconfio que a razão é essa, porque tradução literal do termo “art education” seria educação artística. A coisa vai evoluindo e começamos, eu e dona Noemia Varela, já nos anos 1960, a colocar o hífen em Arte-educação. Recentemente, há uns 25 anos, um linguista disse a uma aluna minha que o hífen valoriza mais a primeira palavra. E aí comecei a usar a barra. 

Por que ela permitiria um maior equilíbrio entre os termos? 

Exato. Mas acho interessante até essa variedade de termos. Isso revela também uma variedade de abordagens. Acho isso importante. 

Há uma dificuldade cada vez maior em fazer essa proximidade entre as pessoas, que não são do mundo da arte? Como vencer esse desafio?

Só na prática. Não tem jeito! A arte contemporânea não é fácil de entender. Aliás, para as crianças é muito mais fácil, porque elas entendem naturalmente esses deslocamentos – como colocar uma cadeira em cima de uma geladeira, elas fazem essas operações com constância. Pesquisas têm sido feitas acerca de quanto e como as pessoas veem. Qual é a relação entre o ver a arte e o grau de educação daquela pessoa? Chegaram à conclusão de que não tem nenhuma relação. Uma pessoa formada na universidade pode ter uma dificuldade tremenda de ver arte e uma pessoa menos educada formalmente pode ter uma leitura muito mais rica. É a frequência em ver imagens que importa. Fiz uma pesquisa na estação Sumaré do metrô, com aquele trabalho do Alex Flemming.  É muito interessante, porque a primeira forma de explicar a arte, de ler arte, é sempre trazer alguma coisa que você conheceu antes. Por exemplo, uma geógrafa viu aquilo e disse que era a foto de todos aqueles que trabalharam naquele metrô, porque quando esteve num hotel na Bahia havia visto lá uma foto de todos os operários que trabalharam naquela obra. Ela precisou lembrar outra experiência de imagem para entender aquela. Enquanto um feirante olhou aquilo e me diz: “Eu acho que é o povo brasileiro” Ele foi além, ousou interpretar. É a leitura de segundo grau, em que o objeto se separa do sujeito que está vendo e diz algo a ele. 

O desenvolvimento da criatividade como espaço de liberdade?

Isso mesmo, sem liberdade não há desenvolvimento criativo. Entender imagens é cada vez mais importante para o desenvolvimento da mente. Há muitas pesquisas mostrando que a leitura de imagem desenvolve a inteligência. A arte desenvolve não só criatividade, não só percepção visual, que é algo muito importante e você não tem nas escolas. Inclusive, até em áreas acadêmicas — como trabalhos de conclusão com ghostwriting masterarbeit (expressão em alemão que significa “redação fantasma de dissertação de mestrado”) — a criatividade e a percepção visual podem fazer a diferença. O que faz falta mesmo é um convencimento de que a arte é importante.

Você conta que seu primeiro pedido de bolsa para Capes foi negado com a alegação de que esse campo de pesquisa não existia. E hoje ele é um campo sólido, configurado. Como você vê essa evolução? 

O que a gente tinha antes era o ensino de desenho. O programa do Rui Barbosa, baseado no programa do Walter Smith, era desenho, com muita geometria devido à influência positivista. A arte só se torna obrigatória no ensino no Brasil em 1971-73, com a Lei de Diretrizes e Bases. E agora estão tirando de novo. E no ensino médio, o que é um absurdo total. Na adolescência você fica completamente tonto, uns lhe tratam como criança, outros lhe tratam como adulto. Os hormônios em ebulição. Sempre ouvimos: “temos outras prioridades”. Aí eu pergunto: “Quais?!”. Respondem: “alfabetização!” Eu retruco que a arte é importantíssima para isso. Por exemplo, as palavras “lata” e “bola” parecem a mesma coisa. Porque é uma letra alta e uma baixa, intercaladas. A criança vê a mesma configuração. Mas aquela que trabalha muito com arte, com desenho, mesmo que esteja na fase da garatuja, vai começando a entender o entrelinhamento e imediatamente é capaz de distinguir as palavras por causa do traço do t. 

Você acha que nos museus a situação está melhor?

No museu melhorou muito. Não no MAC, de onde sai há 25 anos. Quando saí de lá deixei 14 arte-educadores, cada um com uma pesquisa. Eu dizia: em universidade, quem não faz pesquisa não é importante. Agora tem apenas dois arte-educadores. O MAE também conta apenas com dois arte-educadores. Estamos criando um bando de gente analfabeta para a imagem, que é uma linguagem importantíssima. 

Voltando à exposição: você participou ativamente da seleção do que seria exibido?   

Eu não me meti. A Clarissa Diniz (curadora) fez tudo sozinha. Só exigi a inclusão de duas fotos. Uma com meu mestre, melhor dizendo, meu tutor, Eliot Eisner, o americano que na época era considerado o maior arte-educador do mundo. Simplesmente um dia ele ouviu uma palestra minha e não parou mais. Nos correspondíamos, ele me orientava, mesmo que não formalmente. Foi presidente da International Society for Education through Art e, perto de sair, quis que eu o substituísse. Era na época do Collor, era impossível sair sem pagar só para sair do país. Ele terminou me convencendo, como mostra a carta que está lá, dele me intimando a aceitar. E outra, minha e de meu marido, tirada pelo Alex Flemming,  que foi a última foto dele. O resto foi todo trabalho dela e de sua equipe de pesquisadores, muito competentes. 

Achei curiosa essa escolha de inserir na mostra elementos afetivos, como sua coleção de colares, que são um pouco a sua marca registrada. 

Isso foi uma ideia antiga da Regina Machado, uma grande amiga, que foi minha orientanda. Eu tenho mania de colar mesmo. Antes eu usava muito brinco, grande, aí fui ficando velha e passei inconscientemente para os colares, grandes. São muitos mesmo. O negócio é meio maluco. Comecei a comprar um em todo lugar que eu ia e depois os amigos começaram a me dar muitos colares. São 700! Descobri agora que eles contaram e fotografaram todos e a curadora escolheu alguns para colocar na exposição. O mesmo acontece com minhas caricaturas. Tenho muitas porque os alunos costumam me presentear com desenhos no final das aulas. Talvez meu rosto seja bom para caricaturas. 

 

Discretas janelas: fotografia que revela e provoca

Hélio Campos Mello
Foto: Hélio Campos Mello

O fotógrafo Hélio Campos Mello tornou-se referência não apenas pelo fotojornalismo, nem tampouco por ter sido correspondente de guerra, ou por ter dirigido várias redações, mas pela singularidade com que transforma o registro documental em expressão sensível. Em contraposição à espreita da informação ou à necessidade de retratar uma realidade dolorosa, a exposição Discretas Janelas, em cartaz no Balcão (rua Doutor Melo Alves, 150), convida o público a conferir imagens que tangenciam geometrias, arquitetura e poéticas
e um certo mistério.

As vinte fotografias que compõem a exposição demonstram que as janelas aqui não são apenas passagens de luz, mas trincheiras de observação como bem ensinou o cinema em Janela Indiscreta, de Hitchcock, e nos clássicos faroestes onde cada olhar escondido por trás de uma janela envelhecida e empoeirada podia testemunhar extermínios arrasadores. Aqui, no entanto, o disparo é da câmera fotográfica, discreta, mas reveladora.

Com imagens que ora se esmaecem, ora transbordam de significados, a mostra propõe um olhar que é, ao mesmo tempo, político, poético e humano. A fotografia, neste contexto, permanece enraizada no cotidiano, e Hélio revela essa dimensão ao transformar certos instantes em cenas que se aproximam do voyeurismo, registros da vida que acontece diante ou por trás das janelas.

Elementos da arquitetura estão presentes na compacta mostra, assim como o geometrismo, que nos remete às artes plásticas. “Tive muitas referências que aprofundaram meu olhar desde Caravaggio (1571-1610), que conheci em uma aula, em Florença, onde fiz curso de fotografia”. Ele comenta o quanto se surpreendeu com o mestre do barroco, que aplicava em suas pinturas as técnicas da fotografia: controle de luz, sombra, corte, profundidade, cor, enquadramento. “Embora eu não atue diretamente com as artes plásticas, colaboro com a Arte!Brasileiros, o que me mantém em contato com esse universo. Assim, mesmo que de passagem, as obras de arte me tocam e despertam o meu olhar”, observa.

Entre as duas dezenas de fotos expostas, ele comenta uma delas em que funde numa fotografia, a cena de uma mulher sentada frente à uma grande janela do Whitney Museum de Nova York com a obra do pintor Edward Hopper, pertencente ao acervo, intitulada Woman in the Sun (Mulher no Sol), de 1961. O quadro exibe uma personagem em sala banhada por luz natural, que entra por um grande janelão ao fundo, exatamente como a cena registrada por sua câmera, em que a arte se mistura com a vida real. “Gosto quando uma obra de arte participa da cena. Quando ela não está isolada numa parede, mas conversa com o espaço, com as pessoas, com o momento”, afirma. Essa percepção foi cultivada ao longo de décadas de trabalho de campo e está latente nesse cenário que demonstra a interação entre o objeto fotografado e o cenário circundante. As duas mulheres, a da foto e a do acervo, compõem e sobrepõem um imaginário único.

Hélio atuou como enviado especial em momentos cruciais da história recente: cobriu os anos pesados da ditadura militar brasileira, esteve na linha de frente da invasão do Panamá, (1980) e registrou ainda a tensão da Guerra do Golfo, (1990-1991). Seu trabalho é marcado pela imersão total nos acontecimentos.

A exposição se inicia com duas obras que funcionam como marcos temporais e afetivos, evocando uma atmosfera sensual e intimista. Ambas retratam a mesma mulher em momentos distintos de uma história de amor que atravessa quatro décadas. A primeira imagem, datada de 1973, mostra a jovem nua, deitada de lado, registro inaugural de um romance que viria a se perpetuar. A segunda, realizada em 2024, reafirma a profundidade dessa união e confirma o vínculo duradouro do casal. Aqui temos a mesma espécie de jogo cênico: a mesma posição fotográfica, a mesma complementaridade dos volumes dos corpos e a mesma atmosfera intimista do quarto.

Em meio aos retratos, fotografias biográficas, a mostra também abre espaço à paisagem urbana, destacada por duas fotografias, em que luz e cor se impõem, resultando em uma imagem de caráter quase pictórico, que transforma o imenso bloco de cimento em uma composição vibrante e de linguagem “modernista pop”. Em ambas há um olhar para a arquitetura.

Hélio caminha pelas ruas às vezes fotografando com uma pequena câmera, que faz imagens imprimíveis ou com o celular “porque é prático e portável”. Ele lembra que o Photoshop foi criado em 1987 e lançado em 1990 e que no início algumas pessoas questionavam a nova ferramenta. “Em qualquer tempo ou circunstância não importa o instrumento que você está usando. O importante é o que está sendo registrado em seu cérebro e enviado para o olho”. Aparatos fotográficos mudam constantemente e as novas tecnologias ajudam muito os profissionais. “Quando embarquei para o Golfo, como correspondente de guerra, eu tinha 75 quilos em minhas costas, e pesava 70. Hoje, se eu fosse cobrir outra guerra, eu viajaria tranquilo com meu celular e traria ótimas imagens”, garante.

Com uma carreira construída entre zonas de conflito e o dia a dia de uma grande cidade como São Paulo, ele transita com naturalidade entre a ficção e a realidade, sempre atento ao gesto poético do enquadramento. Depois de cobrir guerras e crises políticas, Hélio passou a explorar temas mais amplos, como a presença da arte na vida urbana, os gestos anônimos nas cidades, a memória silenciosa dos espaços — uma investigação visual tão cuidadosa quanto quem decide diplomarbeit schreiben lassen (escrever uma tese de graduação, em alemão). Seu acervo, hoje, é testemunho visual de várias épocas, um mosaico de imagens que revela tanto o tumulto dos grandes eventos quanto os instantes de quietude entre eles.

Hélio cursou economia no Mackenzie, mas foi na fotografia, estudada em Florença (Itália), que encontrou sua linguagem mais duradoura. Ao longo de sua vida, construiu uma história consistente como fotógrafo e jornalista, com passagens por algumas das principais redações do país. Atuou como repórter fotográfico nos jornais O Estado de S. Paulo, Jornal da Tarde e Última Hora, além de colaborar com revistas como IstoÉ, Senhor e Veja. Foi diretor de fotografia da Agência Estado e, no jornalismo editorial, exerceu funções como secretário de redação da revista Senhor, diretor de redação da IstoÉ e fundador e diretor da revista Brasileiros.

Neste momento, ele prepara-se para o lançamento de seu site, previsto para breve, além da publicação de um futuro livro, com curadoria de Rosely Nakagawa, figura maior na história e na crítica da fotografia brasileira.

Estalo: A Chave Mestra da 14ª Bienal do Mercosul

Muitas bienais provocam um campo de tensão entre a exposição e seu título. O fio condutor da 14ª edição da Bienal do Mercosul é a ideia de Estalo, aquele momento em que tudo se transforma. A palavra polissêmica, popularesca, tanto pode se referir ao teatro, dança, fotografia, esporte, violência e está sempre na boca do povo. O tema inusitado foi escolhido pelo curador Raphael Fonseca e seus curadores-adjuntos Tiago Sant’Ana, Yina Jiménez Suriel e Fernanda Medeiros. “A ideia foi pensar em um título sem o caráter acadêmico, científico ou situacionista”, comenta o curador.

Prevista para o ano passado, a mostra foi adiada devido às enchentes que atingiram o Estado. Agora, retorna com força, ocupando 18 espaços expositivos com obras que abarcam desde as produzidas pela inteligência artificial a peças ancestrais de matrizes indígenas, além de outras mais lúdicas ou engajadas no político e na sustentabilidade.

Com uma vasta gama de conceitos, esta aguardada edição reafirma Porto Alegre como um polo artístico. Seja de perto ou à distância, familiar ou inusitada, inovadora ou revisitada, cada obra busca dar voz ao conceito central, revelando-se em camadas que ora provocam reflexão, ora despertam rejeição.

Chama a atenção o filme/instalação Echoes of a Wet Finger da jovem Vitória Cribb no Farol Santander, um estridente testemunho da fusão entre tecnologia e identidade em que as novas estéticas digitais reconfiguram nossa percepção e interação com a arte. Neste trabalho, a artista de 22 anos, sucesso de crítica, metamorfoseia sua interioridade e insere o espectador em uma imersão sensorial distópica, ao narrar um ataque raivoso que desestabiliza os limites entre o humano e o bestial. Dentro desse território onírico, ela cria seu avatar, bem ali onde o digital e o orgânico colidem sem distinção entre sonho e vigília. A protagonista é absorvida por um redemoinho de dissociação, enfrentando traumas e delírios que se espalham como um vírus de dados corrompidos. Não há como escapar. Como ela comenta: “Não há firewalls contra o inevitável”.

Sala de Rodolpho Lamonier
Sala de Rodolpho Lamonier

Ainda no mesmo edifício, aparece o nome mais estrelado dessa edição, Nam June Paik (Coreia do Sul, 1932-2006), o mágico pioneiro da videoarte e da videoinstalação. Figura chave da vanguarda dos anos de 1960/70, ele é homenageado pela Bienal que exibe um vídeo/performance, realizado com canal único, uma dança psicodélica com movimentos apreendidos pelo sentido. Paik foi reverenciado na Bienal de Veneza e recebeu retrospectivas memoráveis no Whitney Museum e no Guggenheim. Suas obras adensam o acervo do MoMA, Smithsonian, Nam June Paik Art Center, na Coreia do Sul e os de muitas outras instituições pelo mundo.

A questão de tempo se faz presente em várias obras. A artista chilena Nicole L’Huillier apresenta um dos destaques da 14ª Bienal do Mercosul: Brújula, uma escultura inspirada nos giroscópios que investigam navegação e sintonia vibracional. Com uma membrana central de silicone que simultaneamente capta e emite sons, a obra reflete sobre dualidades e reciprocidades, incorporando influências de princípios andinos e narrativas polirrítmicas. Interativa e instável, Brújula responde ao vento e à sonoridade dos visitantes, transformando-se em um espaço de experimentação coletiva e ressonância sensorial.

No mundo contemporâneo, a colaboração entre instituições é essencial para ampliar o alcance da arte. Nesta edição, a Bienal do Mercosul se une ao Projeto Ling, que mantém um espaço fixo para a exibição de obra de diferentes artistas. Sob a curadoria de Paulo Henrique Silva, o projeto recebe neste ano o artista mato-grossense Gervane de Paula, que apresenta um mural inédito marcado por elementos emblemáticos da cultura do Centro-Oeste, com destaque para a figura central de um cavalo caramelo. Para ele, sua participação na Bienal tem um significado que vai além de sua trajetória individual. “Minha presença nesta edição é um momento especial não somente para mim, mas para todos os artistas mato-grossenses que não têm a oportunidade de mostrar seus trabalhos fora da rica região em que vivemos”, afirma. Ele ressalta a força do agronegócio no Estado, mas critica a falta de incentivo à cultura. “Não temos um circuito de arte estruturado, faltam galerias e colecionadores. Minha participação nesta Bienal pode provocar mudanças”.

Uma contemporaneidade experimental aborda o conceito de sincronicidade e as suas singularidades na obra, Night and Day (I Think of You), no Santander. Cláudio Goulart, artista que imigrou para Amsterdã aos 22 anos, apresenta uma videoinstalação que combina diferentes mídias para levar o espectador a uma experiência imersiva. Goulart evoca a insondável vastidão do cosmos, onde o fulgor das estrelas ressoa como um chamado ancestral. No entanto, confinada no espaço expositivo, a obra se vê limitada por suas próprias fronteiras, ao tentar expandir-se rumo ao infinito galáctico. O resultado é uma tensão entre a ambição do ilimitado e a realidade do contorno físico, revelando a fragilidade da tentativa humana de capturar a imensidão do universo.

Como parte de uma narrativa utópica, político/poética, Zé Carlos Garcia assume a ampla entrada do Museu Iberê Camargo. Ao ocupar o grande “salão”, com peças trabalhadas em madeira, ele transforma o espaço em um território expandido de sua investigação. “Passei 16 anos esculpindo para escolas de samba, ao mesmo tempo em que frequentava o Parque Lage”.

Sob o título Suite, as peças, dispostas quase em círculos, evocam uma dança silenciosa e se reportam à suíte musical, em que um mesmo tom ressoa em diferentes movimentos. No entanto, por trás da aparente suavidade, há uma perturbação latente. Suas figuras desafiam a integridade do corpo: deformações, intersecções inesperadas, línguas que emergem para conectar-se a outras cabeças, instaurando um jogo entre comunicação e dissolução da identidade. “As madeiras são extraídas de minha área de manejo florestal consciente, e utilizo as árvores invasoras”, defende. Arte Suite dialoga com Solidão (1994), a pintura inacabada de Iberê Camargo, feita no final de sua vida. Se ele tensionava o espaço pictórico com figuras espectrais, Garcia o faz tridimensionalmente, esculpindo corpos que oscilam entre a presença e a dissolução, entre a poesia e o desassossego.

No mesmo local, a jovem Maya Weishof (1993) exibe pinturas quase alegóricas, aproximando-as da realidade apreendida no cotidiano, trabalhando-as sobre superfícies como tela e tecidos. A artista utiliza de fragmentos, distorções, caricaturas e criaturas híbridas na concepção de imagens de corpos e paisagem — numa abordagem tão meticulosa e multifacetada quanto o trabalho de um ghostwriter doktorarbeit (escritor fantasma de tese de doutorado, em alemão), que combina pesquisa profunda e construção imaginativa.

A representação oficial desta edição conta com cerca de 77 artistas vindos de 35 países, com obras espalhadas pelos quatro cantos da cidade, tanto pelos bairros da classe alta, quanto pelas periferias para aproximar a Bienal de quem vive mais distante. Para enfrentar essa tarefa, Raphael contou com a experiência de Thiago Sant’Ana, curador e artista visual. “Ele é natural de Santo Antônio de Jesus e residente em Salvador. Sant’Ana se destaca pela atuação em projetos dentro e fora do Brasil, incluindo colaborações frequentes em São Paulo”, diz Raphael Fonseca. Sant’Ana tem um olhar amplo sobre a produção artística brasileira e, segundo o curador, contribuiu significativamente para as discussões em grupo. “Também adensaram o projeto os demais curadores convidados”, afirma Raphael.

A vibração festiva desta edição pulsa no coração da cidade, onde a artista peruana Fátima Rodrigo transforma o espaço urbano em um grande palco interativo. Suas instalações ganham vida entre o karaokê e as pistas de dança, espalhando energia no Pop Center e no Espaço Força e Luz. Nesse circuito lúdico, o Museu da Cultura Hip Hop se une à celebração, reforçando o espírito de coletividade e expressão. Fátima tenta sair do cotidiano do circuito artístico tradicional, buscando novos diálogos e experiências. “Me inspiro na música e na dança como forças de celebração e convivência social, além da estética vibrante dos programas de TV populares na América Latina”, explica. Suas intervenções são convites abertos: pedestres e visitantes se tornam protagonistas, integrando seus cenários e transformando o cotidiano em um espetáculo vivo, onde arte, corpo e cidade se fundem em um só movimento.

Valerie Brathwaite, um dos grandes nomes da arte na América Central (Trinidad e Tobago), segue ativa aos 87 anos e viajou a Porto Alegre para prestigiar a Bienal e acompanhar a montagem de Soft Bodies, sua imponente instalação composta por peças superdimensionadas. Apesar da idade, continua a criar esculturas de grande escala, explorando a tridimensionalidade por meio de tecidos preenchidos que ganham volume e forma. Dispostas no chão do Museu Iberê Camargo, suas obras rompem com a rigidez da tradição escultórica, evocando a flexibilidade e a maleabilidade dos corpos em interação, suas reações, adaptações e transformações diante dos embates entre si e com o espaço ao redor.

A fotografia encontra uma expressão singular na obra do artista estadunidense Paul Mpagi Sepuya (1982), cuja investigação visual desafia as convenções tradicionais do meio ao explorar identidades queer, intimidade e os mecanismos de construção da imagem. Seu trabalho se desdobra em um jogo sofisticado de autoimagem, reflexo, comunidade, pose, ficção e masculinidade, expandindo-se para exposições imersivas, instalações e fotolivros. Reconhecido internacionalmente, seu acervo integra algumas das mais prestigiadas instituições do mundo, como o Guggenheim, Hammer Museum, LACMA, MoMA, Museu Stedelijk e Tate Modern.

Randolpho Lamonier, também fascinado pelo universo das imagens, transita por diversas mídias, com especial destaque para a arte têxtil, a pintura, o vídeo e a instalação. Sua obra Teoria Geral do Babalu Atômico configura-se como um espaço feérico, dominado por um vibrante tom de rosa, onde palavra e imagem dialogam incessantemente. Neste ambiente sensorial, temas que vão do micro ao macropolítico se entrelaçam a crônicas, diários e interseções entre memória e ficção. Seu trabalho já integrou exposições em instituições de prestígio, como o Denver Art Museum, o MASP e o Another Space, em Nova York.

O mais emocionante desta edição é ver a Bienal ocupando novamente espaços icônicos da cidade, como o Farol Santander e o Museu de Arte do Rio Grande do Sul, e trazendo de volta o agito da Usina do Gasômetro, todos duramente afetados pela catástrofe do ano passado. Como co-curadora das 2ª e 3ª edições ao lado de Fábio Magalhães, lembro o quanto me doeu ver esse patrimônio tão rico ser engolido pelas águas. Fim do trabalho, agora, volto para São Paulo com o coração leve, feliz por testemunhar essa retomada.

CONGRESSO CORTA 85% DA LEI ALDIR BLANC NO ORÇAMENTO 2025

Foto: Jonas Pereira / Agência Senado

O Congresso Nacional aprovou nesta quinta-feira, 20, o projeto de lei orçamentária (LOA)
de 2025 (PLN 26/2024). O texto, aprovado três meses após o prazo, trouxe uma notícia
terrível para o setor cultural: os recursos para a Política Nacional Aldir Blanc (PNAB), mais
plano de fomento à cultura do País, foram reduzidos em cerca de 85% (caíram de R$ 3
bilhões para R$ 480 milhões).

Imediatamente ao anúncio do corte, o Fórum Nacional dos Secretários e Dirigentes de
Cultura de todo o País anunciou que seus representantes desembarcarão em peso em
Brasília no próximo dia 27, “mobilizados e articulados”, para tentar reverter essa decisão.
Caso se concretize, o baque na Lei Aldir Blanc (LAB) inviabilizará a mais importante política
cultural pública que o País conseguiu erguer em sua História – os recursos vão para os
entes federativos, municípios, estados e Distrito Federal, para apoio a projetos. O
contrassenso é que o Congresso Nacional, ao mesmo tempo que cortou a LAB, reservou
R$ 50 bilhões para emendas parlamentares.

“A PNAB representa uma conquista histórica da cultura brasileira, consolidando uma
política pública permanente de fomento, construída com ampla pactuação federativa”,
disse a nota do Fórum, presidido pelo secretário de Cultura do Espírito Santo, Fabrício
Noronha. O corte foi operado pelo relator da LDO, senador Angelo Coronel (PSD-BA), e
não pelo governo, que tinha se comprometido a manter os recursos quando enviou o
projeto de lei ao Congresso. Os ativistas acreditam que podem reverter a previsão de
gastos. Para valer, o projeto agora depende da sanção do presidente Lula e da publicação
no Diário Oficial da União.

Aprovada por unanimidade no Congresso Nacional em pleno governo de Jair
Bolsonaro, inimigo das políticas culturais, a Lei Aldir Blanc é uma legislação de despesa
obrigatória, que não pode ser cortada ou contingenciada. Os recursos da Política
Nacional Aldir Blanc de Fomento à Cultura (PNAB) destinam-se a ações e projetos de
todo o País, sem distinção de legenda partidária. O governo federal previa destinar
anualmente R$ 3 bilhões até 2027 para o setor, e a aplicação é feita pelos próprios
entes federativos por meio de editais e prêmios. Tornou-se a maior política cultural do
país em termos de investimento direto da União.