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Colaboradores #73

Patricia Rousseaux é diretora editorial de Arte!Brasileiros. Acompanhou a Temporada França-Brasil 2025 e organizou
esta edição especial junto à agência A4, convidada para coordenar a comunicação e a mídia da Temporada Francesa
no Brasil

 

Maria Hirszman é jornalista e crítica de arte. Trabalhou no Jornal da Tarde e em O Estado de São Paulo. É pesquisadora em história da arte, com mestrado pela USP. Neste número mergulhou na vida da Agnes Varda e conversou longamente com o professor de história da arte Tadeu Chiarelli

Fabio Cypriano Jornalista, é crítico de arte, professor e diretor da Faculdade de Filosofia, Comunicação, Letras e Artes da PUC-SP. Nesta edição, Cypriano colabora com sua visita à exposição do acervo da Pinacoteca do Ceará e uma análise da coleção do Gilberto Chateaubriand

Luiza Lorenzetti é jornalista, especialista em Mídia, Informação e Cultura pelo CELACC-USP. Atualmente, é Gerente Web da Arte!Brasileiros. Nesta edição foi responsável pelo texto da exposição “Debret em questão – olhares contemporâneos”

Lara Paiva é jornalista pela Universidade de São Paulo. Trabalhou na Folha de S. Paulo e no Jornal da USP. Nesta edição escreve sobre a Temporada Brasil na França 2025
Jotabê Medeiros é repórter e biógrafo, entre outros, do cantor Belchior. Foi repórter de O Estado de S.Paulo e da Folha de S.Paulo, entre outros. Nesta edição, Jotebê escreveu sobre a necessidade de instituições europeias atualizarem protocolos de preservação de fotos devido ao avanço da deterioração provocada pelo aquecimento global. 
Coil Lopes é desenvolvedor multimídia, designer, videomaker e programador. Atuando na Arte!Brasileiros desde sua fundação, integra criação e tecnologia, produzindo fotografias, vídeos, e colaborou com a edição especial da Temporada França-Brasil 2025

Fotos: arquivo pessoal

José Antônio da Silva: Moderno, não primitivo

José Antônio da Silva
Obra sem título de José Antônio da Silva.

José Antônio da Silva, um dos principais intérpretes da vida e da cultura do interior de São Paulo, era frequentemente tido como “primitivo” por ser um artista autodidata. Apesar de Silva ter se posicionado como defensor da arte primitiva ao longo de toda a sua vida, a palavra carrega um estigma, pois pressupõe uma linha evolutiva em que algumas culturas seriam mais “avançadas”, enquanto outras seriam mais “atrasadas”.

Mas a obra de Silva, cuja morte completa três décadas no próximo ano, continua mais atual do que nunca; recentemente, ganhou uma mostra monográfica na França, em Porto Alegre e em São Paulo. Seus trabalhos transcendem o rótulo de primitivo – e é isso que o pintor e curador Paulo Pasta busca combater em Eu Sou o Silva, mostra em cartaz na Galeria Estação que une obras que ressaltam a versatilidade do artista e redefinem seu legado como pintor. 

As pinturas, produzidas entre as décadas de 1940 e 1980, provêm de coleções particulares e do próprio acervo da galeria. A seleção, afirma Pasta, apresenta exemplos para além dos trabalhos mais conhecidos do artista, mostrando como, à sua maneira, Silva incorporou várias influências do modernismo brasileiro em seus trabalhos. 

José Antônio da Silva
Obra sem título (1972) de José Antônio da Silva.
Foto: João Liberato.

“Ele sempre foi muito consciente e atento aos seus meios expressivos, sabia como transformar a sua poética em forma”, afirma o curador. “E fez tudo sem salvaguarda, sem nenhuma formação, com seus próprios recursos. O Silva tinha grande consciência do valor que tinha. Ele dizia: ‘se todo mundo diz que eu sou um gênio, para que eu vou ser burro e dizer que não sou?”.

O curador destaca as paisagens rurais do artista que adquirem caráter abstrato: cada ponto representa uma unidade da plantação, que se estende até o horizonte e se confunde com as nuvens. Em certas obras, pode-se observar a influência do pontilhismo, em que cada pincelada vira um elemento constitutivo do espaço. 

José Antônio da Silva
Obra sem título (1987) de José Antônio da Silva.
Foto: Filipe Berndt.

Um exemplar que destoa do conjunto do trabalho é uma natureza-morta de 1954, pintada em tons sombrios e terrosos. Silva retrata mamões ao lado de um ninho de marimbondos, ameaçando um perigo que pode se desdobrar a qualquer momento – a cena reflete a narrativa de uma pessoa com experiências de trabalho ligadas ao campo, que não vê a natureza como idílica, mas sim um terreno de disputas frequentes. “É algo entre a vida e a morte, a doçura e a amargura, o prazer e a dor. Ele revive os mitos fundamentais do homem”, opina Pasta. 

“O Silva não simplesmente reproduzia a natureza – ele seguia a máxima de que o pintor não pinta o que vê, e sim vê o que pinta”, afirma o curador. “O retrato que ele fez de sua vida foi de um jeito novo, projetando um pouco da sua essência. Isso fez a obra dele ganhar um caráter atemporal”. 

José Antônio da Silva
“Abelhas e mamões” (1954), de José Antônio da Silva.

Essa dialética de tensão e convivência também está presente nas paisagens de Silva. Em uma obra de 1987, o confronto entre a natureza e a civilização é evidenciado por meio de troncos decepados, em frente a um imenso algodoal. Já nos retratos de cenas urbanas, em vez de destacar pessoas, representava conjuntos habitacionais anônimos, enfileirados, assim como suas paisagens de plantações.

Além da admiração crítica por Silva, o pintor desempenhou um papel importante na formação pessoal de Pasta. O curador já encontrou-o em viagens intermunicipais de ônibus, e o artista prontamente  compartilhou causos, memórias de infância e vivências de trabalho no campo, que se refletem em cenas de sua obra. “Ele era um típico caipira fabulador”, afirma o curador. “Ele contava histórias que apareciam no trabalho dele – uma queimada, um aguaceiro que tudo inunda. Essas lembranças aumentam a fantasia, dão asas à imaginação. Mas a fabulação não toma lugar da realização plástica. Tem uma equivalência entre o que ele está falando e como”. 

É a segunda mostra que Pasta organiza na Galeria Estação – a outra ocorreu em 2009 e, desde então, a obra do artista continua em voga. No texto crítico, Pasta começa com uma citação de Pablo Picasso: “desde Van Gogh, todos nós somos pintores autodidatas, quase primitivos”. Silva se posicionava ao lado desses dois artistas, seus preferidos, como um dos gênios da pintura moderna. Suas cenas inauguram um universo ambíguo, intermutável, em que motivos e formas se confundem – como em “Trem”, obra de 1977 na qual a fumaça de uma locomotiva que corta campos se dissipa no ar e se transforma em horizonte com uma pincelada rápida. “Para ele, importante não era pintar a vida da natureza, mas tornar viva a própria pintura”, afirma o curador. 

 

Exposição no MAC-USP explora diversidade da obra de José Antônio da Silva

José Antônio da Silva no MAC-USP
"Autorretrato pintando" (1958), de José Antônio da Silva. Acervo MAC-USP.

Mais de cem pinturas do artista estão em cartaz no Museu de Arte Contemporânea da USP. A mostra José Antônio da Silva: Pintar o Brasil, com curadoria de Gabriel Pérez-Barreiro, já passou pelo Museu de Grenoble, na França, como parte da Temporada Brasil-França 2025, e pela Fundação Iberê Camargo, em Porto Alegre. 

São 142 obras de Silva expostas, sendo 119 do acervo do MAC-USP, que reúne trabalhos do artista desde sua fundação e abriga o maior acervo do país de sua obra. Desde 1963, Silva teve 7 mostras individuais e pelo menos 34 coletivas no Museu.

Pérez-Barreiro ressalta que as obras não têm a pretensão de oferecer uma cronologia ou uma retrospectiva do artista, mas sim de explorar os diferentes temas de sua obra e como Silva escolheu retratá-los ao longo das décadas. 

José Antônio da Silva no MAC-USP
“Algodoal com troncos decepados” (1975), de José Antônio da Silva. Coleção Fernanda Feitosa e Heitor Martins. Crédito: Sérgio Guerini.

A mostra está dividida em oito núcleos temáticos que abrangem os principais assuntos do trabalho de Silva: retratos, vida no campo, campos, queimadas, naturezas-mortas, chuvas, cenas religiosas e trabalhos em papel. Segundo Pérez-Barreiro, a organização foi concebida para valorizar a espontaneidade do artista – não fazia sentido abordar sua obra por meio de uma estrutura rígida ou cronológica. “Ele voltava para muitos dos assuntos; poderia fazer uma pintura dos anos 1950 e outra dos anos 1980, e elas dialogam. Ele é um artista muito espontâneo, então queríamos respeitar esse sentido”, afirma.

Suas obras retratam muitas das transformações sociais e urbanas do Brasil do século 20 – a destruição da natureza, o avanço da agricultura e da pecuária no interior de São Paulo, a industrialização do campo com a chegada de ferrovias e indústrias. Com frequência, pintava culturas de algodão, café e cana-de-açúcar, ora enfileiradas até o limite do horizonte, como em Algodoal (1972), ora acompanhadas de trabalhadores rurais, como em Batendo Algodão (1975). 

José Antônio da Silva no MAC-USP
“Batendo Algodão” (1975) de José Antônio da Silva.
Coleção Vilma Eid. Crédito: João Liberato.

Entretanto, Pintar o Brasil busca demonstrar que seu trabalho não se limita ao universo rural: conta com naturezas-mortas, nas quais se observa o traço expressivo, composto por pinceladas rápidas; cenas religiosas, como Entrada de Jerusalém, de 1968; retratos, como o de sua esposa Rosinha (1957), pintado com cores vibrantes e à maneira do pontilhismo; e autorretratos, como Autorretrato”(1973). Nesta obra, o tom irônico e crítico do artista é evidenciado: sobre sua boca, há uma faixa com a inscrição: “Esta boca está amarrada. Foi a Bienal que me amarrou. Vejam”. Suas mãos, também atadas, seguram um pincel onde está escrito em outra faixa: “Liberdade pinto o que gosto e gosto do que pinto”. 

José Antônio da Silva no MAC-USP
“Autorretrato” (1973) de José Antônio da Silva.
Coleção Orandi Momesso. Crédito: Sérgio Guerini.

O MAC-USP conta, ainda, com 23 obras a mais do que as expostas em Grenoble e Porto Alegre, provenientes do acervo da instituição e selecionadas pela professora do Museu e historiadora da arte Fernanda Pitta. Destacam-se os 75 desenhos criados para ilustrar o primeiro livro de Silva, Romance da Minha Vida. Destes, 40 foram publicados na edição do Museu de Arte Moderna em 1949, recém-criado à época, coordenada por Carlos Pinto Alves, um dos sócios-fundadores da instituição. Os outros 35 permaneceram inéditos até agora; a mostra é a primeira em que o conjunto completo é exposto.

“Os desenhos condensam uma poética da memória: Silva narra e ilustra episódios da sua vida, transformando-os , afirma Pitta no livro que acompanha a mostra. Segundo a curadora, as obras não apenas acompanham o texto, mas também “expandem sua dramaticidade”, condensando instantes-limites da narrativa e anunciando o vocabulário plástico que se tornaria recorrente em sua pintura. Em Romance da Minha Vida, Silva é simultaneamente o protagonista e narrador, sujeito e agente de sua própria história, inaugurando uma carreira literária que teria continuidade com títulos como Maria Clara, de 1970, Alice, de 1972, Sou Pintor, Sou Poeta, de 1982, e Fazenda da Boa Esperança, de 1987. 

Também estão expostas outras obras em papel, nanquim e gouache. Entre eles estão Sucuri comendo boi, de 1958, e uma grande composição em nanquim, sem título, de 1950, que representa uma cena de campo em que dois homens conduzem carros de bois. “Procuramos dar destaque à diversidade de suportes da produção de Silva, mais conhecido por suas pinturas em tela, bem como mostrar que, em seus primeiros trabalhos, já se delineiam tanto seu estilo quanto sua poética e temáticas, mostrando um artista consciente de sua prática e interesses”, afirma Pitta. 

José Antônio da Silva
“Sucuri comendo boi” (1958), de José Antônio da Silva.
Acervo MAC-USP.

Pérez-Barreiro aponta que, apesar do estilo de Silva ser consistente ao longo das décadas, seus primeiros trabalhos apresentavam uma resolução formal relativamente simples, com cores mais apagadas e predominância de tons terrosos. A partir da experimentação, Silva passou a incorporar cores mais intensas e uma pincelada mais livre. “A última parte de sua produção, a partir dos anos 1980, mostra que ele tem total controle do pincel e das cores. O Silva pula de um estilo para o outro com absoluta segurança em seu traço”, afirma o curador.

As obras de Silva, também conhecido como “Van Gogh brasileiro”, eram comumente rotuladas como “primitivas” ou “naïf” (ingênuo, em francês) devido ao fato de o artista não possuir formação artística em Belas Artes e à predominância de temas rurais em seus trabalhos. Os curadores rejeitam essa colocação: o artista era consciente de seu valor e de seus recursos formais. “[Ele] reivindicou agência: escreveu, pintou, debateu preços, criou museus e inscreveu-se ao lado de Picasso e Van Gogh como ‘gênio’ moderno”, afirma Pitta. O “popular” em Silva não é repouso folclórico, mas movimento histórico e consciência social”.

O curador Pérez-Barreiro aponta que conhecer um pouco da história de Silva é essencial para entender melhor seus trabalhos. Antes de se consolidar como pintor, o artista exerceu diversos ofícios rurais e passou por situações de pobreza e precariedade. “Ele poderia morar no Rio de Janeiro, em São Paulo ou no exterior, mas continua morando no interior. É um gesto político, de defesa do valor dessa vida e cultura caipira”. 

Segundo o curador, Silva via-se como um representante apto da arte brasileira. Um exemplo é quando foi excluído da Bienal de São Paulo, em 1957 – a comissão organizadora alegou que seu pontilhismo descartava espontaneidade supostamente apropriada a um artista “primitivo”. Como resposta, pintou a tela Enforcamento, concluída em 1967. Na obra, retrata a si mesmo no centro e, pendurados em uma forca, os cinco críticos que o rejeitaram da Bienal. “Ele afirma que eles não conhecem o Brasil. É um debate muito relevante atualmente sobre quem representa o país e quem pode falar em nome dele. Ele se sentia uma voz marginalizada mas absolutamente autorizada para falar sobre essa realidade”. 

José Antônio da Silva
Maleta de pintura de José Antônio da Silva.

O artista, que com frequência se referia a si mesmo em terceira pessoa, costumava afirmar frases como: “Quem não conhece o Silva? O Silva sou eu. O Silva é a natureza rural” e “A natureza está comigo e eu estou com a natureza. A Natureza é meu Deus e eu sou o Silva”. Sua obra se apropria de vários símbolos nacionais – um exemplo é a sua maleta de pintura, exposta no MAC, decorada com uma bandeira brasileira pintada por ele mesmo. “Se hoje temos um grande debate entre cosmopolitismo e regionalismo, ele já falava dessas coisas no século passado”, pontua Pérez-Barreiro.

Nascido em Sales de Oliveira, no interior de São Paulo, o artista expôs pela primeira vez em São José do Rio Preto, cidade onde residiu até 1973. Sua vida mudou após seus trabalhos, pintados em flanela, chamarem a atenção do júri de um concurso na Casa de Cultura de São José do Rio Preto em 1946. Dois anos depois, estreou sua primeira mostra individual na Galeria Domus, em São Paulo. Foi o início de uma trajetória vertiginosa: ao longo dos próximos anos, expôs em várias mostras por todo o Brasil, em edições da Bienal de São Paulo e, ainda, duas vezes na Bienal de Veneza – em 1966, teve uma Sala Especial dedicada à sua obra.

Maria Bonomi: um reiventar constante

Maria Bonomi
Maria Bonomi

A exposição Maria Bonomi: a arte de amar, a arte de resistir, em cartaz no Paço Imperial, no Rio de Janeiro, convida o visitante a uma experiência de imersão. São mais de 250 obras distribuídas por 11 salas do histórico casarão, cobrindo sete décadas de produção. A curadoria de Paulo Herkenhoff e Lena Peres propõe um percurso não cronológico, quase em espiral, no qual as obras se cruzam, reverberam e se reatualizam. A artista surge inteira: múltipla, coerente e contraditória, como a própria história da arte moderna e contemporânea brasileira.

Logo na entrada, a exposição estabelece um diálogo entre o tempo e a matéria. Gravuras convivem com pinturas geométricas do início de carreira, trabalhos da juventude se mesclam a esculturas. Cada retomada sugere o despertar de novas camadas de sentido. Bonomi nunca se repete, ela amplia. Em suas palavras: “Gravar é ferir e, ao mesmo tempo, revelar”. Esse gesto físico, tenso e poético é o eixo que atravessa toda a mostra.

O título da exposição anuncia os dois vetores de sua vida e de sua arte: amar e resistir. Amar, no sentido de criar, cuidar e partilhar. Resistir, no sentido de permanecer, desafiar o tempo e reinventar-se. Aos 90 anos, Maria Bonomi continua a fazer da arte um laboratório de experiências. 

Formada na Europa, e mais tarde aluna de Lívio Abramo em São Paulo, Bonomi sempre considerou a gravura como território. A madeira, o metal, o cimento e a fibra são seus aliados. O gesto de gravar é também uma forma de pensar o espaço, de criar um relevo entre o visível e o invisível. Como observa Herkenhoff, “em Maria, o ato de imprimir não é repetição, mas multiplicação”. Cada impressão é um novo nascimento, uma tentativa de reescrever o tempo.

O retrospecto, e não a retrospectiva, como quer Herkenhoff, reúne trabalhos históricos, como Barcos e luas, xilografia de 1956, com influência construtiva, e Pedra Robat (1974), apresentada na última Bienal de Veneza (2024), quando Bonomi foi convidada a participar da edição, cujo tema foi Stranieri Ovunque (Estrangeiros por toda parte). Estão presentes também as xilogravuras coloridas de grande formato produzidas a partir dos anos 1970, entre elas Tropicália, que estampa a capa do catálogo. No conjunto se destaca Tetraz (2005), a dança das facas, feita em papel artesanal nepalês, e os Epigramas, objetos em cobre, alumínio e latão criados a partir dos anos 1980. Neles, a artista transforma o metal em escrita, em pensamento visual. As texturas ganham voz e o relevo se converte em linguagem.

O vídeo experimental Paris Rilton (sic), de 2011, criado por Bonomi e dirigido por Walter Silveira, com trilha de Cid Campos, ironiza a futilidade do consumo e da celebridade. A artista mostra uma escultura oca, de alumínio fundido, com sulcos que evocam sensualidade e crítica social. O humor e a acidez se combinam para desmontar o mito da beleza instantânea, expondo o vazio de uma sociedade fascinada por aparências.

Em 1996, o MASP apresentou Xilogravura: do cordel à galeria, sob minha curadoria, reunindo 600 obras de artistas, colecionadores e instituições. Foi um marco na valorização da gravura brasileira. Nessa ocasião, Haroldo de Campos escreveu Elogio da Xilo, poema-manifesto sobre o embate entre corpo e matéria. O texto ganhou vida no vídeo dirigido por Walter Silveira, com as vozes de Haroldo, Beth Coelho e Arnaldo Antunes, transformando o poema em experiência sensorial. Era a própria Bonomi em cena, gravando xilos no seu ateliê, tornando o gesto visível. O resultado foi o livro Elogio da Xilo, uma coleção de xilogravuras para colecionadores. 

As relações da artista com a literatura, a poesia e o teatro também se destacam em obras como Quadrantes e Amor inscrito. Esses trabalhos revelam uma subjetividade poética, um território onde a arte se confunde com a vida. O erotismo sutil e o ideário amoroso dessas obras refletem o encontro entre Maria e Lena Peres, em 2004, relação que inspirou séries como Love layers e Lena. Nelas, a artista transforma o afeto em arquitetura visual. É o amor como estrutura e resistência, como disse Herkenhoff: “Para Maria, a arte é um fenômeno entregue à percepção do outro, para a projeção de significados”.

As conexões de Bonomi com o teatro também sempre foram fortes. Na sala mais ampla e múltipla da exposição, pedaços de elementos cênicos, feitos para a peça Peer Gynt, (1971), escrita por Henrik Ibsen, flutuam no ar. A textualidade da vanguarda é sentida com o olhar e o atrevimento pelas formas indagadoras. A xilografia Palco (1962), que pode remeter ao teatro de Samuel Beckett, comprova o envolvimento contínuo de Bonomi com o teatro, desde a década de 1960. Sua obra se expande, contamina e se deixa contaminar também por textos de escritores como Clarice Lispector, sua amiga e confidente, com quem dividiu transgressões, gestos e utopias. 

Nas salas seguintes, o visitante encontra a artista em diferentes papéis: criadora, ativista, arquiteta de espaços públicos. Sua trajetória se mistura com a história do país. Das décadas de repressão à redemocratização, da arte experimental dos anos 1960 ao presente, Bonomi acompanhou as transformações sociais com lucidez e coragem. 

Revisitar Maria Bonomi é revisitar também essa história. Sua obra pública, espalhada por praças, metrôs e edifícios, é extensão de um pensamento coletivo. A artista constrói para o outro, para o olhar de quem passa. São obras que respiram a cidade e dialogam com a vida cotidiana, transformando o espaço urbano em experiência lúdica. Em obras como as que estão na Estação Sé do metrô, no Memorial da América Latina ou na Igreja da Cruz Torta, em São Paulo, Bonomi incorporou a elas o mundo operário, transformou o espaço público em extensão de sua poética, social e coletiva.

A curadoria de Herkenhoff e Peres opta por não fechar o discurso. Em vez de cronologia, uma rede de associações. As obras não se explicam; se respondem. Há nelas ecos, intervalos e correspondências. Cada sala é um campo de forças, um território de acertos, contradições e retornos. O visitante é convidado a circular, se perder e se encontrar entre gestos, materiais e indagações.

A exposição não apenas revisita uma carreira, celebra uma atitude diante da vida. A coerência de Bonomi está justamente na contradição, na capacidade de mudar sem perder o controle e isso fica claro nesse retrospecto. Sua arte e vida são feitas de persistências, mas também de rupturas, quando a situação pede. Em tempos de aceleração e banalidades, Maria Bonomi reafirma a arte como permanência e seriedade. A arte de amar, a arte de resistir não é apenas o título da mostra, é o seu modo de viver desde sempre. Como fica demonstrado no final da visita, Bonomi representa uma ponte entre a técnica clássica da gravura e os traços da contemporaneidade.

“Sinto-me privilegiada por ocupar o Paço Imperial entre duas curadorias tão distintas: uma delirante e distante, outra racional e intimista. A variedade de suportes e etapas apresentadas reafirma meu propósito de compartilhar processos nascidos de uma mesma chama criadora. Tudo vibra em movimento. São oitenta anos de busca incessante, um ato de entrega, ainda não de missão cumprida.”

 

Edgar Calel move montanhas e transporta cultura da Guatemala para Inhotim

Vista da exposição “Ru Jub’ulik Achik’ – Aromas de um sonho”, de Edgar Calel, em cartaz no Inhotim. Foto: Marcos Grinspum Ferraz

Quando pisou no Brasil, em 2011, em sua primeira viagem para fora da América Central, o artista guatemalteco Edgar Calel tinha apenas 24 anos. Desembarcou em Belo Horizonte (MG) para uma residência artística de 20 dias – período no qual pôde conhecer e se fascinar com o Instituto Inhotim – e seguiu para São Paulo, onde participaria de uma mostra coletiva na Galeria Vermelho. Por conta de prazos e imprevistos, acabou sem espaço para expor, mas decidiu ir para a abertura mesmo assim, vestido performaticamente com uma camiseta na qual se lia: “Eu estou aqui pela ausência de uma obra”.

Quase 15 anos passados – durante os quais expôs em diversas grandes instituições de vários cantos do mundo, incluindo a Bienal de São Paulo em 2023 –, Calel volta ao Inhotim em condições bem mais favoráveis. E não com apenas uma obra para mostrar, mas com uma exposição individual que ocupa a totalidade da espaçosa Galeria Lago, dentro do instituto mineiro localizado em Brumadinho, nos arredores de Belo Horizonte. Com 15 obras instalativas em larga escala, sendo 12 delas criadas especialmente para a mostra, o artista passou quase dois meses – junto a sua família – vivendo em Brumadinho para a montagem de “Ru Jub’ulik Achik’ – Aromas de um sonho”, inaugurada neste mês de outubro.

De origem indígena, membro do povo Kaqchiqel-maia e habitante da pequena cidade de San Juan Comalapa, Calel conta que após aquela primeira vinda ao Brasil – na qual começou a entender mais sobre as diferentes culturas que o compõem –, voltou para casa com um enorme desejo de retornar ao país. E assim o fez: “À medida que fui regressando, descobri uma ligação muito especial entre o conhecimento das culturas de povos indígenas aqui do Brasil e da Guatemala”. Após visitar comunidades Guarani, quilombolas e outros povos, o artista afirma que desapareceram, para ele, “as muitas fronteiras que só existem em nossas cabeças, nas definições e termos que usamos”.

Calel percebeu os vários paralelos culturais – seja na alimentação ou na espiritualidade –, mas também sociais e políticos – como nas desigualdades que resultam na luta popular pela terra – que marcam os dois países. “Aqui e ali, os problemas são os mesmos. Não há grande diferença entre os modos de vida, de pensar e também os modos de segregação que existem, incluindo os motivos que criaram essa grande desigualdade”. E é justamente a partir desta percepção, da bagagem de vivências acumuladas em suas viagens e da vontade de colocar em diálogo os dois países que foi concebida a exposição no Inhotim.

Talvez por isso, adentrar “Aromas de um sonho” transporte o visitante brasileiro a um universo cultural distinto, por um lado, mas cheio de referências a seres e elementos que nos são bastante conhecidos. Surgem nas obras animais como a onça-pintada (ou jaguar, em espanhol, um ser sagrado tanto para os Kaqchiqel-maia quanto para diversos povos ameríndios do Brasil); objetos como velas coloridas usadas em rituais, tapetes de palha, vasos de barro e tambores; alimentos como o milho e as frutas tropicais; além de formações de relevo como as montanhas de terra fértil, de desenho tão semelhante nas regiões de Comalapa ou Brumadinho. “O Calel nos proporciona uma experiência imersiva a partir de elementos da natureza, num desenho de espaço que é cadenciado pelo território, pela comunhão – principalmente de seu núcleo familiar – e pela espiritualidade”, sintetiza Beatriz Lemos, que assina a curadoria da exposição junto a Lucas Menezes.

Mas se há ali aproximações óbvias entre Guatemala e Brasil – como nos morros de terra simbolizados em “Aq’omanik Paruwi’Juyu’ – Cura sobre as montanhas”, há também notáveis características culturais de um universo particular aos guatemaltecos, mais especificamente ao povo Kaqchiqel e à própria família Calel. É ela, afinal, que está representada em “Kej- chi’ch’ – Veado de metal”, instalação composta por uma caminhonete vermelha ocupada por esculturas de argila que simbolizam os membros da família, trajados de roupas tradicionais repletas de padronagens coloridas.

É o ambiente familiar dos Calel, ainda, que está referenciado em uma grande sala ao final do itinerário do visitante. Ali, encontra-se um espaço cerimonial inspirado naquele que existia na casa da avó de Edgar – com objetos como máscaras, chapéus, bordados, instrumentos musicais, velas e fotos –, assim como um espaço de trabalho semelhante às oficinas da família, além de um vídeo de uma performance – “Xi ni chajij – Me cobriram de cinzas para me proteger” – realizada por Calel ao lado de seus pais. Pois para os Kaqchiqel-maia, como explica Lemos, “esse lugar do sagrado está em total simbiose com o lugar do sustento, do trabalho, do descanso, da comunhão da família e da conversa”.

Um fazer coletivo e de longa duração

Chamada por Inhotim de “exposição de longa duração”, já que fica em cartaz até 2027, a mostra de Calel teve também uma longa duração para ser gestada. Nada a mais, nas palavras de Lemos, do que “um tempo adequado e confortável de ideias, de idas e vindas”. Afinal, o respeito ao “tempo das coisas”, em oposição à usual celeridade imposta pelas sociedades ocidentais, é um dos valores básicos de “Aromas de um sonho”, assim como dos Kaqchiqel-maia e de tantos outros povos ameríndios.

E isso parece ficar claro já na primeira obra da exposição, ainda ao lado de fora da galeria, intitulada “Rajawal Ramaj – Dono do tempo” e constituída apenas por uma grandiosa rocha gnaisse encontrada por Calel na região de Brumadinho (marcada historicamente pela mineração e, recentemente, pelo desastroso rompimento da barragem da Mina Córrego do Feijão). Uma pedra na qual o artista percebeu a semelhança com o formato de uma tartaruga – bicho de movimentos lentos e vida longa – e apenas desenhou os olhos do animal, explicitando sua visão.

Sobre o longo e intenso processo de feitura da mostra, Menezes afirma também que “esta é mais do que uma exposição, é um projeto que se comunica com um tempo que não só o de agora. E está baseada em princípios inarredáveis, muito firmes, muito aterrados”. Um destes princípios, talvez o mais basilar deles, é o de um “fazer coletivo e em comunhão”, resultante da intensa troca entre a família Calel e as equipes do Inhotim.

Após uma primeira visita de Edgar a Brumadinho, para conhecer a galeria na qual exporia e observar com calma a região mineira, os curadores e outros membros dos ateliês do instituto viajaram à Guatemala para conhecer Comalapa, sua paisagem, a cultura local e a vida dos Calel. A vida em um país com mais da metade da população de origem indígena, a maioria de descendência maia, como comenta Lemos: “Foi algo muito marcante e bonito de ver. Que existe a possibilidade, na contemporaneidade, de vivenciar isso como sociedade. Quem dera a gente pudesse ter tido a oportunidade de conviver mais com as nossas culturas originárias”.

Lá, os brasileiros viram um pouco da rotina da família, descrita por Edgar como uma sucessão de fazeres coletivos que incluem trabalhar no campo, compartilhar e interpretar os sonhos, cozinhar, realizar cerimônias e produzir arte. “São muitas atividades, é quase como um ministério da Cultura e do Esporte”, brinca ele, lembrando que dois de seus irmãos são também professores de educação física. “Mas tudo que fazemos vai se desenrolando de forma muito natural. Não se pode fazer nada sem estar em comunicação, sem perguntar aos outros se estão bem, se estão mal”. E mesmo sabendo que sua produção é cada vez mais requisitada no circuito artístico internacional, Calel compreende também que “muitas vezes, antes da arte é necessário solucionar outros problemas”.

A exposição fala sobre esse sonho de todos nós, esse sonho coletivo, em comunhão. Mas, principalmente, fala de um sonho ancestral, de reinvindicação de dignidade, protagonismo e autonomia das culturas originárias, da cultura Kaqchiqel-maia

Por fim, a conclusão do projeto e a montagem de “Aromas de um sonho” se deram em Brumadinho, durante os quase dois meses de Edgar, seus pais – na primeira vez em que sua mãe viajou de avião – e três irmãos na cidade, todos trabalhando junto às equipes do Inhotim. Não interessava, para o artista, apenas transportar suas obras de Comalapa para o instituto, ou ainda vender a ele as obras de seu acervo, como conta Menezes: “Ele queria fazer junto e, para nós, esse é um princípio fundamental do projeto. Sonhar junto, criar junto e fazer junto.” Assim, segundo Calel, “o que existe é algo tão bonito e tão importante: reconhecer que a arte contemporânea está sendo feita a partir dos povos. Esse enfoque é fundamental, pois também se trata da memória dos povos que estamos transportando por meio das obras”.

Memória dos povos que é também manifesta, na visão Kaqchiqel-maia, na memória das coisas, em uma cosmovisão que vê vida nos elementos da natureza – incluindo as duas grandes pedras que simbolizam os avós de Edgar na obra “Qatit Qa Mama’ Wawe Oj k’owi Chawech – Avó, avô, estamos aqui diante de vocês”. Pedras ou avós, portanto, que podem atravessar tempos, dimensões ou territórios, segundo Calel. “Através da arte, a temporalidade pode ser estendida um pouco mais. E acredito que é muito importante pensar nas coisas que conseguem ficar depois da gente. Falo sobre isso porque dentro de mim ainda há – às vezes ouço – o som da voz da minha avó. E é por isso que faço oferendas, para que ela possa viver muitas temporalidades, muitas dimensões.”

Perguntado, afinal, sobre o título da mostra – “Aromas de um sonho” –, Calel afirma que os sonhos são uma das tantas dimensões que existem para ser vividas. “Assim, faz sentido pensar que o aroma de um sonho é também o aroma da vida, que no caso da exposição se traduz em instalações, objetos, pinturas, memórias… em ser convidado, por meio de obras, a aprender um pouco sobre a Guatemala”. Na verdade, retoma ele, a memória de uma Guatemala construída no Brasil. “Então é algo quase como um abraço de amizade, de conhecimento e colaboração.”

Na mesma linha, Lemos concluí: “A exposição fala sobre esse sonho de todos nós, esse sonho coletivo, em comunhão. Mas, principalmente, fala de um sonho ancestral, de reinvindicação de dignidade, protagonismo e autonomia das culturas originárias, da cultura Kaqchiqel-maia”.

*O jornalista viajou a convite do Instituto Inhotim

Por que falar do manguezal?

Uýra Sodoma, Caos, da série Mil [quase] Mortos, 2018. Foto: Matheus Belém.

Entre a terra e o mar, o manguezal é um lugar de transição. Do Oiapoque, no Amapá, até Laguna, em Santa Catarina, os manguezais podem ser encontrados quase que por toda a costa brasileira. Esse ecossistema abriga formas de vida que prosperam em meio à instabilidade e sua importância é tremenda, já que protege a costa da erosão e eventos climáticos extremos. 

Agora, o manguezal se tornou ponto de partida para uma reflexão sobre as interdependências entre humanos, natureza e cultura na exposição Manguezal, em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil Rio de Janeiro (CCBB RJ), com curadoria de Marcelo Campos, pesquisador de identidades brasileiras com sólida trajetória na arte contemporânea.

A exposição partiu do livro homônimo, de Andrea Jakobsson, e propõe  um olhar sobre o mangue como metáfora para a arte e para a própria experiência brasileira: um ambiente de mistura, reinvenção e sobrevivência. Em entrevista à arte!brasileiros, o curador revelou que a ideia de dedicar uma mostra inteiramente aos manguezais foi muito satisfatória, pois foi possível compor um conjunto de artistas de diferentes tempos e linguagens: “Os manguezais passaram pela arte brasileira em diversos momentos. De artistas modernistas como o Abelardo da Hora, o Lasar Segall, a artistas contemporâneos como a Uýra Sodoma e até o Carnaval carioca”, explica Campos.

No Museu de Arte do Rio, onde Campos é curador-chefe, ele tem trabalhado com projetos de curadoria compartilhada. A curadoria se assume como um dos dados de uma mostra e não como o único dado: “Com isso, a gente vem trabalhando com especialistas, que nos dão informações sobre os assuntos que transformamos em listas de obras, em ideias, em imagens”. O mesmo processo aconteceu durante a pesquisa de Mangue

Ao mergulhar nesse universo, Campos se deparou com a informação de que o Brasil é um dos lugares mais importantes do planeta quando se fala de manguezais. “Esse lugar promove uma alteração do clima:  esfria o clima quente, faz a transposição da água doce para água salgada. São coisas incríveis e riquíssimas”, aponta. No entanto, o curador lamenta que o manguezal ainda sofra com a confusão popular entre o mangue e o esgoto.

O curador fez questão de incluir artistas que já haviam se aproximado do tema em momentos cruciais da arte brasileira, como a modernista Celeida Tostes. Na época em que ela lecionava na UFRJ, a argila era retirada da borda dos mangues da Baía de Guanabara, um ato hoje impossível devido à poluição.

Na arte contemporânea, os trabalhos de Uýra Sodoma e a obra comissionada de Azizi Cypriano ganham destaque. Azizi, por exemplo, produziu uma performance e fotografias que focam na transmissão do saber.

Azizi Cypriano e a obra Movimento-grafia 

Azizi Cypriano e Laryssa Machada, Evitando a erosão, 2025. Reprodução fotográfica (tríptico) Agradecimento: Dona Almirena. Coleção das artistas.

 

A obra de Azizi Cypriano, intitulada Movimento-grafia 10, é um trabalho inédito, comissionado para a exposição, que se aprofunda na relação entre corpo, escrita e o território do manguezal. A artista, que desenvolve a pesquisa Movimento-grafia desde 2019, que relaciona a escrita com a lama, inspirada no texto Da grafia-desenho de minha mãe, de Conceição Evaristo, encontrou no mangue um território sagrado. “O mangue é uma geografia muito misteriosa, não é todo mundo que consegue acessá-lo porque ele não é não é como uma cachoeira que ainda que seja também muito espiritual, muito poderosa, a gente consegue acessar com uma certa facilidade”. 

Azizi relata que o convite para a exposição foi antecedido por uma imersão na Baía de Guanabara, junto ao grupo Guardiões do Mar. No entanto, o ponto de virada para a criação da obra foi o encontro com a comunidade do Quilombo do Feital, formada por pescadores de caranguejo, e, em especial, com a artesã Dona Almirena, que trabalha com a palha da taboa coletada no mangue, e sua filha, Val Quilombola, liderança do quilombo.

“Eu acho que a primeira coisa que eu realizo com o Quilombo do Feital é essa chegada num território do qual sem eles eu jamais poderia conhecer da maneira que eu conheci. Toda vez que a gente for adentrar o manguezal, a gente precisa pedir licença”, explica.

A performance de Azizi só foi possível a partir dessa relação profunda com a comunidade, que a acolheu e a ensinou a “chegar” no mangue. A artista descreve que, ao adentrar o manguezal, seu corpo se curva, pois é um lugar que exige lentidão e respeito: “Eu precisei entender junto com a espiritualidade que adentrar o mangue, é como se você tivesse aprendendo a engatinhar: você vai pisando devagar, conhecendo e sentindo texturas novas pela primeira vez”.

A artista incorporou à obra dois troncos do próprio manguezal, um material que, segundo ela, possui uma propriedade muito distinta e que hoje só pode ser acessado por quem adentra o mangue, visto que sua exploração é regulamentada. 

O trabalho também inclui três fotografias em colaboração com a fotógrafa Laryssa Machada, intitulado Evitando a erosão. A obra é um convite à reconexão com figuras e ensinamentos ancestrais para preservar a dignidade da existência e evitar o “desgaste, o sumiço de vida”.

O Manguezal no Carnaval e na pauta global

Gabriel Haddad e Leonardo Bora, carro alegórico da Grande Rio, 2025.

A exposição também celebra a forte presença do manguezal nas manifestações populares. Uma instalação de Gabriel Haddad e Leonardo Bora, carnavalescos da Grande Rio, traz elementos do carro alegórico de 2025, inspirado nas Caruanas, seres mitológicos da Amazônia que habitam os manguezais.

O enredo da Grande Rio para 2026 será “A Nação do Mangue”, criado por Antônio Gonzaga que, na mostra, expõe protótipos de fantasias inéditos, reforçando a união entre cultura popular, arte e meio ambiente.

Com a exposição coincidindo com a véspera da COP 30, Marcelo Campos reflete sobre o papel da arte na sensibilização ambiental. Para ele, o poder simbólico da arte é imediato: “Quando você olha as raízes aéreas de um manguezal, imediatamente você imagina que você não quer pegar um facão e destruir aquilo. Você não quer poluir aquele rio transparente, né? Eu fico pensando que nosso papel na arte é dizer: olha, é tão forte isso, temos esse simbólico aqui de sublime, de beleza, de cultura, de produção de música, tudo vem desse lugar, o próprio movimento manguebeat. Então, porque vamos destruí-lo? Então, eu imagino que nesse momento, com esses eventos culturais, a gente precisa responder com a força do simbólico”.

“Manguezal” fica em cartaz no CCBB RJ até 02 de fevereiro de 2026, com entrada gratuita.

 

Entre a rua e o museu

Loli World – Um mundo além da Arte Urbana, de Michael Devis
Vista da mostra Loli World – Um mundo além da Arte Urbana, de Michael Devis

Loli World – Um mundo além da Arte Urbana, de Michael Devis, reúne 25 obras recentes do artista curitibano, que transpõem para o espaço expositivo os elementos visuais, sonoros e afetivos de sua produção nas ruas. A mostra está em cartaz na CAIXA Cultural São Paulo até 11 de janeiro de 2026.

Autodidata, Devis iniciou sua trajetória no graffiti aos 13 anos, na periferia de Curitiba. Em quase três décadas de atuação, levou sua pintura a todos os estados do país e a mais de vinte países, consolidando-se como um dos nomes de destaque da arte urbana brasileira contemporânea. Sua pesquisa visual incorpora elementos do pop e da cultura de rua, articulando temas ligados à identidade, à memória e à experiência coletiva no espaço urbano.

Entre os principais signos de seu trabalho estão as Lolitas — personagens de cabelos azuis e olhos expressivos, inspiradas na cultura pop do Japão, onde realizou residência artística. Mais do que ícones visuais, elas operam como mediadoras entre diferentes universos: o real e o imaginário, o local e o global, o popular e o institucional.

Em Loli World Devis recria esse universo de forma expandida. Instalações sonoras, colagens, luzes e objetos compõem um ambiente imersivo que explora o cruzamento entre o grafite, a pintura e a experiência sensorial. O artista propõe, assim, uma tradução museal de sua prática urbana — uma tentativa de transportar para o interior do espaço expositivo a vitalidade e a memória das ruas.

SERVIÇO
CAIXA Cultural São Paulo: Praça da Sé, 111, Centro, São Paulo – SP
Em cartaz até 11/01/2026
Visitação: de terça a domingo, das 08 às 19h
Classificação Livre. Entrada Franca
Mais informações: (11) 3321-4400.
Patrocínio CAIXA e Governo Federal

 

Onde está o medo está a força: no Sesc Belenzinho, Nádia Taquary apresenta conjunto de obras que abordam a ancestralidade e o feminino

Exposição “Ònà Irin: caminho de ferro”, de Nádia Taquary, no Sesc Belenzinho. Foto: Luiza Lorenzetti

Nádia Taquary se formou em Letras, mas logo enveredou pelos caminhos da arte-educação. Foi durante um período de recolhimento pessoal, que entrou em contato com o livro Círculo Das Contas: Jóias De Crioulas Baianas, da pesquisadora Solange de Sampaio Godoy, e se interessou pela história da joalheria afro-brasileira.

Em uma visita ao Museu Carlos Costa Pinto, em Salvador, sua terra natal, Nádia se deparou com o maior acervo de pencas de balangandãs. Ao ver as peças, compreendeu a história de um objeto que seu pai, um homem negro, havia lhe dado: uma penca de balangandãs que passou por muitas mãos — da bisavó, para a avó, para o pai, até chegar a ela.

Esses objetos são conjuntos de pingentes metálicos presos a um arco, usados por mulheres negras escravizadas e libertas na Bahia dos séculos XVIII e XIX que reuniam símbolos de fé, proteção e prosperidade.

Nádia Taquary, Abre Caminhos, 2013. Foto: Beatriz Franco

A partir dessa pesquisa, Nádia criou sua primeira obra. O trabalho intitulado Abre Caminhos é uma grande penca de balangandãs com dez dos símbolos mais recorrentes encontrados em suas investigações. A obra está em cartaz na exposição Ònà Irin: caminho de ferro, no Sesc Belenzinho — mostra individual da artista, com curadoria de Amanda Bonan, Ayrson Heráclito e Marcelo Campos, que estreou no Museu de Arte do Rio (MAR) em 2023 e esteve em cartaz no Museu Nacional da Cultura Afro-Brasileira (MUNCAB), em Salvador, até março deste ano.

Em entrevista à arte!brasileiros, Nádia fala sobre a importância da existência dessa joalheria afro-brasileira para as mulheres que, ao terem essas joias junto ao corpo, transformaram o objeto em amuleto. Quando o balangandã ganhava pingentes e peso suficientes, era possível comprar a própria liberdade ou a de um parente. “Essa história me traz um protagonismo preto muito importante e que a partir daí a minha poética vai se aprofundando e vai se desdobrando. Vai se distanciando da joalheria e adentrando outras camadas a partir do momento que eu vou conhecendo e entendendo mais sobre a história”, conta.

Sem ter tido experiência prévia, Nádia começou a esculpir as Yabás, como Oxum, Iemanjá e Oyá. “As primeiras esculturas que eu faço numa fundição, eu não tinha noção de escultura, mas modelar não foi difícil. É claro que com o tempo a gente vai aprimorando, mas tanto a aquarela, quanto a escultura, quanto a pintura, vieram de forma intuitiva. Eu acho que isso estava em mim e eu só nunca permiti acessar. Acredito que até mesmo por ter sido criada numa família em que ser artista não é uma possibilidade, acho que isso não foi estimulado o suficiente para que eu pudesse reconhecer em mim uma artista”, explica. 

As cerca de 22 obras exibidas no Sesc Belenzinho foram criadas a partir das reflexões que surgiram quando a artista saiu do Brasil. Durante o período, Nádia sentiu medo — medo de deixar o ateliê, medo de estar longe de sua língua. Ao consultar o Ifá, oráculo do povo iorubá, Ogum apareceu e disse que o medo é uma energia, e que era preciso transmutar essa energia em força: “Porque onde está o medo está a força também”, revela a artista.

Nádia comprou pequenos espelhos, criou uma base de papel e começou a desenhar e testar os caminhos nesses espelhos, fazendo com que eles seguissem sempre em frente e se multiplicassem em sete direções, em uma referência e uma saudação a Exu. A obra, uma maquete, se transformou na própria exposição: “A decisão curatorial foi de que [a maquete] não fosse uma obra dentro da exposição e sim que a sala expandisse e recebesse a exposição dentro dessa obra”.

Na espaço expositivo, as sete direções representam Exu, enquanto os trilhos de trem remetem a Ogum, o orixá da tecnologia e dos caminhos. “Ogum é o orixá que descobre o ferro, que forja o ferro e cria as primeiras ferramentas. Ele adentra uma floresta densa e permite que a terra seja arada, cultivada e que também se atravesse para espaços para além daquela floresta.”

Uma obra recorrente no portfólio da artista é a Mulher pássaro e a Mulher peixe que aparece nesta exposição e também na 36ª Bienal de São Paulo. A escultura parte de um itan, uma história em iorubá, em que uma menina menstrua pela primeira vez. Assustada, ela sai para lavar suas vestes em um rio e desaparece por três dias. No quarto dia, ela é encontrada no alto de uma montanha, segurando uma cabaça com um pássaro dentro. Nos itans, acredita-se que as grandes mães ancestrais levaram a menina, fizeram rituais e compartilharam informações sobre o poder feminino e o mistério da criação. “Esse poder, não é um poder de criação de filhos, é um poder de criação de tudo o que virá a ser e tudo que se desejar criar. São as forças de construção conectadas com o seu poder de criação”, explica Nádia. A cabaça seria, então, o mistério da criação, enquanto o pássaro seria uma referência a Oxalá. 

A mostra chega ao Sesc Belenzinho com a expectativa de atingir um público diverso: “Aqui no Sesc tem um público que não necessariamente vem só para exposição, às vezes ele vem para a piscina, para almoçar, e aí se depara com a exposição. Isso é muito interessante”, aponta a curadora Amanda Bonan.

O público terá até o dia 22 de fevereiro de 2026 para visitar a mostra. 

 

Um rio não existe sozinho: artistas refletem sobre pertencimento e interdependência na Amazônia

Mari Nagem, 41º

No coração de Belém, o Parque Zoobotânico do Museu Paraense Emílio Goeldi torna-se, até 30 de dezembro, um território de escuta e convivência entre espécies. A exposição Um rio não existe sozinho propõe uma imersão sensível nas interdependências que sustentam a vida na Amazônia e no planeta. Idealizado pelo Instituto Tomie Ohtake para dialogar com os temas urgentes relacionados à 30ª Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas (COP 30), que acontecerá em novembro de 2025, em Belém, o projeto reúne nove artistas e um escritório de arquitetura que dialogam diretamente com o ecossistema local, numa trama que une arte, ciência e saberes tradicionais.

Carol Pasinato, Sabrina Fontenele, Gabi Moulin, Vânia Leal e Ana Roman

A curadoria de Sabrina Fontenele e Vânia Leal surge do desejo de aproximar práticas poéticas e científicas num contexto de urgência ambiental. “Vivemos um tempo em que a crise climática se tornou realidade cotidiana. Esta exposição é uma forma de imaginar, junto com artistas e saberes tradicionais, outras possibilidades de existência mais generosas e sustentáveis”, afirma Fontenele.

Entre os artistas convidados, Rafael Segatto vê no encontro entre arte e ciência uma afinidade profunda. “Eu estou muito feliz de estar com esse trabalho no Goeldi porque é uma instituição das mais antigas do Brasil e ela tem um foco em ciência e em educação. Isso enquanto artista me interessa muito porque o meu trabalho tem uma série de atravessamentos nessas áreas”, diz. Filho de pescadores, o artista reconhece na água o elo que costura dimensões materiais e espirituais. Ao observar o ambiente, comenta sobre as penas de urubu espalhadas ao redor: “Qual museu tem urubus?”, questiona. No parque, eles habitam a samaúma próxima à sua instalação, e essa convivência interespécie, segundo ele, é parte do próprio trabalho. “Os urubus são seres importantes para o ciclo, sendo decompositores. Eles contribuem, trabalham junto comigo”, completa.

Mari Nagem parte de um evento recente para criar 41°C, obra que transforma dados científicos em imagem térmica. “Foi inspirado na seca histórica de 2023, no centro da Amazônia, numa cidade chamada Tefé”, explica. Ela lembra das águas que atingiram temperaturas inéditas e da morte de centenas de botos: “Algumas partes do rio chegaram a 41 graus. Foi um evento sem precedentes”. Ela relembra que muitos ribeirinhos tiveram que deixar suas casas porque não dava para navegar pelo rio, que era só lama. Ao transpor esse colapso climático para uma visualidade sensível, a artista propõe uma experiência de leitura das cicatrizes do território.

Também interessado na dimensão simbólica da natureza, Gustavo Caboco, do povo Wapichana, apresenta Casa de bicho e Antibatismo: Victoria Regia. Diante da samaúma que abriga sua instalação, ele explica que em Roraima, a árvore é chamada de casa de bicho, porque é também casa de espíritos. No contexto do parque, o nome ganha novo sentido: “Aqui no museu acaba se tornando essa casa de vários bichos, né?”. Caboco reflete sobre como um parque, apesar de não ser uma floresta, nem se parecer com uma, talvez seja o mais próximo que a gente chegue “dessa ficção do que seria uma floresta na cidade. Mas tem uma distância, né? Então, lembrar da casa de bicho é isso”. 

O paraense Francelino Mesquita traz à mostra um elo entre cultura popular e preservação ambiental. Suas esculturas em miriti — matéria-prima tradicional dos brinquedos de Abaeté— derivam de uma prática reconhecida como patrimônio cultural. “A partir de 1999 decidi ressignificar, experimentar essa utilização desse Meriti de forma diferente. Trazer para as artes plásticas, trazer de uma forma mais natural para o público”, conta. O gesto de levar o material natural, sem pintura, para o espaço expositivo é, para ele, um modo de afirmar a vitalidade de um saber ancestral.

Em Entoar o vento e dançar marés, Elaine Arruda volta ao rio Tijucaquara, no Marajó, onde nasceu sua avó. “É um rio que a minha vó saiu com 12 anos de idade e veio para Belém com a família para estudar. Ela nunca mais tinha voltado. Então, quando ela fez 80 anos, eu dei de presente para ela uma viagem de retorno a essas águas.”, relata. A viagem, inicialmente familiar, tornou-se o ponto de partida para um trabalho sobre memória e território. “Você chega lá, não tem nada. Você tem um rio na sua frente para você tomar banho. Você só sai de lá quando a maré enche”. A artista traduz essa experiência em uma instalação que convoca o corpo e a lembrança como modos de pertencimento.

Em comum, os artistas, entre os quais também estão Noara Quintana, PV Dias, Sallisa Rosa e Déba Tacana, constroem suas obras em relação direta ao lugar, incorporando elementos da paisagem e dos ciclos naturais do Parque Zoobotânico. Como afirmam os representantes do Museu Goeldi, Sue Costa e Pedro Pompei, a mostra reafirma a importância de criar vínculos afetivos com o patrimônio natural e cultural da Amazônia: “Compreender a Amazônia exige tanto precisão científica quanto abertura poética.”

Um rio não existe sozinho não busca ilustrar a natureza, mas escutá-la, reconhecendo-a como sujeito político, vivo e em transformação.

Comigo ninguém pode: entre a ferida e a cura

“Comigo ninguém pode” – título que toma de empréstimo o nome de uma planta que ao mesmo tempo protege e envenena – é o projeto curatorial de Diane Lima selecionado para a representação brasileira na próxima Bienal de Veneza, que abre em 9 de maio de 2026.

Em uma representação exclusivamente feminina, a proposta reúne dois nomes fundamentais da arte contemporânea brasileira e internacional: Rosana Paulino e Adriana Varejão. “Partimos de diálogos narrativos, plásticos e visuais”, sintetiza Diane, enfatizando a importância de um solo comum à obra das duas artistas que há décadas ancoram sua poética no nosso passado colonial, racista e patriarcal e que – mais recentemente – vêm olhando não apenas para as feridas, mas também para os processos de regeneração e resistência.

Entremear essas produções, criar uma base coletiva para o encontro de obras fundamentais na trajetória das duas artistas, é uma das grandes ambições desse projeto ainda em processo e sem contornos definidos, mas em plena ebulição criativa. “Uma já está influenciando a outra”, afirma Rosana. “Sem dúvida virá coisa nova, ou reedições de coisas pouco conhecidas”, complementa Adriana. 

A ideia é fugir de uma certa previsibilidade, da exibição de obras já consagradas, privilegiando a descoberta de novos caminhos e também buscando tensionar a relação com o prédio (obra de 1964, ícone de uma modernidade ambígua e cheia de contradições e que atualmente passa por um importante processo de restauro) e com o espaço-sede da Bienal. “A configuração dos Giardini é uma coisa extremamente reacionária, aquela lógica de vários países construindo monumentos a si mesmos, de acordo com uma ordem financeira e política de poder. A gente vai se aproximar desse monumento de uma maneira crítica, mas também apresentando outras saídas e possibilidades”, antecipa Adriana.

A própria planta, que batiza a exposição, revela essa ambiguidade paradoxal de uma coisa que é ao mesmo tempo cura e veneno, cuja toxicidade é ameaçadora e protetiva. Como diz Rosana, quem primeiro investigou as potências metafóricas dessa espécie em série do mesmo nome, “a gente deve também olhar para as saídas senão a gente paralisa, revisitando sempre aquilo que não foi curado ainda”. Afinal, “o Brasil é curiosamente um país que nunca olhou para si”, complementa. São muitas camadas que se sobrepõem, de luta política, social, racial e de gênero. Diane acrescenta ainda a importância metafísica desse elemento numa sociedade profundamente injusta e sincrética.