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Espaçonaves e guerrilhas: os tentáculos da arte pop no Brasil, uma outra ideia de popular

Astronautas
Claudio Tozzi, Astronautas (1969). Ao lado: Claudia Andujar, Chico Buarque (1968). Foto

Pop Brasil: vanguarda e nova figuração, exposição que aglutina um conjunto significativo de artistas e obras representativas das décadas de 1960 e 1970, é ao mesmo tempo um marco institucional, um resgate histórico e uma reconexão com questões fundantes da cultura brasileira. Apresentada pela Pinacoteca de São Paulo como o mais importante evento do calendário das festividades em torno dos 120 anos da instituição, a mostra também marca o 60º aniversário da antológica mostra Opinião 65, marco do movimento de renovação artística no Brasil, e celebra a renovação do comodato da Coleção Roger Wright, acervo que – juntamente com o do museu – constitui o núcleo central de Pop Brasil.

Por meio de 250 obras produzidas por uma centena de artistas, o visitante tem a oportunidade rara de ver lado a lado trabalhos que tangenciam questões fundamentais do período, como a adesão à linguagem popular, uma forte tendência ao coletivismo – em oposição a uma visão mais purista e autônoma da arte – e uma relação ácida e crítica com as instâncias de poder e os símbolos e atos opressores do regime militar então vigente. A exposição se articula em torno de sete núcleos, criando um mapa amplo das vertentes e caminhos trilhados no período. Mescla obras incontornáveis como A Bela Lindoneia, de Rubens Gerchman, que se notabilizou como a “Gioconda do subúrbio” e que vira tema da música do disco Tropicália, de Caetano Veloso, a trabalhos até agora pouco mostrados. É o caso, por exemplo, de Reparos na Nave 21, de Nelson Bavaresco, que entrou para o acervo da Pinacoteca um ano depois de realizada, em 1969, e nunca mais foi exibida.

Reconhecer que são muitos os ingredientes constitutivos desse momento de crise e renovação é um dos pontos altos da mostra. Já no texto de abertura, essa ideia de imprecisão – expressa inclusive na dificuldade de encontrar um nome único para um movimento de contornos cambiantes – fica evidente. O uso convencional da abreviação silábica “pop” indica uma aculturação e mascara o que há de inovador, disruptivo no movimento brasileiro, subordinação que é quebrada com a recolocação de termos usados para definir o movimento, como Nova Figuração ou Novo Realismo.

Mesmo tendo uma evidente relação com o processo norte-americano e europeu de incorporação da cultura de consumo, das técnicas industriais e de afronta à dita “alta cultura”, o fenômeno que começa a se moldar no início dos anos 1960 confronta-se com uma situação econômica, social e política de um país marcadamente subdesenvolvido. Yuri Quevedo, curador da exposição em parceria com Pollyana Quintella, sintetiza esse caráter ambíguo com o termo “pop feito à mão”, reforçando assim a condição precária, rudimentar e violenta da produção nacional nesse momento. Trata-se, afinal, de uma cena tensa e paradoxal. O homem chegava à lua e a televisão ocupava o cotidiano. Mas o Brasil seguia sendo majoritariamente rural e submetido aos desmandos de um longo período ditatorial.

Cansados do formalismo, de uma abstração descolada da realidade que a antecedeu, os artistas dessa geração retomam com força a potência das ruas, a concretude cotidiana em sua complexidade, real e poética, como se pode ver nos sete núcleos que compõem a mostra. Após reforçar o caráter coletivo, urbano e anti-institucional do movimento com um conjunto amplo de bandeiras mostradas na Praça General Osório, em Ipanema (dentre elas a icônica Seja Marginal, seja Herói, de Hélio Oiticica, bem como um conjunto amplo e potente de pinturas serigráficas de Pietrina Checcacci), a exposição enfrenta a questão ambígua, até mesmo paradoxal, da sedução e aversão em relação à hegemonia da cultura de massas.

A relação com ícones midiáticos e os mitos da modernidade tecnológica – ponto fulcral da pop norte-americana, que por uma feliz coincidência também pode ser vista em São Paulo por meio da antologia de Andy Warhol em cartaz no Museu de Arte Brasileira da Faap – está no cerne do núcleo “Astros e Astronautas”. Enquanto um sensual e tímido Chico Buarque nos é apresentado pelas lentes de Claudia Andujar, Altar para Roberto Carlos (mostrado por Nelson Leirner na mostra inaugural da galeria Rex, em 1966) coloca o dedo na ferida ao associar iconoclastia e devoção, situando-se “entre homenagem e escárnio”, como escreve Pollyana. Afinal, aqui assistimos a uma “cultura de massas submetida à censura e imbuída, encharcada, conduzida pelo Estado como forma de forjar uma falsa ideia de harmonia, integração e unidade nacional, num momento de grande violência”, sintetiza Fred Coelho no catálogo da exposição. Rica fonte de pesquisa, a publicação reúne não apenas imagens de todas as obras selecionadas, ensaios dos curadores e pesquisadores, mas também importantes textos históricos, que situam os impasses e anseios da época, de autores como Ferreira Gullar e Mário Pedrosa.

O próprio título dos núcleos expositivos – como “Poder e resistência”, “Multidão e Espaço Público”, “Construção, Imagem e Subdesenvolvimento” – revela o caráter instável e desafiador da produção do período. A política, num cenário opressivo, torna-se elemento incontornável. Quevedo usa um termo médico – “inflamação” – para tentar descrever esse ímpeto transgressor, que sacode um meio artístico que parecia estagnado. Um incômodo que se faz sentir em diferentes níveis, gerando respostas que incorporam novos materiais, linguagens e ações; ampliando os limites da ação artística, incorporando práticas e agentes artísticos até então excluídos do circuito e isolados sob o título de “naifs”, e, consequentemente, fazendo soçobrar estruturas e certezas. Afinal, “da adversidade vivemos!”, como afirma Hélio Oiticica na conclusão de Esquema Geral da Nova Objetividade, publicado no catálogo da exposição de mesmo nome, realizada em 1967 no MAM do Rio.

Olhando em retrospecto, não são poucas as semelhanças entre aquele período histórico e os dias atuais, e não apenas em termos políticos, o que parece explicar o interesse crescente em revisitar movimentos inovadores de contracultura, como as novas figurações e o tropicalismo. “Ficamos muitas vezes perdidos e a arte tem essa capacidade de nos provocar”, afirma Jochen Voltz, diretor da Pinacoteca ao explicar as escolhas para a programação da instituição no ano em que completa 120 anos. Segundo ele, estamos novamente num momento em que tudo está mudando radicalmente e em velocidade acelerada – realidade virtual, fake news… – é importante olhar para esses momentos de grandes quebras de paradigma e ver como a arte reage.

A eleição do “popular” e do pop como elemento fundamental da arte dos anos 1960 e 1970 (como referência e como produção) e também como fio condutor para a programação de 2025 – iniciada com a exposição Caipiras: das derrubadas à saudade – revela ainda uma intenção de ampliar o raio de ação do museu, incorporando práticas e agentes que por muito tempo ficaram excluídos. E conclui: “As categorias que a gente criou, diferenciando arte popular e arte erudita, ou arte acadêmica, talvez não se sustentem mais”. ✱

Manifesto Flaminaçu

Em 1927, apareceu nas páginas da revista Belém-Nova, publicação literária editada na capital do Pará, no coração da Amazônia, um manifesto endereçado “aos intelectuais paraenses”. O texto era assinado por Abguar Bastos Damasceno (1902-1995), escritor e advogado, e tinha o título Flami-n’-assú, que significa “chama grande”, em Tupi. As proposições contidas nesse manifesto tinham sido urdidas ao longo da década de 1920 pelo grupo de intelectuais da Amazônia do qual Abguar fazia parte, no qual pontificavam nomes como o do escritor e editor Bruno de Menezes (1893-1963), do editor Paulo de Oliveira (que chegou a ser açoitado em 1927 por motivos políticos) e do poeta Francisco Galvão (1906- 1956), entre outros.

Nesse manifesto crucial do modernismo amazônico, Abguar escreveu:
“FLAMI-N’-ASSU é mais sincera porque exclui, completamente, qualquer vestígio transoceânico; porque textualiza a índole nacional; prevê as suas transformações étnicas; exalta a flora e a fauna exclusivas ou adaptáveis do país, combate os termos que não externem sintomas brasílicos, substituindo o cristal pela água, o aço pelo acapu, o tapete pela esteira, o escarlate pelo açaí, a taça pela cuia, o dardo pela flecha, o leopardo pela onça, a neve pelo algodão, o veludo pela pluma de garças e sumaúma, a ‘flor de lótus’ pelo ‘amor dos homens’. Arranca dos rios as maravilhas ectiológicas; exclui o tédio e dá, de tacape, na testa do romantismo; virtualiza o Amor, a Beleza, a Força, a Alegria e os heróis das planícies e dos sertões, e as guerras de independência; canta ruidosa os nossos usos e costumes, dando-lhes uma feição de elegância curiosa”.

Em relação a que Flami-N’-Assu seria mais sincera, ao propor excluir completamente todo o eurocentrismo da arte brasileira que dominava o País desde a colônia?
Bom, um ano depois do Manifesto Flami-N’-Assú, em maio de 1928, Oswald de Andrade publicaria no número um da Revista de Antropofagia, em São Paulo, o Manifesto Antropófago, no qual reivindica a “Revolução Caraíba”, entroniza a deglutição do Bispo Sardinha e prescreve o seguinte:

“Apenas brasileiros de nossa época. O necessário de química, de mecânica, de economia e de balística. Tudo digerido. Sem meeting cultural. Práticos. Experimentais. Poetas. Sem reminiscências livrescas. Sem comparações de apoio. Sem pesquisa etimológica. Sem ontologia. Bárbaros, crédulos, pitorescos e meigos. Leitores de jornais. Pau-Brasil. A floresta e a escola. O Museu Nacional. A cozinha, o minério e a dança. A vegetação. Pau-Brasil”.

Por questões de isolamentos culturais, influências metropolitanas e econômicas, estratégias de disseminação de informação e outras, é óbvio que o Manifesto Antropófago afirmou-se como um debate intelectual reincidente e o Flami-N’-Assú quedou esquecido no número 74 da revista Belém-Nova, publicado em 15 de setembro de 1927 e hoje indisponível em versão fac-similar. Ainda assim, o manifesto animou obras de artistas posteriores da região Amazônica, como o poeta-xamã Vicente Franz Cecim (1946-2021), autor de Coisas escuras procurando a luz com dedos finos cheios de ervas: Uma história de amor e cinzas (2017).
A Semana de Arte Moderna de 1922 tinha espalhado pelo País a semente de uma ação de busca da identidade, mas as proposituras do Manifesto da Amazônia de 1927 vieram com uma carga de cisão ainda maior acerca das bases em que isso se daria. A própria noção de história da Amazônia, na arte indígena e no folclore, traria claridade a essa busca, segundo os intelectuais paraenses.

“FLAMI-N’-ASSU não é um estorvo aos grandes charivaris da civilização. Não! Ela admite as transformações evolutivas. O seu fim especialíssimo e intransigente é dar um calço de legenda à grandeza natural do Brasil, do seu povo, das suas possibilidades, da sua história. Entrego aos meus irmãos de Arte o êxito desta iniciativa, lembrando que o Norte precisa eufonizar na amplidão a sua voz poderosa”, prossegue o manifesto dos paraenses.
Abguar era amigo de Oswald de Andrade, Raul Bopp e Oswaldo Costa e participava das publicações de antropofagia. O Manifesto Flami-N-Assú decorre, portanto, da adesão de Abguar às teses e mesmo à retórica (é filho dileto do estilo oswaldiano) do modernista paulistano. “Uma visão que bata nos cilindros dos moinhos, nas turbinas elétricas, nas usinas produtoras, sem perder de vista o Museu Nacional. Pau-Brasil”, escreveu Oswald de Andrade em março de 1924, no seu Manifesto da Poesia Pau-Brasil.

Mas o manifesto paraense difere em sua radicalidade. Segundo conta o livro Esse Rio é Minha Rua, do paraense Ruy Antônio Barata, ainda inédito (a ser lançado durante a COP30, em Belém), Abguar Bastos teria lançado o Manifesto Flami-’N-Assú no centro de Belém, no lendário Café Manduca, na esquina das ruas Treze de Maio e Campos Sales, no Bairro do Comércio. O local, joia da boemia paraense, sempre se enchia de advogados, funcionários públicos, comerciários e passantes para o papo de fim de expediente, num tipo de happy hour “nem tão comportado assim”. Era ponto de encontro de intelectuais e boêmios como Bruno de Menezes, Abguar, Jaques Flores e Eustáquio de Azevedo, entre outros. Teria sido de uma das mesas do Café Manduca que Abguar teria lançado o Manifesto Flaminaçu (flami-n’-assú) como um grito de libertação: “(…) porque eu vos falo da ponta dum planalto amazônico, entre selvas, uiáras e estrelas”, bradava o Ginsberg do VerO-Peso.
Um artigo do historiador Aldrin Moura de Figueiredo, da Universidade Federal do Pará, na Revista de História, diz o seguinte sobre o texto de Abguar Bastos. “Não se tratava de pensar a região como um reduto de tradições, perdido no passado, à margem da história. Ideias de futuro, juventude, vanguarda, saber e arte indígenas fizeram parte do repertório cognitivo de sustentação ‘mental’ e ‘espiritual’ desse manifesto, nas contendas com o passado e a construção do presente”.

Abguar Bastos Damasceno
Abguar Bastos Damasceno O ideal revolucionário do escritor anunciava-se desde 1926, no Manifesto Flaminaçu (ou, como escreve Bastos, “FLAMI-N’-ASSÚ”), em que conclama os intelectuais do Norte a abandonarem seu tradicionalismo, voltando-se aos temas da realidade e do folclore amazônicos.

Abguar Bastos viveu com sua família em Manaus, entre 1921 e 1925, quando cursou a Faculdade de Direito do Amazonas. Nesse período, trabalhou como bancário, depois como tabelião e cartorário na cidade de Coari, a 363 quilômetros de Manaus, no Amazonas, tornando-se secretário e prefeito interino daquela cidade. Em suas muitas viagens pelo interior de Amazonas, Pará e Acre, colheu histórias e narrativas que utilizaria em seus romances e estudos de folclore, religião e alimentação, segundo conta o historiador Aldrin Figueiredo. Intelectual ativo, passou a publicar artigos em periódicos do Amazonas e do Pará a partir de 1926, quando envia suas colaborações para amigos e colaboradores editores das revistas A Semana e Belém-Nova e dos jornais A Tarde e O Estado do Pará.
Entre seus romances, Somanlu: o viajante da estrela, de 1953, é referido pelo historiador Aldrin Figueiredo como uma obra que inventaria “narrativas indígenas como parte de uma moderna escrita literária brasileira” e, portanto, é o prosseguimento de um esforço de decolonização. A noção de independência teria que se dar, no entendimento de Abguar Bastos, a partir também de uma ruptura com o espírito que deu luz ao modernismo brasileiro, vento soprado a partir de uma experiência europeia, e de nova compreensão do que fosse o regionalismo e a brasilidade. “E, assim, FLAMI-N’-ASSU marchará, selvas adentro, montanhas acima, conservadora, patriótica, verde-amarela”, diz o texto.

Abguar Bastos foi um dos criadores da União Brasileira de Escritores, da qual foi presidente, foi deputado federal e adido da Embaixada do Brasil em Varsóvia, na Polônia, e morreu em São Paulo, aos 93 anos, em 1995.

Leia o Manifesto Flami-N-Assú na íntegra:

“Não é um apelo de audácia nem de reclamo. E um apelo de necessidade e independência.
Como há dois anos atrás, recorro ao meu dundunar de sapopema oriunda – porque eu vos falo da ponta dum planalto amazônico, entre selvas, uiáras e estrelas.
Sapopema é o clamor do viageiro que se perdeu nas matas e apela; não é só isto, pode ser, também, o símbolo da voz da mocidade que teve comigo idêntica maqueira d’oiro para um sonho extraordinário de liberdade literária.

Ride, ó vós que não atinardes com as minhas palavras, ride-vos, à socapa escondidos nos cipós da intriga como curupiras de casaca a assoviar feitiços atrás das encruzilhadas. Ride.
Eu terei a serenidade dos morubixabas heroicos e sorrirei, também, de vossa agonia em me não compreender. Ouvi.

Primeiramente vós, poetas e prosadores divinos da minha geração, depois de vós, prosadores e poetas, apajelados à sombra das vossas tabas primitivas e que estais a ver, espetados em paus sagrados, os despojos, as glórias, as caveiras – das vossas escaladas às cordilheiras da Ilusão. Àqueles a minha voz vai confiada. A estes ela se intimida. Àqueles ela se recolhe como um zangão à sua colmeia. A estes ela recalcitra. Não que os receie no choque, mas, de fato, porque eles não procurarão, sem esforços dolorosos, metê-las em suas sacolas de Arte.

Assunto-vos agora o meu propósito de uma corrente de pensamento, cara a cara à que se inicia no Sul com esta pele genuína: ‘Pau-brasil’.

Oiço, rascantes, os agudos de serrotão das gargalhadas puristas. E oponho-lhes, seguro, esta verdade: nem um dos garimpeiros desse bando, correu à briga, sem ter uma bagagem de vulto onde toda a gente meteu a mão e trouxe pepitas faiscantes. Eles correram, escoteiros, todas as escolas, acordando, maravilhosos, o ritmo do universo, com a mais intuitiva segurança. E venceram. E glorificaram-se. E entenderam, por fim, que nem uma delas era verdadeira para o espírito nacional.

Rasgaram, pois, as redes do passadismo e deixaram passar a piracema da mais alta expressão da independência emocional.

Houve balbúrdia, como em chinfrim de tosca, à toa, mirabolante até, num grande revoar de papagaios arrepiados, papagaios teratológicos, por que tinham dentes de ouro no bico e poleiros de jacarandá. Apesar disso, noto, inflexível, que o repiquete ‘pau-brasil’ ainda não é o próprio volume da nacionalidade.

Daí a minha ideia com um título incisivo: – FLAMI-N’-ASSU. É a grande chama, indo-latina, aquilo em que eu penso poderem apoiar-se as gerações presentes e porvindoiras.
FLAMI-N’-ASSU é mais sincera porque exclui, completamente, qualquer vestígio transoceânico; porque textualiza a índole nacional; prevê as suas transformações étnicas; exalta a flora e a fauna exclusivas ou adaptáveis do país, combate os termos que não externem sintomas brasílicos, substituindo o cristal pela água, o aço pelo acapu, o tapete pela esteira, o escarlate pelo açaí, a taça pela cuia, o dardo pela flecha, o leopardo pela onça, a neve pelo algodão, o veludo pela pluma de garças e sumaúma, a ‘flor de lótus’ pelo ‘amor dos homens’. Arranca dos rios as maravilhas ectiológicas; exclui o tédio e dá, de tacape, na testa do romantismo, virtualiza o Amor, a Beleza, a Força, a Alegria e os heróis das planícies e dos sertões, e as guerras de independência; canta ruidosa os nossos usos e costumes, dando-lhes uma feição de elegância curiosa.

E, assim, FLAMI-N’-ASSU marchará, selvas a dentro, montanhas acima, conservadora, patriótica, verde-amarela.

FLAMI-N’-ASSU não é um estorvo aos grandes charivaris da civilização. Não! Ela admite as transformações evolutivas. O seu fim especialíssimo e intransigente é dar um calço de legenda à grandeza natural do Brasil, do seu povo, das suas possibilidades, da sua história.
Entrego aos meus irmãos de Arte o êxito desta iniciativa, lembrando que o Norte precisa eufonizar na amplidão a sua voz poderosa.” ✱

Muito além de “alegres, limpos, bem-vestidos”

Vania Toledo, Madame Satã, 1980
Vania Toledo, Madame Satã, 1980

Sempre me incomodei com as mostras retrospectivas sobre os anos 1980 porque elas basicamente se atinham a duas mostras do período: Como vai você, geração 80, no Parque Lage, em 1984, e a 18ª Bienal de São Paulo, em 1985, apelidada de A Bienal da Grande Tela, porque em três longos corredores expôs pinturas de grandes dimensões muito semelhantes.

Basicamente, ambas as exposições falavam mais sobre a linguagem artística, no caso a pintura, sem se atentarem à intensa politização do período, marcado pelos massivos comícios por eleições diretas, em 1983, o processo constituinte, que culminou com a chamada Constituição Cidadã de 1988 e mesmo a Aliança dos Povos da Floresta, que unia Chico Mendes (1944 – 1988), Davi Kopenawa Yanomami e Ailton Krenak, entre outros.
Essa intensa politização social, que emergia após duas décadas da ditadura civil-militar, sempre me pareceu contrastante com “os alegres, limpos, bem-vestidos” da geração 80, como ficou caracterizado o grupo de artistas que surgia naquele período, conforme o texto clássico de Frederico Morais, Gute Nacht Herr Baselitz ou Hélio Oiticica onde está você?

Cartaz da Aliança dos Povos da Floresta
Instituto Socioambiental – ISA, Cartaz da Aliança dos Povos da Floresta, 1989

Pois Fullgás – artes visuais e anos 1980 no Brasil, em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) de São Paulo até 4 de agosto, finalmente revê o período, agora com lentes mais atuais, já que as mostras anteriores costumavam ser feitas por curadores que viveram aquele momento e, por isso mesmo, costumavam seguir os mesmos padrões daquela época.

A chave agora é outra na curadoria de Raphael Fonseca, Amanda Tavares e Tálisson Melo.

A mostra abarca um período de 15 anos, que corresponde ao declínio da ditadura, com o fim do Ato Institucional nº 5, em 1978, até 1993, quando Itamar Franco se torna presidente do Brasil, após o impeachment de Fernando Collor. O próprio recorte, marcado por fatos políticos relevantes, já indica que a mostra não se debruça apenas sobre pintura. Finalmente.

Dois são os méritos essenciais da mostra: contextualizar o período de maneira abrangente e tirar do protagonismo a turma “alegre, limpa e bem-vestida” que circulava pelo Parque Lage, no Rio, e a Faap, em São Paulo, o epicentro de onde teria saído a maioria dos protagonistas da tal Geração 80.

Com mais de 260 artistas e coletivos no CCBB, esse ranço sudestino perde relevância, a pintura deixa de ser a linguagem dominante e experimentações em diversas áreas se somam a um ativismo que os manuais de história da arte do período não costumavam dar conta. Essa releitura se revela, aliás, essencial, quando o momento atual aponta para a importância da inclusão e da diversidade.

Fullgás representa um significativo passo neste esforço ao revelar que a produção negra e indígena de diversos estados do país se fazia presente nos anos 1980. Uma das produções mais relevantes na mostra, o Vídeo nas Aldeias, criado em 1987, é um paradigma para se pensar a autorrepresentação e nesses quase 40 anos formou diversas gerações de artistas indígenas.

Xuxa e Senna

A contextualização ocorre ao longo dos cinco módulos da mostra, todos com títulos que partem de músicas do período, o que já ajuda a recriar o ambiente sonoro da época: Que país é este (Legião Urbana), Beat acelerado (Metrô), Diversões eletrônicas (Arrigo Barnabé), Pássaros na garganta (Tetê Espindola), O tempo não para (Cazuza).

 

Outro destaque é uma banca de jornais, com revistas da época, com uma narrativa multifacetada sobre os principais fatos do país nos 15 anos da exposição. Lá também estão algumas capas de discos de vinil, reforçando a influência da música no período.

Mas há também muitos objetos de época, seja a réplica de um capacete de Ayrton Senna (1960 – 1994), o figurino de uma paquita do Xou da Xuxa ou um exemplar da Constituição de 1988, entre eles. Com isso, a produção artística do período não se distancia d

Leonilson, Sem título (As ruas da cidade)
Leonilson, Sem título (As ruas da cidade)
Foto: Sergio Guerini

o contexto cultural e, melhor, pode ser pensada a partir dele. Esse é um excelente partido curatorial empenhado em apontar como toda produção artística é fruto de um contexto e com ele dialoga.

Entre as capas de revista, está uma edição da Manchete com o título Aids e o amor, uma chave importante para a obra de diversos artistas da mostra, muitos mortos por conta da infecção do HIV, caso do cearense Leonilson (1957 – 1993), do gaúcho Rafael França (1957 – 1991) do goiano Samuel Costa (1954 – 1987), do norte-americano radicado no Rio Jorge Guinle (1947 – 1987) e do etíope radicado em São Paulo Alex Vallauri. Obras de todos eles estão presentes na exposição, o que aponta o impacto da Aids nessa geração. Não por acaso, o termo contaminação acaba sendo apropriado pelo circuito da arte.

Mesclar a cultura de massa dos programas de televisão, das revistas e da música com a produção de artes visuais do período é ainda uma opção necessária, frente ao hermetismo das mostras de instituições de arte que ignoram o contexto. Fullgás, nesse sentido, é uma pesquisa de fundo, que aponta como os museus ainda precisam se atualizar muito para uma comunicação mais eficaz com o público e com o compromisso de rever a própria história da arte.

Madame Satã

Nos anos 1980, o templo de cultura underground na capital paulista era o Madame Satã, no Bixiga, que além de uma discoteca era um espaço para ações performáticas. Em Fullgás, ele é lembrado por uma imagem de Vania Toledo (1945 – 2020). A fotografia, aliás, é uma linguagem muito presente na mostra, trazendo alguns artistas e coletivos que só nos anos recentes ganharam visibilidade, caso do Zumví Arquivo Afro Fotográfico, criado em 1990 em Salvador, e dos Retratistas do Morro, que registra a vida no Aglomerado da Serra, sul de Belo Horizonte, de 1960 a 1990. É de Afonso Pimenta, um dos integrantes do grupo, uma das imagens que ajuda a contextualizar o espírito da época: um dançarino de soul, que é sósia de Michael Jackson, foto realizada em 1987.

Mônica Nador
Mônica Nador, Mamãe Natureza, 1990.
Foto: Filipe Berndt

Mas a década de 1980 marca também o surgimento e fortalecimento do audiovisual, que vai impactar em muito a arte contemporânea a partir de então. Eduardo de Jesus tem no catálogo da mostra o texto Com e contra a televisão, onde aponta todo o experimentalismo do período, influenciado pelo programa Abertura, de Glauber Rocha, e pelo surgimento do festival Videobrasil, em 1983, essencial para o fomento e a inserção da produção audiovisual no circuito da arte.
Para além da diversidade de linguagem, Fullgás também está atenta à diversidade da produção territorial, como a produção de Hélio Mello (1926 – 2001), no Acre, ou do capixaba Elpídio Malaquias (1919 – 1999), para citar artistas distantes dos centros hegemônicos.

Finalmente, claro, há muita pintura também, especialmente de nomes que se consolidaram nas últimas décadas, como Leda Catunda, Adriana Varejão, Luiz Zerbini e Beatriz Milhazes, de um lado mais institucional, ou de Monica Nador que com o Jardim Miriam Arte Clube (Jamac) levou a pintura para muito além dos museus. Fullgás, ao final, é uma imensa amostra do que foram os anos 1980: uma mescla de otimismo pelo fim da censura, esperança com a democracia, mas com uma concentração de renda explosiva e violência nas cidades e nas florestas, que ainda seguem sem solução. ✱

Colaboradores da edição #71

Vania Leal foi curadora da primeira Bienal das Amazônias e, atualmente, é diretora de projetos especiais do Centro Cultural Bienal das Amazônias, em Belém (PA). Nesta edição, Vânia relatou a experiência da itinerância da Bienal, que passou por diversas cidades da região amazônica por cerca de um ano.

Caroline Vieira é mestre em Cultura e Sociedade pela UFBA, Doutora em Artes Visuais, linha de pesquisa em História e Teoria da Arte, pela Escola de Belas Artes da UFBA. Trabalha na área do audiovisual como editora e atua como pesquisadora da arte e da comunicação. Para esta edição, Caroline aborda as escavações que apontam vestígios do primeiro cemitério público da América Latina.


Leonor Amarante jornalista, curadora e editora. Trabalhou no Jornal O Estado de S.Paulo, na revista Veja, na TV Cultura e no Memorial da América Latina. Nesta edição escreve sobre os 120 anos da Pinacoteca de São Paulo.

Fabio Cypriano Jornalista, é crítico de arte, professor e diretor da Faculdade de Filosofia, Comunicação, Letras e Artes da PUC-SP. Nesta edição, Cypriano visita o Instituto Inhotim, que recebe 22 obras de artistas indígenas no Pavilhão Claudia Andujar, e o CCBB-SP, que revê a chamada Geração 80 na mostra Fullgás – artes visuais

Coil Lopes é desenvolvedor multimídia, designer, videomaker e programador. Atuando na ARTE!Brasileiros desde sua fundação, integra criação e tecnologia, produzindo fotografias, vídeos, newsletters e gerenciamento do portal.

Fotos: arquivo pessoal

Relatos de uma viagem que me define como “Corpo de rio”

Vânia Leal
Vânia Leal - Foto: Nailana Thiely

Vânia Leal, foi curadora da Primeira Bienal das Amazônias e acompanha as itinerâncias desta edição, que envolve a saída de diferentes núcleos da instituição para espaços parceiros. Por cerca de dois anos, a Bienal ocupará os rios amazônicos abrindo debates e aproximando territórios.

O projeto de itinerância surgiu da necessidade de levar o acervo das Amazônias brasileira e internacional para os artistas e o público de diferentes cidades nas quais a região está compreendida. Com isso, o projeto iniciou sua jornada que já passou por Marabá (PA), Manaus (AM), Macapá (AP), Boa Vista (RO), São Luís (MA) e Canaã dos
Carajás (PA). Esses deslocamentos são enfrentados entre dificuldades e desafios. Para Macapá, por exemplo, onde só se chega de barco e avião, as obras viajarampor meio de balsa.

Atualmente, Vânia Leal é diretora de projetos especiais do Centro Cultural Bienal das Amazônias, em Belém (PA) e tem acompanhado os deslocamentos que a primeira edição continua suscitando. A próxima edição da Bienal acontecerá em agosto de 2025.

Para a arte!brasileiros, Vânia comentou parte da experiência dessa itinerância.

Leia a seguir.

Por Vânia Leal

Iniciar a jornada da itinerância pela Amazônia Brasileira colocou meu corpo de curadora em deslocamentos por vias de estrada, campos, rios e floresta, utilizando variados meios de transporte: avião, carro e barco.

Em todos os estados, fizemos uma conexão com os rios como fonte de inspiração e desejo das águas, em um processo de hidrossolidariedade, encontro com culturas ancestrais, fusos horários diferentes, tempos amazônicos que alinham nossa espiritualidade com o coletivo.

Eu e Pâmela Carneiro, produtora da itinerância, compartilhamos experiências únicas ao longo dessa jornada. O encontro com o Rio Negro em Manaus, e o rio de Marabá, que se forma pela confluência dos rios Tocantins e Itacaiunas, ressaltam a importância desses marcos geográficos. Também exploramos os rios maranhenses como o Periá, Mapari e Anajatuba, o rio Branco em Boa Vista-RR, e o majestoso rio Amazonas em Macapá, no Amapá. Todas essas vivências foram marcadas por um profundo respeito e rituais de licença e rezo antes de entrar e mergulhar nas águas.

“Corpo de rio” me define numa perspectiva política, cultural, antropológica e humana na mais intrínseca natureza de existir. Ser do Norte e fazer parte da floresta me coloca numa condição de experiência com o lugar de maneira profunda que potencializa o fazer curatorial.

Em São Luís, no Maranhão, dançar o Tambor da Lua com a entidade Nãna Sá foi um presente que o mundo me deu. Nãna fez uma saia para mim em tempo de sóis: a saia ficou estendida em um varal cumprindo ciclos de sol para que fosse autorizada meu vestir e, assim, dançar nas ruas de São Luís.

Ver e acompanhar a queima e produção da cerâmica de Daya Roraima, parte dos ‘Saberes da Koko’Non’ (vovó barro em Macuxi), foi um momento mágico dentro da floresta. Ao redor de uma fogueira, dancei o Parixara para o fogo, envolvida por terra e água, em que a argila descansa através de uma técnica sagrada. A retirada do barro das margens dos igarapés é um ritual. Vivi espíritos felizes com Daya, desde a criação até a inauguração da obra na Praça Cívica de Roraima, terra Macunaimî, que me ensinou a sentir plenamente a força do Pajé Jenipapo, cujos grafismos de cura e bençãos Bruna Macuxi gravou em meu ‘corpo rio’.

Em Manaus, a força do encantamento conduzida pela Pajé e ativista indígena Dyakaripó com ervas, breus e rezos, reafirmou a força dos povos originários. Manaus, terra indígena fincada na floresta, amplia vozes múltiplas do saber e compartilhamento.

Em Macapá, capital que se encontra na linha do Equador, que divide os hemisférios, encontramos um símbolo da diversidade e resistência de uma Amazônia negra. A ancestralidade do barracão da Elisia Congó, em que o Marabaixo é força, é fé e identidade afro-amapaense, nos marcou. Os tambores do Amapá abriram nossa exposição, como povos que honram suas raízes negras.

A Bienal das Amazônias investe em uma política pública e afirmativa que resguarda os saberes ancestrais dos estados brasileiros. A itinerância é uma comunhão com as culturas mães que reforçam os desenvolvimentos das Amazônias que são pulsantes e resistentes.
Eu, como andarilha nessa jornada, levo nossas histórias de quem nasceu na beira do Rio Amazonas e vive nas beiras dos rios das Amazônias em uma comunhão florestânica.

Música melhora a matemática, teatro refina interpretação de texto

Nesta quarta-feira, 25, em Brasília, durante 10 horas, em uma jornada imersiva com a participação de uma centena de pessoas – especialistas e representantes públicos de quatro países (Alemanha, Colômbia, França e Brasil), secretários de Cultura e Educação de quatro estados do País (Espírito Santo, São Paulo, Minas Gerais e Bahia), três secretários de Estado do governo brasileiro e dezenas de especialistas, educadores e pensadores –, debateram-se as possibilidades, o histórico e as potencialidades de um tema de importância crucial para o futuro: a implementação da arte e da cultura na formação de crianças e adolescentes. Foi durante o seminário internacional Experiências Internacionais que conectam arte, cultura e educação. O simpósio foi realizado para apresentar e debater o estudo inédito Relatório de Boas Práticas: Recomendações para a Construção de Políticas Públicas de Arte, Cultura e Educação, realizado pela Fundação Itaú com apoio da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), ministérios da Educação e da Cultura e Inep.

A meta do encontro era muito clara: apresentar evidências concretas das inúmeras vantagens de se incluir, na educação de crianças e adolescentes, o contato com currículos artísticos integrados. De posse dessas informações, o poder público terá, futuramente, condições de trabalhar de forma concreta no impulsionamento de políticas públicas “mais equitativas e inovadoras” de incremento social, conforme o estudo. Os resultados mostraram o que é até evidente: a integração das artes aos currículos das escolas melhoram o desenvolvimento socioemocional dos jovens, a participação, os laços sociais, aumenta a pontuação em provas de escrita e ajuda estudantes com baixo desempenho, porta a melhores resultados acadêmicos futuros. Há resultados específicos entre as estatísticas apresentadas, como por exemplo; a educação musical na escola melhora as habilidades cognitivas, como consciência fonológica, matemática e velocidade de processamento; e a educação teatral ajuda a desenvolver habilidades verbais e a interpretação de texto. Um exame dos resultados do PISA (Programme for International Student Assessment, ou Programa Internacional de Avaliação de Estudantes, realizado a cada 3 anos pela OCDE) identificou uma relação positiva entre a participação dos jovens de 15 anos em atividades artísticas e culturais e o desempenho acadêmico em matemática e leitura em alguns países (como Canadá, Estônia, Noruega e Reino Unido).

Não são conclusões das quais a sociedade já não tenha consciência: segundo o estudo, no Brasil, 8 em cada 10 pais ou responsáveis de crianças e adolescentes pedem para o poder público aumentar a oferta de atividades culturais nas escolas; 80% dos estudantes afirmam que gostariam de ter mais atividades culturais nas escolas; e 38% citam a escola como o local em que têm efetivo contato com atividades culturais. Mas, para os realizadores do simpósio, o Brasil (e boa parte da América Latina) ainda enfrenta um ambiente árido para que se demonstrem concretamente esses benefícios e suas vantagens, daí a importância desse primeiro estudo e do debate que acarretou. “Sabemos que é importante, mas constrangemos sua aplicação”, disse Esmeralda Macana, coordenadora do Observatório Fundação Itaú. A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) do Brasil, documento normativo que orienta o planejamento pedagógico nacional, tem cinco menções às artes em sua conformação.

Diana Toledo, executiva do Education Policy Outlook da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), responsável por apresentar esse primeiro relatório (que é resultado de um acordo entre Fundação Itaú e o governo brasileiro em 2024), elogiou a postura do Brasil em trabalhar com constância e continuidade na coleta de dados e explicou a relevância da parceria da OCDE com os dois ministérios e com a Fundação Itaú. “(O Brasil) é um contribuinte muito importante, coletando dados e informações de qualidade”, assinalou.

Há diversos estudos recentes realizados no Brasil que atestam como os setores artístico e cultural têm contribuído de forma considerável para o crescimento econômico e promovido habilidades e capacidades de inovação que terminam beneficiando outros setores, além de criar postos de trabalho qualificados. Entre 2012 e 2020, a taxa média de crescimento anual da economia da cultura e do setor criativo foi de 2,2% ao ano, em comparação a -0,4% da economia nacional em geral, segundo dados levantados em 2022 pelo Observatório Fundação Itaú.

Os painéis do dia foram capitaneados tanto por especialistas e ativistas independentes quanto por dirigentes do Estado brasileiro, e foi interessante observar a sinergia entre essas forças em relação ao assunto debatido. Fabiano Piúba, que é Secretário Nacional do Livro e da Leitura do Ministério da Cultura (MinC) leu um pequeno manifesto escrito, com grande receptividade, e relatou uma experiência quando secretário de Cultura do Ceará, entre 2016 e 2022, quando promoveu um programa de oferta de projeção de filmes para escolares no Cine São Luiz. Ali, ficou sabendo que para quase 100% dos estudantes (e também dos professores) participantes, aquela era a primeira vez que entravam numa sala de cinema, exclusão cultural a que chamou de “perversidade”.

Kátia Schweickardt, secretária de Educação Básica do Ministério da Educação, após emocionar os presentes ao falar de sua experiência em comunidades ribeirinhas da Amazônia, de onde é oriunda, demonstrou grande engajamento do governo federal na problemática apresentada. Após definir-se como mulher preta, destacou que, à revelia disso, não é pautada apenas pela pauta identitária e que, para seguir a orientação do presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, de ampliar a jornada escolar, vê necessidade também de expandir os ambientes, e a cultura se adequa com precisão a essa demanda. “O Bumbódromo é um grande espaço educador, assim como as escolas de samba e todos os mestres da cultura”, afirmou. Kátia destacou que, desde que Lula iniciou o programa Escola em Tempo Integral, em 2023, o percentual de municípios que tinham políticas de educação integral pulou de 17% para 66%, com quase 2 milhões de matrículas.

Marcela Rocio Herrera Oleas, especialista científica do DLR Projektträger da Alemanha, falou sobre a instituição Kultur Macht Stark, e afirmou que a experiência alemã, que atendeu 1,5 milhão de participantes desde 2013, com mais de 50 mil atividades culturais e 50 milhões de euros de investimento, se baseia numa filosofia muito básica: as ideias têm que vir de baixo, e que antes de se iniciar um movimento social, deve-se iniciar um movimento de base, permitindo que apareçam várias soluções para lugares diversos, e não apenas uma para todos. Cada núcleo do Kultur Macht Stark deve ter pelo menos três parcerias locais para se realizar. O perfil dos professores, em geral oriundos da classe média, também não dá conta da especificidade de cada comunidade, por isso é importante envolver atores locais, de clubes a igrejas. “Não é só comer o pastel, mas inventar a receita”, afirmou.

Solmar Diáz, do Ministério da Cultura da Colômbia, falou sobre a experiência de educação integral em seu País e disse que, para o governo, trata-se de uma aposta estratégica de ressignificação do tempo escolar – nesse processo, se reconhece a integralidade do ser humano, algo que pode permitir o pleno desenvolvimento das dimensões da personalidade, com um reconhecimento cultural, socioafetivo e cognitivo das potencialidades de cada indivíduo. Na Colômbia, explicou Solmar, a ação educativa nas áreas recém-saídas de conflitos impõe também o reconhecimento de uma “pedagogia crítica do corpo”, para fazer frente aos traumas de guerras.

Instado a comentar como os indígenas brasileiros encaram tais questões, o escritor e ativista Daniel Munduruku brincou: “Tá todo mundo querendo adotar o modo indígena de educar”, divertiu-se. “Quem sabe agora a gente passe a ouvir as populações originárias”. Munduruku explicou que a experiência indígena, embora diversa no País, pressupõe uma educação para o todo, sistêmica, e sua tradição não vê as coisas de forma separada há muito tempo – arte e cultura não estão dissociadas de todas as outras atividades cotidianas. Ele contou o caso que lhe foi relatado pelo indigenista Orlando Villas-Boas, de uma mãe que fazia cerâmicas muito refinadas e o filho pequeno, assim que ela finalizava um vaso, ia lá e o quebrava. E a mãe fazia outro igualmente bem-acabado. Villas-Boas foi até ela, inconformado, para perguntar porque não fazia um vaso qualquer, feinho, já que seria mesmo quebrado. Ela respondeu-lhe que era assim mesmo que fazia. Ou seja: não se trata de dar destinações diferentes às coisas, elas são como devem ser.

O presidente da Fundação Itaú, Eduardo Saron, que abriu o simpósio, destacou que o fato de a escola ser o equipamento público mais presente no território brasileiro projeta a educação como “o catalisador das soluções, não só para o processo de ensino-aprendizagem, mas também das soluções (para as questões) que os territórios oferecem, a partir deste catalisador chamado escola pública”, capaz de contribuir para o desenvolvimento de uma nova subjetividade.

O secretário de Cultura do Espírito Santo, Fabrício Noronha (que também preside o Fórum Nacional do Secretários de Cultura), afirmou que esse novo e desafiador momento da educação no País abre perspectivas também novas, cujas demandas podem ser incorporadas às políticas do Sistema Nacional de Cultura (SNC), e que exigem uma convergência de agendas à qual ficará atento. “Saio daqui muito inspirado para várias ações lá no nosso território”, afirmou, adiantando que a inauguração do Cais das Artes, centro arquitetônico ousado de Paulo Mendes da Rocha prestes a ser inaugurado, deve abrigar projetos da rede estadual de formação do Espírito Santo.

Bel Mayer, educadora e coordenadora do Instituto Brasileiro de Pesquisa e Apoio Comunitário (IBEAC), expôs em um dos painéis a experiência de conquistar bibliotecas comunitárias no bairro de Parelheiros, na capital paulista, algo que parecia impossível há alguns anos (não havia nenhuma) e hoje o bairro já conta com um conjunto de seis instituições. Ela disse que é preciso adotar novas políticas de estímulo para as produções culturais, alertando para uma prevalência de editais de apoio pelo País todo. Recordou de amigos que chegam se lamentando que deixaram de se classificar para um edital por 0,2 ponto e que isso não lhe parece justo. “O que significa 0,2 ponto para engavetar um projeto de cultura?”. Bel lembrou uma consideração que ouviu do antropólogo mineiro Tião Rocha: “É preciso deixar de é-ditais para passar a ser é-de-todos”.

O jornalista Jotabê Medeiros viajou a Brasília a convite da Fundação Itaú

Livro sobre Zé Celso nos abre apetite de vida

O devorador: Zé Celso, vida e arte
Livro: O devorador: Zé Celso, vida e arte

Entrevistas, depoimentos históricos e ensaios inéditos compõem um banquete editorial sobre José Celso Martinez Corrêa — o Zé Celso, fundador do Teatro Oficina. Lançado em maio de 2025, o livro da Edições Sesc presta homenagem ao famoso encenador, que marcou a história da arte brasileira por suas críticas políticas, pela antropofagia posta em palco e pela escolha de uma poética que celebrava a liberdade. O devorador: Zé Celso, vida e arte é organizado pelo jornalista Claudio Leal e compila textos de autorias diversas para nos servir um retrato multifacetado do artista, que faleceu em julho de 2023 aos 86 anos. 

Nascido em 1937, em Araraquara (SP), José ingressou na Faculdade de Direito do Largo São Francisco nos anos 1950; mas ao invés de tornar-se advogado, uniu-se a outros estudantes para criar um grupo teatral. Em 1961, profissionalizaram o Teatro Oficina,“destinado a questionar, provocar, inverter, convulsionar tudo”, como pontua o escritor e jornalista Ignácio Loyola Brandão. 

A companhia mudaria sua composição e sua linguagem estética ao longo dos anos, persistindo ainda hoje como importante coletivo artístico. Se em 1964, o crítico de arte Sábato Magaldi se referiu a uma das montagens do grupo — Pequenos burgueses, do dramaturgo Máximo Gorki — como “o melhor espetáculo realista que o Teatro Brasileiro já encenou”; em 1967, eles surpreenderam. Mudaram os rumos do teatro nacional com a primeira encenação de O rei da vela, texto de Oswald de Andrade. As diversas peças que se seguiram na história do Oficina, propuseram resistência artística à ditadura civil-militar brasileira e uma crítica latente à classe média. Nos anos 1990, deram traços brasileiros à tragédia grega, com a icônica encenação de As bacantes, de Eurípedes e, nos anos 2000, reconstruíram Os sertões, de Euclides da Cunha, para pensar o massacre de Canudos e as possibilidades de desmassacre nas Canudos modernas. Desde a fundação, como grupo amador, Zé esteve na linha de frente da companhia. “Foram mais de trinta grandes espetáculos e ele se excedeu em cada um”, destaca Ignácio Loyola Brandão. No dia de sua morte, consequência de um incêndio no apartamento onde morava, Zé seguia trabalhando, desta vez dedicado a uma montagem teatral de A queda do céu, de Davi Kopenawa e Bruce Albert. 

Assim como nesta matéria, em O devorador, o diretor e o Teatro Oficina são duas esferas que por vezes se misturam. A história do criador e da criatura não são a mesma, mas se entrelaçam e atravessam. Isso talvez seja explicado pelo fato de que, como escreve Bete Coelho para o livro, Zé tinha um “modo de viver em que não se separa vida da profissão”.  

O banquete 

Em um dos primeiros textos dessa leitura, o músico José Miguel Wisnik nos alerta sobre outra característica central de Zé: “seu apetite de vida em ato era assombroso”. A publicação parece espelhar isso, já que só redigir um perfil do artista não daria conta dessa fome de mundo. 

Como conta a artista Monique Gardenberg, “Zé era seu interesse pelas coisas, pelo outro. A quantidade de perguntas que me fazia. Quando falávamos ao telefone, ficávamos horas. O mundo precisava parar, ele queria saber de tudo. O que eu estava lendo, se estava gostando, por que estava gostando, o que tinha achado de determinado filme, no que estava trabalhando”. O devorador se constrói assim, propõe uma longa conversa, que vai do íntimo de José — com textos pessoais de familiares e amigos de longa data, bem como fotos da infância — às esferas amplas de seu trabalho teatral e os registros fotográficos do mesmo.

A publicação leva o título um passo além e parece trazer para si o instinto antropofágico, ao devorar características do próprio Teatro Oficina. Como as peças da companhia, é de longa-duração: construída em 11 atos em mais de 500 páginas altas — um livro de grande estatura, que nos remete à arquitetura da sede do grupo, projetada por Lina Bo Bardi e Edson Elito na Jaceguai 520. Fazendo par aos numerosos coros das peças de Zé Celso, traz um numeroso conjunto de autores e entrevistados — 49 para sermos exatos. Dentre esses nomes, estão grandes artistas da MPB, como Caetano Veloso, Gilberto Gil e Maria Bethânia; nomes que marcaram a história do teatro, como Gerald Thomas e Ruy Cortez; figuras centrais no Teatro Oficina do ontem — como Ítala Nandi e Renato Borghi — e do hoje — como Camila Motta e Sylvia Prado; teóricos que acompanharam Martinez Corrêa na história da arte brasileira e Marcelo Drummond, que acompanhou José nos amores da vida. 

O livro conta ainda com projeto gráfico de Mateus Valadares, que revela uma lombada de costuras aparentes, uma capa tripla que se desdobra em pôster e um caderno de imagens colorido com fotos de diversos períodos da vida-obra do encenador. 

 

A boca que tudo come

“Perdoem este texto pessoal, não tem outro jeito”, grafa Ignácio Loyola Brandão em seu relato sobre o amigo Zé Celso. Não perdoamos, mas agradecemos. Há beleza em sermos conduzidos por alguns textos neste tom, que mergulham no íntimo da celebridade teatral brasileira para nos lembrar que “o Zé era uma pessoa normal. Precisava comer, cagar, tomar banho. Horas no banho enquanto não secasse a Cantareira”, como relata Marcelo Drummond.

Em paralelo, textos como os dos professores Silvia Fernandes e Paulo Bio Toledo permitem um olhar teórico às contribuições do encenador para a cena artística e política nacional. Nos conduzem por suas referências, o contato com Glauber Rocha, o contexto que permitiu o nascimento do Teatro Oficina — junto ao Teatro de Arena e paralelo ao Teatro Brasileiro de Comédia (TBC). Assim, transformam o livro em um importante material de estudo para pesquisadores da área, para além de um memorial bonito e nostálgico. 

Somos ainda conduzidos a descrições detalhadas e históricas de quem viveu montagens dirigidas por Zé Celso, como é o caso do texto de Camila Mota sobre Os sertões; ou lutou ao lado dele pelo Parque do Bixiga, como a arquiteta Marília Piraju. Nos deparamos também com ensaios poéticos e inventivos em linguagem, como o de Letícia Coura, artista do Teatro Oficina, e os escritos do próprio Zé Celso (que com seus negritos, caixas altas e espaçamentos, dão corpo à palavra). 

Isso porque, o encenador não deixaria um ensaio literário como esse sem alguns momentos de sua interrupção. Ao longo do livro, Claudio Leal cuidadosamente costura textos antigos de Zé, que complementam o panorama de cada capítulo. Assume também a ousadia de colocar no livro concordâncias e discordâncias dessas visões de mundo do homenageado. 

“O Zé provocava. Ele não tinha problema com a adversidade, tampouco com a diversidade”, diz Bete Coelho. E, assim, encontramos diversidade e adversidade ao folhear o livro. As opiniões conflitantes das atrizes Myriam Mehler e Ítala Nandi sobre os gestos radicais no Teatro Oficina são um exemplo. Bem como a sequência de textos sobre O rei da vela. Nela, somos confrontados com a dura preferência de Augusto de Campos pelas poesias e escritos de Oswald frente à encenação histórica do Teatro Oficina e, na página seguinte, é Tom Zé que nos pega à mão, conduzindo pelo pranto emocionado que viveu em 1967 ao sair do teatro de “coração rasgado” com a peça que revolucionaria o teatro brasileiro.

É com essas contracenações que O devorador: Zé Celso, vida e arte conta a história de Martinez Corrêa, da infância às prospecções de um futuro – agora sem Zé. Como pontua o ator Renato Borghi, “Zé Celso mudou o panorama do teatro brasileiro”. De agora em diante, como diz Camila, é preciso “adorar seu trabalho e seu legado que está presente em muitos corpos, estilhaçado em mil pedaços, devorado por muita gente”. 

Ítala Nandi lembra que quando o Teatro Oficina pegou fogo, em 1966, enquanto ela e outros atores choravam, “Zé sumiu e voltou de terno. Ele ficou tirando fotos em cima dos escombros, dizendo: ‘Aqui vai surgir um novo Teatro’”. Frente ao novo incêndio, de 2023, a companhia segue trabalhando essa herança teatral e essa força para fazer um novo teatro. Como encerra Camila Mota, “vai dar um trabalhão… Tudo a fazer!”.

O México de André Toral

André Toral

Em “Relatório de Viagem”, exposição que inaugura neste sábado, 14 de junho, na Graphias, André Toral reúne um conjunto diverso de trabalhos produzidos a partir de um encontro concreto – e simbólico – com o México. Combinando estratégias de reportagem visual, garimpo iconográfico e sobreposição de estereótipos oriundos da memória coletiva, o artista estabelece um painel difuso, sobrepõe tempos históricos distintos e explora um leque amplo de experimentações compositivas e técnicas. Como num jogo de memória, ou numa lógica de quebra-cabeça, o espectador se vê diante de uma espécie de charada visual. 

Toral não apenas associa ícones distintos (como uma indígena de costas, com traje e penteado típico, seres oriundos da mitologia mexicana, fragmentos da arquitetura colonial do país, lutadores mascarados que mais parecem super-heróis ou a indefectível paisagem de cactos), como os desloca de contexto. Um mesmo signo transita de trabalho em trabalho, passeia pelos diferentes suportes, mantendo uma aura de mistério, e dando vazão a uma profunda experimentação formal, que retira dos quadrinhos e da gravura (as duas principais atividades do artista) seus principais elementos.

Para compor aquilo que chama de “seu relatório de viagem”, todas as suas armas parecem ter sido convocadas, num interessante amálgama de técnicas e referências, criando um fluxo imagético contínuo, porém díspar. Água-tinta, água-forte, desenhos preparatórios, aquarelas sobre “impressões fantasmas” (obtidas sem entintar novamente a matriz, capturando apenas as marcas sutis das impressões anteriores), somadas a uma aventura ainda recente pelo campo da pintura (representada por quatro telas à óleo) compõem essa sedimentação de memória imagética de uma cultura da qual só podemos nos aproximar pelas beiradas, propositalmente deixando escapar muito por entre os dedos. Nas palavras de Toral, trata-se de um universo a ser tomado como referência, um motivo escolhido para, “como numa colagem”, elaborar “uma espécie de etnografia do imaginário, pessoal e coletiva, imprecisa e ao mesmo tempo baseada em fontes, contraditória e ordenada como são os sonhos e as memórias”. 

Escavações apontam vestígios do primeiro cemitério público da América Latina

Por Caroline Vieira

Em 1835, na região conhecida como Campo da Pólvora em Salvador, Bahia, foram mortos quatro africanos condenados pela participação na Revolta dos Malês. Os corpos foram enterrados numa cova comum de um cemitério vizinho destinado a indigentes e escravizados. Esta afirmação foi escrita pelo historiador João José Reis e publicada no livro Inventário dos lugares de memória do tráfico atlântico de escravos e da história dos africanos escravizados no Brasil em 2013. 

A morte aplicada a esses africanos, considerados rebeldes, ganha tintas ainda mais violentas ao sabermos que foram enterrados em uma cova comum, em um cemitério que foi apagado da história. Pelo menos era o que parecia até então, quando foi comunicada à imprensa no dia 26 de maio de 2025, que escavações preliminares confirmaram a existência de ossada no antigo cemitério dos africanos no Campo da Pólvora em Salvador, na Bahia. 

A localização aconteceu a partir de uma pesquisa em desenvolvimento por Silvana Olivieri. Ela nos conta que o processo se deu a partir do seu doutorado no Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da UFBA e, também, de sua vivência no candomblé e do seu envolvimento com os debates contemporâneos do campo da filosofia e da antropologia, buscando mostrar como os processos de urbanização têm servido ao que Ailton Krenak chama de “guerra de mundos”. 

“Fazendo pesquisa de campo em Belém, em maio do ano passado, soube que existia um antigo cemitério de pessoas escravizadas, indígenas e indigentes, soterrado pela urbanização. Voltei para casa com uma questão: haveria um cemitério similar em Salvador, que eu desconhecia? Após duas semanas de intensa investigação, não apenas descobri a existência do cemitério do Campo da Pólvora, como consegui identificar sua localização exata, informação ausente dos estudos e trabalhos historiográficos recentes relacionados ao espaço fúnebre”.

“Inicialmente, a evidenciação ocorreu por meio do cruzamento de mapas e plantas de Salvador do século 18 com uma imagem de satélite da área, que foi sendo anexada a outros documentos bibliográficos (livros e artigos de revistas) que mencionavam o destino do terreno do cemitério após sua desativação em 1844, tudo indicando que o cemitério estava localizado sob o estacionamento do Complexo Pupileira, imóvel da Santa Casa de Misericórdia, no bairro de Nazaré”, situa Olivieri. 

A pesquisadora relata que entre a localização espacial do cemitério até a montagem de uma comissão envolvendo arqueólogos houve um grande processo. “Juntamente com Samuel Vida, professor da Faculdade de Direito e coordenador do Programa Direito e Relações Étnico-Raciais da UFBA, elaboramos um dossiê reunindo toda a documentação relativa à localização do cemitério do Campo da Pólvora e, no fim de julho (2024), encaminhamos ao IPHAN, acompanhado de uma solicitação de apoio institucional para realizarmos uma pesquisa arqueológica no estacionamento do Complexo Pupileira, em busca de restos mortais das pessoas sepultadas no antigo cemitério”, explica. 

“Inicialmente, as tratativas com a Santa Casa para obtermos a autorização para realização da pesquisa arqueológica foram conduzidas pelo IPHAN. Diante das dificuldades encontradas, em dezembro, pedimos apoio também do Ministério Público da Bahia, mais especificamente do Núcleo de Defesa do Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural – NUDEPHAC. No fim de março, através de um Termo de Cooperação Técnica elaborado por quatro promotores do MP, a Santa Casa finalmente autorizou a realização da pesquisa. Coordenada pela arqueóloga e antropóloga Jeanne Dias, que havia se juntado a nós ainda em julho, a pesquisa financiada pela empresa Arqueólogos com recursos próprios aconteceu entre os dias 13 e 23 de maio de 2025, sendo achados remanescentes ósseos humanos nas duas primeiras sondagens”.

Nesse primeiro momento, segundo informação da arqueóloga Jeanne Dias, “a pesquisa teve um caráter de diagnosticar, ou seja, localizar a presença dos vestígios desses enterramentos no local, cujo êxito foi alcançado no dia 19 de maio quando identificamos os fragmentos ósseos humanos a partir de 3 metros de profundidade”. Uma das maiores dificuldades relatada pela arqueóloga foi justamente a enorme densidade do aterro, o que dificultou a chegada até uma camada arqueológica considerada interessante para a pesquisa.

Os primeiros vestígios foram identificados a partir do quinto dia, numa área equivalente a aproximadamente três vagas, pois o cemitério também foi “enterrado”, como uma forma de ocultar esse episódio da história do Brasil na Bahia e dos escravizados. Com os achados da pesquisa, o cemitério pode ser identificado como um dos maiores cemitérios públicos da América Latina. A estimativa é que lá tenham sido enterrados mais de 100 mil corpos ao longo do período em que o espaço funcionou com essa finalidade. Segundo fontes históricas, o cemitério foi primeiro administrado pela Câmara Municipal e, logo depois, foi assumida a responsabilidade pela Santa Casa da Misericórdia. 

Historicamente, sabia-se da existência desse suposto cemitério ali pela área do Campo da Pólvora, mas a pergunta que fazemos aos envolvidos é a seguinte: Por que a demora em identificar, localizar e reconhecer esse espaço?

Os estudos e trabalhos historiográficos recentes, explica a pesquisadora Silvana Olivieri, que “falavam do cemitério do Campo da Pólvora, especialmente o livro A morte é uma festa, de João José Reis, publicado em 1991 e reeditado em 2022, não revelavam sua localização exata, nem o que aconteceu com o lugar após ter sido desativado pela Santa Casa, em maio de 1844. Essa lacuna na historiografia certamente contribuiu para a demora em achá-lo. Pode ter contribuído também a afirmação de Reis de que os restos mortais pertencentes ao antigo cemitério foram transferidos para o novo cemitério do Campo Santo. Ora, se os restos mortais tivessem sido realmente removidos, não haveria praticamente nada mais a se achar ali, com o local perdendo seu interesse arqueológico. Essa hipótese caiu por terra ao acharmos os restos mortais durante as escavações”, contextualiza Olivieri.

“A Santa Casa, por sua vez, embora declarasse publicamente não saber a localização do cemitério do Campo da Pólvora, nos encaminhou em dezembro a escritura de compra e venda da Pupileira, onde consta que o imóvel compreende “o terreno que serviu antigamente de cemitério”. Isso nos permite concluir que a instituição sempre soube que o antigo cemitério ficava na parte frontal do seu imóvel, escondendo essa informação da população, colocando um estacionamento em cima dos mortos”, ratifica. 

A descoberta dos ossos humanos no Cemitério do Campo da Pólvora remonta a 150 anos de história acerca desse espaço forjado no século 18. Um local altamente precarizado e que revelava como a sociedade baiana enxergava aquelas pessoas. O fato é que grupos humanos foram enterrados sem nenhum rito religioso. Perguntamos a Silvana como era feito o transporte dos corpos pela Santa Casa e se aquelas pessoas puderam, ao menos, ser identificadas. 

Novamente em A morte é uma festa, uma das principais referências da nossa pesquisa, João José Reis diz que “os sepultamentos no cemitério do Campo da Pólvora eram realizados em valas comuns e superficiais, geralmente em condições bastante precárias e indignas, sem nenhuma cerimônia religiosa ou rito fúnebre, nem há registro de capela. O transporte dos corpos para o cemitério era feito nos banguês, esquifes mais simples e baratos da Santa Casa, que detinha o monopólio do serviço funerário na época. Os Livros de Banguê, coleção de 11 volumes muito bem conservada pela Santa Casa, trazem informações preciosas sobre as pessoas levadas nos banguês para sepultamento no cemitério entre os séculos XVIII e XIX, incluindo a etnia, completa Silvana. 

Apesar desse terrível fato histórico, com a descoberta do espaço, real localização e a finalização das escavações no dia 23 de maio, o antigo cemitério do Campo da Pólvora foi registrado pelos arqueólogos no Cadastro Nacional de Sítios Arqueológicos do IPHAN como “Cemitério dos Africanos”, portanto já se encontra salvaguardado e protegido pelas normativas do IPHAN para esse tipo de patrimônio cultural e histórico, e agora a Santa Casa tem a responsabilidade de preservá-lo. Assim que o relatório arqueológico for concluído, o Ministério Público deve convocar uma audiência pública para ouvir as comunidades negras de Salvador sobre o cemitério, e se decidir quais devem ser os próximos passos. Uma das ideias que pretendemos discutir na ocasião é a criação de um memorial/museu, como já ocorreu/vem ocorrendo com outros cemitérios de escravizados localizados em cidades como Nova York, Rio de Janeiro e São Paulo”, finaliza Silvana Olivieri. 

A arqueóloga Jeanne Dias espera também que haja por parte da população um interesse em acompanhar os desdobramentos a partir das audiências públicas mediadas pelo Ministério Público, com a entrega do relatório final. Para Dias, esse tipo de descoberta proporciona “um acerto de contas com a História, gerando um engajamento na sociedade Brasileira e sobretudo na sociedade baiana, no que tange à discussão acerca do racismo e da discriminação social. O achado pode ser também uma oportunidade para falarmos um pouco mais sobre a história desses indivíduos nesse período sombrio, um período recente, mas que deixou máculas na sociedade e que, até hoje, a gente sente. E para pensarmos acerca da formação de uma memória coletiva sobre populações negras que vieram de África e que foram desumanamente tratadas e indignamente enterradas”. 

Por fim, que essa importante descoberta, encabeçada pelas duas pesquisadoras, Silvana Olivieri e Jeanne Dias, sirva, senão para dar dignidade àqueles que foram enterrados como seres abjetos, para iluminar o presente, impedindo que condições semelhantes se repitam nas favelas das capitais brasileiras.

Uma breve escrita sobre o desenho

O corpo da linha: notações sobre desenho, de Edith Derdyk
O corpo da linha: notações sobre desenho, de Edith Derdyk
Por Tatiana Eskenazi*

Vim pelo caminho difícil,
a linha que nunca termina,
a linha bate na pedra,
a palavra quebra uma esquina,
mínima linha vazia,
a linha, uma vida inteira,
palavra, palavra minha.
Paulo Leminski

No princípio, era a linha. Do primeiro traço humano, registrando o gesto, à elaboração da linguagem. Antes mesmo, do humano: a linha que dá forma ao mundo. Partindo de um paradoxo, “como um traço contínuo de uma só dimensão pode ser um corpo?”, e nos paradoxos reside um imenso potencial criativo, em seu novo livro O corpo da linha: notações sobre o desenho, a artista e escritora Edith Derdyk percorre um trajeto que não é linear, mas que segue um fio da meada em torno da linha e suas infinitas possibilidades, e propõe uma investigação sensível e profunda sobre o ato de desenhar.

O livro se organiza como uma costura de fragmentos (pequenos ensaios, aforismos, imagens e provocações) que se conectam por um fio condutor: a linha. Essa linha, no entanto, não é apenas formal. É também existencial. “A linha é condutora de uma experiência que atravessa o corpo, é território de trânsito entre o dentro e o fora”. Não à toa, por vezes, temos a impressão de tratar-se de um grande poema, um manifesto, ou um livro de artista. 

E se o corpo da linha quem dá é a mão que alinhava, assim a autora o faz. A linha como processo, em um alinhavar contínuo, “o gosto pelo caminho sem destino”. A intenção é esgotar a linha em todas as suas possibilidades — ainda que isso seja impossível. “E, porque inalcançável, impulsiona o eterno desejo de deslocamento, vocação da linha.” Porque aqui, nada importa mais do que o processo, a investigação, da arqueologia da linha a novas formas de ver e traçar futuros possíveis.

Articulando referências de diferentes áreas — filosofia, literatura, artes visuais — para aprofundar seu pensamento, somos conduzidos por um coro de autores, artistas e pensadores ao longo do trajeto. Foucault, Deleuze, Deligny, Simondon, Ponty, Valéry, Lispector, Mario de Andrade, Fernando Pessoa e muitos outros aparecem como vozes que se entrelaçam à sua reflexão, dando corpo ou ajudando a construir esse corpo em movimento da linha. Essas referências, no entanto, não se impõem como autoridade: são partilhadas como companhias de percurso, numa construção coletiva. “Não é uma citação que justifica, mas uma citação que pulsa, que vibra junto”.

Em O corpo da linha, Derdyk propõe pensar o desenho como uma forma de conhecimento sensível e intuitivo. Mais do que uma técnica, o desenho é apresentado como experiência do corpo, gesto de pensamento e modo de habitar o mundo. “Desenhar não é apenas traçar, é inscrever-se, é um modo de escuta, uma forma de estar presente”. O desenho como a língua mais antiga, “tão antiga  e tão permanente que atravessa o arco das civilizações, nosso convívio coletivo.” 

Uma das ideias centrais do livro é que o corpo está presente em todo gesto de desenhar: “O corpo inteiro está na ponta do lápis…” E não só o corpo físico, mas também o corpo simbólico, poético, político. “A linha é o corpo em estado de pensamento. É o corpo que pensa enquanto se move”. Ao desenhar, traçamos caminhos, criamos sentidos, fazemos escutas visuais, deixamos nosso rastro no mundo. 

Derdyk questiona as hierarquias tradicionais que opõem palavra e imagem, pensamento racional e sensível, teoria e prática. “O desenho não é ilustrativo, é constitutivo. Ele não representa, ele apresenta”. Recusa a normas que aprisionam os desenhos e o livre pensar, que reduzem nossas possibilidades de habitar o mundo. “Escapar da submissão do gesto que, sob o comando do olhar, por vezes subjuga todos os outros sentidos à informação da linha como contorno, e a decorrente suposta fidelidade ao referente, será aqui o nosso aprendizado, o nosso desafio.”

Para nos guiar por esse desafio de abandonar a ideia de linha como contorno, as formas fixas e estáticas, herança da linha cartesiana, a autora propõe dezoito novas possibilidades de linhas, cada uma acompanhada por citações que as disparam: linha-lama, linha-imensurável, linha-membrana, linha-aparição, linha-cartopográfica, linha-deriva, linha-é, linha-acontecimento, linha-emancipada, linha-performativa, linha-horizonte, linha-transitiva, linha-rasura, linha-nômade, linha-projétil, linha-fantasma, linha-teia e linha-destino. 

O livro também é uma defesa da potência do fazer manual, da lentidão, da atenção ao detalhe (práticas que resistem ao ritmo acelerado do mundo contemporâneo), e da valorização do erro como potência. “A linha que erra abre possibilidades. O erro, nesse contexto, não é falha, é desvio criativo”. O traço vacilante, a linha que hesita, o gesto interrompido: tudo isso ganha valor como parte do processo. Assim como a vida, o desenho é feito de incertezas. E é justamente aí que reside sua força.

Por fim, O corpo da linha não é somente um livro sobre desenho. É uma obra sobre o gesto de existir com atenção, curiosidade e entrega. Um convite à escuta, ao movimento e à presença. Como diz Derdyk: “O desenho é o intervalo entre o olhar e o gesto. É o tempo suspenso do corpo que pensa”. Só com um olhar atento, presente e curioso — entregue à escuta e ao movimento — é que podemos caminhar juntos. E só caminhando juntos, numa construção coletiva, é que podemos chegar a um lugar que interesse: a novas possibilidades de futuro.

*Tatiana Eskenazi (São Paulo, SP) é fotógrafa, poeta e escritora. Publicou os livros de poemas “Seu retrato sem você” (Quelônio, 2018) e “Na carcaça da cigarra” (Laranja Original, 2021). Ministra cursos e oficinas literárias e colabora com revistas e jornais.