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Início Site Página 179

As ciências humanas e a guerra cultural no Brasil

Por
Redação
-
20 de julho de 2017
Manifestação a favor do impeachment de Dilma na avenida Paulista – Foto- Rovena Rosa:Agência Brasil
Manifestação a favor do impeachment de Dilma na avenida Paulista – Foto- Rovena Rosa:Agência Brasil
  • Vivian Mocellin

Uma das facetas da “guerra cultural” entre a esquerda e a direita que o Brasil vive atualmente é a crítica generalizada às ciências humanas. Dois conjuntos de críticas podem ser lidas e ouvidas nos mais diversos meios de comunicação e espaços sociais: a opinião pública de extrema direita, a direitona tosca, acha que as ciências humanas “são um antro de esquerdistas”, ou “esquerdopatas”, como preferem dizer. A direita liberal, que se quer mais civilizada, afirma que as ciências humanas são simplesmente inúteis e gastam dinheiro precioso das agências de pesquisa e horas preciosas dos alunos que deixam de aprender o que interessa nas escolas do ensino básico e superior.

Vamos lá. Em primeiro lugar, sinto dizer que as ciências humanas há muito não são um “antro de esquerdistas ou revolucionários de plantão”, se é que um dia o foram. Hoje, o marxismo é uma entre tantas possibilidades teórico-metodológicas aceitas, como sempre foi, aliás. Foi-se o tempo das “patrulhas metodológicas” tão presentes nos anos 1970 e 1980. Obviamente, essas ponderações pouco valem para a direitona, para a qual todo mundo que defenda direitos humanos, estado laico e não fica histérico diante de um discurso feminista, é um radical de esquerda. É verdade que vaia de bêbado não vale. Entretanto, causa muito ruído.

Quanto à inutilidade, devo dizer que ela não é uma exclusividade das ciências humanas. Basta uma olhada no hilariante site do Prêmio Ignobel que premia pesquisas reais e, à primeira vista, completamente inúteis, em várias áreas nobres das hard sciences. Mas como estou no ramo universitário há algum tempo, sempre acho que pode haver alguma utilidade futura inaudita em pesquisar como os cães e gatos se posicionam para urinar em relação às linhas magnéticas da Terra, qual a personalidade das rochas a partir de uma perspectiva de vendas ou como o Boletim da Sociedade Kardecista de Ximbica da Serra representou a Revolução Russa de 1917 (só essa última eu inventei, desculpem-me os kardecistas e ximbiquenses…). O lema do prêmio, inclusive, é premiar “ pesquisas improváveis que fazem as pessoas rir, para depois pensar”.  Apesar do risco da endogenia, é preciso confiar nos pares para avaliar a relevância de um tema de pesquisa, cabendo à universidade se comunicar melhor com a sociedade leiga para convencê-la da importância.

Também não se pode acusar as humanidades de ser a vilã dos gastos com a ciência e com a pós-graduação no Brasil. Os dados de 2016 indicam que cerca de 10% a 12% das verbas do CNPq e FAPESP são direcionadas para esta área. Pelo preço de quatro microscópios eletrônicos de varredura é possível sustentar um programa de pós-graduação em história ou ciências sociais, gigantes como os da USP, durante um ano.

O fato é que não é raro, no próprio meio acadêmico, até em universidades públicas, ouvirmos à boca pequena (e à boca grande) que as ciências humanas não fazem pesquisa, não geram patentes, e tem “apenas” vocação para formar professores e fazer atividades de extensão, algo visto preconceituosamente como a “sopa para os pobres” do entorno.

Há também o outro lado da moeda. Muitos colegas respeitáveis acham que só as Humanidades tem capacidade de pensar a sociedade, o que é um grande exagero. Pessoalmente, eu não quero que historiadores e poetas pensem pelos engenheiros, mas eu gostaria de engenheiros que também pensassem como historiadores e poetas. O país, a engenharia e a história só ganhariam com isso.

Se quisermos um país com capacidade de formulação de políticas públicas eficazes, consciente dos seus interesses econômicos e posição geopolítica em um mundo complexo, de um aluno e um trabalhador que possam ser algo mais do que repetidores de tarefas mecânicas, precisamos das ciências humanas na pesquisa e na educação. Independente do debate esquerda / direita, que se bem colocado pode até ser muito produtivo (o que não é o caso do Brasil atual, infelizmente), as ciências humanas têm um papel a cumprir na sociedade.

Como desenvolver políticas de saúde, políticas de inclusão social, políticas de segurança, políticas culturais, políticas de transporte e energia sem a ajuda da sociologia e da antropologia? Como fundamentar o debate sobre reformas políticas, constituição e cidadania, sem a ciência política? Como conhecer o legado ou desmontar as armadilhas institucionais colocadas pelo passado sem a história? Como desenvolver políticas agrícolas, agrárias, urbanas, de moradia, de preservação ambiental, sem a geografia?

Sim, é possível que um governo desenvolva todas estas políticas públicas sem as pesquisas inúteis em ciências humanas. Como? Deixando que as corporações e a burocracia produzam estudos e formulações ou importando pesquisas de consultorias milionárias e de agências internacionais nem sempre independentes dos interesses econômicos e financeiros que regem o mundo. Não que a universidade esteja isenta deste risco, mas um ambiente de pesquisa em uma universidade pública, ou mesmo privada mas pautada por uma gestão comunitária, financiada a partir de critérios claros de qualidade e relevância, examinado por pares e controlado pela sociedade civil, ainda é o melhor caminho para se produzir ciência e conhecimento. Aliás, isto já vem sendo feito pelas universidades brasileiras. Se os políticos e gestores públicos não utilizam este conhecimento “público e gratuito” como deveriam, isso é outra história. Diz mais sobre nossos governantes, burocratas e parlamentares do que sobre a nossa universidade.

Para os que acham que a qualidade e relevância do conhecimento acadêmico se mede pela inserção no mercado, deveriam levar em conta que as ciências humanas também tem um potencial muito grande neste campo. Além de consolidar uma comunidade de leitores, consumidores de mídias e impressos, o vigor das humanidades tem impacto direto na indústria do turismo, no jornalismo, na indústria editorial, e indireto na chamada “economia criativa” (publicidade, games, design, moda). Portanto, não se trata de responder a estas demandas matando a pesquisa e transformando os cursos de ciência humanas em escolões genéricos. É verdade que os currículos dos cursos devem ser atualizados, como também é verdade que as pesquisas puras, “inúteis” para alguns, deveriam ser melhor articuladas à pesquisas aplicadas e ao desenvolvimento de C&T. Da minha parte, como profissional pesquisador e docente da área de Humanidades há mais de 30 anos, aceito esta cobrança.

Estas mudanças implicariam em construir um novo patamar da relação entre pesquisa, ensino e extensão, e não em destruir o próprio conceito de pesquisa em humanidades a partir da separação dos professores universitários da área entre um grupo seleto de pesquisadores full time e uma massa de professores horistas em salas lotadas de graduação. A área de humanidades, nas universidades públicas brasileiras, consolidou sua identidade e vocação: pesquisa e ensino articulados e inseparáveis. E apesar das dificuldades, é um modelo bem-sucedido, ainda que possa ser aprimorado e revisado. Por exemplo, na última lista do badalado QS World University Ranking sete cursos de graduação da Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da USP estão entre os 100 ou 150 melhores do mundo, o que não é pouco para uma Faculdade com 10 mil alunos de graduação, 3 mil de pós-graduação e para um país sem tradição universitária. E todos estes cursos de graduação, diga-se, tem programas de pós-graduação a eles conectados que são considerados “de excelência” pela CAPES e reconhecidos internacionalmente.

Mas sabemos a guerra cultural contra as humanas está longe de ser desinteressada, meramente preocupada com a “doutrinação” dos pobres alunos quase adolescentes por professores mal-intencionados ou com a gastança do precioso dinheiro público que poderia ir para o superávit primário e fazer os investidores mais felizes. Trata-se de uma concepção de país, de ciência e de educação que está em jogo, e que veio à tona de maneira avassaladora nesta aliança tática entre a direitona autoritária e a direitinha liberal que tomou conta do Brasil contemporâneo.

No ensino, a guerra às humanidades tem produzido outras críticas superficiais. Por exemplo, a de que o currículo do ensino médio está cheio de “penduricalhos” desinteressantes para os alunos, desviando do que realmente interessa aprender no mundo de hoje: português, matemática e inglês. A integração curricular das disciplinas, a interdisciplinaridade, a flexibilização e o protagonismo dos alunos, sobretudo no ensino médio, são propostas importantes, mas não podem ser implementados a partir da virtual exclusão das humanidades no ensino médio.

Mas este assunto fica para um próximo texto

Mais armas, mais mortes

Por
Carolina Trevisan
-
7 de julho de 2017
Rio de Janeiro - A Polícia Federal e o Exército realizam procedimento de destruição de aproximadamente 4000 armas recolhidas pela PF nos últimos dois anos (Tânia Rêgo:Agência Brasil)
Rio de Janeiro - A Polícia Federal e o Exército realizam procedimento de destruição de aproximadamente 4000 armas recolhidas pela PF nos últimos dois anos (Tânia Rêgo:Agência Brasil)

Com uma forte indústria de armamento, o Brasil figura entre as potências mundiais na produção e comercialização de armas de fogo. É, também, o quarto maior exportador de armas leves do mundo, perdendo apenas para os Estados Unidos, a Itália e a Alemanha, de acordo com a pesquisa Small Arms Survey. A atividade rendeu, em 2012, US$ 374 milhões a esse setor industrial brasileiro, superando a Federação Russa e a China. 

Quanto mais armas circulando, mais mortes. O principal foco dessa violência letal continua sendo jovens, negros, com baixa escolaridade e moradores das periferias das grandes cidades – todas essas características sobrepostas. E o Brasil segue ignorando essa situação em seus planos de segurança pública. Aposta em diminuir a letalidade entre a população branca e favorecida, e se omite de proteger o grupo populacional mais vulnerável a essa condição, perpetuando um comportamento racista característico e estruturante da própria sociedade brasileira. Uma realidade histórica que se aprofunda.

Esse é o quadro revelado (mais uma vez) por duas importantes publicações lançadas esta semana: o Atlas da Violência, do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA) e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), e o Mapa da Violência 2016, da Faculdade Latinoamericana de Ciências Sociais (Flacso).

O Brasil registrou, em 2015, 59.080 homicídios. Esse número corresponde a uma taxa de 28,9 mortes a cada 100 mil habitantes, de acordo com o IPEA e com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. “Trata-se de um número exorbitante, que faz com que em apenas três semanas o total de assassinatos no País supere a quantidade de pessoas que foram mortas em todos os ataques terroristas no mundo em 2017”, demonstra o estudo. Para poder comparar, este ano houve 499 atentados em que morreram 3.343 pessoas. A violência no Brasil mata bem mais.

Esse dado consolida também uma mudança no patamar da violência letal e evidencia a tendência ao aumento no número de mortes por armas de fogo. Mostra que o Estatuto do Desarmamento teve papel fundamental para frear o crescimento da violência por armas de fogo entre 2003 e 2014, até estagnar os índices. Mas agora já não é suficiente. Outras medidas, especialmente políticas públicas para a juventude, precisariam se agregar à iniciativa. “Apesar do estatuto, as autoridades, em vários níveis, federal, estadual e municipal, não se organizaram para retirar a arma de fogo de circulação”, diz Daniel Cerqueira, pesquisador do IPEA e coordenador do Atlas da Violência.

O uso de armas de fogo está presente em 71,9% dos homicídios, 7 em 10 casos. A cada 1% no aumento da proliferação de armas, aumenta em 2% a taxa de homicídios, aponta o estudo. As políticas de controle de armas sancionadas em 2004 com o Estatuto do Desarmamento foram responsáveis por poupar a vida de 133.987, mostra o Mapa da Violência deste ano.

Taxa de mortes por armas de fogo por 100 mil habitantes
Taxa de mortes por armas de fogo por 100 mil habitantes

Seletividade racial

A violência letal no País tem alvo certo desde que o Brasil é Brasil. A cada 100 pessoas que sofreram homicídio em 2015, 71 eram negras, 54 eram jovens e 73 não possuíam o fundamental completo (essas características se aglutinam). Os negros possuem chances 23,5% maiores de serem assassinados, em relação a brasileiros de outras raças. O racismo histórico e a desigualdade profunda são fatores que provocam a naturalização tantas vidas perdidas.O assassinato de mulheres negras também é muito superior à mortalidade de mulheres brancas. Entre 2005 e 2015, houve aumento de 22% na mortalidade de negras, enquanto que houve redução de 7,4% na mortalidade de não negras.

“Além da herança do passado colonial e escravocrata, outros fatores podem ser mencionados na tentativa de explicar essa crescente seletividade racial da violência homicida. Em primeiro lugar, a progressiva privatização do aparelho de segurança”, explica o Mapa da Violência. “Em teoria, os setores e áreas mais abastados, geralmente brancos, têm uma dupla segurança: a pública e a privada; enquanto as menos abastadas, a das periferias, predominantemente negros, têm de se contentar com o mínimo de segurança que o Estado oferece. Um segundo fator adiciona-se e complementa o anterior: a segurança, a saúde, a educação, etc., áreas que formam parte do jogo político-eleitoral e da disputa partidária. As ações e a cobertura da segurança pública distribuem-se de forma inteiramente desigual nas diversas áreas geográficas, priorizando espaços segundo sua visibilidade política, seu impacto na opinião pública e, principalmente, na mídia, que reage de forma bem diferenciada de acordo com o status social e econômico das vítimas. Como resultado, os recursos públicos de proteção são canalizados, preferentemente, para as áreas mais abastadas, com predominância de população branca, que ostentam os benefícios de dupla segurança, pública e privada.”

O que não se considera é que ao não tratar da violência letal, o País não consegue se desenvolver como nação. Perdemos 318 mil jovens por homicídio nos últimos 10 anos. “Falta comprometimento das autoridades”, alerta Cerqueira. Essas mortes também custam ao País 1,5% do PIB.

Outra força motriz matadora de jovens negros é a polícia, sob o argumento da “guerra às drogas”. Segundo o Atlas da Violência, em 2015 a segurança pública registrou 3.320 mortes decorrentes de intervenção policial, dado subnotificado. “Nos últimos anos, assistimos a um realinhamento a favor desse modelo de atuação policial que permanece como um dos maiores desafios de nosso processo de consolidação democrática e de um efetivo Estado de Direito”, afirma o estudo. “Não é à toa que as taxas de homicídios cometidos pela polícia no Brasil são muito altas. Trata-se de uma força policial militarizada, que vê os jovens, em especial os negros e os moradores de favelas e periferias, como potenciais inimigos que devem ser combatidos. E de uma política de “guerra às drogas” que vem sendo questionada e abandonada em várias partes do mundo”, afirma Jurema Werneck, diretora executiva da Anistia Internacional.

Homicídios por armas de fogo, por raça. Fonte: Mapa da Violência
Homicídios por armas de fogo, por raça. Fonte: Mapa da Violência


Unidades da Federação e municípios

Em 2015, apenas 111 municípios (que corresponde a 2,0% do total de municípios, ou 19,2% da população brasileira) responderam por metade dos homicídios no Brasil e 557 municípios (10% do total) concentraram 76,5% das mortes violentas no país. Os municípios mais pacíficos se localizam no Sudeste e os mais violentos, no Nordeste. Altamira (PA) lidera a lista entre as cidades com mais de 100 mil habitantes. Entre as causas para esse quadro estão desigualdade social profunda e crescimento desordenado.

Os três estados mais violentos também estão no Nordeste: Sergipe é o primeiro da lista do Atlas da Violência, seguido por Alagoas e Ceará. Destaca-se o caso de Pernambuco, que chegou a ter a sua capital, Recife, como a campeã de homicídios. Com políticas de segurança pública voltadas para a manutenção da vida (e não para a repressão), Pernambuco teve queda de 36% na taxa de homicídios ao longo de 11 anos. Mas a violência cresceu em 2014, mostrando que para tratar dessa questão são necessárias medidas transversais em diversas áreas.

Para entender o nosso racismo

Por
Carolina Trevisan
-
5 de julho de 2017
Ana Luiza Flauzina, diretora do filme Além do Espelho. Foto- Alexandre Alves
Ana Luiza Flauzina, diretora do filme Além do Espelho. Foto- Alexandre Alves

Não é possível entender o Brasil sem compreender que um dos pilares que sustenta a sociedade brasileira até hoje – e na qual se estruturou a nossa formação social – é o racismo. Em busca de provocar reflexões em torno desse tema no Brasil e nos Estados Unidos, Ana Luiza Flauzina, advogada e professora da Unilab (Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasiliera), mestre, doutora e pós doutora em Direito e especialista em Criminologia, juntou dois grandes ícones da intelectualidade negra para uma conversa, que gerou o documentário Além do Espelho, sob sua direção. O jornalista Edson Cardoso no Brasil e o cineasta etíope Haile Gerima nos Estados Unidos, travam um debate que aborda temas como violência, academia, resistência, memória e amor.

Fincado no respeito à ancestralidade, o filme transmite a sabedoria, a generosidade, os anos de luta, de descobrimento e de delicadeza de Cardoso e Gerima. “É um instrumento didático e político que gostaria que circulasse, que suscitasse reflexões”, explica Ana.

Em um vai e vem de diálogos, a película chama a atenção para um aspecto cruel: o entendimento de que o racismo é um processo de desumanização. “É a expropriação de base que permite, autoriza e chancela a barbárie, sem qualquer implicação da consciência”, afirma Ana. Por isso, a atual perda de mais de 45 mil vidas de jovens negros por homicídio (corresponde a 70% do total) não comove. Não causa revolta na maioria.

O Brasil é o país que mais tempo explorou a escravidão no mundo. É também o que mais submeteu africanos à travessia do Atlântico para servirem de escravos. Essa História do Brasil tem consequências profundas. No racismo moderno, as forças de segurança do Estado tratam de eliminar e encarcerar gerações inteiras de jovens e mulheres negras sob o argumento da “guerra às drogas”. Com a justificativa de combater o tráfico de drogas, criminaliza-se toda uma população, uma comunidade, um perfil de brasileiros.

Parece que esquecemos quem somos. Quem tomba o corpo negro faz questão de apagar a memória (tanto do agressor como da vítima) e tenta deixar escrita outra narrativa: troca de tiros, sujeito armado, resistiu à prisão. “É na guerra pela memória, pelos processos que nos fizeram ser o que somos, que se disputam as políticas públicas, o acesso a recursos, o controle do Estado”, afirma a professora. “O saqueamento da memória é o pressuposto primeiro do genocídio.” Gerima chama essa importância de “arma da memória”.

Por conta desse passado, a resistência é uma das principais características do povo negro. “Somos frutos de uma gente que sobreviveu ao horror com altivez; que encarou chicote e revidou com guerra; que amou quando tudo era desilusão. Somos gente que cozinha com sobras e faz comida temperada; que engana a fome com sono; que insiste em sonhar em tempos de crise. Esse sentido da pertença tem de ser partilhado, cultivado, honrado.”

O enfrentamento ao racismo é um compromisso de todo mundo.
Para contribuir com a finalização documentário, clique aqui.

Brasileiros – Por que você quis fazer o filme?
Ana Luiza Flauzina – 
Não sei se quis fazer o filme, no sentido de que tive uma ideia e decidi naturalmente construir uma narrativa cinematográfica a partir dela. Na verdade, acho que o filme me escolheu. Quando me veio o insight de registrar o encontro de Edson e Haile, não consegui mais voltar atrás. Me debati bastante, confesso, por estar em outro país, ter pouco contato com o cinema, mas a demanda do compromisso venceu.

Como foi a escolha dos dois grandes intelectuais negros como referência para a discussão que o filme traz? Como a importância da ancestralidade compõe com essa escolha?
A escolha foi muito orgânica. Edson é uma referência muito importante na minha vida. É um dos maiores intelectuais negros brasileiros e um militante que fala de entrega, de generosidade. Conheci Haile em 2010 e tive a honra de ser ouvinte em algumas de suas disciplinas na Howard University. Haile é um homem raro, um militante desses que cativa pela doçura e ensina a ousadia. Ouvi-lo falar me deixava com os olhos marejados, ficava com saudades de Edson naqueles momentos, era uma coisa que me tocava de maneira muito especial. Reconheci um no outro de alguma forma e juro que a vontade inicial era somente de apresentá-los, mas entendi que mediar o diálogo deles seria um registro importante pra gente. E isso, claro, calou fundo como uma forma de honrar isso que se chama ancestralidade. Não somente como metáfora e idolatria dos que se foram, mas como concretude dos que nos cercam e nos inspiram, com todos os riscos nisso implicados. De que não se tratam de pessoas perfeitas, de que discordâncias, inclusive com as minhas perspetivas, são um dado, mas que fazem parte do chão que pavimentou e pavimenta a minha caminhada.

Que objetivo você gostaria que o filme alcançasse?
Acho que a maior qualidade do filme é ser acessível. Os dois tratam das mais diversas questões em torno do racismo, da violência, da resistência, do amor, e de tantas outras temáticas, de forma muito generosa. É um instrumento didático e político que gostaria que circulasse, que suscitasse reflexões em torno do tema. É um material que pode ser usado na Universidade e em centros comunitários, tem versatilidade pela linguagem que emprega, apesar da densidade das reflexões. Então espero que possamos tomar posse do filme para explorar seu potencial como catalisador de discussões sobre a questão racial.

Edson Cardoso, no começo do documentário, fala sobre o que é o racismo e a desumanização do povo negro. “Racismo é dizer que além do mais não são humanos como nós”. Gostaria que você dissesse o que é o racismo pra você. 

Escolhi essa síntese de Edson na definição de racismo, porque partilho dela. Racismo é fundamentalmente um processo de desumanização. É a expropriação de base que permite, autoriza e chancela a barbárie, sem qualquer implicação da consciência. Talvez seja essa a maior capacidade do racismo. Conseguir naturalizar a dor negra como consenso que não implica as pessoas num dilema ético. É a operação que tranquiliza o sono das elites, enquanto o genocídio abate um contingente tomado como abjeto, menor, descartável. É a herança mais bem guardada dos escombros na escravidão no Brasil e na Diáspora.

Haile Gerima também fala sobre o que é o racismo e diz que “genocídio não é apenas quando você é fisicamente morto. Acontece quando a sua memória é roubada também. É a arma da memória”. Você pode explicar como é esse sequestro da memória? No que isso implica?
A questão da memória é essencial no enfrentamento ao racismo e isso sempre foi muito claro pra mim. Eu tenho uma formação em Direito e História e acabei fincando pé nas trincheiras jurídicas. Eu sempre digo que saí da História por covardia, porque sabia que ali era o grande espaço da nossa disputa. Me refugiei numa arena que quer se dizer mais relevante mas, na realidade, é mais débil nesse jogo. A forma como se pode mobilizar o passado, acessar as versões das narrativas históricas é um dos maiores trunfos políticos que se pode ter. A subjugação de negros e indígenas só é possível porque temos uma memória cerceada, saqueada. Se você só dá o presente a um grupo marginalizado, ele fica sufocado em sua contingência, inibido de articular resistência e reclamar reparação. É na guerra pela memória, pelos processos que nos fizeram ser o que somos, que se disputam as políticas públicas, o acesso a recursos, o controle do Estado. As elites narram essa história como direito adquirido e natural. Resistir a esse estado de coisas é produzir uma contra-narrativa que entenda a desigualdade que nos assola como expropriação e violência. Então o saqueamento da memória é o pressuposto primeiro do genocídio. É isso o que Haile nos mostra de forma brilhante no filme.

Sobre o sistema de cotas, Edson faz uma reflexão importante: não basta que as pessoas negras ocupem espaços nas universidades. As universidades precisam “mudar-se” a si mesmas, sair da orientação europeia e incluir a fundamental história negra. Como você vê essa possibilidade?
Acho que o debate sobre as cotas nas Universidades é um bom emblema dos nossos desafios. Sobre como essa categoria da inclusão é limitada no que ela produz. O Edson trabalha bem isso. Ele sempre lembra que é possível promover a tal “igualdade racial” sem enfrentar o racismo. Ou seja, não se trata de “colorir” os espaços acadêmicos, mas de negociar os sentidos epistemológicos, a própria forma de se produzir conhecimento. Não se quer, com as cotas, transformar somente a paisagem da Universidade, queremos é salvar a Universidade de sua mediocridade, a partir de uma ampliação das abordagens possíveis. Porque isso é algo de crédito absoluto das elites: essa pobreza da educação superior no Brasil, com uma produção acadêmica débil, principalmente no âmbito das humanidades. São lentes obtusas, que não querem se ampliar, incapazes de dar respostas a questões básicas que assaltam o cotidiano, porque se recusam a encarar o Brasil de frente. Isso inclusive nas fileiras ditas progressistas. A boçalidade colonial é um dado tão arraigado na formação das elites universitárias que não há alento para quebra de paradigmas com os horizontes europeus, nem nos redutos que se auto intitulam críticos. Isso é verdade para quase todas as áreas. Então quando falamos de cotas, não estamos falando de um sistema que está aí não para comprometer a qualidade do ensino, como muitos insistem ainda hoje em afirmar, mas de salvá-lo de sua decadência. Porque não há um sistema de excelência na educação superior no Brasil construído pelos brancos a ser maculado por negros e indígenas. O que há é uma estrutura conservadora deficiente que precisa ser revista para ampliar os escopos de sua produção e intervenção social. Ou as cotas têm esse tipo de horizonte ou se transformam em penduricalho da diversidade neoliberal, que maquia as instituições enquanto reforça suas práticas obsoletas.

Na sua opinião, qual é o papel dos brancos brasileiros no enfrentamento ao racismo? 
Confesso que essa pergunta sempre me perturba um pouco. Porque de alguma forma está implícita uma noção de que a questão racial é uma questão de interesse exclusivo de negros e negras, já que nos compete inclusive dizer o que cabe aos brancos fazerem. A história do racismo é constituída de personagens que sofrem violências e outros que experimentam privilégios frutos dessas violências, naturalizando-os como direitos, como pontua Jurema Werneck. Então a desconstrução dessa teia de vilipêndios cabe a negros e brancos e os caminhos para a superação do racismo pelas pessoas brancas têm de ser descobertos e trilhados por elas. Acho que são as pessoas brancas, experts nos privilégios raciais, que têm de achar as vias para o desmantelamento desse castelo. Pra mim essa questão sempre soa como um espaço da branquitude meio mimado, que quer resposta pronta pra tudo. Como se a transformação social tivesse algum tipo de receita acabada e não se tratasse de trabalho árduo, regado de educação política e compromisso. Ou seja, as pessoas brancas têm se empenhar, assim como nós, para descobrir as armadilhas do racismo, testar possibilidades, encarar seus paradoxos. E não imputar mais um encargo às pessoas negras que, de repente, têm de aparecer com soluções mágicas para o dilema dos seus privilégios. Então o papel dos brancos é se entrincheirar contra o racismo do seu lugar, politizando suas questões e achando respostas efetivas para as violências em curso.

Por favor, explique, do seu ponto de vista de mulher negra, como se dá a sobreposição do racismo com o sexismo e no que isso implica.
As questões racial e de gênero, com suas correlatas dimensões de sexualidade, são a espinha dorsal da formação social brasileira. Não há como entender o Brasil sem enfrentar essas variáveis. Pessoalmente, estou cada vez mais preocupada em visibilizar as consequências da associação desses vetores para dentro das comunidades e da militância negra. Tenho dito que temos sido capazes de denunciar os efeitos do racismo para fora, em especial na politização do extermínio da juventude negra, mas ainda temos um longo caminho a percorrer para desafiar os efeitos do racismo para dentro de nossas comunidades. E nesse enredo, as mulheres negras têm definitivamente tido suas dores e narrativas silenciadas. O sofrimento negro tem sido encapsulado na imagem de uma mãe negra que chora pela perda de seu filho. Se essa é uma imagem bem acabada da nossa tragédia cotidiana, ela não pode ser a única a sinalizar os dados da nossa miséria. Afinal, a dor das mulheres negras não é só derivada da violência infligida aos homens e meninos negros, mas é também provocada por eles. E, claro, aqui estou fazendo a operação oposta do estereótipo que caricatura homens negros como seres violentos, na justificativa do extermínio. Estou falando de como o sentido de masculinidade, que tem assolado as mulheres como um todo, tem de ser pensado no horizonte do racismo. Que pressões sofrem os homens negros e qual a medida da explosão dessas tensões para as comunidades negras? Que engodo há nesse pacto da masculinidade negra e branca que tem sido um desserviço no enfrentamento ao racismo? A pergunta que nós mulheres negras estamos fazendo é: afinal, o que é ser um homem negro cis-heteroconforme? A politização do sentido dessa masculinidade é urgente se queremos enfrentar o genocídio de forma radical. Temos que dar conta não só das mortes provocadas pelas polícias, mas, no mesmo fôlego, das costelas quebradas, dos estupros, e das violências psicológicas. É preciso encarar o que o racismo tem provocado também em nossas entranhas. Há uma nova geração de feministas negras, a exemplo de Carla Ackotirene, que vem consolidando esse tipo de discussão. Mas penso que temos que adensar ainda mais esse debate.

Os dois intelectuais afirmam que a resistência negra, a capacidade de resistir e sobreviver, é um tesouro. Qual o seu ponto de vista sobre isso?
A resistência é o grande elo que unifica os personagens no filme, como metáfora para o que nos mobiliza como pessoas. É importante que nos apropriemos disso com orgulho. Somos frutos de uma gente que sobreviveu ao horror com altivez; que encarou chicote e revidou com guerra; que amou quando tudo era desilusão. Somos gente que cozinha com sobras e faz comida temperada; que engana a fome com sono; que insiste em sonhar em tempos de crise. Esse sentido da pertença tem de ser partilhado, cultivado, honrado. Steve Biko uma vez disse que “a gente está vivo e orgulhoso, ou está morto”. É dessa matriz do orgulho de ser quem somos sem reservas a que me refiro. Da resistência como fundamento da vida humana, que importa em especial às pessoas negras pelas condições precárias impostas pelo racismo. É isso, como pontuam Edson e Haile, o que nos mantém vivos, nos faz possibilidade constante, nos dá propósito pra seguir.

Por fim, a trilha sonora que acompanha seu filme fala do medo do espelho se quebrar. Você tem medo também? O que significa?
Essa música tem um significado forte pra mim. Me conecta aos meus avós, que já partiram. Diz de como a ancestralidade vive em nós; de como os legados se reproduzem; de como os espelhos são capazes de refletir memórias. Achei que era uma boa síntese do filme e estava à altura de Edson e Gerima, por inspirarem tantos e tantas a seguirem os caminhos do compromisso. É uma música que não só ilustra, mas diz, ela própria, dos horizontes esperançosos que orientam a caminhada das pessoas negras. Me toca, especialmente, a versão inédita que Cris Pereira fez para o filme, na releitura desse clássico de João Nogueira. Vale a pena conferir.

Poder econômico e corrupção: afinal, qual é a peculiaridade brasileira?

Por
Redação
-
20 de junho de 2017
'Que rumos daremos para as instituições políticas brasileiras de modo a mitigar o monopólio do poder econômico das grandes corporações e das famílias endinheiradas sobre o sistema político?' FOTO: EBC

O poder econômico e a corrupção política são faces de uma mesma moeda, a bem da verdade: o capitalismo acontece naquela antessala mal iluminada, em horários duvidosos, onde se encontram os donos do dinheiro e os donos do poder. A negociação de decisões do executivo, do legislativo ou do judiciário como barganha para interesses de grandes corporações, de conselhos administrativos e de empresários é a regra global e não a exceção brasileira.

Não haveria economia de mercado dos EUA à China, passando por Inglaterra, França, Alemanha, Rússia, Japão ou Coréia, sem que houvesse a imbricação entre interesses políticos e interesses empresariais, como, aliás, demonstram os grandes e recentes casos de corrupção na Siemens alemã, na Samsung coreana, na Alstom francesa, na BAE inglesa, na Weatherford suíça, para não mencionar os bancos norte-americanos e agências de classificação de risco que, com muitos desvios, propinas e ilícitos, provocaram a grande crise econômica de 2008, ou alguém imaginou que um país que elegeu Donald Trump como presidente seria um caso de capitalismo asséptico e de democracia auto-imune? Talvez nossos crédulos republicanos liberais nativos que tanto admiram os federalistas e os founding fathers norte-americanos tenham se deixado seduzir por esse engodo, mas ele pouco ajuda a compreender o caso brasileiro atual.

Noutras palavras, a mistura entre público e privado – ao contrário do que acredita parte do pensamento social e da opinião pública brasileira – não é uma peculiaridade nacional. Mas tal enunciação não deve servir para naturalizar ou para normalizar a corrupção no mundo e no Brasil, ela serve antes para colocar o debate em outro lugar, talvez, no seu devido lugar.

O escândalo provocado pelas delações de Marcelo Odebrecht e Joesley Batista não tratam apenas das relações entre a Odebrecht e a Petrobrás, ou entre a J&F e a CEF ou o BNDES, elas revelam problemas mais profundos e que são pouco observados tanto pelos operadores e entusiastas da Lava Jato quanto pela maior parte daqueles que fazem uma leitura crítica da Operação. Um ponto os une: a obsessão em resumir todo o problema brasileiro à famigerada questão do patrimonialismo. No Brasil esse conceito cria ares de família entre as mais variadas posições teóricas e colorações políticas[1]. Nada disso, vale explicitar em tempos de calores e polarizações políticas, ameniza ou absolve o escandaloso butim praticado pelo bando de Aécio, Temer et caterva. Mas a conjuntura desafia a reflexão, ao menos ela, a ir além da lama onde nos colocou essa quadrilha de saqueadores.

Entre nós o conceito de patrimonialismo virou uma espécie de “pau para toda obra” e a flexibilidade teórica chega a tal ponto que a ideia de patrimonialismo é tratada como mero sinônimo de patriarcalismo, de patronato, de privatismo, de clientelismo, de fisiologismo, de corporativismo, de mistura entre público e privado, e toda sorte de patologias que abatem nossa cultura política, em favor do conceito dão-se abraçaços conceituais para acolher e dilatar a ideia de que o Brasil é mesmo o país dos mal-feitos e do “jeitinho”, onde o capitalismo é mal-ajambrado e a democracia é um mal-entendido. A boa intenção em encontrar a tal singularidade brasileira esconde por trás de si a suposição de que em algum lugar do mundo exista um capitalismo puro e uma democracia ideal. Ledo engano.

Mas, se a corrupção não é exclusividade nacional, como entre nós ela tem criado tanto assombro? A nossa peculiaridade se encontra em outro lugar, não no problema, mas na falta de iniciativas concretas capazes de enfrentar o referido problema. O que se percebe em ao menos três aspectos fundamentais, que, infelizmente, tem sido negligenciados pelo debate público, quais sejam[2]:

  • A ausência de regulamentação do lobby; diante da falta de uma normatização clara sobre o que é permitido e o que é proibido no campo das relações público-privadas, as interpretações ficam a cargo das vontades e dos valores de procuradores, juízes e policiais de plantão, tudo agravado pela utilização indiscriminada das delações premiadas, dos acordos de leniência e dos vazamentos seletivos;
  • A possibilidade de que as doações de campanha sejam proporcionais às rendas e riquezas dos doadores. Esse tipo de jabuticaba só existe no Brasil, se não houver um teto universal para todos os doadores é evidente que os mais ricos sempre terão mais poder de decisão nessa democracia, ainda que como pessoas físicas, o que só reforça o surgimento de fenômenos como a ascensão de empresários na política;
  • A existência de uma cultura política fraca e de instituições políticas pouco sólidas, criando um clima muito favorável para a desqualificação e a criminalização da política em geral e para a construção de uma opinião pública muito suscetível ao moralismo e desejosa menos de justiça e mais de justiçamentos e linchamentos.

Em qualquer capitalismo mais organizado a mistura entre público e privado sofreu algum tipo de regulamentação mais contundente, no Brasil não, de forma que toda negociação passa a ser potencialmente tratada como relação espúria ou como crime, ao sabor do jogo de interesses do momento. Nesse ambiente, toda negociação, toda barganha, todo ajuste de interesses está passível de ser colocado numa sombra de avaliação moral, dando margens para perseguições políticas como a realizada pela Operação Lava Jato contra o PT e contra Lula.

É sintomático que as investigações tenham atingido outros partidos, como o PMDB e o PSDB, apenas quando a “delação preventiva” da J&F recorreu diretamente à PGR de Rodrigo Janot sem passar pela instância curitibana de Sérgio Moro. Ao realizar tal procedimento, evidentemente, para salvar a si próprio, à família e aos negócios privados, Joesley Batista revelou, ainda que indiretamente, os limites da Operação Lava Jato, parafraseando a expressão popular: o buraco é mais em cima. Os procuradores, juízes e policiais de Curitiba não tem um diagnóstico claro do problema que pretendem combater.

Passa ao largo da leitura desses jovens justiceiros elementos fundamentais para compreender e enfrentar a relação entre poder econômico e corrupção no Brasil: (i) historicamente, o arranjo institucional que permitiu o desenvolvimento da nossa economia se ancorou na articulação entre empresas estatais e empresas privadas; (ii) estruturalmente, o poder econômico monopoliza o sistema político em qualquer Estado-nacional relevante no sistema capitalista; (iii) dinamicamente, o poder econômico e o poder político são essencialmente interconectados, é possível melhorar a relação entre eles, mas não é possível isolá-los um do outro, ao menos não no capitalismo; (iv) tampouco se questionam que o comportamento político que está sendo investigado talvez seja a regra geral do sistema político e não a exceção partidária brasileira.

Entretanto, na concepção estreita e moralista dos operadores da Lava Jato, o problema da corrupção no Brasil é um mal recente, concentrado em pessoas más e antiéticas que precisam ser enfrentadas por pessoas boas e competentes. Tamanho reducionismo é risível, vexatório, e seria apenas uma piada de mau gosto se ele não tivesse se transformado no princípio que justifica a teoria do domínio do fato, a hipótese da flexibilização das provas, a priorização das convicções do MP sobre o direito de defesa de indiciados, e o expediente de se condenar acusados pela mídia antes do que pela própria justiça, tudo isso levado a cabo pela generalização da delação premiada, um instrumento propício para quem entende a corrupção como um problema pessoal ou moral e que vem substituindo a construção de outros mecanismos mais eficientes de combate à corrupção.

Com esse diagnóstico moralista e essa prática inquisitória a Operação Lava Jato cria um clima político instável, marcado ora pelo êxtase com a revelação da suposta verdade ora pela depressão com o desnudamento da realidade, enquanto isso ela coloca sob suspeita todas as instituições do país, o resultado em última instância tem sido o assombro e a desesperança da população com a política como um todo.

Em certa medida, os operadores da Lava Jato contam com a cumplicidade da opinião pública, que, se por um lado sempre desconfiou que as coisas funcionassem assim, posto que ela própria é dada aos pequenos delitos e ilícitos do cotidiano, por outro lado, ela ficou assustada e boquiaberta ao ver de forma nua e crua as entranhas “do sistema”. Aliás, enquanto a opinião pública não superar o choque do trauma e não der boas vindas ao deserto do real dificilmente nos recuperaremos de fato, e a avenida política seguirá aberta para outsiders de plantão e aventureiros de última hora.

A corrupção é um problema sistêmico que precisa ser enfrentado? Sim. Qualquer instrumento é válido para enfrentar a corrupção? Não. A Operação Lava Jato caminha na contramão da governança e da jurisprudência internacional e presta um desserviço ao Brasil jogando água no moinho daqueles que só repetem monotonamente feito uma cantilena: o Brasil é o país do patrimonialismo, onde o capitalismo não vingou. Não, o Brasil é um país capitalista como tantos outros, e se quisermos superar os reclamos e lamentos temos que enfrentar o choque de realidade que nos tem sido imposto pela conjuntura adversa e responder uma questão já enfrentada por outros países:

Que rumos daremos para as instituições políticas brasileiras de modo a mitigar o monopólio do poder econômico das grandes corporações e das famílias endinheiradas sobre o sistema político? Sobressaltos, moralismos e expedientes inquisitoriais não nos ajudarão nesse momento, isso a Operação Lava Jato já faz, assim como não nos ajudarão formulações genéricas sobre a democracia e platitudes etéreas sobre a falta do republicanismo brasileiro.

O tempo histórico exige mais do que pudemos oferecer até agora, exige medidas concretas de reconstrução e aperfeiçoamento das nossas instituições em outros patamares, sem regular e regulamentar a sanha do poder econômico e o assanhamento do poder político seguiremos aos tropeços, enfrentando golpes, rupturas constitucionais e quebras de pactos sociais.

*  William Nozaki é cientista político, economista e professor da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo

[1] A crítica contra o uso generalizado e indiscriminado do conceito de patrimonialismo pode ser encontrada em: Souza, Jessé. A tolice da inteligência brasileira. São Paulo: Leya, 2015.

[2] Essa problematização pode ser encontrada de forma mais aprofundada em: Reis, Bruno. A Lava-Jato é o Plano Cruzado do combate à corrupção. Disponível em:< http://novosestudos.uol.com.br/a-lava-jato-e-o-plano-cruzado-do-combate-a-corrupcao/>.

 

Sidney Chalhoub: “A meritocracia é um mito que alimenta as desigualdades”

Por
Redação
-
9 de junho de 2017
Sidney Chalhoub
Sidney Chalhoub
  • André Sampaio

Ao aprovar o princípio das cotas étnico-raciais, a Unicamp se alinhou às grandes universidades do mundo, como Harvard, Yale e Columbia, que adotam a diversidade como critério para o ingresso de seus estudantes. O pressuposto dessas instituições é que a diversidade melhora a qualidade. A afirmação é do historiador Sidney Chalhoub, professor titular colaborador do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp e docente do Departamento de História da Universidade de Harvard (EUA). Na entrevista que segue, concedida ao Jornal da Unicamp, Chalhoub salienta a importância das ações afirmativas como mecanismo de reparação e promoção de justiça social e contesta argumentos utilizados pelos críticos das cotas, como a necessidade de preservar a meritocracia. “A meritocracia como valor universal, fora das condições sociais e históricas que marcam a sociedade brasileira, é um mito que serve à reprodução eterna das desigualdades sociais e raciais que caracterizam a nossa sociedade. Portanto, a meritocracia é um mito que precisa ser combatido tanto na teoria quanto na prática. Não existe nada que justifique essa meritocracia darwinista, que é a lei da sobrevivência do mais forte e que promove constantemente a exclusão de setores da sociedade brasileira. Isso não pode continuar”, defende.

Jornal da Unicamp – Quem tem medo das cotas étnico-raciais?

Sidney Chalhoub – Quando esse assunto começou a ser discutido no Brasil, ainda nos anos 1990, houve uma resistência grande entre intelectuais e acadêmicos que consideravam que a adoção desse sistema provocaria tensões raciais na sociedade brasileira. No entanto, o que se viu, conforme essas políticas foram sendo adotadas, primeiro isoladamente por algumas universidades estaduais, e depois em várias universidades federais, até que uma legislação federal sobre o assunto fosse aprovada, foi que as cotas foram muito bem acolhidas no interior das instituições. Hoje, o que se vê na Unicamp é a defesa das cotas pelo movimento estudantil. A defesa não está restrita ao movimento negro. A partir das experiências das universidades estaduais e federais, houve o entendimento de que a diversidade do corpo discente contribui para a qualidade acadêmica e para a produção de conhecimento nas universidades. Os que têm medo das cotas são os setores que têm tido acesso às universidades públicas e gratuitas como uma prerrogativa sua, de muitas décadas. São pessoas que vão a escolas particulares porque têm maior poder aquisitivo e que defendem a exclusividade de acesso à universidade pública, gratuita e de qualidade. Esta é uma distorção grande na sociedade brasileira.

Entretanto, não é possível generalizar. Hoje você tem um contingente grande de estudantes da Unicamp que são brancos e de classes favorecidas e que também entendem a importância das cotas para promover a diversidade no corpo discente e para promover diferentes perspectivas a respeito dos assuntos abordados pela universidade. Esse novo contingente de alunos colocará em cheque vários hábitos da universidade. Vai forçar um questionamento a respeito da importância da existência da universidade pública, a quem ela deve servir e que tipo de conhecimento ela deve produzir. Essa experiência é muito bem-vinda. A resistência às cotas é mais barulhenta que generalizada. O país convive bem com a ideia das cotas. O engajamento dos estudantes da Unicamp em geral mostra a receptividade à ideia. As pesquisas de opinião mostram que a maior parte da população brasileira é favorável às políticas de ação afirmativa e o próprio Supremo Tribunal Federal aprovou por unanimidade a necessidade dessas políticas para combater o racismo e as consequências dele na sociedade brasileira.

JU – O princípio das cotas é um tema novo?

Sidney Chalhoub – Não. O tema está longe de ser uma originalidade brasileira. As melhores universidades do mundo, aquelas que a própria Unicamp utiliza como referência para qualificar suas atividades, adotam a diversidade no ingresso dos estudantes há bastante tempo. Harvard, Yale e Columbia, para ficar em três exemplos, adotam políticas agressivas de promoção da diversidade do corpo discente. Não fazer isso deixaria a Unicamp na contramão da história. A decisão do Conselho Universitário em aprovar o princípio das cotas foi muito bem-vinda.

JU – Correntes contrárias às cotas étnicos-raciais argumentam que esse tipo de política pode comprometer a qualidade do ensino, ao permitir o ingresso de estudantes “despreparados” na vida acadêmica. Como o senhor analisa esse tipo de justificativa?

Sidney Chalhoub – A primeira observação a respeito disso é que, como mencionei anteriormente, o pressuposto das grandes universidades do mundo é que a diversidade melhora a qualidade. Obriga a um contraste de pontos de vista. Enquanto a universidade existe como prerrogativa de uma mesma classe social, de uma mesma raça e dos mesmos setores, ela não se abre ao tipo de questionamento e de tensões que são criativas, oriundas da necessidade da convivência de grupos sociais e raciais com perspectivas diferentes. O segundo ponto é que, na prática, todas as pesquisas existentes demonstram claramente que o desempenho dos estudantes cotistas é igual ou superior ao desempenho dos não cotistas nas universidades estaduais e federais que adotaram esse tipo de política afirmativa. Isso é fácil de entender.

Ao contrário da propaganda maldosa que se faz, a adoção de cotas não tem nada a ver com a exclusão do mérito. Tem a ver com a utilização de critérios de seleção que promovam a competição entre estudantes que tiveram oportunidades educacionais semelhantes até o momento em que se candidatam ao ingresso na universidade. Dessa forma, os estudantes negros e indígenas que serão selecionados representarão uma fração dos que postularam uma vaga na universidade. Serão, portanto, os melhores entre eles. A tendência é que sejam ótimos alunos, tanto quanto os não cotistas. Por fim, a universidade evidentemente tem o desafio de lidar com eventuais dificuldades que existam entre os estudantes de modo geral. Tanto as dificuldades de origem socioeconômica quanto as acadêmicas e pedagógicas. Nada disso impede, porém, que a apolítica de cotas seja implementada. Essa é uma dívida das universidades públicas em relação à população afrodescendente. Obviamente, os programas de permanência estudantil são tão importantes quando a criação de oportunidades de ingresso. Esse é um desafio que a Unicamp terá que enfrentar.

JU – Numa das audiências públicas promovidas em 2016 pela Universidade para discutir o princípio das cotas, um professor universitário de origem indígena disse que os indígenas não querem mais ser apenas estudados pela academia. Eles também querem contribuir para a construção da ciência…

Sidney Chalhoub – Esses novos sujeitos que ingressam na universidade representam um deslocamento importante de negros, indígenas e populações pobres, que são objeto de estudos da academia, mas que raramente têm a oportunidade de se tornarem sujeitos do conhecimento. Isso também é uma experiência fundamental e epistemológica. Isso descentraliza o conhecimento e permite que perspectivas diferentes passem a fazer parte do cenário das universidades. Um assunto no qual a universidade é bastante carente diz respeito a uma reflexão conjunta sobre que tipo de conhecimento ela deve produzir e para quem são esses conhecimentos.

Será que o conhecimento que a universidade produz na área de energia, por exemplo, deve estar voltado às necessidades do mercado ou deve priorizar as necessidades de preservação do planeta? Até que ponto os conhecimentos gerados na área médica priorizam o bem-estar do conjunto da sociedade? O conhecimento de ponta pode ser produzido em várias frentes. A escolha de que frentes serão priorizadas é uma questão que precisa ser politizada na universidade. Não se pode partir do pressuposto de que o conhecimento deve necessariamente atender às necessidades do mercado. É preciso haver debate a respeito dos motivos pelos quais a instituição deve investir nesta ou naquela frente. Na minha opinião, o critério fundamental é produzir o bem-estar social. Esse é um tema que a universidade discute pouco.

JU – O senhor mencionou a questão do mérito numa resposta anterior. Correntes contrárias às cotas alegam que o modelo desconsidera a meritocracia, o que geraria injustiças. O que o senhor pensa a respeito desse tipo de argumento?

Sidney Chalhoub – O fundamental é questionar a ideia da meritocracia como um valor abstrato universal, que justifique a existência de alguma medida comum da aptidão e de inteligência da humanidade. Fica parecendo que a meritocracia partiu de uma definição abstrata, excluída das circunstâncias sociais e materiais de vida das pessoas. A universidade, sendo pública, é da sociedade inteira. O ideal seria que todos aqueles que tivessem condições intelectuais e interesse em entrar na universidade, obtivessem uma vaga. Como não há nenhuma perspectiva de que nossos políticos priorizem o acesso ao ensino universitário, é preciso fazer algum tipo de seleção. A seleção deve fazer com que a sociedade esteja representada no corpo discente da universidade. Não se pode ter somente uma determinada raça ou classe social na universidade.

Já que o ingresso não pode ser da maneira universal, que a sociedade esteja presente, então, por meio da representatividade. Esse foi o princípio aprovado pelo Consu. Não é possível que todos os candidatos entrem em competição pelas vagas como se tivesse havido uma igualdade ideal de oportunidade entre eles. Não se pode fazer com que o aluno negro, pobre e que estudou numa escola pública localizada na periferia de Campinas concorra em igualdade de condições numa prova padronizada com alunos cujos pais cursaram universidade, têm alto poder aquisitivo e tem alto acesso ao capital simbólico. É preciso que a universidade busque equilibrar essa disputa.

Desse modo, quando há reserva de vagas para negros e pessoas de baixa renda, a competição se dá entre eles, entre iguais. Então, não há exclusão do mérito. É uma maneira de ter o mérito qualificado pelas condições sociais e econômicas dos candidatos, e não uma competição que exclui alguns segmentos da sociedade desde sempre. Então, a ideia da meritocracia como valor universal, fora das condições sociais e históricas que marcam a sociedade brasileira, é um mito que serve à reprodução eterna das desigualdades sociais e raciais que caracterizam a nossa sociedade. Portanto, a meritocracia é um mito que precisa ser combatido tanto na teoria quanto na prática. Não existe nada que justifique essa meritocracia darwinista, que é a lei da sobrevivência do mais forte e que promove constantemente a exclusão de setores da sociedade brasileira. Isso não pode continuar.

JU – As cotas étnico-raciais constituem uma política de reparação ou de justiça social?

Sidney Chalhoub – As duas coisas. Se você pensar na história de São Paulo, onde a Unicamp está localizada, a prosperidade do Estado, principalmente a partir da expansão do café, na década de 30 do Século XIX, se deu por meio de duas ilicitudes praticadas pela classe proprietária de maneira abusiva durante décadas. Ela se beneficiou do contrabando de africanos. A lei brasileira de 7 de novembro de 1831 havia proibido o tráfico africano de escravos, mas a propriedade cafeicultora fluminense e paulista se formou por meio da continuidade do tráfico. Um contingente formado por 750 mil africanos foi trazido ao Brasil ilegalmente, em condições desumanas. Esses negros foram escravizados e seus descendentes também. Além disso, a formação da grande propriedade cafeicultora ocorreu através de invasão das terras. Trabalho e terras foram obtidos pela classe dominante ao arrepio da lei. Portanto, a reparação é uma questão que deve ser levada a sério. Se não for levada a sério do ponto de vista legal, que pelo menos seja levada a sério sob o aspecto da promoção de uma justiça social que é devida a essa população cuja presença no país se deu por meio de crimes cometidos pelos cafeicultores.

No caso de São Paulo, também se adotou políticas afirmativas em favor de imigrantes. No final do Século XIX, foram adotadas políticas para subsidiar a imigração de europeus brancos, italianos inicialmente. A vinda desses imigrantes era subsidiada pelo tesouro da Província de São Paulo e depois pelo Estado de São Paulo, o que favoreceu a adaptação dessas pessoas ao país. Tratou-se de uma política de inclusão social que jamais existiu para a população negra até recentemente. Portanto, já houve no Brasil a adoção de política de ação afirmativa para brancos europeus e seus descendentes. Dessa maneira, não há nada demais que se veja como reparação as políticas de cotas para negros e indígenas.

Além disso, é importante pensar que, no caso da população negra, quando houve uma aceleração no processo de emancipação escrava, nas duas últimas décadas da escravidão, ocorreu uma mudança na lei eleitoral, em 1881, que proibiu o voto de analfabetos, o que não existia antes. Isso, numa situação em que não havia escola primária para negros. Devido à falta de acesso à instrução, nas primeiras décadas após a emancipação, a população negra ficou excluída da política formal. Esse foi outro movimento importante de desvantagem dessa população na luta por direitos na história do país. Eu entendo que as pessoas esbravejem quando perdem privilégios. Mas as razões históricas, sociais e filosóficas em favor das cotas justificam plenamente a medida. Não há futuro possível com esse perfil de desigualdade se reproduzindo ao longo do tempo. É uma missão de todos superar essa desigualdade.

JU – Aproveitando essa reflexão, o quão prejudicial tem sido para o Brasil essas posturas vinculadas à nossa herança escravocrata?

Sidney Chalhoub – Quando as pessoas se espantam ao constatar que a corrupção no Brasil está tão generalizada, isso é pura ignorância histórica. Como eu citei, o maior exemplo de corrupção na história do país talvez tenha sido a importação ilegal de centenas de milhares de trabalhadores por meio do tráfico africano. Isso no período de formação do Estado nacional, nas décadas de 20 e 30 do Século XIX. Esse Estado se organizou em grande medida para defender os interesses dos contrabandistas e dos cafeicultores. A corrupção está no cerne da formação do Estado brasileiro. Qualquer solução simplista e messiânica para esse problema não faz sentido. É preciso reconhecer a complexidade da questão, o que pode levar a sociedade brasileira a superar essa corrupção crônica que existe no país. Isso tem a ver com a escravidão. A escravidão foi, insisto, a pedra de toque da formação do Estado nacional. A corrupção é capilar na sociedade brasileira e essa capilaridade esteve ligada à própria escravidão no Século XIX.

JU – No contexto da aprovação do princípio das cotas étnicos-raciais, a Unicamp anunciou a criação da Secretaria de Ações Afirmativas, Diversidade e Equidade. Qual a importância dessa instância para promover a reflexão sobre esses aspectos que o senhor abordou?

Sidney Chalhoub – As cotas vão envolver muitas coisas. Vão envolver mudanças curriculares, para que as disciplinas ligadas à história do racismo e do pensamento negro e indígena sejam disseminadas, de maneira que se reconheça a densidade desse tipo de conhecimento. Há uma série de movimentos que apontam para uma receptividade em relação às cotas. Mas é preciso ser vigilante. Haverá tentativas de fraudes no vestibular. Haverá tentativa de agressões gratuitas, como a do professor da Medicina, que felizmente não representa o pensamento da comunidade da faculdade. É preciso ter acompanhamento desses assuntos. É preciso acolher os ingressantes, oferecer condições para que a inclusão ocorra de fato e fazer com que o conhecimento que essas pessoas trarão à universidade seja reconhecido e disseminado. Tudo isso exige um acompanhamento próximo. Desse modo, a criação da secretaria, que terá essa atribuição, é bem-vinda.

O Brasil está pronto para as cotas. A Unicamp está pronta, sim, para adotar as cotas. E a comunidade está mobilizada nesse sentido. Acho que a nova gestão da Reitoria, que herdou a discussão da gestão anterior, começa muito bem, inclusive para tentar assegurar a governabilidade num momento difícil da universidade, ao abraçar uma causa que é bastante popular entre os estudantes, funcionários e grande parte dos docentes. O Consu, que é o parlamento da universidade, já aprovou. Resta aplicar a política da melhor forma possível e assegurar a permanência estudantil. Daqui a poucos anos, teremos finalmente médicos, engenheiros, físicos, historiadores e biólogos de alto nível formados numa das melhores universidades do país. Pessoas que servirão de exemplo e inspiração para a transformação da sociedade brasileira em uma sociedade racialmente mais justa.

Leia mais sobre: A elite intelectual teve de dividir seus privilégios

Texto publicado originalmente pelo Jornal da Unicamp

Tragicomédia russa

Por
Redação
-
27 de maio de 2017
Foto: Bruno Alfano
Foto: Bruno Alfano
  • Laíssa Barros

Quem nunca viveu uma história que daria um filme? Os dias tragicômicos vividos pela atriz Martha Nowill no auge do inverno de Moscou de 2009 não só dariam como se transformaram em Vermelho Russo, longa-metragem que chega hoje aos cinemas.

Muita vodka, risadas, perrengues e choradeiras aconteceram durante a viagem que Martha fez a Rússia para estudar a famosa técnica Stanislavski de interpretação. Ela escreveu em um diário, que acabou virando a gênese do roteiro do filme, as situações, os dramas e surrealidades que vivenciou em uma das cidades mais peculiares do mundo.

No filme, em meio à neve ela chega a Academia Russa de Arte Teatral junto com uma amiga, a também atriz, Manu (Maria Manoella, com quem Martha foi, de fato, fazer o curso na Rússia) sem saber falar uma vírgula do idioma local. As duas em busca de se reinventarem na profissão vão fazer as aulas do método com um professor rígido (Vladimir Poglazov), que, com a ajuda de uma interprete, corrige e crítica quase todos os passos das duas atrizes e dos demais colegas de classe. Além da dupla, o filme conta com as participações de Michel Melamed, Soraia Chaves e Esteban Feune de Colombi.

Constantemente testadas pelo professor, desapontadas e com muito frio, as duas refletem sobre as dificuldades da profissão, os caminhos que escolheram e a amizade uma da outra, que ao longo do filme é testada e extrapolada por muitas vezes.

Com direção de Charly Braun, que também assina o roteiro, Vermelho Russo acaba sendo um misto de ficção e documentário, onde o diretor abusa da fotografia lindíssima de uma Moscou cheia de luzes, neve e arquitetura histórica, ao mesmo tempo em que segue as atrizes com uma câmera documental muito próxima, principalmente no momento de suas aulas, dentro de seus quartos e, até mesmo, no meio de suas brigas.

O frio deve ter impedido, claro, a vivência das atrizes fora dos espaços fechados, faltam mais cenas e imagens da cidade que não sejam da escola, dormitório, restaurantes e metrôs. Mas, ao mesmo tempo, ele amplia o sentimento de clausura diante da temperatura. Condição que intensifica os sentimentos de medo, busca e fuga que, por vezes, rodeia as duas atrizes. Nos vemos em um divertido caleidoscópio de possibilidades tentando descobrir o que elas teriam vivido realmente em 2009 e o que seria ficção para o filme de 2017.

Nessa “montanha russa”, os dias passam rapidamente e um misto de felicidade e infelicidade visitam Martha e Manu: seja em um raro elogio do professor, em um bate-boca, em encontros com atores aposentados que se refugiam nos dormitório da Academia Russa de Arte Teatral, nas situações hilárias que vivem por não entenderem a língua ou nas singularidades de um povo com uma cultura bem diferente da nossa, até mesmo na forma de atuação teatral.

Com esse cruzamento improvável de frivolidade e profundidade, Vermelho Russo fala sobre os dias que se movem, sobre nossos olhos diante das novidades e das diferenças, de teatro e da busca eterna por sentimentos, afirmações e conexões com o que fazemos em nossas vidas.

Foto: Bruno Alfano
Foto: Bruno Alfano
Foto: Bruno Alfano

Governo federal cobra investigação de mortes de trabalhadores rurais

Por
Redação
-
25 de maio de 2017
Foto- EBC
Foto- EBC
  • André Sampaio

A procuradora federal dos Direitos do Cidadão, Deborah Duprat, está no Pará e integra uma missão federal que busca informações sobre a investigação a respeito da morte de 10 pessoas que ocupavam uma fazenda em Pau D’Arco, no sudeste do estado, ocorrida na manhã de ontem (24). O presidente do Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH), Darci Frigo, e um representante da Defensoria Pública da União também integram a comitiva que sobrevoou a área antes de pousar em Marabá, a cerca de 300 quilômetros do local da chacina, onde se encontram os corpos das vítimas.

Segundo a Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social do Pará, as mortes ocorreram durante uma ação policial para cumprimento de 16 mandados judiciais de prisão preventiva, temporária e de busca e apreensão determinada pela Vara Agrária de Justiça de Redenção. Ainda de acordo com a secretaria, os policiais militares e civis foram recebidos a tiros. Nenhum policial, no entanto, foi ferido. Entre os posseiros mortos, há nove homens e uma mulher. Há ainda relatos de que vários posseiros foram feridos durante a ação policial.

A missão do Conselho Nacional dos Direitos Humanos tem o objetivo de acompanhar a perícia e exigir celeridade na investigação e responsabilização dos culpados. As mortes ocorrem um dia após o conselho, órgãos públicos e organizações sociais realizarem um ato contra a violência no campo, em Brasília. De acordo com a Comissão Pastoral da Terra (CPT), no ano passado, foram registrados 61 assassinatos em conflitos no campo, o pior resultado desde 2003. Este ano, o total de mortes no campo já chega a 36 – incluídos os 10 casos de ontem (24).

Segundo a Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar do Estado do Pará (Fetraf), o caso da Fazenda Santa Lúcia, em Pau D’Arco, só perde em número de mortos para o episódio que ficou conhecido como Massacre de Eldorado do Carajás, em 17 de abril de 1996, quando 19 trabalhadores foram assassinados.

De acordo com a Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social, os 16 mandados de prisão foram resultado de uma investigação sobre uma suposta tentativa de homicídio. As vítimas da tentativa de homicídio seriam parentes do dono da fazenda e um funcionário de uma empresa de segurança que trabalhava para o dono da propriedade.

A Polícia Civil apreendeu 11 armas de grosso calibre no local, incluindo um fuzil 762 e uma pistola Glock modelo G25. A secretaria informou que o governo estadual enviou para o município de Pau D’Arco uma equipe especial para intensificar as investigações e reforçar a segurança na região da Fazenda Santa Lúcia.

Para que tenhamos novos Antonios Candidos

Por
Redação
-
19 de maio de 2017
Antonio Candido
Antonio Candido
  • Laíssa Barros

As ciências humanas e sociais no Brasil experimentam hoje uma situação paradoxal. De um lado, nunca se produziu tanto conhecimento acadêmico em nosso país, sobretudo no formato de artigos em revistas científicas; do outro, estamos lendo cada vez menos sobre temas fora das nossas confortáveis especialidades, e talvez nunca tenhamos sido tão carentes como agora de intelectuais de ampla erudição. A perda do grande Antonio Candido, que nos deixou no último dia 12 de maio, desnuda claramente esse paradoxo. Onde estão os nossos Cândidos contemporâneos? O que explica essa aparente contradição? Seria apenas consequência de uma inevitável especialização intelectual e do enorme avanço dos meios de disseminação e armazenamento de informação? Em parte, sim. Atualmente, tornar-se especialista de qualquer coisa demanda um esforço hercúleo para ler tudo o que se produziu e se produz em determinados assuntos, e analisar as diversas (e cada vez mais infinitas) fontes primárias disponíveis. No entanto, há um outro lado dessa história, a meu ver igualmente responsável pela situação em que nos encontramos: a crescente e angustiante pressão produtivista.

A estrutura de incentivos da academia brasileira em ciências humanas e sociais está totalmente dependente de índices quantitativos de produção, sobretudo publicação de artigos em revistas acadêmicas, reproduzindo acriticamente estruturas advindas das ciências exatas e naturais. Para qualquer coisa que queiramos fazer, de pedidos de auxílio de pesquisa à progressão na carreira profissional, da solicitação de bolsas para alunos à manutenção de vínculo em programas de pós-graduação, tudo passa pela questão da produtividade. Nada mais importa. Qualidade das aulas, participação em debates públicos, atividades de extensão universitária, coordenação de grupos de estudo tornaram-se secundários. No grande Big Brother acadêmico que virou a Plataforma Lattes (portal público de currículos acadêmicos do Brasil), professores e estudantes só olham uma coisa: número de artigos publicados. Até mesmo livros (sic) estão ganhando reputação de produção inferior quando comparados a “papers”.

Essa rápida e grande mudança da academia brasileira, que basicamente ocorreu nas últimas duas décadas, provou que acadêmicos em ciências humanas e sociais do nosso país (eu incluso) respondem muito bem a incentivos. Em menos de uma geração, a tendência a uma reflexão cuidadosa, crítica e profunda de diversas questões, que desaguavam na produção de poucos (mas muito substantivos) resultados intelectuais, especialmente livros, deu lugar a uma frenética e periódica produção de artigos científicos, muitos dos quais fruto de pesquisas em estágios iniciais e que, em vários casos, precisavam de maior maturação para ir para o papel. Como não temos tempo a perder, porém, hoje mais importante do que publicar algo relevante é simplesmente publicar. Muitos chegam a dizer que, para sobreviver na academia, temos que ter “estratégia de publicação”. Inverteu-se a lógica: ao invés de a produção científica ser resultado natural de indagações e inquietações acadêmicas (ou, se preferirem, de uma “estratégia de pesquisa”), está se tornando cada vez mais comum a decisão de formular projetos e participar de núcleos de pesquisa a partir de seu potencial para gerar a maior quantidade possível de publicações, independentemente do conteúdo. Ao fazer isso, tomando-me de metáfora formulada por uma grande colega, professa Rossana Reis (FFLCH-USP), tenho a sensação de que estamos caminhando felizes para a câmara de gás: quanto mais produzimos e quanto menos refletimos sobre o que estamos produzindo, mais munição estamos dando para aqueles que advogam a inutilidade de nossas funções perante à sociedade.

Essa estrutura de incentivos produtivista também está desnudando e potencializando práticas no mínimo questionáveis na academia – quando não antiéticas. Dois exemplos emblemáticos são a explosão de coautoria em textos científicos e a publicação de artigos em revistas predatórias (isto é, periódicos que publicam qualquer coisa em troca de pagamento). A questão da coautoria é algo muito complexo e que demandaria mais espaço para ser discutida com propriedade. Coautoria em si não é problema algum: pelo contrário, dada a crescente interdisciplinaridade e especialização acadêmicas, a possibilidade de publicar trabalhos em conjunto é um mecanismo importantíssimo para viabilizar determinadas empreitadas intelectuais. O problema é a disseminação da prática (muito difícil de provar, mas que todos sabem que ocorre, e em intensidade cada vez maior) da coautoria fantasma. Isto é, acadêmicos que pouco ou nada colaboraram para a produção de um determinado artigo aparecem como autores desses trabalhos, seja devido a uma troca de favores (eu ponho seu nome no meu artigo e você põe o meu nome no seu), seja por assimetria de poder (patrimonialismo, clientelismo e relação de dominação orientador-orientando).

O fenômeno das publicações entre orientador e orientando, em especial, constitui um problema gravíssimo. De novo: não há problema algum de orientadores e orientandos redigirem um artigo em conjunto. A questão é que está virando normalidade orientadores colocarem seus nomes em artigos de orientandos apenas por terem supervisionado esses trabalhos – algo que, ao menos nas ciências humanas e sociais, nunca foi prática corrente. Se o pré-requisito fundamental para obtenção do título de mestre ou doutor é o fato de candidatos serem capazes de apresentar à comunidade científica um trabalho individual, como se explica o fato de, magicamente, aparecem artigos, resultados diretos de teses e dissertações (em andamento ou finalizadas), com o nome do orientando e do orientador como coautores? De duas uma: ou o orientando não fez o trabalho sozinho – e, logo, a defesa da tese ou dissertação teria constituído em uma fraude –, ou o orientador colocou seu nome no artigo do aluno sem ter sido autor de fato, o que perfaz coautoria fantasma.

Tão grave quanto práticas antiéticas de coautoria é a disseminação de publicações pagas em revistas internacionais. Sob a falsa justificativa de que com a cobrança de taxas se estaria garantindo acesso aberto a artigos – algo que ocorre, de fato, com periódicos respeitáveis em ciências exatas e naturais, mas não em ciências humanas e sociais –, algumas revistas internacionais publicam qualquer coisa, literalmente, em troca de dinheiro. Para incentivar o maior número possível de submissões em todas as áreas do conhecimento, muitas dessas revistas possuem os títulos mais amplos, vazios e esdrúxulos possíveis, como International Review of Basic and Applied Sciences, International Review of Social Sciences and Humanities , e International Science and Investigation Journal (uma lista recente das principais editoras e revistas predatórias pode ser encontrado aqui: http://beallslist.weebly.com). A ânsia produtivista e pró-internacionalização vem empurrando alguns acadêmicos a procurar esse tipo de publicação, mesmo sabendo que tais revistas e editoras serão necessariamente mal classificadas por órgãos federais de ensino, como a CAPES. O pensamento é: melhor publicar algo, mesmo que em revistas predatórias, ainda mais se for em inglês, do que não publicar nada. Como consolação para as muitas e muitos na academia que são obrigados a conviver com essas práticas e ficam indignados com o fato de que essas ações antiéticas muitas vezes dão resultados (bolsas, prestígio, cargos, poder), lembremos que toda publicação permanece para a posteridade. O tempo é o melhor dos juízes para transformar em pó a reputação de acadêmicos sem escrúpulos.

Temos todas as condições de produzir novas e novos Antonios Candidos, Celsos Furtados, Florestans Fernandes e Darcys Ribeiros, mas isso não será possível se continuarmos trilhando o mesmo caminho. Precisamos debater urgentemente formas alternativas (e necessárias) de prestar contas à sociedade e à comunidade científica que não estejam baseadas simplesmente na produção quantitativa de artigos. Recuperar a liberdade, a tranquilidade e o tempo de pensamento deve ser nossa principal bandeira. Que a perda de Antonio Candido nos estimule a refletir sobre novos caminhos.

*Felipe Loureiro é Professor, Instituto de Relações Internacionais, USP

A derrocada da ciência brasileira

Por
Manuela Azenha
-
19 de maio de 2017
Foto- Monique Oliveira
Foto- Monique Oliveira

A comunidade científica enfrenta um período de trevas. O governo afiou a tesoura e cortou 44% do orçamento do MCTIC (Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovação e Comunicação) em março. Dos R$ 5 bilhões previstos para 2017, R$ 2,2 bilhões estão contingenciados: ou seja, o dinheiro “até existe”, mas ninguém pode gastar.  O corte vai render para 2017 o título do pior orçamento em ciência nos últimos 12 anos.

A tesoura tem um porquê, justifica o governo. O PIB caiu 3,6% em 2016 e chegamos à pior recessão da história. Quando os ministérios da Fazenda e do Planejamento divulgaram que o rombo público seria ainda maior que o previsto inicialmente, quase todas as pastas passaram por cortes para tentar segurar o déficit. A meta era cortar R$ 42,1 bilhões (28%) de onde desse. Só o Ministério da Saúde ficou de fora.

O problema, argumenta a comunidade científica, é que a ciência já vinha sofrendo cortes “generosos” nos últimos anos. Em 2013, o orçamento era de R$ 10,2 bilhões e foi sendo re­du­zido progressivamente até chegar aos R$ 2,8 bilhões de hoje (ou R$ 3,2 bilhões, se contados recursos de outras iniciativas de ciência atreladas ao PAC – Programa de Aceleração do Crescimento). Soma-se a isso o fato de que a ciência já tem um orçamento bem menor se comparado ao de outras áreas. O setor consome cerca de 1% do PIB, enquanto o gasto com saúde fica em torno de 8%. Para completar, tivemos a fusão do ministério com a pasta de Comunicação na era Temer.

“Resultados exemplares, como o aumento em quatro vezes da produtividade da agricultura, a melhoria da exploração de petróleo em águas profundas ou ainda o enfrentamento de epidemias emergentes… tudo isso está ameaçado.”

Luiz Davidovich, presidente da ABC (Academia Brasileira de Ciências)

Diante do cenário, cientistas estão boquiabertos. “Olha… a situação é grave, muito grave”, desabafa Helena Nader, presidente da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência). “É aquela imagem de alguém se afogando e chega uma mão para afundar ainda mais”, diz Marcos Barbosa, professor de Filosofia na USP. “Os cortes ameaçam o futuro do País”, diz Luiz Davidovich, presidente da ABC (Academia Brasileira de Ciências).

A Brasileiros perguntou ao MCTIC qual a perspectiva para o ano diante dos cortes. A resposta oficial é que a pasta tenta negociar para recuperar o orçamento. O que se comenta nos bastidores, contudo, é que isso dificilmente ocorrerá. Resta aos cientistas chamar a atenção para o impacto da tesoura: os cortes afetarão a formação de pesquisadores de todo o País; paralisarão laboratórios por falta de insumos e de materiais; impedirão pagamentos de projetos de pesquisas já aprovados; e dificultarão medidas implementadas de internacionalização da ciência brasileira. “Resultados exemplares, como o aumento em quatro vezes da produtividade da agricultura, a melhoria da exploração de petróleo em águas profundas ou ainda o enfrentamento de epidemias emergentes… tudo isso está ameaçado”, alerta Davidovich.

Marcha pela ciência: Annelise Frazão, doutoranda da USP, e Thais Guedes, pós-doutora em Biologia, no Largo da Batata, em São Paulo. “A gente não pode tapar o sol com a peneira. Temos que discutir e mostrar o que está acontecendo, independente do partido. Devemos discutir com a população os problemas”, diz Annelise. Foto: Monique Oliveira
Marcha pela ciência: Annelise Frazão, doutoranda da USP, e Thais Guedes, pós-doutora em Biologia, no Largo da Batata, em São Paulo. “A gente não pode tapar o sol com a peneira. Temos que discutir e mostrar o que está acontecendo, independente do partido. Devemos discutir com a população os problemas”, diz Annelise. Foto: Monique Oliveira

Os cortes em ciência também chegam em um momento em que fundações estaduais de apoio à pesquisa passam por dificuldades. Essas entidades, que financiam pesquisas e bolsas de pós-graduação, também enfrentam as crises dos Estados e a recessão. A Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa no Estado de São Paulo), a mais rica fundação do País, fica com 1% das arrecadações tributárias em São Paulo. Em janeiro, no entanto, deputados redirecionaram R$ 120 milhões da entidade para institutos de pesquisa. Foi a primeira vez que a Fapesp ficou com um orçamento abaixo do previsto por lei desde a sua criação em 1960.

No Rio, a situação da Faperj (Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro) é tão grave que há atraso no pagamento de bolsas. “É uma perda grande porque esses alunos sobrevivem disso”, diz Tatiana Roque, professora da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro). “No Rio, formamos uma rede para estudo do Zika em todas as frentes, mas tudo está parado.”

Também cerca de 70% da ciência brasileira é feita dentro das universidades públicas do País – e elas estão em crise. A situação na Uerj (Universidade Estadual do Rio de Janeiro) chegou a tal ponto que em janeiro a reitoria avisou o governo que a universidade poderia fechar. Na USP, uma intensa política de demissões voluntárias abalou o funcionamento de vários serviços da universidade e a creche foi fechada. O atual reitor, Marco Antonio Zago, estabeleceu um teto para os gastos. A medida foi apelidada de “PEC do fim da USP”.

Com tudo isso, o consenso é de que o cenário não só afeta o momento presente e o futuro: ele inutiliza o investimento já feito. Para os pesquisadores, enquanto o País se perde em meio à visão estreita do ajuste, o atraso social e científico não será recuperado facilmente. “O Brasil corre o risco de perder a competência construída ao longo de muitas décadas”, diz Davidovich.

Enquanto a tônica por aqui é segurar o orçamento em tempos de crise, a SBPC e a ABC sustentam que outros países têm visões opostas. A União Europeia, por exemplo, tem a meta de aplicar 3% do PIB em ciência até 2020. A China quer chegar a 2,5% do PIB. Coreia do Sul e Israel investem mais que 4% do PIB. “Ciência é desenvolvimento. A cada US$ 1 aplicado em ciência, retornam US$ 7”, alerta Helena.

“Eu acho os cortes abusivos e por isso estou aqui. As sociedades são dependentes de ciência em todos os sentidos e, por isso, você tem que ter um Ministério que dê prioridade à ciência, que confira uma maior diversidade à pesquisa.” Mariana Stanton, 32, bióloga. Foto: Monique Oliveira
“Eu acho os cortes abusivos e por isso estou aqui. As sociedades são dependentes de ciência em todos os sentidos e, por isso, você tem que ter um Ministério que dê prioridade à ciência, que confira uma maior diversidade à pesquisa.” Mariana Stanton, 32, bióloga. Foto: Monique Oliveira


Cortes são falta de visão?

A ideia de que ciência traz retornos certos para a economia precisa ser mais bem problematizada no caso brasileiro, dizem pesquisadores do tema. Para Renato Dagnino, da Unicamp, e Marcos Barbosa, da USP, o discurso da ciência como alavanca do desenvolvimento deve levar em conta a estrutura da economia brasileira e o fato de que políticas que apostaram nessa faceta da ciência não deram certo.

O mote ciência-desenvolvimento chegou com mais força ao Brasil em meados dos anos 2000 com a política de inovação. “Inovação aqui é a ideia de uma invenção rentável”, explica Barbosa. A política tinha por objetivo dar incentivos às indústrias que desenvolvessem projetos mais originais e de maior valor agregado – tarefa que, no Brasil, é historicamente exercida em estatais como Embraer, Embrapa e Petrobras.

“A imagem que está se formando de que esse governo é obscurantista, que não gosta da ciência, é equivocada. É apenas o reconhecimento de que os dados obtidos são irrelevantes para o mercado.”

RENATO DAGNINO, PROFESSOR DA UNICAMP

“Foi um fracasso total”, diz Barbosa. A última Pintec (Pesquisa de Inovação), referente ao período de 2012 a 2014, mostra que 36% das empresas fizeram algum tipo de inovação, valor que ficou abaixo do observado entre 2006 e 2008 (38%). O índice preocupa porque as empresas contaram com grande incentivo governamental para inovar. E essas taxas de inovação incluem itens como a compra de máquinas e softwares – quando se pensa em “inovação real”, os dados despencam.

Do mesmo modo, a falta de investimento da indústria em inovação não pode ser explicada simplesmente por uma “ausência de cultura das empresas”, diz Barbosa. O pesquisador cita trabalhos que mostram as razões pelas quais a inovação não deslancha por aqui. São três: ainda estamos concentrados na produção de commodities, que é menos dinâmica em tecnologia; em muitas indústrias, não há escala para venda mundial; e o nosso setor produtivo é muito “internacionalizado”, com multinacionais que apenas replicam aqui o conhecimento produzido lá fora.

Assim, os cortes podem ser em parte explicados porque a ciência não está logrando os resultados esperados para uma economia neoliberal. “A imagem que está se formando de que esse governo é obscurantista, que não gosta da ciência, é equivocada” diz Dagnino. “É apenas o reconhecimento de que os dados obtidos são irrelevantes para o mercado.”  Já Helena Nader, da SBPC, diz que o Brasil estava começando a mostrar para o empresariado a importância da  inovação. “Não foi um extraterrestre que tirou o petróleo do pré-sal. Foram centros de pesquisas de todo o País, financiados ao longo de todos esses anos pela Petrobras.”

“Eu acho os cortes abusivos e por isso estou aqui. As sociedades são dependentes de ciência em todos os sentidos e, por isso, você tem que ter um Ministério que dê prioridade à ciência, que confira uma maior diversidade à pesquisa.” Daniel Seda, 43, professor de tecnologia e artes. Foto: Monique Oliveira
“Eu procuro também ensinar o método científico para os meus alunos. A ciência ensina como as coisas funcionam. Eu estou aqui em defesa da ciência porque eu acho que todos devem ter acesso a ela, todos deveriam entender como o mundo funciona.” Daniel Seda, 43, professor de tecnologia e artes. Foto: Monique Oliveira

Por uma outra ciência

Se o investimento em ciência não interessa para os interesses do mercado, que os cientistas se voltem para as necessidades diretas da população, defende Dagnino. Ele diz que muitos dos problemas da nossa sociedade padecem de um “déficit cognitivo”: ou seja, não temos conhecimento disponível para pensar sobre nossos imbróglios, muitos deles históricos. “Você sabe que mais da metade da população brasileira não tem saneamento básico, né?”, pergunta o pesquisador. “Se quisermos resolver o problema com tecnologia convencional, teremos um custo econômico e ambiental absurdo porque essa tecnologia não foi renovada. Sem falar que não geraremos trabalho e renda, não vamos fomentar setores da economia que poderiam usufruir desse poder de compra do Estado”, explica.

Dagnino defende uma revisão na política científica brasileira para que sejam priorizadas no Brasil as chamadas “tecnologias sociais”, um ramo do conhecimento que tem ganhado defensores na esquerda. É a ideia de que a ciência feita com dinheiro público deve ser usada para melhorar as condições de vida da população diretamente. Segundo ele, também a esquerda hegemônica não deve considerar a ciência como neutra. Há um tipo de ciência que pode, sim, promover mais igualdade.

Na aula magna de apresentação dos cursos de pós-graduação da USP desse ano, o neurocientista Miguel Nicolelis afirmou que a ciência não vive sem utopia. Parte dessa utopia, disse, deve levar o cientista a pensar para além dos artigos publicados ou da bolsa recebida. “O cientista tem um compromisso com a humanidade e pode ter uma posição política.”

"É importante se mobilizar não só para defender a ciência, mas para disputar uma política científica mais justa. De que adianta uma ciência autônoma e forte, se suas instituições forem o retrato da nossa elite, e suas aplicações só ampliarem nossa desigualdade? ". Miguel Said, professor da UFABC (Universidade Federal do ABC). Foto: Monique Oliveira
“É importante se mobilizar não só para defender a ciência, mas para disputar uma política científica mais justa. De que adianta uma ciência autônoma e forte, se suas instituições forem o retrato da nossa elite, e suas aplicações só ampliarem nossa desigualdade? “. Miguel Said, professor da UFABC (Universidade Federal do ABC). Foto: Monique Oliveira

Se para uns essa utopia é a tecnologia social, mais próxima da população; ou a esperança de um Brasil mais competitivo com empresas inovadoras, o fato é que a ciência precisa levar esse debate para a sociedade. Na última pesquisa de Percepção Pública de Ciência e Tecnologia (2015), feita pelo MCTIC, 87,5% dos entrevistados não conseguiram citar uma instituição que se dedique a fazer pesquisa no Brasil. E 93,3% nem sequer lembraram de um único cientista brasileiro.

Impulsionada pelos cortes e pela crise, a ciência tem tentado buscar o diálogo. Prova disso é que pela primeira vez por aqui tivemos a “Marcha pela Ciência”, que no dia 22 de abril ocorreu em 15 cidades brasileiras. Em São Paulo, a marcha mostrou as divisões que povoam a comunidade científica. No evento, a fala de um convidado que criticou reformas do governo foi interrompida. A justificativa foi o apartidarismo da marcha. Também quando um passante pediu voz, a organização só permitiu a intervenção depois de manifestações favoráveis dos presentes.

Talvez não à toa, a ciência é pouco citada nas pautas de movimentos sociais – boa parte dos cientistas quer distância dos debates políticos, e boa parte da esquerda não a inclui em suas reivindicações. A comunidade científica tem, então, o desafio de levar um projeto de nação para a sociedade brasileira. E, por que não, uma utopia? Que País a ciência pode ajudar a construir e por que ela merece os recursos públicos? Que venha o debate. E que todos participem dele.

A gangue do Sargento Pimenta

Por
Redação
-
18 de maio de 2017
Capas dos 30 álbuns selecionados nesta reportagem. Foto- Divulgação
Capas dos 30 álbuns selecionados nesta reportagem. Foto- Divulgação

*Por Marcelo Pinheiro, Daniel de Mesquita Benevides e Bia Abramo

Houve uma vez um Verão do Amor. Retrato vívido da atmosfera de sonho coletivo que cooptou parte ex­­pressiva da juventude ocidental em 1967, o álbum Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band completa, com frescor intacto, meio século de seu lançamento no próximo dia 1° de junho. Longe de configurar episódio isolado de ousadia estética, o oitavo LP dos Beatles amplificou ex­pe­ri­­mentações presentes no trabalho lançado no ano anterior, o essencial Revolver, e difundiu estatutos de uma nova era de invenção para o rock, também ensaiada em 1966 por grupos como Beach Boys, na obra-prima Pet Sounds, e The Kinks, em alguns temas do sublime Face to Face.

Herdeiros de movimentações subterrâneas da cultura norte-americana – como as proposições de vanguarda do jazz bebop e o existencialismo hedonista da geração beat –, os jovens que protagonizaram o Verão do Amor tiveram como pautas de sua política de transformação comportamental as defesas do sexo livre e do pacifismo, o combate ao racismo, a interação com a natureza e a expansão da consciência por meio do uso recreativo de substâncias lisérgicas, como a maconha, o haxixe e o LSD – esta última, como sabemos, aludida nas iniciais de Lucy in the Sky with Diamonds, de Sgt. Peppers.

Em 1966, essa busca por transcendência, que teve a música como principal vitrine, foi sintetizada no título de um álbum homônimo falado. Nele, o psiquiatra norte-americano Timothy Leary, notório pelas pesquisas inaugurais sobre o uso do LSD, cunhou a expressão “turn on, tune in, drop out!” (em tradução livre, “se ligue, sintonize, caia fora!”). Em 14 de janeiro de 1967, essa sentença reverberou novamente em um discurso proferido por Leary durante a abertura do Human Be-In, festival embrionário do Verão do Amor, que reuniu mais de 20 mil jovens no Golden Gate Park, em San Francisco. Organizado pelo artista plástico Michael Bowen e o poeta Alan Cohen, o encontro reuniu, entre outros, o ativista Jerry Rubin, fundador do YIP (sigla em inglês de Partido Internacional da Juventude), os poetas beat Allen Ginsberg, Gary Snyder e Lawrence Ferlinghetti e bandas locais pioneiras do psicodelismo, como Grateful Dead, Jefferson Airplane e Quicksilver Messenger Service.

Com o aval científico de pesquisadores como Leary, o LSD foi comercializado para fins psiquiátricos até outubro de 1966. A substância, que era produzida e distribuída pelo laboratório suíço Sandoz, inspirou um dos primeiros temas lisérgicos dos britânicos do The Animals, a composição A Girl Named Sandoz, lançada em compacto no mesmo ano da proibição. Pouco antes, em 1962, um grupo de proto-hippies denominado Merry Pranksters (algo como “festivos gozadores”) e liderado pelo escritor Ken Kesey, autor do clássico Um Estranho no Ninho, deu início a experiências de uso coletivo de LSD em uma comunidade alternativa sediada em La Honda, na Califórnia.

Em 1964, Kesey decidiu comprar um velho ônibus escolar, cobriu a lataria de temas e cores psicodélicos e fez adaptações, como incluir um sistema de áudio para que os músicos que viajassem no utilitário pudessem “transar” um som. Com o neologismo furthur como itinerário (um trocadilho entre as palavras além e futuro), municiado de LSD diluído em litros de suco de laranja, Kesey caiu na estrada com o escritor beat Neal Cassidy, que inspirou o personagem Dean Moriarty de On The Road, de Jack Kerouac, ao volante. O drop out rodoviário tinha um propósito bem definido: cruzar o máximo de cidades norte-americanas e identificar voluntários dispostos a realizar os chamados “acid tests” (a excursão tresloucada foi retratada no livro O Teste do Ácido do Refresco Elétrico, lançado em 1968 por Tom Wolfe.)

Quando Sgt. Peppers foi colocado na praça, ações desbundadas como o Human Be-In e a itinerância chapada dos Pranksters proliferavam com a mesma desenvoltura com que Jimi Hendrix solava sua Fender Stratocaster. Nas páginas a seguir, reunimos 30 álbuns que chancelam: 1967 foi mesmo um ano mágico para a música. Não por acaso, a influência dos sonhos e os sons multicoloridos vindos de fora logo ressonaram no Brasil, com a insurreição tropicalista de Caetano Veloso, Gilberto Gil e os Mutantes no Festival da Música Popular da TV Record daquele mesmo ano. A onda bateu tão forte que, em 1967, até mesmo Ronnie Von mergulhou no psicodelismo.

Alguns títulos selecionados aqui, de bandas como Rolling Stones, The Doors e The Who, são mais conhecidos, mas todos podem ser ouvidos em plataformas de streaming como YouTube, Spotify e Deezer, escolha a sua. Antecipamos, no entanto, que todos estão disponíveis, via clique nos títulos, destacados em amarelo, no Youtube. Boa viagem! (M.P).

Estudo de composição para a capa de “Sgt. Pepper’s Lonely Heart Club Band”. Foto: Reprodução / Parlophone Records
Estudo de composição para a capa de “Sgt. Pepper’s Lonely Heart Club Band”. Foto: Reprodução / Parlophone Records
A icônica versão definitiva, criada pelo casal de artistas Peter Blake e Jann Waworth. Em celebração aos 50 anos do álbum, Paul McCartney, que inspirou a produção da capa a partir de um desenho seu, se apresentará no Brasil entre os dias 13 e 20 de setembro, em Porto Alegre, São Paulo, Belo Horizonte e Salvador. Foto: Reprodução / Parlophone Records


POR DANIEL DE MESQUITA BENEVIDES 

The Doors – The Doors (janeiro)
Com um mix original de jazz, rock e blues, e um vocalista que parecia um Prometeu erótico, os Doors logo se tornaram uma das bandas mais incendiárias da história. Tanto neste primeiro álbum quanto em Strange Days, de dezembro de 1967, Jim Morrison, Ray Manzarek, Robbie Krieger e John Densmore gravaram canções inesquecíveis, que se equilibravam entre o hedonismo sem culpas (Love Me Two Times) e incursões às turbulências da psique (The End, com seu famoso “breque” edipiano). Light my Fire ganhou as paradas e When the Music is Over virou ponto alto nos shows, muitos deles conturbados por histeria de fãs e intervenções policiais. Como Hendrix e Janis Joplin, Morrisson morreu cedo, aos 27. E entrou para a mitologia.
Country Joe & The Fish – Electric Music for the Mind and Body (abril)
Nenhum grupo de San Francisco foi mais politizado que o Country Joe & the Fish, cujo nome faz referência a Stalin e Mao. No disco de estreia, anterior a dois EPs independentes, essa politização também se dirigia ao corpo, como bem diz o título. Amor, sexo livre, legalização das drogas, defesa dos direitos civis e pacifismo contra a guerra do Vietnã faziam parte das preocupações da banda, presença constante nas manifestações de estudantes, hippies, beats e trabalhadores. Três bons exemplos desse álbum a um só tempo viajante e pé no chão: a divertida Superbirdridiculariza o presidente Lyndon Johnson; Base Stringsconclama ao uso de LSD e Grace faz uma declaração de amor a Grace Slick, musa do Verão do Amor.
The Jimi Hendrix Experience – Are You Experienced(maio)
Quem pichou “Clapton is God” errou feio: deuses de verdade eram John Coltrane e Jimi Hendrix. Não apenas porque tocavam divinamente, mas também porque foram longe em suas investigações sônicas. Hendrix adorava explorar as possibilidades de estúdio (vide If 6 Was 9) e as distorções na guitarra. Ao mesmo tempo, era um grande vocalista, de um flow suave e malandro (no melhor dos sentidos), que fazia um contraste perfeito com a violência sensual de seus solos. Ao seu lado, o baixista Noel Redding e o sensacional baterista Mitch Mitchell formavam a melhor cozinha da época. Purple Haze, Hey Joe e Foxy Lady, entre outras, eternizaram o trio. O segundo álbum, Axis: Bold as Love, do mesmo ano, também é uma obra-prima.
Frank Zappa & The Mothers of Invention  – Absolutely Free (maio)
Sem as canções mais “pop” de Freak Out!, este segundo álbum de Zappa e seu combo californiano é uma colagem louca e livre de sons, cuja unidade é a sátira sócio-política e o pastiche de gêneros, que vão do rock primitivo de Louie, Louie à vanguarda clássica de Stravinski. É a obra mais experimental do começo da carreira do guitarrista e compositor, e mesmo assim chegou ao Top 50 nos EUA. Anarquista convicto, Zappa também tira sarro do presidente americano logo na primeira faixa e não poupa nem mesmo os amigos hippies e psicodélicos. Como desprezava as drogas e os junkies, ele é provavelmente o único artista dessa seleção que nunca tomou LSD. Sua inteligência alucinante era suficiente para qualquer viagem.
The West Coast Pop Art Experimental Band – Part One (maio)
Banda bastante peculiar, mesmo para os padrões psicodélicos. Formada em Los Angeles, em 1965, era tida como a resposta da costa oeste ao Velvet Underground. Tiveram vida curta e apenas o álbum inicial atingiu a boa dosagem entre psicodelia, experimentação, certo desleixo bem-humorado, harmonias vocais à Byrds e melodias típicas da chamada Invasão Britânica. Há alguns covers, de Zappa e Bob Johnston, mas o que conta é a inventividade dos arranjos, a estranheza (às vezes sutil, outras escancarada) das canções e a dinâmica morde-e-assopra da narrativa musical, alternando faixas sombrias e ensolaradas. Bom antídoto para qualquer momento de tédio. Mas cuidado com a dosagem: convém consumir com moderação.
The Red Crayola – The Parable of Arable Land(junho)
Um dos álbuns pioneiros do rock experimental, em que ruídos e barulhos de toda espécie fazem parte da festa, The Parable of Arable Land é uma aventura sonora inesquecível (e perturbadora), bem diferente do espírito hippie da época. Ninguém sabia tocar direito, mas as ideias explodiam como estrelas novas. Ali já estavam contidas a atitude do-it-yourself do punk e o tom sombrio e esquizoide do pós-punk, movimento (se é que dá para chamar assim) do qual o grupo, texano como os 13th Floor Elevators, iria participar, numa nova encarnação em torno do líder Mayo Thompson, incluindo integrantes das bandas X-ray Spex, Swell Maps e Raincoats. Thompson ainda teve uma passagem pelo lendário Père Ubu.
Moby Grape – Moby Grape (junho)
Uma das bandas mais subestimadas da história do rock. Melhor que seus amigos de San Francisco, o Jefferson Airplane e o Grateful Dead, a Moby Grape tinha três geniais guitarristas e cinco ótimos vocalistas. De quebra, todos compunham. A produção do disco de estreia, um dos grandes lançamentos dos anos 1960, é de um frescor tal que parece que foi gravado hoje. Melodias bonitas, harmonias arrepiantes e um entusiasmo contagiante quase fazem esquecer a trajetória triste do quinteto, que, não fossem os cartolas da música, as prisões por porte de drogas e as brigas internas (além da esquizofrenia de Skip Spence, que dois anos depois lançaria o lindo e alucinógeno Oar), teria sido tão popular quanto Beach Boys e Byrds.
Pink Floyd – The Piper at the Gates of Dawn(agosto) 
As duas primeiras músicas formam um dos começos mais arrebatadores do rock. Astronomy Domine e Lucifer Samdefinem a origem do Floyd: órgão viajante (quando não sinistro), metáforas espaciais, guitarras levemente distorcidas, efeito nos vocais, melodias doces e estranhas, baixo e bateria beirando uma síncope. Interestellar Overdive é outro ponto alto: corta o disco inaugural da banda como um raio cósmico. Syd Barrett ainda não tinha pirado ompletamente com o LSD no chá das cinco (e das seis, sete….). Suas composições, entre o infantil e o lunático, que por vezes fazem lembrar Lewis Carroll, revelam um talento nunca igualado. Nem mesmo os Beatles, gravando no mesmo estúdio, o lendário Abbey Road, fizeram melhor.
Vanilla Fudge – Vanilla Fudge (agosto)
Ponte direta entre o rock psicodélico e o heavy metal, o Vanilla Fudge influenciou decisivamente bandas como o Deep Purple e o Led Zeppelin, que chegou a abrir alguns shows do quarteto de Long Island (Nova York). Guiado por um Hammond pantanoso, o Fudge gravou vários covers no bem-sucedido álbum de estreia, que chegou ao sexto posto na parada americana. Entre eles, Ticket to Ride e Eleanor Rigby, dos Beatles, e People Get Ready, do imbatível soulman Curtis Mayfield. A novidade estava no andamento mais lento e pesado das versões, de forma que as canções ficavam quase irreconhecíveis, proporcionando um clima de chapação forte. Além do organista Mark Stein, o destaque era o batera Carmine Appice.
Procol Harum – Procol Harum (setembro)
Para quem só conhece A Whiter Shade of Pale, single tocado em toda rádio rock que se preze, o primeiro disco da banda inglesa deve ser uma boa surpresa. O estilo é ousado: um pré-progressivo com pegadas alternadas de pop e hard-rock, piscadelas ao clássico e à música de vaudeville ou dance-hall (algo, aliás, bem típico das bandas inglesas da época, vide Beatles e Kinks) e vocais de soul branco. Há melodias que grudam no ouvido e climas de órgão e piano fazendo cama para letras sombrias, cheias de imagens sugestivas. Depois gravaram outros álbuns tão bons ou até melhores, como A Salty Dog, de 1969. Recentemente voltaram a se reunir e lançaram uma nova coleção de inéditas, Novum, com elogios da crítica.
Beach Boys – Smiley Smile (setembro)
Este é o primeiro disco do grupo em que a liderança de Brian Wilson não se traduz na música. Se a banda perde o lado mais experimental e sublime, revelado um ano antes na obra-prima Pet Sounds, parece ganhar em coesão e entusiasmo. A coesão está em Smiley Smile, um disco que frustrou muita gente na época, pois lançado depois das especulações sobre o inacabado Smile (que, bem mais tarde, ganharia várias edições especiais). Na verdade, é muito bom, trazendo grandes harmonias vocais e esquisitices divertidas. Além disso, tem Heroes and Villains e Good Vibrations, dois dos melhores singles dos anos 1960. No quesito entusiasmo está o álbum Wild Honey, do mesmo ano, com uma pegada mais solta, beirando o soul.
The Electric Flag – The Trip Original Soundtrack(setembro)
Um sujeito careta toma ácido pela primeira vez e sai pelas ruas de Los Angeles. Passa por festas, casas noturnas, praias. Cores, luzes e sons explodem em sua mente e na do espectador. Ele é Peter Fonda. O roteiro é de Jack Nicholson. O filme, The Trip, é de Roger Corman, lenda do cinema B. A trilha sonora faz o acompanhamento perfeito para as aventuras lisérgicas na tela. É o primeiro lançamento da banda Electric Flag, fundada pelo guitarrista Mike Bloomfield, que fez história em alguns dos melhores discos de Bob Dylan. Todo instrumental, o álbum traz breves suítes de um psicodelismo impressionista e alguns blues funkeados, especialidade de Bloomfield. Bom clima para qualquer temperatura, em qualquer época.
Tim Buckley – Hello, Goodbye (setembro) 
Um dos vocalistas mais impressionantes dos anos 1960, não apenas pelo alcance extraordinário, mas também pela entrega emocional, Tim Buckley teve vida curta e morte trágica, como seu filho, Jeff Buckley, igualmente talentoso e mais conhecido pelas novas gerações. Era uma figura romântica, sempre em busca de um ideal, não importando as consequências. Construiu uma carreira não comercial, com mudanças de estilo e um direcionamento crescente para improvisações jazzísticas e experimentais, o que contrastava muito com o folk-rock gentil e poético do homônimo primeiro disco. Tinha apenas 21 anos em Hello, Goodbye, o seguinte. É seu álbum mais abertamente psicodélico, com belas e oblíquas melodias e letras enigmáticas.
The Rolling Stones – Their Satanic Majesties Request (dezembro)
Depois de lançarem o genial Between the Buttons no começo de 1967, com as clássicas I Can’t Get No (Satisfaction) e Ruby Tuesday, os Stones se viram diante do Sgt. Peppers. O álbum dos eternos rivais fazia com que tudo parecesse antiquado. De certa forma, obrigava os demais a darem uma resposta. Their Satanic…, a investida de Jagger & Cia., no entanto, não fez mágica, apesar da capa com os chapéus de feiticeiros. Tirando She’s a Rainbow e 2000 Light Years from Home (alô, Primal Scream!), o disco naufraga em experimentos estéreis com batidas tribais, ruídos e ingênuas intenções hippies. Nos anos seguintes, se redimiram numa sequência talvez nunca atingida: Beggar’s Banquet, Let it Bleed, Sticky Fingers e Exile on Main St..
Traffic – Mr. Fantasy (dezembro)
Todos no Traffic tinham sólida formação musical (o que talvez explique a diversidade nos arranjos da banda), a começar do vocalista, guitarrista e tecladista Steve Winwood, que aos 15 já cantava no Spencer Davies Group. Mais ligado ao jazz, soul e folk, ele fazia frente ao espírito pop e psicodélico de Dave Mason, que, além de guitarra e baixo, também tocava cítara. Antes de lançado o primeiro álbum, Mason deixou a banda, completada pelo baterista e letrista Jim Capaldi e o saxofonista e flautista Chris Wood. A faixa Dear Mr. Fantasy ganharia versões de Hendrix, Grateful Dead e Crosby, Stills, Nash & Young. Nos EUA o álbum foi lançado como Heaven Is In Your Mind, acrescido dos três primeiros singles do grupo.

POR MARCELO PINHEIRO
Donovan – Mellow Yellow (janeiro)
Mais por compartilhar influências – sobretudo do ídolo Woody Guthrie – do que por imitar o bardo norte-americano, Donovan Leitch foi celebrado como uma espécie de Bob Dylan escocês. Em seu terceiro álbum, no entanto, decidiu abandonar os maneirismos folk para acrescentar guitarras distorcidas, contrabaixo elétrico, solos de órgão e sitar indiano. A materialização dessa nova fase, o álbum Sunshine Superman, veio à tona em setembro de 1966. A transição deu tão certo que meses depois, em janeiro de 1967, Donovan botou na praça Mellow Yellow, um sucessor à altura. Capitaneado pela faixa-título, que traz arranjo e contrabaixo de John Paul Jones, o álbum também reúne outro futuro led zeppelin, o guitarrista Jimmy Page.
The Byrds – Younger Than Yesterday (fevereiro)
Gravado em janeiro de 1966 e presente em 5th Dimension, Eight Miles High é considerado o primeiro registro psicodélico. Com frases e solos dobrados de guitarras de 6 e 12 cordas, as legendárias Rickenbacker de Roger McGuinn, a canção, no entanto, foi boicotada logo que seu título foi interpretado como uma apologia ao LSD. McGuinn, porém, jura ter feito uma homenagem a John Coltrane – daí a dinâmica bebop. Equivocada ou não, a polêmica fez com que o grupo caísse em breve derrocada comercial. A bancarrota, felizmente, não sabotou a beleza deste sucessor, que reúne temas luminares, como So You Want to Be a Rock n’ Roll Star e duas das melhores composições de David Crosby, Mind Gardens e Everbybody’s Been Burned.
Grateful Dead – The Grateful Dead (março)
Nomeado guru dos conterrâneos do Jefferson Airplane na contracapa de Surrealistic Pillow, até chegar a este début Jerry Garcia e sua trupe de proto-hippies já haviam percorrido, desde 1965, um longo caminho de derretimento cerebral na cena de San Francisco. Produzido por David Hassinger – responsável pela sonoridade de Aftermath (1966) dos Stones, e que depois assinaria o álbum de estreia do Electric Prunes –, o LP epônimo capta a estética transgressora dos papas do acid rock e capitula convenções pueris da primeira metade dos anos 1960, para abrir um caminho de expansão mental e musical. Com canções assinadas coletivamente, o LP também reúne releituras de Sony Boy Williamson e Jessie “The Lone Cat” Fuller.
The Velvet Underground – The Velvet Underground & Nico (março)
Um dos mais influentes álbuns da história do rock, inspiração para bandas como Modern Lovers, The Fall e Joy Division, The Velvet Underground & Nico dispensa maneirismos ripongas e versa sobre temas obscuros como sadomasoquismo e dependência de heroína. Embalado com arte gráfica de Andy Warhol, também produtor e responsável pelo acréscimo da voz sedutora da modelo alemã Nico, o álbum não traz sequer vestígios de celebração à paz, ao amor e à atmosfera solar de 1967. Autor de oito das 11 composições – as demais com John Cale (Sunday Morning e Black Angel’s Death Song), Sterling Morrison e Moe Tucker (European Son) –, Lou Reed impõe sua grandiosidade em Waiting for the Man, I’ll Be Your Mirror, Femme Fatale e Heroin.
Jefferson Airplane – Surrealistic Pillow (março)
Ao lado de bandas como Grateful Dead e Quicksilver Messenger Service, o Jefferson Airplane foi ponta de lança da cena psicodélica de San Francisco. Lançado em março de 1967, Surrealistic Pillow, segundo álbum do grupo, é um dos pilares do chamado Frisco Sound e marca a entrada da cantora Grace Slick na banda. Egressa do Great Society, Grace trouxe de seu ex-grupo dois clássicos instantâneos: White Rabbit e Somebody to Love. Em meio a sutilezas acústicas, frases de flautas transversais, riffs e solos frenéticos de guitarras, o “travesseiro surrealista” do Jefferson Airplane reserva ainda tesouros como Today, My Best Friend, Coming Back to Me e D.C.B.A-25 – esta última faz referência aos acordes da canção e ao composto químico do LSD.
The Electric Prunes – The Electric Prunes (abril)
Em um artigo escrito dias depois da morte de Jimi Hendrix em 1970, o escritor Luiz Carlos Maciel defendeu que a grande revolução do guitarrista foi expandir as possibilidades da música por meio do uso da eletricidade. Repleto de efeitos de estúdio, sobretudo o uso de trêmulos e wah-wahs travestidos de cítara na guitarra de Ken Williams, o primeiro álbum do Electric Prunes chancela, até mesmo no nome da banda (os ameixas elétricas), essa teoria. Capitaneado pelo sucesso de I Had Too Much to Dream (Last Night), Top 11 da Billboard e presente em dez entre dez coletâneas com o melhor do rock psicodélico, o LP não renega o passado surf e garage rock da banda californiana, originada a partir da extinção do The Sanctions.
The Kaleidoscope – Side Trips (junho)
Los Angeles divide com San Francisco o status de epicentro da revolução psicodélica. Da Califórnia e adjacências vieram bandas divisoras como The Doors, Love e Buffalo Springfield. Menos conhecido, mas não menos cultuado, o quinteto Kaleidoscope fez de Side Trips, seu álbum de estreia, uma miríade de sonoridades inusitadas. A fórmula dos compositores Chris Darrow e David Lindley contou com o uso de instrumentos gregos, persas e indianos, como bouzouki, vina e dombek. Composições como Egyptian Garden e Keep Your Mind Open – eleita pela revista Mojo uma das 100 maiores canções psicodélicas – fizeram a cabeça de ouvintes anônimos e de estrelas como Jimmy Page, que considera Side Trips seu álbum predileto dos anos 1960.
The Seeds – Future (agosto)

Símbolo da estética proto-punk – de bandas como The Sonics, The Wailers, Count Five e The Litter –, o The Seeds foi liderado por um dos maiores freaks do panteão psicodélico, o vocalista e compositor Sky Saxon. Também egresso da cena de L.A., o quarteto decidiu expandir horizontes musicais em Future, depois de rarefeitas experiências transcendentais em seus dois primeiros álbuns. Em meio à oratória debochada de Saxon, riffs obsessivos de guitarra, órgão e piano elétrico saltam aos ouvidos em mantras hipnóticos do melhor acid rock, como Flower Lady and Her Assistant, Travel With Your Mind e A Thousand Shadows. Produzido em paralelo ao lançamento de Sgt. Pepper’s…, Future também conta com breves arranjos orquestrais.

Eric Burdon & The Animals – Winds of Change(setembro)
Nanico, mas dono de uma das vozes mais potentes de sua geração, Eric Burdon foi um dos artífices da chamada Invasão Britânica. Em 1966, com a saída do baixista Chas Chandler, que abandonou o Animals para pavimentar a carreira de ninguém menos que Jimi Hendrix, Burdon reformulou a banda e iniciou a guinada psicodélica que culminou em Winds of Change. Com efeitos sobrepostos às canções, como o barulho do mar na singela Poem by The Sea, uma versão arrasa-quarteirão de Paint it Black, dos Stones, e citações a ícones do soul, do rock e do jazz em It’s All Meat, o álbum também traz um “diálogo” com o universo hendrixiano em Yes, I’m Experienced. Menos energéticas, mas impregnadas de beleza, faixas como Good Times e Anything fazem desta incursão psicodélica uma pequena obra-prima.
Buffalo Springfield – Buffalo Springfield Again(novembro)
Em um ano turbulento para a banda liderada por Stephen Stills e Neil Young, com saídas temporárias deste último, a chegada às lojas do segundo álbum do grupo californiano foi um alento para os fãs de primeira hora. Resultante de um processo de produção fragmentado ao longo de 1967, o LP reúne dez composições. Entre elas, joias de autoria de Young, como Mr. Soul, Broken Arrow e Expecting to Fly, canções insuspeitas de Stills, como Bluebird, Everydays e Rock n’ Roll Woman, e as três primeiras composições do guitarrista Richie Furray, Sad Memory, Good Time Boy e A Child’s Claim to Fame. Antes de iniciarem consagradas carreiras solo, Young e Stills lançaram ainda um terceiro álbum do grupo, o também obrigatório Last Time Around (1968).
Cream – Disraeli Gears (novembro)
Intitulado com uma corruptela entre o nome do ex-primeiro ministro britânico Benjamin Disraeli e o termo derailleur gears (câmbio de bicicleta), Disraeli Gears é o segundo álbum do Cream. Formado por Eric Clapton (aclamado em seu país como o “Deus da Guitarra” até a chegada de Jimi Hendrix por aquelas bandas), Jack Bruce (baixo) e Ginger Baker (bateria), a banda personificou o conceito de power-trio. Em Disraeli Gears, no entanto, atribuiu à atmosfera bluesy selvagem texturas psicodélicas baseadas sobretudo no uso do pedal wah-wah na guitarra de Clapton – caso explícito de Tales of Brave Ulysses, cantada por Bruce. Hit do álbum, Sunshine of  Your Love escancara a cadência hipnótica de Baker, um dos maiores bateristas de sua geração.
Love – Forever Changes (novembro) 
Em janeiro de 1967, os californianos do Love lançaram Da Capo, seu segundo álbum. Nele, em faixas como Orange Skies e She Comes in Colors, é perceptível a transição para as texturas lisérgicas que culminaram na obra-prima Forever Changes. Liderada por Arthur Lee, cantor e compositor de brilho intenso, a banda também contava com outro autor inspirado, o guitarrista Bryan McLean. Ao longo de 11 temas – alguns revestidos de cordas e sopros, outros marcados pela estética folk e influências flamencas –, Lee e McLean emocionam com o lirismo de canções como Alone Again Or, Old Man, The Red Telephone e a apoteótica You Set The Scene. A despeito das “mudanças eternas” do título, o álbum antecipa vestígios da ressaca de realidade que capitulou o Verão do Amor, sintetizada depois por John Lennon com a sentença “o sonho acabou”.
Strawberry Alarmclock – Incense and Peppermints(dezembro)
Também egressos da cena californiana, os músicos do Strawberry Alarmclock fizeram da capa (hippie até a medula) e do título de seu primeiro álbum (“incenso e balas de hortelã-apimentada”, notórios atenuantes para o mau cheiro da maconha) carta de intenções de suas proposições desbundadas. Associada ao som personalíssimo do sexteto, responsável por impecáveis harmonias vocais, a estratégia de marketing deu mais que certo: impulsionado pelo compacto que contém a faixa-título, o grupo vendeu milhões de cópias. Do transe inaugural de The World’s On Fire, passando pelos loopssinestésicos de Rainny Day, Mushroom, Pillow, até chegar ao desfecho jazzy de Unwind With The Clock, a viagem do Despertador Morango não contém bad trips.
13th Floor Elevators – Easter Everywhere(dezembro)
Prova inconteste de que a chapação estava prestes a tomar os EUA de norte a sul, o primeiro grupo a estampar na capa de um LP o termo “psicodélico” foi este combo texano, que, em 1966, lançou o cultuado The Psychedelic Sounds of The 13th. Floor Elevators. Liderada pelo brilhante poeta Roky Erickson, que enfrentaria problemas psiquiátricos a partir da década seguinte, a banda lançou no ano seguinte um consistente sucessor. Composto de dez canções assinadas por Erickson, o guitarrista Tommy Hall e o freak Stacy Sutherland (que tocava jarra elétrica!), Easter Everyhere reúne tesouros como She Lives (In a Time of Her Own), I Had to Tell You, Postures (Leave Your Body Behind) e uma releitura de It’s All Over Now, Baby Blue, de Bob Dylan.
The Who – The Who Sell Out (dezembro)
Depois de conquistar os Estados Unidos com uma turnê arrasa-quarteirão que contabilizou um sem-número de guitarras e kits de bateria destruídos em rituais selvagens, os britânicos do The Who se trancafiaram em estúdio para produzir seu terceiro álbum. Longe de obsessões da cultura mod, Pete Townshend, Keith Moon, John Entwistle e Roger Daltrey investiram neste ambicioso álbum conceitual. Nele, sugerem que, a exemplo dos produtos anunciados na capa do LP, eram só mais um item “descartável” da sociedade de consumo. Concebido como um programa da pirata Radio London, em meio a faixas cabeçudas como I Can See For Miles, Tattoo e Armenia City in the Sky, The Who Sell Out é recortado por hilárias vinhetas. Um primor.
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