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Início Site Página 179

Como as mulheres influenciaram os protestos por democracia no mundo?

Por
Redação
-
22 de agosto de 2017
Mulheres protestam no Egito em manifestação de 2013. Foto: Reprodução/Mídia Ninja

*Por Monique Oliveira

Por que a primavera árabe falhou e só a Tunísia emergiu como um pais democrático? Em parte, pela ausência de direitos às mulheres na região, diz estudo  interdisciplinar publicado no European Journal of Political Research. Pesquisadores investigaram dados de 177 países que se tornaram uma democracia a partir dos anos 1900.

Em especial, a análise demonstrou que os países não se tornam plenamente democráticos sem direitos políticos e sociais para as mulheres. E isso é particularmente verdadeiro para os países da Primavera Árabe, onde a incapacidade de promover direitos às mulheres comprometeu qualquer tentativa de governança democrática na área.

O estudo mostrou que os direitos civis para homens e mulheres – direitos à liberdade de expressão, por exemplo – estavam sempre presentes a um nível elevado antes da implementação dos direitos constitucionais. Este padrão foi observado em quase todos os casos de democratização bem sucedida no século XX.

Participaram do estudo Yi-Ting Wang, da Universidade Cheng Kun (Taiwan); Patrick Linderfors, da Universidade de Estocolmo (Suécia); Aksel Sundström, da Universidade de Gothemburg (Suécia); Fredrik Jansson, da Universidade de Estocolmo (Suécia); Pamela Paxton, da Universidade de Texas-Austin (EUA); e Staffan Lindberg, da Universidade de Gothemburg (Suécia).

O custo da repressão

O estudo aponta que, embora antes se considerasse que direitos civis a homens fossem suficientes para a transição democrática, pesquisas mais recentes notam a importância de direitos às mulheres. Isso se deve, principalmente, ao argumento do custo à repressão.

Segundo os autores, a transição de um regime autoritário ocorre quando o custo à repressão dos revoltosos é tão grande que será mais fácil a manutenção do poder em uma democracia. Ou seja, quando uma redistribuição mínima de poder se torna menos custosa que a tentativa da manutenção da autoridade a qualquer custo.

E é aí que entra o papel dos direitos às mulheres. Se mais mulheres tiverem direitos políticos, maior será o custo da repressão na sociedade. “Quando mais cidadãos gozam de direitos e são mais capazes de iniciar revoltas eficazes, a repressão torna-se difícil’, diz o estudo.

Quando as mulheres se engajam no mercado de trabalho e na participação política, menos pessoas na sociedade tendem a resolver suas questões na esfera privada, apontam os pesquisadores. “Portanto, espera-se que a melhoria das liberdades civis das mulheres irá aumentar substancialmente a pressão para mudanças políticas.”

O artigo cita a importância da participação de mulheres em movimentos políticos na América Latina. “Na década de 1980, grupos pró-democratização de mulheres surgiram no Brasil, no Chile e no Peru, centrados na idade de que o cotidiano de mulheres eram economicamente mais difícil do que o de homens”, diz os pesquisadores.”Em protestos urbanos no Brasil, estudos apontam que 80% dos manifestantes são mulheres.”

“Sintetizamor”, a usina dançante de Donato e Donatinho

Por
Marcelo Pinheiro
-
3 de agosto de 2017
O compositor, cantor e arranjador João Donato e seu filho, o também compositor, multi-instrumentista e produtor Donatinho- Foto- Renato Pagliacci
O compositor, cantor e arranjador João Donato e seu filho, o também compositor, multi-instrumentista e produtor Donatinho- Foto- Renato Pagliacci

“Em instantes dancem, sim?”. O convite irrecusável, expresso na voz sussurrada e inconfundível de João Donato e seguido por um hilário “nightclub”, serve de abre-alas para as dez composições reunidas em Sintetizamor. Recém-lançado, o álbum resulta da parceria entre o veterano artista acriano, um dos maiores tesouros de nossa música, e seu filho, o compositor, produtor e multi-instrumentista Donatinho, 33, que, egresso da cena de live PAs da música eletrônica da segunda metade da década de 2000, lançou, em 2014, seu primeiro trabalho solo, Zambê, título que, no ano seguinte, conquistou o Prêmio da Música Brasileira na categoria Melhor Álbum Eletrônico.

Escrita por Donato, Donatinho e Davi Moraes, De Toda Maneira, a canção citada no início deste texto, dá pistas de sobra do que virá depois. Além de contar com uma feliz profusão de parcerias nas vozes e nas letras (Domenico Lancelotti, Gabriela Riley, Jonas Sá, Ronaldo Bastos, Jean Kuperman, João Capdeville, Rogê e Julia Bosco, esposa de Donatinho), Sintetizamor é também impregnado de texturas eletrônicas e beats capazes de exterminar qualquer possibilidade de inércia humana. Uma usina dançante equipada com “reatores” polifônicos revestidos de timbres analógicos e osciloscópicos de sintetizadores, synth-basses e programações eletrônicas; talkboxes e vocoders que remetem ao saudoso Zapp de Roger Troutman; além de um manancial de acordes e solos de piano elétrico (claro, o clássico Fender Rhodes, consagrado em terras brasileiras em Quem é Quem, a obra-prima de 1973 que revelou o canto sereno e suave de João).

Infalível, em meio às melodias e letras que imediatamente grudam na cabeça, a receita processada por Donatão e Donatinho remete a uma fase solar da música popular mundial, iniciada com a utilização de recursos elétricos e eletrônicos no período de ascensão dos chamados jazz-funk e jazz-fusion. Transição escancarada em um sem-número de álbuns produzidos pela dupla Mizell Brothers e títulos divisores como Headhunters (1973), de Herbie Hancock – álbum que, aliás 1., despertou a paixão de Donatinho pelas teclas pretas e brancas quando ele era um garoto de 12 anos de idade; Hancock que, aliás 2., é homenageado na segunda faixa, Surreal. Com pequenas variações climáticas – sobretudo nas três últimas faixas, Vamos Fugir à Francesa, Ilusão de Nós e Hao Chi, mais intimistas – Sintetizamor persegue também estéticas consagradas no decênio 1975-1985 para reprocessar elementos do melhor da disco music, do disco funk, do synth-pop e do boogie.

Sobre esse último gênero citado no parágrafo anterior, aliás, é inegável a associação da usina sintética de Donatão e Donatinho com certa produção brasileira do primeiro quinquênio dos anos 1980 hoje cultuada nos Estados Unidos e na Europa como “Brazilian Boogie”. Faixas como Quem é Quem, Interstellar e A Lei do Amor (carro-chefe do álbum, que imediatamente arrebatou o público assim que foi divulgada no começo de junho último) dialogam diretamente com certo imaginário musical daquele Brasil às vésperas da redemocratização, uma nação, impregnada de espírito jovem e entusiasmada com seu futuro, que foi tomada de assalto nas rádios FM do eixo Sudeste com hits como Estrelar, de Marcos Valle (outro gigante de nossa música, que havia recém-voltado ao País depois de cinco anos radicado em Los Angeles), Aleluia, da onipresente dupla Robson Jorge e Lincoln Olivetti, Festa Funk, de Almir Ricardi, Rio, Sinal Verde, de Junior Mendes, e Olhos Coloridos, de Sandra de Sá.

A capa e o poster com as letras do álbum Sintetizamor foram criadas pelo quadrinista Allan Jeff, brasileiro de prestígio internacional. Foto: Divulgação / Deck
A capa e o poster que contém as letras e a ficha técnica do álbum Sintetizamorforam criadas por Allan Jeff, brasileiro de prestígio internacional no universo das HQs. Foto: Divulgação / Deckdisc

Com capa e ilustrações especialmente produzidas pelo brasileiro Allan Jeff, ás das HQs que brilha no exterior em publicações de gigantes como a DC Comics, Sintetizamor foi integralmente gravado no estúdio Synth Love, de Donatinho. Além dos já citados Davi Moraes e Rogê (guitarras), Julia Bosco e Gabriela Riley (vocais), os arranjos também contaram com os seguintes músicos e intérpretes: Marcelo Amaro (shaker e afoxé), Marlon Sette (trombone), Diego Gomes (trompete), Ricardo Pontes (flauta), Pedro Dantas (baixo), Leonardo Vieira (guitarra), Felipe Pinaud (guitarra), Maria Joana (vocais) e Fernanda Sung, que recita Hao Chi (em tradução livre “delicioso”), poema de Julia Bosco que foi vertido para o chinês.

Também no início de junho, quando foi divulgada a faixa Quem é Quem, o DJ nova-iorquino Greg Caz, notório apaixonado por nossa música, repercutiu a novidade com um comentário divertido – e ao mesmo tempo sintético – em sua página pessoal no Facebook: “Quando um lançamento brasileiro é anunciado, há uma tendência em muitos lugares, particularmente no Reino Unido, de o texto começar com as seguintes palavras ‘em tempo para o Verão, aqui está o novo álbum de…’. É um clichê engraçado, mas, neste caso, não poderia ser mais apropriado. Senhoras e senhores, em tempo para o Verão: The Donatos!!!”. No encerramento da apresentação de Sintetizamor, trabalho aventado havia anos por ele e seu pai, Donatinho esclarece alguns aspectos do álbum: “Este é um disco de pai para filho, de filho para pai, de nós para vocês. Sintetizamor é isso: música feita com sintetizador, que, ao invés de sintetizar dor, sintetiza o amor”, conclui.

Neste Brasil sombrio e rachado de 2017, o hedonismo dançante, luminar e festivo registrado em Sintetizamor tem certa força involuntária de servir como válvula-de-escape mais que bem-vinda para atenuar a atmosfera de melancolia vigente. O baile no palco da comedoria do Sesc Belenzinho, capitaneado por Donatão – que no próximo dia 17 completará 83 anos, pleno de juventude e vigor criativo – e Donatinho, não deve deixar dúvidas desse potencial.

SERVIÇO
Lançamento do álbum Sintetizamor, de João Donato e Donatinho
Sesc Belenzinho
Sexta-feira (4), às 21h30
Classificação: 18 anos

MAIS
– Leia entrevista com João Donato, publicada na ocasião em que o artista completou 80 anos
– Leia resenha de Donato Elétrico, o mais recente álbum solo do músico

Ouça A Lei do Amor, a quinta faixa do álbum, que pode ser comprado aqui

As ciências humanas e a guerra cultural no Brasil

Por
Redação
-
20 de julho de 2017
Manifestação a favor do impeachment de Dilma na avenida Paulista – Foto- Rovena Rosa:Agência Brasil
Manifestação a favor do impeachment de Dilma na avenida Paulista – Foto- Rovena Rosa:Agência Brasil
  • Vivian Mocellin

Uma das facetas da “guerra cultural” entre a esquerda e a direita que o Brasil vive atualmente é a crítica generalizada às ciências humanas. Dois conjuntos de críticas podem ser lidas e ouvidas nos mais diversos meios de comunicação e espaços sociais: a opinião pública de extrema direita, a direitona tosca, acha que as ciências humanas “são um antro de esquerdistas”, ou “esquerdopatas”, como preferem dizer. A direita liberal, que se quer mais civilizada, afirma que as ciências humanas são simplesmente inúteis e gastam dinheiro precioso das agências de pesquisa e horas preciosas dos alunos que deixam de aprender o que interessa nas escolas do ensino básico e superior.

Vamos lá. Em primeiro lugar, sinto dizer que as ciências humanas há muito não são um “antro de esquerdistas ou revolucionários de plantão”, se é que um dia o foram. Hoje, o marxismo é uma entre tantas possibilidades teórico-metodológicas aceitas, como sempre foi, aliás. Foi-se o tempo das “patrulhas metodológicas” tão presentes nos anos 1970 e 1980. Obviamente, essas ponderações pouco valem para a direitona, para a qual todo mundo que defenda direitos humanos, estado laico e não fica histérico diante de um discurso feminista, é um radical de esquerda. É verdade que vaia de bêbado não vale. Entretanto, causa muito ruído.

Quanto à inutilidade, devo dizer que ela não é uma exclusividade das ciências humanas. Basta uma olhada no hilariante site do Prêmio Ignobel que premia pesquisas reais e, à primeira vista, completamente inúteis, em várias áreas nobres das hard sciences. Mas como estou no ramo universitário há algum tempo, sempre acho que pode haver alguma utilidade futura inaudita em pesquisar como os cães e gatos se posicionam para urinar em relação às linhas magnéticas da Terra, qual a personalidade das rochas a partir de uma perspectiva de vendas ou como o Boletim da Sociedade Kardecista de Ximbica da Serra representou a Revolução Russa de 1917 (só essa última eu inventei, desculpem-me os kardecistas e ximbiquenses…). O lema do prêmio, inclusive, é premiar “ pesquisas improváveis que fazem as pessoas rir, para depois pensar”.  Apesar do risco da endogenia, é preciso confiar nos pares para avaliar a relevância de um tema de pesquisa, cabendo à universidade se comunicar melhor com a sociedade leiga para convencê-la da importância.

Também não se pode acusar as humanidades de ser a vilã dos gastos com a ciência e com a pós-graduação no Brasil. Os dados de 2016 indicam que cerca de 10% a 12% das verbas do CNPq e FAPESP são direcionadas para esta área. Pelo preço de quatro microscópios eletrônicos de varredura é possível sustentar um programa de pós-graduação em história ou ciências sociais, gigantes como os da USP, durante um ano.

O fato é que não é raro, no próprio meio acadêmico, até em universidades públicas, ouvirmos à boca pequena (e à boca grande) que as ciências humanas não fazem pesquisa, não geram patentes, e tem “apenas” vocação para formar professores e fazer atividades de extensão, algo visto preconceituosamente como a “sopa para os pobres” do entorno.

Há também o outro lado da moeda. Muitos colegas respeitáveis acham que só as Humanidades tem capacidade de pensar a sociedade, o que é um grande exagero. Pessoalmente, eu não quero que historiadores e poetas pensem pelos engenheiros, mas eu gostaria de engenheiros que também pensassem como historiadores e poetas. O país, a engenharia e a história só ganhariam com isso.

Se quisermos um país com capacidade de formulação de políticas públicas eficazes, consciente dos seus interesses econômicos e posição geopolítica em um mundo complexo, de um aluno e um trabalhador que possam ser algo mais do que repetidores de tarefas mecânicas, precisamos das ciências humanas na pesquisa e na educação. Independente do debate esquerda / direita, que se bem colocado pode até ser muito produtivo (o que não é o caso do Brasil atual, infelizmente), as ciências humanas têm um papel a cumprir na sociedade.

Como desenvolver políticas de saúde, políticas de inclusão social, políticas de segurança, políticas culturais, políticas de transporte e energia sem a ajuda da sociologia e da antropologia? Como fundamentar o debate sobre reformas políticas, constituição e cidadania, sem a ciência política? Como conhecer o legado ou desmontar as armadilhas institucionais colocadas pelo passado sem a história? Como desenvolver políticas agrícolas, agrárias, urbanas, de moradia, de preservação ambiental, sem a geografia?

Sim, é possível que um governo desenvolva todas estas políticas públicas sem as pesquisas inúteis em ciências humanas. Como? Deixando que as corporações e a burocracia produzam estudos e formulações ou importando pesquisas de consultorias milionárias e de agências internacionais nem sempre independentes dos interesses econômicos e financeiros que regem o mundo. Não que a universidade esteja isenta deste risco, mas um ambiente de pesquisa em uma universidade pública, ou mesmo privada mas pautada por uma gestão comunitária, financiada a partir de critérios claros de qualidade e relevância, examinado por pares e controlado pela sociedade civil, ainda é o melhor caminho para se produzir ciência e conhecimento. Aliás, isto já vem sendo feito pelas universidades brasileiras. Se os políticos e gestores públicos não utilizam este conhecimento “público e gratuito” como deveriam, isso é outra história. Diz mais sobre nossos governantes, burocratas e parlamentares do que sobre a nossa universidade.

Para os que acham que a qualidade e relevância do conhecimento acadêmico se mede pela inserção no mercado, deveriam levar em conta que as ciências humanas também tem um potencial muito grande neste campo. Além de consolidar uma comunidade de leitores, consumidores de mídias e impressos, o vigor das humanidades tem impacto direto na indústria do turismo, no jornalismo, na indústria editorial, e indireto na chamada “economia criativa” (publicidade, games, design, moda). Portanto, não se trata de responder a estas demandas matando a pesquisa e transformando os cursos de ciência humanas em escolões genéricos. É verdade que os currículos dos cursos devem ser atualizados, como também é verdade que as pesquisas puras, “inúteis” para alguns, deveriam ser melhor articuladas à pesquisas aplicadas e ao desenvolvimento de C&T. Da minha parte, como profissional pesquisador e docente da área de Humanidades há mais de 30 anos, aceito esta cobrança.

Estas mudanças implicariam em construir um novo patamar da relação entre pesquisa, ensino e extensão, e não em destruir o próprio conceito de pesquisa em humanidades a partir da separação dos professores universitários da área entre um grupo seleto de pesquisadores full time e uma massa de professores horistas em salas lotadas de graduação. A área de humanidades, nas universidades públicas brasileiras, consolidou sua identidade e vocação: pesquisa e ensino articulados e inseparáveis. E apesar das dificuldades, é um modelo bem-sucedido, ainda que possa ser aprimorado e revisado. Por exemplo, na última lista do badalado QS World University Ranking sete cursos de graduação da Faculdade de Filosofia Letras e Ciências Humanas da USP estão entre os 100 ou 150 melhores do mundo, o que não é pouco para uma Faculdade com 10 mil alunos de graduação, 3 mil de pós-graduação e para um país sem tradição universitária. E todos estes cursos de graduação, diga-se, tem programas de pós-graduação a eles conectados que são considerados “de excelência” pela CAPES e reconhecidos internacionalmente.

Mas sabemos a guerra cultural contra as humanas está longe de ser desinteressada, meramente preocupada com a “doutrinação” dos pobres alunos quase adolescentes por professores mal-intencionados ou com a gastança do precioso dinheiro público que poderia ir para o superávit primário e fazer os investidores mais felizes. Trata-se de uma concepção de país, de ciência e de educação que está em jogo, e que veio à tona de maneira avassaladora nesta aliança tática entre a direitona autoritária e a direitinha liberal que tomou conta do Brasil contemporâneo.

No ensino, a guerra às humanidades tem produzido outras críticas superficiais. Por exemplo, a de que o currículo do ensino médio está cheio de “penduricalhos” desinteressantes para os alunos, desviando do que realmente interessa aprender no mundo de hoje: português, matemática e inglês. A integração curricular das disciplinas, a interdisciplinaridade, a flexibilização e o protagonismo dos alunos, sobretudo no ensino médio, são propostas importantes, mas não podem ser implementados a partir da virtual exclusão das humanidades no ensino médio.

Mas este assunto fica para um próximo texto

Mais armas, mais mortes

Por
Carolina Trevisan
-
7 de julho de 2017
Rio de Janeiro - A Polícia Federal e o Exército realizam procedimento de destruição de aproximadamente 4000 armas recolhidas pela PF nos últimos dois anos (Tânia Rêgo:Agência Brasil)
Rio de Janeiro - A Polícia Federal e o Exército realizam procedimento de destruição de aproximadamente 4000 armas recolhidas pela PF nos últimos dois anos (Tânia Rêgo:Agência Brasil)

Com uma forte indústria de armamento, o Brasil figura entre as potências mundiais na produção e comercialização de armas de fogo. É, também, o quarto maior exportador de armas leves do mundo, perdendo apenas para os Estados Unidos, a Itália e a Alemanha, de acordo com a pesquisa Small Arms Survey. A atividade rendeu, em 2012, US$ 374 milhões a esse setor industrial brasileiro, superando a Federação Russa e a China. 

Quanto mais armas circulando, mais mortes. O principal foco dessa violência letal continua sendo jovens, negros, com baixa escolaridade e moradores das periferias das grandes cidades – todas essas características sobrepostas. E o Brasil segue ignorando essa situação em seus planos de segurança pública. Aposta em diminuir a letalidade entre a população branca e favorecida, e se omite de proteger o grupo populacional mais vulnerável a essa condição, perpetuando um comportamento racista característico e estruturante da própria sociedade brasileira. Uma realidade histórica que se aprofunda.

Esse é o quadro revelado (mais uma vez) por duas importantes publicações lançadas esta semana: o Atlas da Violência, do Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA) e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), e o Mapa da Violência 2016, da Faculdade Latinoamericana de Ciências Sociais (Flacso).

O Brasil registrou, em 2015, 59.080 homicídios. Esse número corresponde a uma taxa de 28,9 mortes a cada 100 mil habitantes, de acordo com o IPEA e com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública. “Trata-se de um número exorbitante, que faz com que em apenas três semanas o total de assassinatos no País supere a quantidade de pessoas que foram mortas em todos os ataques terroristas no mundo em 2017”, demonstra o estudo. Para poder comparar, este ano houve 499 atentados em que morreram 3.343 pessoas. A violência no Brasil mata bem mais.

Esse dado consolida também uma mudança no patamar da violência letal e evidencia a tendência ao aumento no número de mortes por armas de fogo. Mostra que o Estatuto do Desarmamento teve papel fundamental para frear o crescimento da violência por armas de fogo entre 2003 e 2014, até estagnar os índices. Mas agora já não é suficiente. Outras medidas, especialmente políticas públicas para a juventude, precisariam se agregar à iniciativa. “Apesar do estatuto, as autoridades, em vários níveis, federal, estadual e municipal, não se organizaram para retirar a arma de fogo de circulação”, diz Daniel Cerqueira, pesquisador do IPEA e coordenador do Atlas da Violência.

O uso de armas de fogo está presente em 71,9% dos homicídios, 7 em 10 casos. A cada 1% no aumento da proliferação de armas, aumenta em 2% a taxa de homicídios, aponta o estudo. As políticas de controle de armas sancionadas em 2004 com o Estatuto do Desarmamento foram responsáveis por poupar a vida de 133.987, mostra o Mapa da Violência deste ano.

Taxa de mortes por armas de fogo por 100 mil habitantes
Taxa de mortes por armas de fogo por 100 mil habitantes

Seletividade racial

A violência letal no País tem alvo certo desde que o Brasil é Brasil. A cada 100 pessoas que sofreram homicídio em 2015, 71 eram negras, 54 eram jovens e 73 não possuíam o fundamental completo (essas características se aglutinam). Os negros possuem chances 23,5% maiores de serem assassinados, em relação a brasileiros de outras raças. O racismo histórico e a desigualdade profunda são fatores que provocam a naturalização tantas vidas perdidas.O assassinato de mulheres negras também é muito superior à mortalidade de mulheres brancas. Entre 2005 e 2015, houve aumento de 22% na mortalidade de negras, enquanto que houve redução de 7,4% na mortalidade de não negras.

“Além da herança do passado colonial e escravocrata, outros fatores podem ser mencionados na tentativa de explicar essa crescente seletividade racial da violência homicida. Em primeiro lugar, a progressiva privatização do aparelho de segurança”, explica o Mapa da Violência. “Em teoria, os setores e áreas mais abastados, geralmente brancos, têm uma dupla segurança: a pública e a privada; enquanto as menos abastadas, a das periferias, predominantemente negros, têm de se contentar com o mínimo de segurança que o Estado oferece. Um segundo fator adiciona-se e complementa o anterior: a segurança, a saúde, a educação, etc., áreas que formam parte do jogo político-eleitoral e da disputa partidária. As ações e a cobertura da segurança pública distribuem-se de forma inteiramente desigual nas diversas áreas geográficas, priorizando espaços segundo sua visibilidade política, seu impacto na opinião pública e, principalmente, na mídia, que reage de forma bem diferenciada de acordo com o status social e econômico das vítimas. Como resultado, os recursos públicos de proteção são canalizados, preferentemente, para as áreas mais abastadas, com predominância de população branca, que ostentam os benefícios de dupla segurança, pública e privada.”

O que não se considera é que ao não tratar da violência letal, o País não consegue se desenvolver como nação. Perdemos 318 mil jovens por homicídio nos últimos 10 anos. “Falta comprometimento das autoridades”, alerta Cerqueira. Essas mortes também custam ao País 1,5% do PIB.

Outra força motriz matadora de jovens negros é a polícia, sob o argumento da “guerra às drogas”. Segundo o Atlas da Violência, em 2015 a segurança pública registrou 3.320 mortes decorrentes de intervenção policial, dado subnotificado. “Nos últimos anos, assistimos a um realinhamento a favor desse modelo de atuação policial que permanece como um dos maiores desafios de nosso processo de consolidação democrática e de um efetivo Estado de Direito”, afirma o estudo. “Não é à toa que as taxas de homicídios cometidos pela polícia no Brasil são muito altas. Trata-se de uma força policial militarizada, que vê os jovens, em especial os negros e os moradores de favelas e periferias, como potenciais inimigos que devem ser combatidos. E de uma política de “guerra às drogas” que vem sendo questionada e abandonada em várias partes do mundo”, afirma Jurema Werneck, diretora executiva da Anistia Internacional.

Homicídios por armas de fogo, por raça. Fonte: Mapa da Violência
Homicídios por armas de fogo, por raça. Fonte: Mapa da Violência


Unidades da Federação e municípios

Em 2015, apenas 111 municípios (que corresponde a 2,0% do total de municípios, ou 19,2% da população brasileira) responderam por metade dos homicídios no Brasil e 557 municípios (10% do total) concentraram 76,5% das mortes violentas no país. Os municípios mais pacíficos se localizam no Sudeste e os mais violentos, no Nordeste. Altamira (PA) lidera a lista entre as cidades com mais de 100 mil habitantes. Entre as causas para esse quadro estão desigualdade social profunda e crescimento desordenado.

Os três estados mais violentos também estão no Nordeste: Sergipe é o primeiro da lista do Atlas da Violência, seguido por Alagoas e Ceará. Destaca-se o caso de Pernambuco, que chegou a ter a sua capital, Recife, como a campeã de homicídios. Com políticas de segurança pública voltadas para a manutenção da vida (e não para a repressão), Pernambuco teve queda de 36% na taxa de homicídios ao longo de 11 anos. Mas a violência cresceu em 2014, mostrando que para tratar dessa questão são necessárias medidas transversais em diversas áreas.

Para entender o nosso racismo

Por
Carolina Trevisan
-
5 de julho de 2017
Ana Luiza Flauzina, diretora do filme Além do Espelho. Foto- Alexandre Alves
Ana Luiza Flauzina, diretora do filme Além do Espelho. Foto- Alexandre Alves

Não é possível entender o Brasil sem compreender que um dos pilares que sustenta a sociedade brasileira até hoje – e na qual se estruturou a nossa formação social – é o racismo. Em busca de provocar reflexões em torno desse tema no Brasil e nos Estados Unidos, Ana Luiza Flauzina, advogada e professora da Unilab (Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasiliera), mestre, doutora e pós doutora em Direito e especialista em Criminologia, juntou dois grandes ícones da intelectualidade negra para uma conversa, que gerou o documentário Além do Espelho, sob sua direção. O jornalista Edson Cardoso no Brasil e o cineasta etíope Haile Gerima nos Estados Unidos, travam um debate que aborda temas como violência, academia, resistência, memória e amor.

Fincado no respeito à ancestralidade, o filme transmite a sabedoria, a generosidade, os anos de luta, de descobrimento e de delicadeza de Cardoso e Gerima. “É um instrumento didático e político que gostaria que circulasse, que suscitasse reflexões”, explica Ana.

Em um vai e vem de diálogos, a película chama a atenção para um aspecto cruel: o entendimento de que o racismo é um processo de desumanização. “É a expropriação de base que permite, autoriza e chancela a barbárie, sem qualquer implicação da consciência”, afirma Ana. Por isso, a atual perda de mais de 45 mil vidas de jovens negros por homicídio (corresponde a 70% do total) não comove. Não causa revolta na maioria.

O Brasil é o país que mais tempo explorou a escravidão no mundo. É também o que mais submeteu africanos à travessia do Atlântico para servirem de escravos. Essa História do Brasil tem consequências profundas. No racismo moderno, as forças de segurança do Estado tratam de eliminar e encarcerar gerações inteiras de jovens e mulheres negras sob o argumento da “guerra às drogas”. Com a justificativa de combater o tráfico de drogas, criminaliza-se toda uma população, uma comunidade, um perfil de brasileiros.

Parece que esquecemos quem somos. Quem tomba o corpo negro faz questão de apagar a memória (tanto do agressor como da vítima) e tenta deixar escrita outra narrativa: troca de tiros, sujeito armado, resistiu à prisão. “É na guerra pela memória, pelos processos que nos fizeram ser o que somos, que se disputam as políticas públicas, o acesso a recursos, o controle do Estado”, afirma a professora. “O saqueamento da memória é o pressuposto primeiro do genocídio.” Gerima chama essa importância de “arma da memória”.

Por conta desse passado, a resistência é uma das principais características do povo negro. “Somos frutos de uma gente que sobreviveu ao horror com altivez; que encarou chicote e revidou com guerra; que amou quando tudo era desilusão. Somos gente que cozinha com sobras e faz comida temperada; que engana a fome com sono; que insiste em sonhar em tempos de crise. Esse sentido da pertença tem de ser partilhado, cultivado, honrado.”

O enfrentamento ao racismo é um compromisso de todo mundo.
Para contribuir com a finalização documentário, clique aqui.

Brasileiros – Por que você quis fazer o filme?
Ana Luiza Flauzina – 
Não sei se quis fazer o filme, no sentido de que tive uma ideia e decidi naturalmente construir uma narrativa cinematográfica a partir dela. Na verdade, acho que o filme me escolheu. Quando me veio o insight de registrar o encontro de Edson e Haile, não consegui mais voltar atrás. Me debati bastante, confesso, por estar em outro país, ter pouco contato com o cinema, mas a demanda do compromisso venceu.

Como foi a escolha dos dois grandes intelectuais negros como referência para a discussão que o filme traz? Como a importância da ancestralidade compõe com essa escolha?
A escolha foi muito orgânica. Edson é uma referência muito importante na minha vida. É um dos maiores intelectuais negros brasileiros e um militante que fala de entrega, de generosidade. Conheci Haile em 2010 e tive a honra de ser ouvinte em algumas de suas disciplinas na Howard University. Haile é um homem raro, um militante desses que cativa pela doçura e ensina a ousadia. Ouvi-lo falar me deixava com os olhos marejados, ficava com saudades de Edson naqueles momentos, era uma coisa que me tocava de maneira muito especial. Reconheci um no outro de alguma forma e juro que a vontade inicial era somente de apresentá-los, mas entendi que mediar o diálogo deles seria um registro importante pra gente. E isso, claro, calou fundo como uma forma de honrar isso que se chama ancestralidade. Não somente como metáfora e idolatria dos que se foram, mas como concretude dos que nos cercam e nos inspiram, com todos os riscos nisso implicados. De que não se tratam de pessoas perfeitas, de que discordâncias, inclusive com as minhas perspetivas, são um dado, mas que fazem parte do chão que pavimentou e pavimenta a minha caminhada.

Que objetivo você gostaria que o filme alcançasse?
Acho que a maior qualidade do filme é ser acessível. Os dois tratam das mais diversas questões em torno do racismo, da violência, da resistência, do amor, e de tantas outras temáticas, de forma muito generosa. É um instrumento didático e político que gostaria que circulasse, que suscitasse reflexões em torno do tema. É um material que pode ser usado na Universidade e em centros comunitários, tem versatilidade pela linguagem que emprega, apesar da densidade das reflexões. Então espero que possamos tomar posse do filme para explorar seu potencial como catalisador de discussões sobre a questão racial.

Edson Cardoso, no começo do documentário, fala sobre o que é o racismo e a desumanização do povo negro. “Racismo é dizer que além do mais não são humanos como nós”. Gostaria que você dissesse o que é o racismo pra você. 

Escolhi essa síntese de Edson na definição de racismo, porque partilho dela. Racismo é fundamentalmente um processo de desumanização. É a expropriação de base que permite, autoriza e chancela a barbárie, sem qualquer implicação da consciência. Talvez seja essa a maior capacidade do racismo. Conseguir naturalizar a dor negra como consenso que não implica as pessoas num dilema ético. É a operação que tranquiliza o sono das elites, enquanto o genocídio abate um contingente tomado como abjeto, menor, descartável. É a herança mais bem guardada dos escombros na escravidão no Brasil e na Diáspora.

Haile Gerima também fala sobre o que é o racismo e diz que “genocídio não é apenas quando você é fisicamente morto. Acontece quando a sua memória é roubada também. É a arma da memória”. Você pode explicar como é esse sequestro da memória? No que isso implica?
A questão da memória é essencial no enfrentamento ao racismo e isso sempre foi muito claro pra mim. Eu tenho uma formação em Direito e História e acabei fincando pé nas trincheiras jurídicas. Eu sempre digo que saí da História por covardia, porque sabia que ali era o grande espaço da nossa disputa. Me refugiei numa arena que quer se dizer mais relevante mas, na realidade, é mais débil nesse jogo. A forma como se pode mobilizar o passado, acessar as versões das narrativas históricas é um dos maiores trunfos políticos que se pode ter. A subjugação de negros e indígenas só é possível porque temos uma memória cerceada, saqueada. Se você só dá o presente a um grupo marginalizado, ele fica sufocado em sua contingência, inibido de articular resistência e reclamar reparação. É na guerra pela memória, pelos processos que nos fizeram ser o que somos, que se disputam as políticas públicas, o acesso a recursos, o controle do Estado. As elites narram essa história como direito adquirido e natural. Resistir a esse estado de coisas é produzir uma contra-narrativa que entenda a desigualdade que nos assola como expropriação e violência. Então o saqueamento da memória é o pressuposto primeiro do genocídio. É isso o que Haile nos mostra de forma brilhante no filme.

Sobre o sistema de cotas, Edson faz uma reflexão importante: não basta que as pessoas negras ocupem espaços nas universidades. As universidades precisam “mudar-se” a si mesmas, sair da orientação europeia e incluir a fundamental história negra. Como você vê essa possibilidade?
Acho que o debate sobre as cotas nas Universidades é um bom emblema dos nossos desafios. Sobre como essa categoria da inclusão é limitada no que ela produz. O Edson trabalha bem isso. Ele sempre lembra que é possível promover a tal “igualdade racial” sem enfrentar o racismo. Ou seja, não se trata de “colorir” os espaços acadêmicos, mas de negociar os sentidos epistemológicos, a própria forma de se produzir conhecimento. Não se quer, com as cotas, transformar somente a paisagem da Universidade, queremos é salvar a Universidade de sua mediocridade, a partir de uma ampliação das abordagens possíveis. Porque isso é algo de crédito absoluto das elites: essa pobreza da educação superior no Brasil, com uma produção acadêmica débil, principalmente no âmbito das humanidades. São lentes obtusas, que não querem se ampliar, incapazes de dar respostas a questões básicas que assaltam o cotidiano, porque se recusam a encarar o Brasil de frente. Isso inclusive nas fileiras ditas progressistas. A boçalidade colonial é um dado tão arraigado na formação das elites universitárias que não há alento para quebra de paradigmas com os horizontes europeus, nem nos redutos que se auto intitulam críticos. Isso é verdade para quase todas as áreas. Então quando falamos de cotas, não estamos falando de um sistema que está aí não para comprometer a qualidade do ensino, como muitos insistem ainda hoje em afirmar, mas de salvá-lo de sua decadência. Porque não há um sistema de excelência na educação superior no Brasil construído pelos brancos a ser maculado por negros e indígenas. O que há é uma estrutura conservadora deficiente que precisa ser revista para ampliar os escopos de sua produção e intervenção social. Ou as cotas têm esse tipo de horizonte ou se transformam em penduricalho da diversidade neoliberal, que maquia as instituições enquanto reforça suas práticas obsoletas.

Na sua opinião, qual é o papel dos brancos brasileiros no enfrentamento ao racismo? 
Confesso que essa pergunta sempre me perturba um pouco. Porque de alguma forma está implícita uma noção de que a questão racial é uma questão de interesse exclusivo de negros e negras, já que nos compete inclusive dizer o que cabe aos brancos fazerem. A história do racismo é constituída de personagens que sofrem violências e outros que experimentam privilégios frutos dessas violências, naturalizando-os como direitos, como pontua Jurema Werneck. Então a desconstrução dessa teia de vilipêndios cabe a negros e brancos e os caminhos para a superação do racismo pelas pessoas brancas têm de ser descobertos e trilhados por elas. Acho que são as pessoas brancas, experts nos privilégios raciais, que têm de achar as vias para o desmantelamento desse castelo. Pra mim essa questão sempre soa como um espaço da branquitude meio mimado, que quer resposta pronta pra tudo. Como se a transformação social tivesse algum tipo de receita acabada e não se tratasse de trabalho árduo, regado de educação política e compromisso. Ou seja, as pessoas brancas têm se empenhar, assim como nós, para descobrir as armadilhas do racismo, testar possibilidades, encarar seus paradoxos. E não imputar mais um encargo às pessoas negras que, de repente, têm de aparecer com soluções mágicas para o dilema dos seus privilégios. Então o papel dos brancos é se entrincheirar contra o racismo do seu lugar, politizando suas questões e achando respostas efetivas para as violências em curso.

Por favor, explique, do seu ponto de vista de mulher negra, como se dá a sobreposição do racismo com o sexismo e no que isso implica.
As questões racial e de gênero, com suas correlatas dimensões de sexualidade, são a espinha dorsal da formação social brasileira. Não há como entender o Brasil sem enfrentar essas variáveis. Pessoalmente, estou cada vez mais preocupada em visibilizar as consequências da associação desses vetores para dentro das comunidades e da militância negra. Tenho dito que temos sido capazes de denunciar os efeitos do racismo para fora, em especial na politização do extermínio da juventude negra, mas ainda temos um longo caminho a percorrer para desafiar os efeitos do racismo para dentro de nossas comunidades. E nesse enredo, as mulheres negras têm definitivamente tido suas dores e narrativas silenciadas. O sofrimento negro tem sido encapsulado na imagem de uma mãe negra que chora pela perda de seu filho. Se essa é uma imagem bem acabada da nossa tragédia cotidiana, ela não pode ser a única a sinalizar os dados da nossa miséria. Afinal, a dor das mulheres negras não é só derivada da violência infligida aos homens e meninos negros, mas é também provocada por eles. E, claro, aqui estou fazendo a operação oposta do estereótipo que caricatura homens negros como seres violentos, na justificativa do extermínio. Estou falando de como o sentido de masculinidade, que tem assolado as mulheres como um todo, tem de ser pensado no horizonte do racismo. Que pressões sofrem os homens negros e qual a medida da explosão dessas tensões para as comunidades negras? Que engodo há nesse pacto da masculinidade negra e branca que tem sido um desserviço no enfrentamento ao racismo? A pergunta que nós mulheres negras estamos fazendo é: afinal, o que é ser um homem negro cis-heteroconforme? A politização do sentido dessa masculinidade é urgente se queremos enfrentar o genocídio de forma radical. Temos que dar conta não só das mortes provocadas pelas polícias, mas, no mesmo fôlego, das costelas quebradas, dos estupros, e das violências psicológicas. É preciso encarar o que o racismo tem provocado também em nossas entranhas. Há uma nova geração de feministas negras, a exemplo de Carla Ackotirene, que vem consolidando esse tipo de discussão. Mas penso que temos que adensar ainda mais esse debate.

Os dois intelectuais afirmam que a resistência negra, a capacidade de resistir e sobreviver, é um tesouro. Qual o seu ponto de vista sobre isso?
A resistência é o grande elo que unifica os personagens no filme, como metáfora para o que nos mobiliza como pessoas. É importante que nos apropriemos disso com orgulho. Somos frutos de uma gente que sobreviveu ao horror com altivez; que encarou chicote e revidou com guerra; que amou quando tudo era desilusão. Somos gente que cozinha com sobras e faz comida temperada; que engana a fome com sono; que insiste em sonhar em tempos de crise. Esse sentido da pertença tem de ser partilhado, cultivado, honrado. Steve Biko uma vez disse que “a gente está vivo e orgulhoso, ou está morto”. É dessa matriz do orgulho de ser quem somos sem reservas a que me refiro. Da resistência como fundamento da vida humana, que importa em especial às pessoas negras pelas condições precárias impostas pelo racismo. É isso, como pontuam Edson e Haile, o que nos mantém vivos, nos faz possibilidade constante, nos dá propósito pra seguir.

Por fim, a trilha sonora que acompanha seu filme fala do medo do espelho se quebrar. Você tem medo também? O que significa?
Essa música tem um significado forte pra mim. Me conecta aos meus avós, que já partiram. Diz de como a ancestralidade vive em nós; de como os legados se reproduzem; de como os espelhos são capazes de refletir memórias. Achei que era uma boa síntese do filme e estava à altura de Edson e Gerima, por inspirarem tantos e tantas a seguirem os caminhos do compromisso. É uma música que não só ilustra, mas diz, ela própria, dos horizontes esperançosos que orientam a caminhada das pessoas negras. Me toca, especialmente, a versão inédita que Cris Pereira fez para o filme, na releitura desse clássico de João Nogueira. Vale a pena conferir.

Poder econômico e corrupção: afinal, qual é a peculiaridade brasileira?

Por
Redação
-
20 de junho de 2017
'Que rumos daremos para as instituições políticas brasileiras de modo a mitigar o monopólio do poder econômico das grandes corporações e das famílias endinheiradas sobre o sistema político?' FOTO: EBC

O poder econômico e a corrupção política são faces de uma mesma moeda, a bem da verdade: o capitalismo acontece naquela antessala mal iluminada, em horários duvidosos, onde se encontram os donos do dinheiro e os donos do poder. A negociação de decisões do executivo, do legislativo ou do judiciário como barganha para interesses de grandes corporações, de conselhos administrativos e de empresários é a regra global e não a exceção brasileira.

Não haveria economia de mercado dos EUA à China, passando por Inglaterra, França, Alemanha, Rússia, Japão ou Coréia, sem que houvesse a imbricação entre interesses políticos e interesses empresariais, como, aliás, demonstram os grandes e recentes casos de corrupção na Siemens alemã, na Samsung coreana, na Alstom francesa, na BAE inglesa, na Weatherford suíça, para não mencionar os bancos norte-americanos e agências de classificação de risco que, com muitos desvios, propinas e ilícitos, provocaram a grande crise econômica de 2008, ou alguém imaginou que um país que elegeu Donald Trump como presidente seria um caso de capitalismo asséptico e de democracia auto-imune? Talvez nossos crédulos republicanos liberais nativos que tanto admiram os federalistas e os founding fathers norte-americanos tenham se deixado seduzir por esse engodo, mas ele pouco ajuda a compreender o caso brasileiro atual.

Noutras palavras, a mistura entre público e privado – ao contrário do que acredita parte do pensamento social e da opinião pública brasileira – não é uma peculiaridade nacional. Mas tal enunciação não deve servir para naturalizar ou para normalizar a corrupção no mundo e no Brasil, ela serve antes para colocar o debate em outro lugar, talvez, no seu devido lugar.

O escândalo provocado pelas delações de Marcelo Odebrecht e Joesley Batista não tratam apenas das relações entre a Odebrecht e a Petrobrás, ou entre a J&F e a CEF ou o BNDES, elas revelam problemas mais profundos e que são pouco observados tanto pelos operadores e entusiastas da Lava Jato quanto pela maior parte daqueles que fazem uma leitura crítica da Operação. Um ponto os une: a obsessão em resumir todo o problema brasileiro à famigerada questão do patrimonialismo. No Brasil esse conceito cria ares de família entre as mais variadas posições teóricas e colorações políticas[1]. Nada disso, vale explicitar em tempos de calores e polarizações políticas, ameniza ou absolve o escandaloso butim praticado pelo bando de Aécio, Temer et caterva. Mas a conjuntura desafia a reflexão, ao menos ela, a ir além da lama onde nos colocou essa quadrilha de saqueadores.

Entre nós o conceito de patrimonialismo virou uma espécie de “pau para toda obra” e a flexibilidade teórica chega a tal ponto que a ideia de patrimonialismo é tratada como mero sinônimo de patriarcalismo, de patronato, de privatismo, de clientelismo, de fisiologismo, de corporativismo, de mistura entre público e privado, e toda sorte de patologias que abatem nossa cultura política, em favor do conceito dão-se abraçaços conceituais para acolher e dilatar a ideia de que o Brasil é mesmo o país dos mal-feitos e do “jeitinho”, onde o capitalismo é mal-ajambrado e a democracia é um mal-entendido. A boa intenção em encontrar a tal singularidade brasileira esconde por trás de si a suposição de que em algum lugar do mundo exista um capitalismo puro e uma democracia ideal. Ledo engano.

Mas, se a corrupção não é exclusividade nacional, como entre nós ela tem criado tanto assombro? A nossa peculiaridade se encontra em outro lugar, não no problema, mas na falta de iniciativas concretas capazes de enfrentar o referido problema. O que se percebe em ao menos três aspectos fundamentais, que, infelizmente, tem sido negligenciados pelo debate público, quais sejam[2]:

  • A ausência de regulamentação do lobby; diante da falta de uma normatização clara sobre o que é permitido e o que é proibido no campo das relações público-privadas, as interpretações ficam a cargo das vontades e dos valores de procuradores, juízes e policiais de plantão, tudo agravado pela utilização indiscriminada das delações premiadas, dos acordos de leniência e dos vazamentos seletivos;
  • A possibilidade de que as doações de campanha sejam proporcionais às rendas e riquezas dos doadores. Esse tipo de jabuticaba só existe no Brasil, se não houver um teto universal para todos os doadores é evidente que os mais ricos sempre terão mais poder de decisão nessa democracia, ainda que como pessoas físicas, o que só reforça o surgimento de fenômenos como a ascensão de empresários na política;
  • A existência de uma cultura política fraca e de instituições políticas pouco sólidas, criando um clima muito favorável para a desqualificação e a criminalização da política em geral e para a construção de uma opinião pública muito suscetível ao moralismo e desejosa menos de justiça e mais de justiçamentos e linchamentos.

Em qualquer capitalismo mais organizado a mistura entre público e privado sofreu algum tipo de regulamentação mais contundente, no Brasil não, de forma que toda negociação passa a ser potencialmente tratada como relação espúria ou como crime, ao sabor do jogo de interesses do momento. Nesse ambiente, toda negociação, toda barganha, todo ajuste de interesses está passível de ser colocado numa sombra de avaliação moral, dando margens para perseguições políticas como a realizada pela Operação Lava Jato contra o PT e contra Lula.

É sintomático que as investigações tenham atingido outros partidos, como o PMDB e o PSDB, apenas quando a “delação preventiva” da J&F recorreu diretamente à PGR de Rodrigo Janot sem passar pela instância curitibana de Sérgio Moro. Ao realizar tal procedimento, evidentemente, para salvar a si próprio, à família e aos negócios privados, Joesley Batista revelou, ainda que indiretamente, os limites da Operação Lava Jato, parafraseando a expressão popular: o buraco é mais em cima. Os procuradores, juízes e policiais de Curitiba não tem um diagnóstico claro do problema que pretendem combater.

Passa ao largo da leitura desses jovens justiceiros elementos fundamentais para compreender e enfrentar a relação entre poder econômico e corrupção no Brasil: (i) historicamente, o arranjo institucional que permitiu o desenvolvimento da nossa economia se ancorou na articulação entre empresas estatais e empresas privadas; (ii) estruturalmente, o poder econômico monopoliza o sistema político em qualquer Estado-nacional relevante no sistema capitalista; (iii) dinamicamente, o poder econômico e o poder político são essencialmente interconectados, é possível melhorar a relação entre eles, mas não é possível isolá-los um do outro, ao menos não no capitalismo; (iv) tampouco se questionam que o comportamento político que está sendo investigado talvez seja a regra geral do sistema político e não a exceção partidária brasileira.

Entretanto, na concepção estreita e moralista dos operadores da Lava Jato, o problema da corrupção no Brasil é um mal recente, concentrado em pessoas más e antiéticas que precisam ser enfrentadas por pessoas boas e competentes. Tamanho reducionismo é risível, vexatório, e seria apenas uma piada de mau gosto se ele não tivesse se transformado no princípio que justifica a teoria do domínio do fato, a hipótese da flexibilização das provas, a priorização das convicções do MP sobre o direito de defesa de indiciados, e o expediente de se condenar acusados pela mídia antes do que pela própria justiça, tudo isso levado a cabo pela generalização da delação premiada, um instrumento propício para quem entende a corrupção como um problema pessoal ou moral e que vem substituindo a construção de outros mecanismos mais eficientes de combate à corrupção.

Com esse diagnóstico moralista e essa prática inquisitória a Operação Lava Jato cria um clima político instável, marcado ora pelo êxtase com a revelação da suposta verdade ora pela depressão com o desnudamento da realidade, enquanto isso ela coloca sob suspeita todas as instituições do país, o resultado em última instância tem sido o assombro e a desesperança da população com a política como um todo.

Em certa medida, os operadores da Lava Jato contam com a cumplicidade da opinião pública, que, se por um lado sempre desconfiou que as coisas funcionassem assim, posto que ela própria é dada aos pequenos delitos e ilícitos do cotidiano, por outro lado, ela ficou assustada e boquiaberta ao ver de forma nua e crua as entranhas “do sistema”. Aliás, enquanto a opinião pública não superar o choque do trauma e não der boas vindas ao deserto do real dificilmente nos recuperaremos de fato, e a avenida política seguirá aberta para outsiders de plantão e aventureiros de última hora.

A corrupção é um problema sistêmico que precisa ser enfrentado? Sim. Qualquer instrumento é válido para enfrentar a corrupção? Não. A Operação Lava Jato caminha na contramão da governança e da jurisprudência internacional e presta um desserviço ao Brasil jogando água no moinho daqueles que só repetem monotonamente feito uma cantilena: o Brasil é o país do patrimonialismo, onde o capitalismo não vingou. Não, o Brasil é um país capitalista como tantos outros, e se quisermos superar os reclamos e lamentos temos que enfrentar o choque de realidade que nos tem sido imposto pela conjuntura adversa e responder uma questão já enfrentada por outros países:

Que rumos daremos para as instituições políticas brasileiras de modo a mitigar o monopólio do poder econômico das grandes corporações e das famílias endinheiradas sobre o sistema político? Sobressaltos, moralismos e expedientes inquisitoriais não nos ajudarão nesse momento, isso a Operação Lava Jato já faz, assim como não nos ajudarão formulações genéricas sobre a democracia e platitudes etéreas sobre a falta do republicanismo brasileiro.

O tempo histórico exige mais do que pudemos oferecer até agora, exige medidas concretas de reconstrução e aperfeiçoamento das nossas instituições em outros patamares, sem regular e regulamentar a sanha do poder econômico e o assanhamento do poder político seguiremos aos tropeços, enfrentando golpes, rupturas constitucionais e quebras de pactos sociais.

*  William Nozaki é cientista político, economista e professor da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo

[1] A crítica contra o uso generalizado e indiscriminado do conceito de patrimonialismo pode ser encontrada em: Souza, Jessé. A tolice da inteligência brasileira. São Paulo: Leya, 2015.

[2] Essa problematização pode ser encontrada de forma mais aprofundada em: Reis, Bruno. A Lava-Jato é o Plano Cruzado do combate à corrupção. Disponível em:< http://novosestudos.uol.com.br/a-lava-jato-e-o-plano-cruzado-do-combate-a-corrupcao/>.

 

Sidney Chalhoub: “A meritocracia é um mito que alimenta as desigualdades”

Por
Redação
-
9 de junho de 2017
Sidney Chalhoub
Sidney Chalhoub
  • André Sampaio

Ao aprovar o princípio das cotas étnico-raciais, a Unicamp se alinhou às grandes universidades do mundo, como Harvard, Yale e Columbia, que adotam a diversidade como critério para o ingresso de seus estudantes. O pressuposto dessas instituições é que a diversidade melhora a qualidade. A afirmação é do historiador Sidney Chalhoub, professor titular colaborador do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) da Unicamp e docente do Departamento de História da Universidade de Harvard (EUA). Na entrevista que segue, concedida ao Jornal da Unicamp, Chalhoub salienta a importância das ações afirmativas como mecanismo de reparação e promoção de justiça social e contesta argumentos utilizados pelos críticos das cotas, como a necessidade de preservar a meritocracia. “A meritocracia como valor universal, fora das condições sociais e históricas que marcam a sociedade brasileira, é um mito que serve à reprodução eterna das desigualdades sociais e raciais que caracterizam a nossa sociedade. Portanto, a meritocracia é um mito que precisa ser combatido tanto na teoria quanto na prática. Não existe nada que justifique essa meritocracia darwinista, que é a lei da sobrevivência do mais forte e que promove constantemente a exclusão de setores da sociedade brasileira. Isso não pode continuar”, defende.

Jornal da Unicamp – Quem tem medo das cotas étnico-raciais?

Sidney Chalhoub – Quando esse assunto começou a ser discutido no Brasil, ainda nos anos 1990, houve uma resistência grande entre intelectuais e acadêmicos que consideravam que a adoção desse sistema provocaria tensões raciais na sociedade brasileira. No entanto, o que se viu, conforme essas políticas foram sendo adotadas, primeiro isoladamente por algumas universidades estaduais, e depois em várias universidades federais, até que uma legislação federal sobre o assunto fosse aprovada, foi que as cotas foram muito bem acolhidas no interior das instituições. Hoje, o que se vê na Unicamp é a defesa das cotas pelo movimento estudantil. A defesa não está restrita ao movimento negro. A partir das experiências das universidades estaduais e federais, houve o entendimento de que a diversidade do corpo discente contribui para a qualidade acadêmica e para a produção de conhecimento nas universidades. Os que têm medo das cotas são os setores que têm tido acesso às universidades públicas e gratuitas como uma prerrogativa sua, de muitas décadas. São pessoas que vão a escolas particulares porque têm maior poder aquisitivo e que defendem a exclusividade de acesso à universidade pública, gratuita e de qualidade. Esta é uma distorção grande na sociedade brasileira.

Entretanto, não é possível generalizar. Hoje você tem um contingente grande de estudantes da Unicamp que são brancos e de classes favorecidas e que também entendem a importância das cotas para promover a diversidade no corpo discente e para promover diferentes perspectivas a respeito dos assuntos abordados pela universidade. Esse novo contingente de alunos colocará em cheque vários hábitos da universidade. Vai forçar um questionamento a respeito da importância da existência da universidade pública, a quem ela deve servir e que tipo de conhecimento ela deve produzir. Essa experiência é muito bem-vinda. A resistência às cotas é mais barulhenta que generalizada. O país convive bem com a ideia das cotas. O engajamento dos estudantes da Unicamp em geral mostra a receptividade à ideia. As pesquisas de opinião mostram que a maior parte da população brasileira é favorável às políticas de ação afirmativa e o próprio Supremo Tribunal Federal aprovou por unanimidade a necessidade dessas políticas para combater o racismo e as consequências dele na sociedade brasileira.

JU – O princípio das cotas é um tema novo?

Sidney Chalhoub – Não. O tema está longe de ser uma originalidade brasileira. As melhores universidades do mundo, aquelas que a própria Unicamp utiliza como referência para qualificar suas atividades, adotam a diversidade no ingresso dos estudantes há bastante tempo. Harvard, Yale e Columbia, para ficar em três exemplos, adotam políticas agressivas de promoção da diversidade do corpo discente. Não fazer isso deixaria a Unicamp na contramão da história. A decisão do Conselho Universitário em aprovar o princípio das cotas foi muito bem-vinda.

JU – Correntes contrárias às cotas étnicos-raciais argumentam que esse tipo de política pode comprometer a qualidade do ensino, ao permitir o ingresso de estudantes “despreparados” na vida acadêmica. Como o senhor analisa esse tipo de justificativa?

Sidney Chalhoub – A primeira observação a respeito disso é que, como mencionei anteriormente, o pressuposto das grandes universidades do mundo é que a diversidade melhora a qualidade. Obriga a um contraste de pontos de vista. Enquanto a universidade existe como prerrogativa de uma mesma classe social, de uma mesma raça e dos mesmos setores, ela não se abre ao tipo de questionamento e de tensões que são criativas, oriundas da necessidade da convivência de grupos sociais e raciais com perspectivas diferentes. O segundo ponto é que, na prática, todas as pesquisas existentes demonstram claramente que o desempenho dos estudantes cotistas é igual ou superior ao desempenho dos não cotistas nas universidades estaduais e federais que adotaram esse tipo de política afirmativa. Isso é fácil de entender.

Ao contrário da propaganda maldosa que se faz, a adoção de cotas não tem nada a ver com a exclusão do mérito. Tem a ver com a utilização de critérios de seleção que promovam a competição entre estudantes que tiveram oportunidades educacionais semelhantes até o momento em que se candidatam ao ingresso na universidade. Dessa forma, os estudantes negros e indígenas que serão selecionados representarão uma fração dos que postularam uma vaga na universidade. Serão, portanto, os melhores entre eles. A tendência é que sejam ótimos alunos, tanto quanto os não cotistas. Por fim, a universidade evidentemente tem o desafio de lidar com eventuais dificuldades que existam entre os estudantes de modo geral. Tanto as dificuldades de origem socioeconômica quanto as acadêmicas e pedagógicas. Nada disso impede, porém, que a apolítica de cotas seja implementada. Essa é uma dívida das universidades públicas em relação à população afrodescendente. Obviamente, os programas de permanência estudantil são tão importantes quando a criação de oportunidades de ingresso. Esse é um desafio que a Unicamp terá que enfrentar.

JU – Numa das audiências públicas promovidas em 2016 pela Universidade para discutir o princípio das cotas, um professor universitário de origem indígena disse que os indígenas não querem mais ser apenas estudados pela academia. Eles também querem contribuir para a construção da ciência…

Sidney Chalhoub – Esses novos sujeitos que ingressam na universidade representam um deslocamento importante de negros, indígenas e populações pobres, que são objeto de estudos da academia, mas que raramente têm a oportunidade de se tornarem sujeitos do conhecimento. Isso também é uma experiência fundamental e epistemológica. Isso descentraliza o conhecimento e permite que perspectivas diferentes passem a fazer parte do cenário das universidades. Um assunto no qual a universidade é bastante carente diz respeito a uma reflexão conjunta sobre que tipo de conhecimento ela deve produzir e para quem são esses conhecimentos.

Será que o conhecimento que a universidade produz na área de energia, por exemplo, deve estar voltado às necessidades do mercado ou deve priorizar as necessidades de preservação do planeta? Até que ponto os conhecimentos gerados na área médica priorizam o bem-estar do conjunto da sociedade? O conhecimento de ponta pode ser produzido em várias frentes. A escolha de que frentes serão priorizadas é uma questão que precisa ser politizada na universidade. Não se pode partir do pressuposto de que o conhecimento deve necessariamente atender às necessidades do mercado. É preciso haver debate a respeito dos motivos pelos quais a instituição deve investir nesta ou naquela frente. Na minha opinião, o critério fundamental é produzir o bem-estar social. Esse é um tema que a universidade discute pouco.

JU – O senhor mencionou a questão do mérito numa resposta anterior. Correntes contrárias às cotas alegam que o modelo desconsidera a meritocracia, o que geraria injustiças. O que o senhor pensa a respeito desse tipo de argumento?

Sidney Chalhoub – O fundamental é questionar a ideia da meritocracia como um valor abstrato universal, que justifique a existência de alguma medida comum da aptidão e de inteligência da humanidade. Fica parecendo que a meritocracia partiu de uma definição abstrata, excluída das circunstâncias sociais e materiais de vida das pessoas. A universidade, sendo pública, é da sociedade inteira. O ideal seria que todos aqueles que tivessem condições intelectuais e interesse em entrar na universidade, obtivessem uma vaga. Como não há nenhuma perspectiva de que nossos políticos priorizem o acesso ao ensino universitário, é preciso fazer algum tipo de seleção. A seleção deve fazer com que a sociedade esteja representada no corpo discente da universidade. Não se pode ter somente uma determinada raça ou classe social na universidade.

Já que o ingresso não pode ser da maneira universal, que a sociedade esteja presente, então, por meio da representatividade. Esse foi o princípio aprovado pelo Consu. Não é possível que todos os candidatos entrem em competição pelas vagas como se tivesse havido uma igualdade ideal de oportunidade entre eles. Não se pode fazer com que o aluno negro, pobre e que estudou numa escola pública localizada na periferia de Campinas concorra em igualdade de condições numa prova padronizada com alunos cujos pais cursaram universidade, têm alto poder aquisitivo e tem alto acesso ao capital simbólico. É preciso que a universidade busque equilibrar essa disputa.

Desse modo, quando há reserva de vagas para negros e pessoas de baixa renda, a competição se dá entre eles, entre iguais. Então, não há exclusão do mérito. É uma maneira de ter o mérito qualificado pelas condições sociais e econômicas dos candidatos, e não uma competição que exclui alguns segmentos da sociedade desde sempre. Então, a ideia da meritocracia como valor universal, fora das condições sociais e históricas que marcam a sociedade brasileira, é um mito que serve à reprodução eterna das desigualdades sociais e raciais que caracterizam a nossa sociedade. Portanto, a meritocracia é um mito que precisa ser combatido tanto na teoria quanto na prática. Não existe nada que justifique essa meritocracia darwinista, que é a lei da sobrevivência do mais forte e que promove constantemente a exclusão de setores da sociedade brasileira. Isso não pode continuar.

JU – As cotas étnico-raciais constituem uma política de reparação ou de justiça social?

Sidney Chalhoub – As duas coisas. Se você pensar na história de São Paulo, onde a Unicamp está localizada, a prosperidade do Estado, principalmente a partir da expansão do café, na década de 30 do Século XIX, se deu por meio de duas ilicitudes praticadas pela classe proprietária de maneira abusiva durante décadas. Ela se beneficiou do contrabando de africanos. A lei brasileira de 7 de novembro de 1831 havia proibido o tráfico africano de escravos, mas a propriedade cafeicultora fluminense e paulista se formou por meio da continuidade do tráfico. Um contingente formado por 750 mil africanos foi trazido ao Brasil ilegalmente, em condições desumanas. Esses negros foram escravizados e seus descendentes também. Além disso, a formação da grande propriedade cafeicultora ocorreu através de invasão das terras. Trabalho e terras foram obtidos pela classe dominante ao arrepio da lei. Portanto, a reparação é uma questão que deve ser levada a sério. Se não for levada a sério do ponto de vista legal, que pelo menos seja levada a sério sob o aspecto da promoção de uma justiça social que é devida a essa população cuja presença no país se deu por meio de crimes cometidos pelos cafeicultores.

No caso de São Paulo, também se adotou políticas afirmativas em favor de imigrantes. No final do Século XIX, foram adotadas políticas para subsidiar a imigração de europeus brancos, italianos inicialmente. A vinda desses imigrantes era subsidiada pelo tesouro da Província de São Paulo e depois pelo Estado de São Paulo, o que favoreceu a adaptação dessas pessoas ao país. Tratou-se de uma política de inclusão social que jamais existiu para a população negra até recentemente. Portanto, já houve no Brasil a adoção de política de ação afirmativa para brancos europeus e seus descendentes. Dessa maneira, não há nada demais que se veja como reparação as políticas de cotas para negros e indígenas.

Além disso, é importante pensar que, no caso da população negra, quando houve uma aceleração no processo de emancipação escrava, nas duas últimas décadas da escravidão, ocorreu uma mudança na lei eleitoral, em 1881, que proibiu o voto de analfabetos, o que não existia antes. Isso, numa situação em que não havia escola primária para negros. Devido à falta de acesso à instrução, nas primeiras décadas após a emancipação, a população negra ficou excluída da política formal. Esse foi outro movimento importante de desvantagem dessa população na luta por direitos na história do país. Eu entendo que as pessoas esbravejem quando perdem privilégios. Mas as razões históricas, sociais e filosóficas em favor das cotas justificam plenamente a medida. Não há futuro possível com esse perfil de desigualdade se reproduzindo ao longo do tempo. É uma missão de todos superar essa desigualdade.

JU – Aproveitando essa reflexão, o quão prejudicial tem sido para o Brasil essas posturas vinculadas à nossa herança escravocrata?

Sidney Chalhoub – Quando as pessoas se espantam ao constatar que a corrupção no Brasil está tão generalizada, isso é pura ignorância histórica. Como eu citei, o maior exemplo de corrupção na história do país talvez tenha sido a importação ilegal de centenas de milhares de trabalhadores por meio do tráfico africano. Isso no período de formação do Estado nacional, nas décadas de 20 e 30 do Século XIX. Esse Estado se organizou em grande medida para defender os interesses dos contrabandistas e dos cafeicultores. A corrupção está no cerne da formação do Estado brasileiro. Qualquer solução simplista e messiânica para esse problema não faz sentido. É preciso reconhecer a complexidade da questão, o que pode levar a sociedade brasileira a superar essa corrupção crônica que existe no país. Isso tem a ver com a escravidão. A escravidão foi, insisto, a pedra de toque da formação do Estado nacional. A corrupção é capilar na sociedade brasileira e essa capilaridade esteve ligada à própria escravidão no Século XIX.

JU – No contexto da aprovação do princípio das cotas étnicos-raciais, a Unicamp anunciou a criação da Secretaria de Ações Afirmativas, Diversidade e Equidade. Qual a importância dessa instância para promover a reflexão sobre esses aspectos que o senhor abordou?

Sidney Chalhoub – As cotas vão envolver muitas coisas. Vão envolver mudanças curriculares, para que as disciplinas ligadas à história do racismo e do pensamento negro e indígena sejam disseminadas, de maneira que se reconheça a densidade desse tipo de conhecimento. Há uma série de movimentos que apontam para uma receptividade em relação às cotas. Mas é preciso ser vigilante. Haverá tentativas de fraudes no vestibular. Haverá tentativa de agressões gratuitas, como a do professor da Medicina, que felizmente não representa o pensamento da comunidade da faculdade. É preciso ter acompanhamento desses assuntos. É preciso acolher os ingressantes, oferecer condições para que a inclusão ocorra de fato e fazer com que o conhecimento que essas pessoas trarão à universidade seja reconhecido e disseminado. Tudo isso exige um acompanhamento próximo. Desse modo, a criação da secretaria, que terá essa atribuição, é bem-vinda.

O Brasil está pronto para as cotas. A Unicamp está pronta, sim, para adotar as cotas. E a comunidade está mobilizada nesse sentido. Acho que a nova gestão da Reitoria, que herdou a discussão da gestão anterior, começa muito bem, inclusive para tentar assegurar a governabilidade num momento difícil da universidade, ao abraçar uma causa que é bastante popular entre os estudantes, funcionários e grande parte dos docentes. O Consu, que é o parlamento da universidade, já aprovou. Resta aplicar a política da melhor forma possível e assegurar a permanência estudantil. Daqui a poucos anos, teremos finalmente médicos, engenheiros, físicos, historiadores e biólogos de alto nível formados numa das melhores universidades do país. Pessoas que servirão de exemplo e inspiração para a transformação da sociedade brasileira em uma sociedade racialmente mais justa.

Leia mais sobre: A elite intelectual teve de dividir seus privilégios

Texto publicado originalmente pelo Jornal da Unicamp

Tragicomédia russa

Por
Redação
-
27 de maio de 2017
Foto: Bruno Alfano
Foto: Bruno Alfano
  • Laíssa Barros

Quem nunca viveu uma história que daria um filme? Os dias tragicômicos vividos pela atriz Martha Nowill no auge do inverno de Moscou de 2009 não só dariam como se transformaram em Vermelho Russo, longa-metragem que chega hoje aos cinemas.

Muita vodka, risadas, perrengues e choradeiras aconteceram durante a viagem que Martha fez a Rússia para estudar a famosa técnica Stanislavski de interpretação. Ela escreveu em um diário, que acabou virando a gênese do roteiro do filme, as situações, os dramas e surrealidades que vivenciou em uma das cidades mais peculiares do mundo.

No filme, em meio à neve ela chega a Academia Russa de Arte Teatral junto com uma amiga, a também atriz, Manu (Maria Manoella, com quem Martha foi, de fato, fazer o curso na Rússia) sem saber falar uma vírgula do idioma local. As duas em busca de se reinventarem na profissão vão fazer as aulas do método com um professor rígido (Vladimir Poglazov), que, com a ajuda de uma interprete, corrige e crítica quase todos os passos das duas atrizes e dos demais colegas de classe. Além da dupla, o filme conta com as participações de Michel Melamed, Soraia Chaves e Esteban Feune de Colombi.

Constantemente testadas pelo professor, desapontadas e com muito frio, as duas refletem sobre as dificuldades da profissão, os caminhos que escolheram e a amizade uma da outra, que ao longo do filme é testada e extrapolada por muitas vezes.

Com direção de Charly Braun, que também assina o roteiro, Vermelho Russo acaba sendo um misto de ficção e documentário, onde o diretor abusa da fotografia lindíssima de uma Moscou cheia de luzes, neve e arquitetura histórica, ao mesmo tempo em que segue as atrizes com uma câmera documental muito próxima, principalmente no momento de suas aulas, dentro de seus quartos e, até mesmo, no meio de suas brigas.

O frio deve ter impedido, claro, a vivência das atrizes fora dos espaços fechados, faltam mais cenas e imagens da cidade que não sejam da escola, dormitório, restaurantes e metrôs. Mas, ao mesmo tempo, ele amplia o sentimento de clausura diante da temperatura. Condição que intensifica os sentimentos de medo, busca e fuga que, por vezes, rodeia as duas atrizes. Nos vemos em um divertido caleidoscópio de possibilidades tentando descobrir o que elas teriam vivido realmente em 2009 e o que seria ficção para o filme de 2017.

Nessa “montanha russa”, os dias passam rapidamente e um misto de felicidade e infelicidade visitam Martha e Manu: seja em um raro elogio do professor, em um bate-boca, em encontros com atores aposentados que se refugiam nos dormitório da Academia Russa de Arte Teatral, nas situações hilárias que vivem por não entenderem a língua ou nas singularidades de um povo com uma cultura bem diferente da nossa, até mesmo na forma de atuação teatral.

Com esse cruzamento improvável de frivolidade e profundidade, Vermelho Russo fala sobre os dias que se movem, sobre nossos olhos diante das novidades e das diferenças, de teatro e da busca eterna por sentimentos, afirmações e conexões com o que fazemos em nossas vidas.

Foto: Bruno Alfano
Foto: Bruno Alfano
Foto: Bruno Alfano

Governo federal cobra investigação de mortes de trabalhadores rurais

Por
Redação
-
25 de maio de 2017
Foto- EBC
Foto- EBC
  • André Sampaio

A procuradora federal dos Direitos do Cidadão, Deborah Duprat, está no Pará e integra uma missão federal que busca informações sobre a investigação a respeito da morte de 10 pessoas que ocupavam uma fazenda em Pau D’Arco, no sudeste do estado, ocorrida na manhã de ontem (24). O presidente do Conselho Nacional dos Direitos Humanos (CNDH), Darci Frigo, e um representante da Defensoria Pública da União também integram a comitiva que sobrevoou a área antes de pousar em Marabá, a cerca de 300 quilômetros do local da chacina, onde se encontram os corpos das vítimas.

Segundo a Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social do Pará, as mortes ocorreram durante uma ação policial para cumprimento de 16 mandados judiciais de prisão preventiva, temporária e de busca e apreensão determinada pela Vara Agrária de Justiça de Redenção. Ainda de acordo com a secretaria, os policiais militares e civis foram recebidos a tiros. Nenhum policial, no entanto, foi ferido. Entre os posseiros mortos, há nove homens e uma mulher. Há ainda relatos de que vários posseiros foram feridos durante a ação policial.

A missão do Conselho Nacional dos Direitos Humanos tem o objetivo de acompanhar a perícia e exigir celeridade na investigação e responsabilização dos culpados. As mortes ocorrem um dia após o conselho, órgãos públicos e organizações sociais realizarem um ato contra a violência no campo, em Brasília. De acordo com a Comissão Pastoral da Terra (CPT), no ano passado, foram registrados 61 assassinatos em conflitos no campo, o pior resultado desde 2003. Este ano, o total de mortes no campo já chega a 36 – incluídos os 10 casos de ontem (24).

Segundo a Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar do Estado do Pará (Fetraf), o caso da Fazenda Santa Lúcia, em Pau D’Arco, só perde em número de mortos para o episódio que ficou conhecido como Massacre de Eldorado do Carajás, em 17 de abril de 1996, quando 19 trabalhadores foram assassinados.

De acordo com a Secretaria de Segurança Pública e Defesa Social, os 16 mandados de prisão foram resultado de uma investigação sobre uma suposta tentativa de homicídio. As vítimas da tentativa de homicídio seriam parentes do dono da fazenda e um funcionário de uma empresa de segurança que trabalhava para o dono da propriedade.

A Polícia Civil apreendeu 11 armas de grosso calibre no local, incluindo um fuzil 762 e uma pistola Glock modelo G25. A secretaria informou que o governo estadual enviou para o município de Pau D’Arco uma equipe especial para intensificar as investigações e reforçar a segurança na região da Fazenda Santa Lúcia.

Para que tenhamos novos Antonios Candidos

Por
Redação
-
19 de maio de 2017
Antonio Candido
Antonio Candido
  • Laíssa Barros

As ciências humanas e sociais no Brasil experimentam hoje uma situação paradoxal. De um lado, nunca se produziu tanto conhecimento acadêmico em nosso país, sobretudo no formato de artigos em revistas científicas; do outro, estamos lendo cada vez menos sobre temas fora das nossas confortáveis especialidades, e talvez nunca tenhamos sido tão carentes como agora de intelectuais de ampla erudição. A perda do grande Antonio Candido, que nos deixou no último dia 12 de maio, desnuda claramente esse paradoxo. Onde estão os nossos Cândidos contemporâneos? O que explica essa aparente contradição? Seria apenas consequência de uma inevitável especialização intelectual e do enorme avanço dos meios de disseminação e armazenamento de informação? Em parte, sim. Atualmente, tornar-se especialista de qualquer coisa demanda um esforço hercúleo para ler tudo o que se produziu e se produz em determinados assuntos, e analisar as diversas (e cada vez mais infinitas) fontes primárias disponíveis. No entanto, há um outro lado dessa história, a meu ver igualmente responsável pela situação em que nos encontramos: a crescente e angustiante pressão produtivista.

A estrutura de incentivos da academia brasileira em ciências humanas e sociais está totalmente dependente de índices quantitativos de produção, sobretudo publicação de artigos em revistas acadêmicas, reproduzindo acriticamente estruturas advindas das ciências exatas e naturais. Para qualquer coisa que queiramos fazer, de pedidos de auxílio de pesquisa à progressão na carreira profissional, da solicitação de bolsas para alunos à manutenção de vínculo em programas de pós-graduação, tudo passa pela questão da produtividade. Nada mais importa. Qualidade das aulas, participação em debates públicos, atividades de extensão universitária, coordenação de grupos de estudo tornaram-se secundários. No grande Big Brother acadêmico que virou a Plataforma Lattes (portal público de currículos acadêmicos do Brasil), professores e estudantes só olham uma coisa: número de artigos publicados. Até mesmo livros (sic) estão ganhando reputação de produção inferior quando comparados a “papers”.

Essa rápida e grande mudança da academia brasileira, que basicamente ocorreu nas últimas duas décadas, provou que acadêmicos em ciências humanas e sociais do nosso país (eu incluso) respondem muito bem a incentivos. Em menos de uma geração, a tendência a uma reflexão cuidadosa, crítica e profunda de diversas questões, que desaguavam na produção de poucos (mas muito substantivos) resultados intelectuais, especialmente livros, deu lugar a uma frenética e periódica produção de artigos científicos, muitos dos quais fruto de pesquisas em estágios iniciais e que, em vários casos, precisavam de maior maturação para ir para o papel. Como não temos tempo a perder, porém, hoje mais importante do que publicar algo relevante é simplesmente publicar. Muitos chegam a dizer que, para sobreviver na academia, temos que ter “estratégia de publicação”. Inverteu-se a lógica: ao invés de a produção científica ser resultado natural de indagações e inquietações acadêmicas (ou, se preferirem, de uma “estratégia de pesquisa”), está se tornando cada vez mais comum a decisão de formular projetos e participar de núcleos de pesquisa a partir de seu potencial para gerar a maior quantidade possível de publicações, independentemente do conteúdo. Ao fazer isso, tomando-me de metáfora formulada por uma grande colega, professa Rossana Reis (FFLCH-USP), tenho a sensação de que estamos caminhando felizes para a câmara de gás: quanto mais produzimos e quanto menos refletimos sobre o que estamos produzindo, mais munição estamos dando para aqueles que advogam a inutilidade de nossas funções perante à sociedade.

Essa estrutura de incentivos produtivista também está desnudando e potencializando práticas no mínimo questionáveis na academia – quando não antiéticas. Dois exemplos emblemáticos são a explosão de coautoria em textos científicos e a publicação de artigos em revistas predatórias (isto é, periódicos que publicam qualquer coisa em troca de pagamento). A questão da coautoria é algo muito complexo e que demandaria mais espaço para ser discutida com propriedade. Coautoria em si não é problema algum: pelo contrário, dada a crescente interdisciplinaridade e especialização acadêmicas, a possibilidade de publicar trabalhos em conjunto é um mecanismo importantíssimo para viabilizar determinadas empreitadas intelectuais. O problema é a disseminação da prática (muito difícil de provar, mas que todos sabem que ocorre, e em intensidade cada vez maior) da coautoria fantasma. Isto é, acadêmicos que pouco ou nada colaboraram para a produção de um determinado artigo aparecem como autores desses trabalhos, seja devido a uma troca de favores (eu ponho seu nome no meu artigo e você põe o meu nome no seu), seja por assimetria de poder (patrimonialismo, clientelismo e relação de dominação orientador-orientando).

O fenômeno das publicações entre orientador e orientando, em especial, constitui um problema gravíssimo. De novo: não há problema algum de orientadores e orientandos redigirem um artigo em conjunto. A questão é que está virando normalidade orientadores colocarem seus nomes em artigos de orientandos apenas por terem supervisionado esses trabalhos – algo que, ao menos nas ciências humanas e sociais, nunca foi prática corrente. Se o pré-requisito fundamental para obtenção do título de mestre ou doutor é o fato de candidatos serem capazes de apresentar à comunidade científica um trabalho individual, como se explica o fato de, magicamente, aparecem artigos, resultados diretos de teses e dissertações (em andamento ou finalizadas), com o nome do orientando e do orientador como coautores? De duas uma: ou o orientando não fez o trabalho sozinho – e, logo, a defesa da tese ou dissertação teria constituído em uma fraude –, ou o orientador colocou seu nome no artigo do aluno sem ter sido autor de fato, o que perfaz coautoria fantasma.

Tão grave quanto práticas antiéticas de coautoria é a disseminação de publicações pagas em revistas internacionais. Sob a falsa justificativa de que com a cobrança de taxas se estaria garantindo acesso aberto a artigos – algo que ocorre, de fato, com periódicos respeitáveis em ciências exatas e naturais, mas não em ciências humanas e sociais –, algumas revistas internacionais publicam qualquer coisa, literalmente, em troca de dinheiro. Para incentivar o maior número possível de submissões em todas as áreas do conhecimento, muitas dessas revistas possuem os títulos mais amplos, vazios e esdrúxulos possíveis, como International Review of Basic and Applied Sciences, International Review of Social Sciences and Humanities , e International Science and Investigation Journal (uma lista recente das principais editoras e revistas predatórias pode ser encontrado aqui: http://beallslist.weebly.com). A ânsia produtivista e pró-internacionalização vem empurrando alguns acadêmicos a procurar esse tipo de publicação, mesmo sabendo que tais revistas e editoras serão necessariamente mal classificadas por órgãos federais de ensino, como a CAPES. O pensamento é: melhor publicar algo, mesmo que em revistas predatórias, ainda mais se for em inglês, do que não publicar nada. Como consolação para as muitas e muitos na academia que são obrigados a conviver com essas práticas e ficam indignados com o fato de que essas ações antiéticas muitas vezes dão resultados (bolsas, prestígio, cargos, poder), lembremos que toda publicação permanece para a posteridade. O tempo é o melhor dos juízes para transformar em pó a reputação de acadêmicos sem escrúpulos.

Temos todas as condições de produzir novas e novos Antonios Candidos, Celsos Furtados, Florestans Fernandes e Darcys Ribeiros, mas isso não será possível se continuarmos trilhando o mesmo caminho. Precisamos debater urgentemente formas alternativas (e necessárias) de prestar contas à sociedade e à comunidade científica que não estejam baseadas simplesmente na produção quantitativa de artigos. Recuperar a liberdade, a tranquilidade e o tempo de pensamento deve ser nossa principal bandeira. Que a perda de Antonio Candido nos estimule a refletir sobre novos caminhos.

*Felipe Loureiro é Professor, Instituto de Relações Internacionais, USP

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