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Como fica o home office após a reforma trabalhista

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Como uma alternativa para cortar gastos e ao mesmo tempo flexibilizar o ambiente de trabalho, muitas empresas têm adotado e incentivado políticas de home office para seus funcionários. Agora, com a nova legislação trabalhista – que entra em vigor neste sábado (11/11) -, entre as dezenas de artigos que alteram o texto da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) há definições que formalizam e estruturam a disciplina do teletrabalho.

De acordo com levantamento da World at Work, de 2017, nos Estados Unidos, 89% das empresas norte-americanas já possuem políticas estruturadas para o home office. No Brasil, como a atividade não era regulamentada, muitas empresas não adotavam a prática por receios legais. Segundo estudo realizado pela SAP Consultoria, com a reforma, a previsão é que o teletrabalho cresça em torno de 15% ao ano.

Para muitos, trabalhar de casa oferece suas vantagens. Além de redução de custos com aluguel e estrutura para as empresas, funcionários encontram conforto em não ter que encarar, por exemplo, o trânsito de grandes cidades para chegar ao local de trabalho e, consequentemente, tendem a focar melhor em suas tarefas.

“A mensuração de resultados varia de caso a caso. Mas posso comentar um exemplo recente em um segmento nada tradicional em relação a flexibilidade: um órgão público aqui de São Paulo está utilizando as soluções Citrix desde abril deste ano”, afirma Luis Banhara, diretor geral da Citrix Brasil. A companhia de software desenvolve aplicações de virtualização da área de trabalho, incluindo aí aplicativos como o XenApp, XenDesktop e NetScaler. No projeto piloto, 30 dos 90 fiscais do órgão público receberam autorização para trabalhar de casa por até dois dias na semana. Segundo o coordenador do projeto, a produtividade da equipe aumentou de 15% a 40%.

Mas mesmo diante do potencial da adoção do home office, uma das grandes preocupações das companhias diz respeito ao controle de informações. Em um ambiente de trabalho à distância, como ter certeza de que dados sigilosos não ficarão vulneráveis a ciberataques ou ainda ao compartilhamento indevido dos mesmos? À sombra de mega ataques como o WannaCry, Petya e o mais recente Bad Rabitt, empresas têm visto a urgência de aumentar os investimentos em TI.

“Adotar o teletrabalho está intimamente ligado a uma decisão estratégica dentro da empresa. Porque você tem um conjunto de talentos e a questão é como melhor dispor esses talentos, como entregar as ferramentas corretas para que esse talento possa ser produtivo e para que ele possa também te ajudar nessa perspectiva da matriz de custos que a empresa quer ter”, argumenta Banhara. Para o executivo, a tecnologia, então, se apresenta como o grande viabilizador do home office. “Se o empregador utilizar as ferramentas certas, ele não perde o controle sobre as atividades que o funcionário desenvolve e garante a segurança dos dados da empresa”, pontua.

A Sobratt – Sociedade Brasileira de Teletrabalho e Teleatividade tem acompanhado a discussão dos aspectos jurídicos da modalidade. “Toda novidade traz inseguranças até ser completamente entendida”, ressalta Wolnei Tadeu Ferreira, presidente da Sobratt.

Diante de muitas dúvidas e controvérsias a respeito do tema, a Sobratt e a Citrix se uniram para comentar e esclarecer alguns pontos, que vão desde infraestrutura e obrigações das empresas e funcionários quanto a preciosismos referentes à segurança da informação. Confira, no texto a seguir.

1. A empresa precisa fornecer infraestrutura para realizar o trabalho remoto?Depende. Ainda é um consenso que os custos efetivos pagos pelo trabalhador são os que não são mensuráveis de maneira direta, como água, luz, espaços utilizados da residência do próprio trabalhador. Já os gastos adicionais necessários à realização dos serviços devem ser bancados pela empresa.

“A minha leitura é que os custos efetivos pagos pelo trabalhador são os que não são mensuráveis de maneira direita, como água, luz, móveis utilizados da residência do próprio trabalhador. Já os gastos adicionais necessários à realização dos serviços devem ser bancados pela empresa”, afirma Wolnei Tadeu Ferreira.

2. A empresa não precisa controlar horários nem pagar horas extras?
Depende. O controle do trabalho será por tarefas e não por hora trabalhada então não haverá necessidade de pagamento de horas extras, salvo se o monitoramento da atividade for exigível.

“A lei reconhece que não há necessidade de controlar horário. O importante mesmo é acompanhar a produtividade dos colaboradores. Com mais flexibilidade, eles podem trabalhar a qualquer hora, sem se preocupar com trânsito, falta dos dados ou dos aplicativos empresariais”, afirma Ferreira

3. Funcionário em trabalho remoto não desligará nunca?
Não é verdade. Funcionário será mensurado pela sua produtividade e não pelas horas trabalhadas.

“Manter uma rotina de trabalho semelhante à do escritório ajuda na organização de quem está trabalhando à distância. Mas também é necessário usufruir de um hobby ou de atividades físicas para equilibrar a vida pessoal e profissional. Além disso, é essencial que a família do funcionário que está fazendo home office entenda que ele possui tarefas para entregar e uma jornada para cumprir nas dependências de casa”, comenta Banhara.

4. Legalmente, o empregado em trabalho remoto é responsável por vazamento de informações da empresa?
Sim. Ransonwares fizeram milhões de vítimas este ano por falha de atualização do Windows. As empresas passam a ser responsáveis pela atualização dos softwares em dispositivos pessoais dos usuários. A segurança da informação tem que controlar isso, mesmo no trabalho presencial.

5. A empresa fica mais vulnerável a vazamentos de informações com trabalhadores remotos?
Depende. Se não houver uma preocupação da empresa com os dados, pode haver vulnerabilidades. O segredo é não focar no dispositivo (porque o colaborador pode estar com software de segurança desatualizado ou o dispositivo pode ser roubado) e sim focar na segurança dos dados. Devem ser criadas políticas de acesso individualizadas, com várias ferramentas de controle de acesso e identificação.

6. A empresa que oferece opção de trabalho remoto possui melhores índices de retenção de talentos?
Sim. Segundo o Estudo Oxford, esta é uma das melhores formas de reter talentos com 83% das respostas.

“Os ‘novos’ trabalhadores estão cada vez mais exigentes e buscando equilíbrio entre vida pessoal e profissional. Hoje, reter talento é uma das tarefas mais difíceis dos administradores”, afirma Banhara.

7. Tecnologias de mobilidade são viabilizadoras do trabalho remoto.
Sim. Elas endereçam as principais questões corporativas como controle de produtividade, segurança dos dados e flexibilidade para os colaboradores.

“Hospital das Clínicas de São Paulo conseguiu reduzir o tempo dos atendimentos ao público com a virtualização, mesmo com números expressivos: 124 mil consultas ambulatoriais e outros 60 mil atendimentos só na farmácia que fornece os medicamentos gratuitos à população, exemplifica Banhara.

8. O comparecimento às dependências do empregador para a realização de atividades especificas não descaracteriza o home office.
Verdade. A própria legislação (arts. 75-A a 75-E da Lei 13.467/2017) prevê esta situação, pois em muitos casos é necessário que o empregado compareça à empresa para reuniões, treinamentos, confraternização e outras atividades, o que não descaracteriza o teletrabalho.

“Apesar de trabalhar remoto, há momentos que o olho no olho é necessário. Cada empresa pode definir as regras para o trabalho remoto”, afirma Ferreira.

9. No home office, a empresa não possui a mesma responsabilidade no que diz respeito à Medicina e Segurança do Trabalho.
Não é verdade. A nova legislação passa a exigir que, nesses casos, o trabalhador seja ostensivamente orientado pela empresa quanto às normas de segurança, devendo fazê-lo conforme seja a atividade e o cargo a ser ocupado.

“Continua sendo responsabilidade da empresa zelar pela segurança do colaborador, ele trabalhando de casa ou no escritório”, comenta Ferreira.

10. Profissionais que optam por home office terão seus benefícios como vale alimentação e vale transporte reduzidos?
Mito. O vale transporte, devido nos deslocamento residência-empresa e vice-versa, continua sendo devido quando o empregado tiver que se deslocar para a empresa ou para alguma outra atividade a serviço. No caso do vale-alimentação, se isso for uma obrigação prevista em norma sindical, não poderá ser subtraída ou reduzida, salve se houver previsão na própria norma neste sentido. Do contrário, o benefício deve ser mantido. Caso o benefício seja espontâneo pela empresa, sua eliminação ou redução poderá trazer uma injusta diferenciação para quem trabalha em Home Office, sendo necessário que a empresa avalie bem se esta situação seria estratégica.

“Como outros pontos da nova lei, ainda há necessidade de um entendimento mais profundo destas questões e uma análise caso a caso”, finaliza Ferreira.

Som do Brasil: a embaixada da música brasileira em Nova York

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Radicado nos Estados Unidos desde 1976, o radialista Jassvan de Lima comanda há exatos 20 anos, desde setembro de 1997, o programa Som do Brasil da WKCR, emissora afiliada à Columbia University que ostenta a condição de ser uma das pioneiras nas transmissões mundiais em FM (acesse o site oficial do programa). Celeiro da radiodifusão que enaltece o legado da música clássica e do jazz, a rádio norte-americana que acolheu Jassvan é também reverente às tradições da música latina e brasileira.

De família nordestina, alagoense, com trânsito em São Paulo e Belo Horizonte, Jassvan, no entanto, foi catapultado do Brasil para Nova York via Governador Valadares, um dos mais notórios epicentros do fluxo migratório Brasil/EUA. A transição revelada por ele, no entanto, foge à regra do êxodo pragmaticamente de ascensão social que impregna o imaginário da cidade mineira.

No afã transgressor de uma juventude vivida em pleno turbilhão de 1968, Jassvan descobriu no pacato município mineiro, onde manteve com um amigo a loja de discos Blow-Up, aberta naquele ano, e um ponto de convergência entre o canto oprimido de um Geraldo Vandré e a poesia hedonista de um ícone do rock de desbunde norte-americano como Jim Morrison.

Quando tais conexões inusitadas fizeram sentido ainda maior para ele, com o entendimento da reverência dos norte-americanos pela exuberância de nossa música, Jassvan, devidamente estabelecido na pátria do líder do The Doors, conseguiu emplacar na WKCR, em 1998, ano de afirmação do interesse dos ouvintes pelo programa Som do Brasil, um especial com 13 horas de transmissão contínua em homenagem ao maestro Tom Jobim, como explica o radialista no encerramento da conversa a seguir.

Em uma matéria de 1999, li que seu primeiro programa de rádio nos Estados Unidos foi ao ar em 1971. Procede?

Não. Na verdade foi em 1976, quando tive meu primeiro programa, em Medford, Massachusetts, na WMFO 91,5 FM, uma free-form radio (rádio de formato livre, com produção comunitária) da Tufts University. A WMFO começou as transmissões em 1970, e ela é parte de uma cadeia criada em San Francisco, por meio de uma rádio que ainda existe, a Pacific Radio. A estação foi uma das criadoras desse formato, na época dos hippies, naquela onda do Grateful Dead. Quando a WMFO foi lançada só transmitia coisas feitas em San Francisco, depois é que os estudantes de universidades como a Tufts começaram a fazer programas originais em outros locais.

E como é que você recebeu o convite para colaborar com a rádio?

Meu começo na WMFO foi um negócio mágico. Meu compadre, César Augusto, estava escutando rádio em Boston e ouviu um cara falando o português de Portugal. Ele telefonou para o tal DJ, chamado José Moura, e disse: “Tenho um amigo que tem muitos discos de música brasileira. Ele foi DJ no Brasil e teve uma loja de discos”. José Moura disse que queria me conhecer e, dias depois, veio me visitar em casa. Quando mostrei minha coleção, ele disse: “Vou criar algo para você dentro da WMFO”. Ele fazia um programa para a comunidade portuguesa, que ainda é muito grande em Boston e em toda Massachusetts, e, passado um tempo, me convidou para conhecer a estação. No estúdio havia três turntables (toca-discos) e aparelhos para reproduzir fitas cassete. Naquela época, tudo era diferente e livre. Durante as transmissões, a gente tinha cerveja na mesa.

Neste mesmo dia da primeira visita ele te convidou para fazer o programa?

O telefone tocou no estúdio e ele disse: “O negócio é o seguinte, pegue esse disco e coloque aí pra tocar porque eu preciso sair agora. Tenho uma emergência em casa, me ajuda aí…”. Entrei no ar, coloquei o disco, chequei o canal 1, o canal 2, fiz uma apresentação em português – “vocês estão ouvindo a WMFO, 91,5 FM” – e coloquei o outro disco no ponto, para não deixar o negócio cair. De volta ao estúdio, José Moura trouxe também o diretor de programação da rádio e disse: “Você passou no teste!”. Ele curtiu uma comigo. Estava, na verdade, me testando. Comecei a trabalhar, primeiro, nesse programa da comunidade portuguesa fazendo 15 minutos de música brasileira e anunciando atividades para a comunidade em Boston. Começou assim, mas, dias depois, ele falou: “Bem, vamos abrir um espaço maior para você”. O sonho dele era também ter um programa de música brasileira. Ele era um professor refugiado, um intelectual de esquerda. Foi para Portugal fugindo da guerra em Angola e veio depois para os Estados Unidos, onde estudou na Tufts e em outras universidades. Foi nessa que consegui emplacar um programa de uma hora, que ia ao ar às sextas-feiras, das 19h às 20h. Como naquela época eu ainda estava loucão pela Tropicália, dei este nome ao programa na WMFO.

Você partiu de Governador Valadares, em Minas Gerais, para Boston. E, no Brasil, como se deu seu envolvimento com a música?

Vou contar um pouco antes de Valadares porque a história toda começa em São Paulo. No pós-guerra, minha família veio do Nordeste para São Paulo. Meus avós chegaram em 1946, de navio. Naquela época, havia os paus-de-arara (caminhões que cruzavam o nordeste rumo ao sudeste do País, apinhados de boias-frias e de famílias de retirantes), mas tinha também os navios pau-de-arara. A gente vinha de terceira classe. Minha mãe conta bem essa história: saíram de Maceió, passaram pela Bahia e demoraram um mês para chegar em Santos. Primeiro, vieram meus avós. Depois, vieram meu pai, minha mãe, meus tios – e fomos morar na Vila Palmeira, na Freguesia do Ó. Aos oito anos, fui para Belo Horizonte com meu pai, mas sempre passava as férias em São Paulo visitando meus tios e meu avô. Havia um primo meu do lado de minha mãe, chamado José Carlos, que era um tremendo pé-de-valsa. Eu era um ano mais novo do que ele, e então tive a sorte de, com ele, pegar São Paulo na época das big-bands e dos bailes de formatura. Com 16, 17 anos, eu ia muito à Casa de Portugal, ao Fasano. Ali, comecei a ver maestros como Simonetti (Enrico Simonetti, regente italiano que, radicado no Brasil, fez enorme sucesso), Élcio Alvarez, as grandes orquestras. Já estava alucinado com esse negócio de música, mas nunca tinha pensando em tocar – gostava de dançar, mas não era um pé de valsa como meu primo. Um tio meu, Zé, que era bem malandrão e conhecia a boemia do centro, também levava a gente para aqueles inferninhos da rua Major Sertório. Lembro de ter visto Airto Moreira e Flora Purim nessa época. Havia muitos grupos de bossa que tocavam nesses inferninhos. Tive essa sorte.

E como é que você foi parar em Valadares?

Meu pai, que era mecânico industrial, foi montar uma indústria em Valadares e acabei indo junto. Claro, não foi muito legal para mim, porque, em Belo Horizonte, eu tinha meus amigos, namoradinhas, a turma do colégio. Estudar não era muito a minha, mas eu já sabia discotecar. Eu tinha uma namorada que o pai dela era garçom de uma boate famosa, na época, chamada Estilingue. De vez em quando eu ia lá antes de abrir e conheci o disc-jóquei da casa que, naquela época, tocava em uma cabine com fita de rolo e um toca-discos. Ele tinha só um turntable e mixava com as fitas de rolo. Como ele tinha boas conexões, comprava muitos compactos de 45rpm importados, não sei porquê, ele foi com a minha cara e me deu um montão de discos. Nunca me esqueço: os dois primeiros que ganhei dele foram os compactos de Like a Rolling Stone, do Bob Dylan, e Sounds of Silence, da dupla Simon & Garfunkel. Quando cheguei em Valadares foi outra vez a música e os discos que me salvaram. Estava meio deprê, não conhecia ninguém. Quem me salvou foi a radiola. Meu pai tinha me dado uma, aquele caixotão da Standard & Electric, que tinha um daqueles turntables que você colocava uma sequência de dez discos e ia caindo um por um. Um dia, dei sorte. Andando em Valadares, num domingo à noite, ouvi uma bandinha de rock tocar. Entrei no local, pedi um hi-fi e fiquei sentado. Não tinha contato com ninguém, mas tive a coragem de falar com o guitarrista, que era o líder da banda, Jaider de Oliveira.

Credencial de imprensa de Jassvan na WMFO
Credencial de imprensa de Jassvan na WMFO. Foto: Arquivo pessoal

Como se chamava a banda?  

O nome do grupo era Os Escorpiões, na área do Vale do Rio Doce, a melhor banda da época. Comecei a me encontrar com ele para, juntos, procurar repertório para a banda e passei a trabalhar com eles. Meu velho tinha um Aero Willys e comecei a carregar os equipamentos, descarregar os instrumentos. Eduardo Araújo tinha doado para eles alguns amplificadores Mustang. A banda tinha cinco integrantes. Era bem banda cover, mas a gente viajava muito, e eu vendia vários shows deles. Nessa onda, comecei a descobrir que Valadares era a conexão com os Estados Unidos. A juventude se vestia naquela onda norte-americana. Daí, falei pro Jaider: “Meu sonho é fazer uma lojinha de discos”. E nada melhor do que ser jovem e encontrar o cara certo. Ele disse: “Vou falar com meu pai”. O pai dele e o tio tinham uma lojinha no centro da cidade chamada Caçadora, uma loja que vendia armas e equipamentos de pescaria, aquele lance bem de interior, vendiam tudo dessa transação de caça e pesca. Do lado da Caçadora tinha uma portinha de dois metros de frente e cinco de fundo, que dava para um beco. Cheia de bugigangas lá dentro… O pai dele cedeu o espaço para a gente. Limpamos tudo e começamos a aplicar nossas ideias malucas. A parede estava cheia de buracos, e o Jairo pegou cascas de arroz, de uma indústria de lá, e passamos cola na parede, uma cola pesada. Jogamos com as mãos as cascas do arroz. Aquilo deu um visual muito maluco. Envernizamos as paredes e ficou incrível. Criamos também umas caixinhas de discos, o espaço era muito pequeno, mas consegui levar minha radiola Standard & Electric. Puxamos uns fios e colocamos os alto falantes na porta da frente, com o som para a rua.

E como vocês faziam para abastecer o estoque da loja?

Íamos para São Paulo, na Praça Clovis, onde havia uma distribuidora da Beverly que vendia por atacado. Gente de todo o Brasil ia lá comprar discos. Eu saia de ônibus com o cash no bolso, garotão, descia naquela rodoviária toda colorida (o extinto Terminal Rodoviário da Luz), ia até a Praça Clovis, de manhã, e escolhia os discos. Já sabia mais ou menos o que devia comprar. Alguns eram venda certa, como os do Roberto Carlos, mas outros eu levava pela capa. A loja foi aberta logo depois do festival da canção que teve o Geraldo Vandré com Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores (O Festival Internacional da Canção de 1968; Vandré ficou em segundo lugar, suplantado por Sabiá, de Chico Buarque e Tom Jobim). No dia em que o disco foi lançado eu estava na Beverly, a música estava tocando pra caramba e comprei as caixas que consegui do compacto duplo do Vandré, além de outros títulos, uns 200 discos, para poder começar o negócio. Assim que abrimos a loja colocamos nos alto falantes Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores. Por volta de 13h, com a saída dos colégios, a loja foi enchendo de jovens. Virou hit. Tinha uma arvorezinha na frente e, com a música, a rapaziada não saia dali. Foi assim que começou a Blow Up Discos. Coloquei esse nome por causa do filme do Antonioni, que, no Brasil, se chamou Depois Daquele Beijo.

Em 1968, Governador Valadares já tinha um grande fluxo de imigração para os Estados Unidos?   

Em Valadares descobri que toda a rapaziada que voltava dos Estados Unidos trazia sempre muitos discos importados. Então, a gente tinha na mão uma garimpagem que, mesmo em Belo Horizonte ou em São Paulo, poucos tinham contato. Com a loja, pude fazer muitas trocas. O cara que voltava para os Estados Unidos queria levar samba ou qualquer outra coisa nacional e deixava o que trazia. Discos do The Doors, Pearls Before Swine… Conhecemos muita coisa por causa desse intercâmbio. Era o governo do John Kennedy, a migração ainda era aberta. Desde os anos 1950, muita gente foi de Valadares para lá, mas o auge se deu nos anos 1960 e no final dos anos 1970.

E a música do Vandré não causou problemas para vocês com os militares?  

Sim. Não demorou muito para aparecer essa onda de a ditadura recolher discos. Como a gente estava tocando Pra Não Dizer Que Não Falei das Flores e o som saia pra rua, pouco depois de abrirmos a Blow-Up chegaram PMs mandando parar o som. Tinham ido buscar os discos do Vandré. Naquela rebeldia de garotão, eu disse que não tinha mais nenhum, mas ainda havia alguns escondidos.

Também na matéria de 1999, li que você cursou Rádio e TV nos Estados Unidos. 

De 1976 a 1981, fiquei em Boston fazendo o programa Tropicália na WMFO. Cheguei em Nova York em 1982, e comecei a trabalhar como DJ, à noite, tocando em discotecas e em alguns restaurantes brasileiros. Me casei pela segunda vez, tive filhos e dei um tempo do rádio. Fiz trabalhos paralelos, como locutor, para a TV Manchete, mas nessa época que parei de fazer rádio voltei a discotecar, até que vi um anúncio em um jornal latino, El Diário, de uma escola de Rádio e TV, a Dimension Broadcast School. Ficava na Times Square, uma escola simples, sediada em dois andares, e o diretor e um dos professores, Carlos Martinez-Ardilla, um peruano, era um coroa que já tinha feito uma série de programas de rádio e televisão. Fez, inclusive, os primeiros telejornais da TV latina nos EUA, na Univision. Os cursos duravam dois anos, um ano de rádio; outro de TV. E era tudo em espanhol, mas, como eu já tinha morado em Barcelona, arranhava um portunhol legal. Carlos gostou muito de mim. Minha classe tinha uns 20 alunos de diferentes regiões da América do Sul e da América Central. Fiz o primeiro curso, de Rádio, e quando foi para fazer o de TV não tinha mais grana, mas Carlos falou: “Se você não tem grana, me ajude que damos um jeito”. Trabalhei na cantina, ajudei a pintar a escola, fazia limpeza e estudava à noite. Assim, conseguir concluir minha passagem pela Dimension Broadcast School e ganhei o diploma, que me abriu muitas portas, porque, por exemplo, foi aí que eu conheci o DJ Carlos Rosário, um “new-rican”, como são chamados os porto-riquenhos criados em Nova York. Carlos, um cara sabedor de toda a onda latina, aquele lance Fania All-Stars (Jassvan faz referências aos artistas da gravadora Fania), tornou-se meu amigo e fazia um programa na WKCR chamado Caribe Latino. Nessa época, havia também um programa brasileiro chamado Street Samba. Também tinha o sonho de fazer um programa de música brasileira na WKCR e tive a sorte de o Carlos me chamar para conhecer a rádio em uma época em que o Street Samba não funcionava mais. Foi outro lance mágico. O Carlos, que tem o programa até hoje, me apresentou ao German Santana, que era o produtor do Caribe Latino. Logo avancei com a ideia de fazer um programa de música brasileira. Em 1997, a rádio abriu uma grade de duas horas às quartas-feiras, de 23h a 1h, e o German pediu para eu escrever uma proposta de programa, além de conseguir um aluno para colaborar comigo. Eu soube, então, que havia um brasileiro, garotão, o Eduardo Delgado, que estava no Departamento de Esportes, e o convidei. A proposta passou, e foi nessa que, em setembro de 1997, começamos o Som do Brasil, título sugerido por Eduardo, que ficou comigo nos quatro anos seguintes.

Jassvan em ação, ainda no programa Tropicália
Jassvan em ação, ainda no programa “Tropicália”. Foto: Arquivo pessoal

A circulação de estagiários é a cada quatro anos?

Sim. De quatro em quatro anos mudamos os estagiários, e o Eduardo foi o cara que deu a maior força na criação do Som do Brasil. Gosta de música, sempre incluía alguma coisa de rock brasileiro dos anos 1980, mas, desde o começo, eu é que escolho a maior parte da playlist de cada programa.

Dias atrás você me enviou o arquivo de um antigo programa com participação do Eumir Deodato. Que outros artistas participaram das transmissões do Som do Brasil?

Tive a oportunidade de entrevistar muita gente importante da música brasileira, como o Eumir. A primeira entrevista que fiz no Som do Brasil foi com o Pery Ribeiro, já em 1997. Depois, no primeiro Tom Jobim Especial que fizemos, em 1998, a Pat Phillips, produtora que até hoje agencia música brasileira no Birdland, fez uma homenagem ao Tom no Carnegie Hall, em um show que teve a direção musical do Cesar Camargo Mariano com participações de Ivan Lins, Leila Pinheiro e Al Jarreau. A maioria dos artistas brasileiros que passam por Nova York a gente procura entrevistar, além dos que vivem tocando por aqui, como Milton Nascimento, Hermeto Pascoal, Flora Purim, Gal Costa, Emílio Santiago e Toninho Horta.

Você ainda assessora a carreira do Dom Salvador? 

Conheço o Salvador há mais de 30 anos. A gente se fala quase todo dia. Fiz muitas entrevistas com ele. Uma delas, inclusive, para o Jazz Profile, um tradicional programa do departamento de jazz da WKCR. Há alguns anos não trabalho mais como assessor dele. Quem está com ele é o meu parceiro de Som do Brasil, Augusto Ghiotto, um garoto de ouro. Ele é de Bauru, estudante da Columbia University. Começou a fazer o programa comigo quando estava no primeiro ano da universidade e agora já está fazendo PHD em Física; Augusto começou a produzir o programa quando fizemos uma homenagem aos 50 anos do primeiro LP do Rio 65 Trio no Carnegie Hall. É sempre uma grande honra trabalhar com o Salvador. O conheci quando o vi tocando em um show do Charlie Rouse, no Paul’s Mall, com o Portinho tocando bateria e o Guilherme Franco, que era percussionista do McCoy Tyner. Era final dos anos 1970, em Boston. Guilherme foi quem me apresentou ao Salvador e ao Portinho, nessa noite maravilhosa. O Salvador está trabalhando agora com uma nova manager no Brasil, a Margareth Reali, e brevemente vamos viajar para o Brasil, para fazer várias apresentações que ela está agenciando.

wkcr - Som do Brasil - jassvan e os pianistas
Em registro recente, já na WKCR e no “Som do Brasil”, Jassvan e os pianistas, compositores e arranjadores Dom Salvador e Sergio Mendes. Foto: Arquivo pessoal

O advento das rádios online mudou muito o comportamento do público da WKCR?

Não muito. A WKCR é bem tradicional por aqui, e a gente tem um site com muito conteúdo disponível para o mundo inteiro. Acho que a internet só aumentou nossa programação e audiência. Penso que o comportamento dos ouvintes não mudou porque a WKCR foi a primeira rádio a transmitir em FM no mundo. Temos ouvintes cativos. Muita gente que ouve clássicos e jazz. Milhões de ouvintes.

Você também criou um especial em homenagem ao Tom Jobim na data de seu aniversário, 25 de janeiro. Como surgiu a ideia?

A programação dedicada ao Tom Jobim foi criada no segundo ano do Som do Brasil. Jobim é a base de tudo. João Gilberto é o papa da Bossa Nova, mas Tom é o maestro de todos. Logo que ele faleceu pensei, “pô, tenho que fazer essa homenagem entrar na programação dos birthday broadcasting” (transmissões especiais da WKCR em homenagem aos grandes autores da música popular mundial). Nos aniversários, ou logo quando um grande músico de jazz falece, eles fazem programas especiais, toda a programação do dia é transferida para essa seleção. Consegui emplacar a proposta de fazer um dia em homenagem ao Jobim e ele já entrou na agenda anual da WKCR. Tom ainda desperta a maior admiração e afeto. Está presente na vida musical aqui de fora talvez mais do que no Brasil. Qualquer lugar em que você vai e está tocando bossa nova tudo fica diferente, tudo fica elegante e bonito. É incrível. Tom foi um cara iluminado.

Para finalizar, uma pergunta polêmica. Muitos consideram eventos como o Brazilian Day não representativos da qualidade musical do Brasil, por conta das atrações elencadas. Como você enxerga isso?   

Eu não participo do Brazilian Day, inclusive, já escrevi para o dono do jornal The Brazilians, para opinar sobre isso, mas parei. Toda a produção do Brazilian Day é feita pela Rede Globo. Então, eles encaixam artistas que devem ser deles (da gravadora Som Livre, da emissora) e direcionados para a audiência da Globo Internacional e dos imigrantes brasileiros que vem de comunidades como a de Boston, que sempre vem para cá no Brazilian Day, e a de Nova York. A única vez que fui ao evento fiz uma entrevista com o Carlinhos Brown e foi um papo ótimo. Depois, o vi tocando no Lincoln Center e foi um show magnífico. Achei interessante, muito bem feito, com um bom roteiro, uma transa legal.

As cascas de banana e o Estado Novo

A charge de J. Carlos do começo de 1937 é certeira. Nela, Getúlio Vargas espalha cascas de banana em torno do Palácio do Catete, a sede do governo. Na vida real, ele já armava ciladas para afastar do Catete potenciais candidatos à sua sucessão. No poder desde 1930 e impedido de concorrer nas eleições de 1938, Getúlio planejava perpetuar-se como “chefe da Nação”.

Deu o golpe há 80 anos, no dia 10 de novembro de 1937. Naquela quarta-feira, o Congresso amanheceu ocupado pela polícia. Depois de cerimônia sem pompa nem circunstância, entrou em vigor a Constituição que vinha sendo preparada em sigilo havia meses pelo ministro Francisco Campos. Inspirada em modelo semifascista polonês, ficou conhecida como “Polaca”.

À noite, Getúlio fez um Manifesto à Nação: anunciou em cadeia nacional de rádio que o Brasil vivia sob uma nova ordem política, o Estado Novo. Ele continuaria na posição de chefe inconteste do país, à frente de um regime de extrema direita nacionalista, inspirado na Alemanha nazista de Adolf Hitler; na Itália fascista de Benito Mussolini; na Espanha franquista de Francisco Franco; e no Portugal salazarista de António Salazar.

Mais tarde, ele citou o Manifesto à Nação em seu diário, quase como se fosse um ato rotineiro: “Depois dos cumprimentos da assistência e de palestrar um pouco, retirei-me com a família e as Casas Civil e Militar, indo jantar na embaixada argentina. O embaixador Cárcano seguia para Buenos Aires, e lhe havia prometido esse jantar de caráter íntimo”.

Na verdade, o golpe foi precedido por articulações que tumultuaram o cenário nacional. A principal delas envolveu a divulgação pelo Estado-Maior do Exército de um documento batizado como Plano Cohen, com “instruções da Internacional Comunista (Komintern) para a ação de seus agentes no Brasil”. Era o fantasma do comunismo no horizonte.

Com acentuada coloração antissemita, o Plano Cohen não passava de uma ficção. Tinha sido escrito pelo capitão do Exército Olímpio Mourão Filho, aquele que mais tarde, como general, daria início ao golpe civil-militar de 1964. Mesmo falso, o plano funcionou para assustar a população e apontar Getúlio como a saída para tirar o Brasil das garras dos comunistas.

Na memória popular, havia um trauma recente. Afinal, dois anos antes agentes da Internacional Comunista associados ao brasileiro Luiz Carlos Prestes, tentaram tomar o poder. Quando o Estado Novo foi decretado, Prestes e sua mulher, a ativista Olga Benário, estavam presos. Depois, Olga foi deportada grávida para a Alemanha nazista.

Para Olga, a deportação representou uma sentença de morte. Alemã de origem judia, comunista, ela acabou morta no campo de extermínio nazista de Bernburg. Para o Brasil, o Estado Novo representou um período de oito anos marcado por intensa centralização do poder e cruel repressão política. Ao mesmo tempo, aconteceram avanços, em especial na industrialização e na concessão de amplos direitos trabalhistas.

A charge de J. Carlos, na íntegra, sem recortes. Foto: Reprodução
A charge de J. Carlos, na íntegra, sem recortes. Foto: Reprodução

Com Mônica Nador, todo mundo é artista

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Um retrato estilizado do subcomandante Marcos, o porta-voz do movimento zapatista no México, estampava um dos tecidos expostos na mostra Mônica Nador + JAMAC + Paço Comunidade, exibida em 2015 no Paço das Artes.

O semblante do líder revolucionário acompanha a artista Mônica Nador há quase uma década, sendo uma das imagens recorrentes que ela usa em paredes da periferia de São Paulo ou em algum outro suporte pelo mundo afora, como Japão, França ou Estados Unidos. “Quando cheguei ao Jardim Miriam, em 2003, percebi que a molecada cultuava o Che Guevara e resolvi atualizar o mito”, conta, em um tom entre o sério e o irônico, uma marca que sempre deixa dúvidas em suas sentenças.

O Jardim Miriam, um bairro periférico na Zona Sul paulistana, é o lar de Nador, ou Conca, como os mais próximos a chamam, desde 2003. Foi nesse ano que ela criou o JAMAC (Jardim Miriam Arte Clube) com um grupo que incluía outros artistas, como Lucia Koch, paisagistas e universitários além de moradores do bairro. De sua configuração inicial restam poucos, mas o JAMAC se tornou referência internacional em uma ação que mescla arte e ativismo social. “Eu não acho que a arte é tudo. Tudo são as pessoas e a gente vai contribuindo para a construção da escultura social como queria o Beuys”, diz, enfaticamente, a artista em um vídeo sobre seu trabalho no Paço.

Nesse trabalho recente, Nador de fato aponta para a possibilidade de transformação por meio da arte, como pregava o carismático Joseph Beuys (1921-1986). A mostra fez parte de um projeto maior desenvolvido no Paço das Artes, desde 2013, que anualmente convida artistas para trabalhar com moradores da favela Jardim São Remo, ao lado da USP, denominado Paço Comunidade. Em 2014, durante um semestre, Nador e outros membros do JAMAC realizaram oficinas com moradoras da comunidade, ensinando-as a criar estampas em tecidos. Esse material foi usado para que, com o apoio do designer têxtil Renato Imbroisi, cada participante desfilasse na abertura da mostra, no dia 25 de janeiro daquelea ano, usando a réplica de uma roupa com as novas estampas. “Eu peço para cada uma buscar colocar sua identidade nessas imagens, suas cargas emotivas e elas saem daqui pintando de pano de prato a parede de museu”, explica Nador.

Em locais geralmente abandonados de políticas públicas, a inserção no sistema de produção do JAMAC acaba sendo uma ferramenta de autoestima exemplar, portanto, de dignidade. “Você vê a transformação ocorrendo na pessoa”, afirma Nador.

Assim como a defesa de Beuys estava em tirar o artista de um campo específico, o sistema da arte, Nador abandonou os museus com o mesmo impulso. “Eu percebi que se gastava muita tinta dentro de museu enquanto tinha muita parede precisando de cor por aí”, costuma dizer. A inspiração para isso veio do mestrado com orientação de Regina Silveira, na USP, e a leitura de O Fim da Pintura, de Douglas Crimp, autor que ela recebeu no JAMAC, em encontro fechado, em abril de 2015.

Motivada por um debate acadêmico, ela busca novas formas de expressão até chegar nas Paredes Pinturas, por conta de um convite para trabalhar no Programa Universidade Solidária, em 1998, em Nilo Peçanha, na Bahia. Foi lá que ela se deu conta de que não deveria ser como uma “estrangeira” a pintar murais na cidade: “Realizei uma oficina de desenho e pedi aos participantes que representassem sua cultura local. Fizemos uma votação e pintamos máscaras e tambores em nossa parede”.

Dois anos depois, Nador criou, em São José dos Campos, sua cidade natal, a primeira experiência coletiva permanente, o Vila Rhodia Arte Clube. A experiência não foi para frente, mas a ideia de montar um projeto com caráter duradouro permaneceu e, três anos depois, surgiu o JAMAC, que levou a artista a viver de vez na periferia. “Eu achei que tinha de morar porque esse formato de ir e voltar não era confortável para mim, pois o importante era o contato com as pessoas”, explica.

No JAMAC, Nador continuou a ensinar aos moradores das casas que visita e frequenta como utilizar técnicas como o estêncil (máscaras de papel que permitem pintura seriada), tendo como motivos temas simples, de objetos de cozinha a animais ou plantas, em geral escolhidos pelos próprios moradores. Contudo, ela não é a única a conduzir esse processo. Em dez anos, ela estimulou a formação de vários membros do JAMAC. Moradora do Jardim Miriam, Daniela Vidueiros, por exemplo, foi quem coordenou os workshops no projeto do Paço das Artes. “Nesse trabalho, eu me vejo como diretora de arte”, diz, novamente, com uma ponta irônica.

Em 2015, o JAMAC realizou outros dois projetos no exterior: em Porto Rico, na Trienal Poligráfica de San Juan, e em Toulouse, na França, no Festival Rio Loco, para onde foram Daniela Vidueiros e Paulo Meira. A sobrevivência do grupo é sempre uma questão. Ponto de Cultura desde 2010, mas com verbas repassadas de forma irregular, os R$ 60 mil recebidos anualmente são muito pouco para a manutenção da sede. Se por um lado o caráter coletivo do trabalho é fundamental, por outro a figura catalisadora de Nador torna sua presença essencial, o que, naturalmente, provoca desgastes. “Aqui, todo mundo briga, vai embora, mas eu toco o apito e todo mundo volta”, afirma, de um jeito que até poderia ter sido dito pelo subcomandante Marcos.

Com isso, a mostra exibida no Paço das Artes, que apresentou tanto tecidos com estampas, produzidas no Jardim São Remos, como outros que acompanharam o JAMAC há anos, como a do subcomandante Marcos, foi apenas uma espécie de documentação de um processo muito mais amplo, que tem na configuração de conexões entre pessoas, em sua maior parte de lugares marginalizados, sua essência. Era exatamente isso, afinal que pregava Beuys: “Todo homem é um artista. Isso não significa, bem entendido, que todo homem é um pintor ou escultor. Não, eu falo aqui da dimensão estética do trabalho humano, e da qualidade moral que aí se encontra, aquela da dignidade do homem”.

Diferentes e diversos, agora somos assim

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Esqueça tudo o que aprendeu sobre gênero masculino e feminino, identidade de gênero, sexualidade e comportamento. Se há algum tempo nascer com genitália feminina era suficiente para definir uma mulher por uma vida inteira, mesma condição aos nascidos em corpos masculinos, agora não é mais assim. Há mulheres que se identificam como homens, homens que se identificam como mulheres e ainda os que não se identificam com nada ou com tudo. Tem quem se submeta à cirurgia de readequação sexual, tem quem não. Tudo isso tem e não tem a ver com sexualidade. Entendeu?

Pois é, essas e outras formas de compreender a identidade de gênero e um jeito diferente de se apresentar ao mundo estão sendo pensados por algumas das cabeças mais brilhantes da atualidade. O debate já saiu das comunidades específicas e ganhou espaço nas universidades. Mas a questão não se resume apenas ao mundo intelectual. Famílias e escolas estão se confrontando com o assunto por causa da presença de crianças e adolescentes trans.

A transgeneridade é um termo abrangente. Engloba grupos diversificados de pessoas que têm em comum a não identificação com comportamentos ou papéis convencionais do sexo biológico determinado no nascimento. São as travestis, as drag queens, os cross dresser, os transexuais. Os dados sobre essa população não são oficiais e variam muito. Mas calcula-se que o mundo abrigue entre 3,5% e 10% de transgêneros. As pessoas não transgênero são agora denominadas cisgênero ou cis, prefixo do latim que significa algo como “do mesmo lado”. Podem ser hétero ou não, mas se identificam com o sexo de nascimento.
Mas, afinal, o que é gênero? Para alguns, uma construção social, uma imposição de comportamentos. Portanto, o trânsito entre um e outro é uma possibilidade legítima. Outros apostam na hipótese das distinções cerebrais existentes no organismo feminino e masculino para explicar o que leva uma pessoa a desejar um corpo oposto ao do nascimento.

O assunto é sério para a filosofia. A americana Judith Butler, uma das defensoras da chamada teoria Queer – palavra inglesa que identificava homossexuais na década de 1970 –, traz a ideia de pensar a questão exatamente a partir das pessoas que desconstroem a coerência entre anatomia, identidade, desejo e prática, ampliando o conceito de gênero. O espanhol Paul B. Preciado, também filósofo e ele mesmo um homem trans, partilha da teoria. Em Manifesto Contrassexual, considerada uma das obras mais importantes deste século sobre o assunto, ele defende a ruptura dos estereótipos homem, mulher, homo, hétero, natural, artificial. As propostas de Butler e Preciado evidentemente estão longe de ser um consenso. O universo da transexualidade ainda espanta, surpreende e, não raro, desperta preconceitos.

 

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A família

A mulher transexual Assucena Assucena, 27 anos, não escapou do primeiro conflito: o familiar. Ela ainda se entristece quando conta as reações do pai ao perceber que algo de diferente acontecia com a filha. “Começamos dizendo que eu era gay, mas mesmo assim ele parou de falar comigo. Era como se eu fosse um pecado.”

Dados de abril divulgados pela Prefeitura de São Paulo explicam o impacto da perda do apoio familiar: até 8,9% da população em situação de rua da capital paulista pertence à comunidade LGBTT, sigla para lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transgêneros.

Assucena ainda usava o nome Filipe e era uma figura bastante andrógina quando trocou Vitória da Conquista, na Bahia, pelo curso de História da Universidade de São Paulo. Lá conheceu Rafael, 27 anos, gay, negro, com longas tranças louras e um talento musical impressionante. A grande empatia entre ambos propiciou um daqueles encontros de alma, com discussões profundas sobre história, feminismo, gênero e família que se transformaram em canções. “Enquanto saíam as letras e as músicas, foram saindo também a Assucena e a Raquel Virgínia”, conta Assucena. Em pouco tempo, tinham um disco pronto e a certeza de que era o momento de se assumirem como mulheres transexuais. Em novembro do ano passado, elas lançaram o álbum Mulher, o primeiro da banda As Bahias e a Cozinha Mineira, com colegas da universidade, uma das mais atraentes novidades do cenário musical paulistano. Uma boa agenda de shows por capitais do País anuncia o futuro da dupla.

Negra, nascida e criada no Grajaú, bairro da zona sul paulistana, Raquel é presença forte. “Sou de uma realidade que os colegas da USP não frequentam e costumo ser a única travesti nos lugares aonde vou. Sou tratada como alguém exótico. Raramente passo uma semana sem ser incomodada por uma questão racial e de gênero.”

Em abril, Raquel foi agredida por um rapaz em um bar na Vila Madalena, zona oeste de São Paulo. “Ele deu em cima de mim, a gente conversou, se beijou e acabou. Mas, 15 minutos depois, voltou e disse que eu devia ter avisado que sou ‘homem’. Como poderia avisá-lo de algo que não sou? E ele tinha conversado comigo, me visto. Na vida de uma travesti, nada é simples. Um beijo pode virar um caso de morte, entende? Se eu não fosse cada vez mais focada e determinada, enlouqueceria.”

Gabriela Bertoletto
Gabriela Bertoletto, transgênero, estudante de filosofia da Universidade de São Paulo

“A usp tem um núcleo forte de feministas transfóbicas. Por isso, eu só ia ao banheiro das mulheres com uma amiga. Hoje não me incomodo”

“A visibilidade é uma área conflituosa. Ainda que a convivência com a temática da identidade de gênero esteja mais comum, trans ainda são vítimas de violência e machismo. A estudante de Filosofia da USP Gabriela Perini Bortoletto, de 22 anos, às vezes se esconde. “Na faculdade é mais tranquilo porque as pessoas têm uma consciência política forte. Mas há momentos em que não me sinto confortável em me expor como mulher, principalmente na rua, à noite.”

 

“Eu me sinto completamente vulnerável. Os caras me incomodam, não me deixam dançar, conversar. Tem os T-lovers, homem cis com fetiche por trans. Querem saber se fiz ou não a cirurgia de readequação sexual. Não, não fiz. Meu gênero flutua muito, não sigo estereótipos.”

 

Mesmo dentro da USP, Gabriela evita certos eventos. Não se arrisca, por exemplo, a participar de uma festa na Poli.

O mundo não tem bom facolhimento com os transgêneros. Entre 2008 e 2014, foram assassinadas 1.612 pessoas trans em 62 países, inclusive no Brasil, de acordo com a ONU. Irã, Mauritânia, Sudão, Iêmen e regiões da Nigéria e Somália ainda hoje punem atos homossexuais com a morte.

Gabriela incomoda e sabe que incomoda. “Eu dou um nó na cabeça das pessoas. A minha existência é uma perturbação.” Ciente disso, ela frequentemente faz performances por São Paulo. Em uma delas, ocupou sem permissão o Museu de Arte Contemporânea, o MAC, e cruzou diversas vezes os espaços do museu, caminhando o mais lentamente possível. “Minha ideia era mostrar o que é um corpo de uma pessoa trans dentro de um museu, perturbando a ordem de modo não autorizado.”
No dia a dia, Gabriela enfrenta impasses, como usar o banheiro público. “Já me incomodei com isso, principalmente porque na USP tem um núcleo forte de feministas transfóbicas. Por um tempo, eu só ia ao banheiro das mulheres com uma amiga. Mas aprendi a não me incomodar.”

No Brasil, os banheiros atendem à divisão tradicional homem-mulher, e se isso aqui ainda passa despercebido, no mundo já é tema de disputa. Nos Estados Unidos, Barack Obama recentemente causou polêmica ao pedir banheiros compartilhados em escolas. A orientação é clara: os transgêneros podem usar banheiros que combinem com sua identidade de gênero, independentemente da anatomia. Os legisladores conservadores, claro, reagiram.

Força feminina

Assim como Assucena, Márcia Dailyn Oliveira da Silva, 38 anos, também se viu rejeitada pelo pai quando a adolescência fez aflorar sua identidade feminina. O clima ficou tão pesado que a mãe, Selma (ex-empregada doméstica que se tornou professora de aeróbica no final dos anos 1970), deu um basta no casamento. A família vivia em Jales, interior de São Paulo. “Devo muito à minha mãe. Nunca precisei me prostituir ou roubar. A coragem dela em ficar a meu lado me mostrou que eu poderia ser digna e respeitada.” Além do apoio inestimável, Márcia guarda o orgulho de ser a primeira mulher trans a se formar em balé clássico na tradicional Escola de Dança de São Paulo, da Fundação Theatro Municipal. “Havia professores que me chamavam de Márcio. Alguns coreógrafos me encorajavam a participar de um casting, mas na hora me desprezavam. Falavam que eu era feia e pobre. Mas fui até o fim.”

Ela pretende seguir em frente. Desde 2011, frequenta o Ambulatório Transdisciplinar de Identidade de Gênero e Orientação Sexual do Hospital das Clínicas, em São Paulo, onde recebe tratamento hormonal e faz psicoterapia, dois pré-requisitos para a realização da operação de mudança de sexo. É o corolário de um processo de transformação que teve início aos 13 anos, quando começou a tomar pílulas anticoncepcionais por recomendação de transexuais mais velhas. “Aguardo a cirurgia com outras 17 pessoas. Porém o Hospital das Clínicas faz uma por mês. Agora é esperar.”

Enquanto isso, leva a vida entre seu trabalho em uma farmácia de manipulação, na região central da cidade, e sua paixão pelo tablado, hoje circunscrita às aulas que ministra no Núcleo de Dança Nice Leite Ilara Lopes, a sua participação na companhia de dança Uirapuru e aos ensaios de um espetáculo com canções da cantora Maysa, sua musa. “O mundo da arte é instável, ainda mais para mim, e preciso sobreviver.”

Márcia Daylin, bailarina formada pela Escola de Dança de São Paulo Foto- Luiza Sigulem :Brasileiros
Márcia Daylin, bailarina formada pela Escola de Dança de São Paulo Foto: Luiza Sigulem /Brasileiros

 

“Devo muito à minha mãe. a coragem dela em ficar a meu lado me mostrou que eu poderia ser digna e respeitada”

 

Marcia tem sorte. A busca por um lugar no mercado de trabalho regido pela CLT, a cada dia menor, é outra dificuldade para os transgêneros. Para interferir nesse cenário, a Prefeitura de São Paulo lançou, em janeiro do ano passado, o programa Transcidadania, elogiado em todo o mundo. A iniciativa prioriza a educação, com aulas de cidadania e de formação geral, e um incentivo para concluir os ensinos fundamental e médio. Passado um ano, o programa conseguiu empregar nove transexuais em empresas parceiras, dobrou o número de vagas (de 100 para 200) e reajustou o valor da bolsa concedida por dois anos a quem se compromete a estudar, que agora é de R$ 910.

O orçamento da pasta será também 130% maior do que no ano anterior, atingindo R$ 8,8 milhões. “Implantamos essa política no País que mais assassina travestis e homossexuais no mundo. É uma política pública séria, uma opção corajosa e arriscada, que pode mudar a vida das pessoas, servindo de exemplo para outros municípios e estados”, diz Alessandro Melchior, coordenador de Políticas Públicas LGBTT. Recentemente, a cidade de João Pessoa, na Paraíba, lançou um programa com o mesmo nome e já existem iniciativas em Belo Horizonte e no Rio de Janeiro.

O sexo-alvo

Até 1997, as cirurgias de readequação sexual eram proibidas no Brasil. Quem queria se submeter ao processo precisava recorrer a clínicas clandestinas ou a médicos em países como Espanha, Tailândia e Marrocos. Em 2008, o governo brasileiro oficializou apenas a cirurgia de redesignação sexual de homens para mulheres. Em seis anos, até 2014, foram feitos 243 procedimentos cirúrgicos desse tipo em quatro serviços habilitados no SUS.

Há três anos, a rede pública começou também a oferecer a cirurgia de mulher para homem, que é bem mais complexa. Para ambos os gêneros, a idade mínima para procedimentos ambulatoriais, que incluem acompanhamento multiprofissional e hormonioterapia, é 18 anos e para os cirúrgicos, 21 – nesse caso, é preciso ter o diagnóstico de transexualidade e um laudo psicológico/psiquiátrico favorável – um documento que é alvo de críticas e muitas discussões.

Léo Moreira Sá não revela a idade. Diz apenas ter mais de 50 anos. Parece menos. “Tenho meus truques.” No entanto, ele não esconde seu passado. “Eu fui a Lu, das Mercenárias, lembra?” De baterista de banda pós-punk a ator, lighting designer e jornalista ativista, Léo é dono de uma rica história de vida. Caçula de oito irmãos, mãe dona de casa e pai funcionário público, ele conta que percebeu sua identidade de gênero ainda criança, aos 7 anos, em São Simão, no interior de São Paulo, onde morava com a família.

Em 1980, Léo começou a cursar Ciências Sociais na USP e a frequentar o cenário musical paulistano. Foi na universidade que teve as primeiras informações teóricas sobre transexualidade. “Li os filósofos franceses, o que me deu o instrumental para lidar com todo o arsenal de emoções que eu sentia. Aquela sensação de não pertencimento. Foi um período de drogas e muita loucura”, ele conta. Em 1984, deixou a banda, apostou na abertura de uma boate em São Paulo, virou traficante e se casou, “no civil e tudo”, com a travesti Gabriela. “Nós éramos famosos, um casal diferente.” Em 2004, acabou a festa. Léo foi preso e passou cinco anos no regime fechado. Gabriela voou para a Europa.

De volta à liberdade, Léo já tinha barba e bigode graças aos hormônios que tomava. A mamoplastia masculinizadora (retirada das mamas), feita no SUS, aconteceu há três anos. “Foi a única operação que fiz, e me deixou mais feliz. Não quero mexer no resto. Não tenho nenhuma obsessão para ter pênis. Não vale a pena.”

Vencedor em 2011 do Prêmio Shell pela iluminação do espetáculo Cabaret Stravaganza, da Cia de Teatro Os Satyros, Léo está distante das drogas há 12 anos. “Só tomo testosterona.” Não mudou seu nome de batismo nos documentos e, quando se apresenta com eles, causa espanto. “As pessoas ficam em pânico, me olham daquele jeito, não acreditam porque veem aquele homem de barba, careca, e se perguntam: ‘Como assim?’. Mas é importante que essa pessoa veja um transexual porque, se ela olhar para mim e achar que sou cis, não vai aprender. E eu acho que as pessoas precisam entender que existimos, que somos normais e merecemos respeito.” Com certeza, nada será como antes.

Léo Moreira Sá, múltiplas atividades e vencedor e do prêmio Shell , Foto- Luiza Sigulem:
Léo Moreira Sá, múltiplas atividades e vencedor e do prêmio Shell , Foto: Luiza Sigulem/

“A mamoplastia masculinizadora foi a única operação que fiz, e me deixou mais feliz. não tenho nenhuma obsessão para ter pênis”

Nos bailes da vida

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Em São Paulo, para divulgar o lançamento do CD duplo e do DVD Uma Travessia, 50 Anos de Carreira ao Vivo, o cantor e compositor Milton Nascimento recebeu a reportagem de Brasileiros no mezanino do hotel Emiliano, no Jardins, bairro nobre da capital paulista. O encontro estava marcado para as 18h30, e deveria ter durado 40 minutos. A conversa, no entanto, teve início quase duas horas mais tarde. Para nosso prazer, o bate-papo teve quase a mesma duração do “atraso” de Milton: 1 hora e 40 minutos.

Mesmo enfrentando uma maratona de fotos, entrevistas e coletivas de imprensa desde as 11 horas daquela quinta-feira de setembro, Milton se trancafiou em uma sala com o repórter de outro veículo, que teve o preciosismo de levar seus álbuns de carreira (33 títulos) para que ele escolhesse dez e tecesse comentários sobre cada um deles. Motivo do “atraso” para o início da nossa conversa.

Nossa ideia era traçar um perfil de Milton, partindo de episódios cronológicos. Mas a proposta ganhou novas dimensões, graças ao prazer que ele explicita ao reconstituir, com minúcia e bom humor, acontecimentos divisores de sua carreira. De maneira que, apesar de encerrar expressando a opinião de Milton sobre as chamadas jornadas de junho e as recentes manifestações populares, a entrevista a seguir – por conta da necessidade de sua assessora interrompê-lo para descansar – incidentalmente resultou em um rico recorte da primeira metade da bela travessia empenhada pelo artista.

A propósito, mesmo tocando profissionalmente desde os 14 anos, Bituca, como é chamado desde a primeira infância, considera seu marco-zero o grupo instrumental Berimbau Trio, formado em 1963, por ele, Wagner Tiso, seu primeiro parceiro musical, e o baterista Paulo Braga – Milton fechava a cozinha empunhando um “rabecão”, o contrabaixo acústico.

Também em 1963, outro momento divisor: ele foi morar em Belo Horizonte e acabou “adotado” pelo clã dos Borges, um grupo de 11 irmãos apaixonados por música que, junto a ele, tornou universal o cruzamento das ruas Paraisópolis e Divinópolis, “sede” do imaginário Clube da Esquina.

Brasileiros – Antes de chegarmos ao episódio que marca seus 50 anos de carreira, fale um pouco de seu despertar para a música.

Milton Nascimento – Minha coisa sempre foi música. Virei músico profissional aos 14 anos, tocando em boates, das 22h até as 4h. Wagner Tiso me acompanhava, e tinha apenas 12 anos. Mas nunca tivemos problemas com nossas famílias ou com quem quer que seja. De vez em quando corríamos do Juizado de Menores, mas não era algo assim tão ruim, porque a gente se escondia nas cozinhas e chegando lá tinha batatas fritas e guaraná à vontade.

Brasileiros – Muito antes disso, aos 5 anos, você já teve os primeiros contatos com instrumentos musicais.

Eu morava no Rio de Janeiro com minha mãe de sangue (Maria Nascimento) e ela trabalhava para uma família que a adorava. Antigamente, quando a empregada ficava grávida a família imediatamente a mandava embora da casa, mas com minha mãe aconteceu exatamente o contrário. Tanto é que quando nasci passei a ser tratado como príncipe. Principalmente pela Lilia, que era uma das filhas da família e se tornou minha madrinha e segunda mãe. Um ano e meio depois minha mãe morreu. Fui mandado para Juiz de Fora, para morar com minha avó, não que Lilia e sua família quisessem, mas porque achavam que era o mais correto a ser feito. Acontece que, para mim, tal escolha não deu nada certo. Não me dava bem com nada, não conseguia comer, ficava sentado na porta da casa da minha avó, esperando um carro verde passar, o carro do pai da Lilia. Fui emagrecendo, ficando doente e, tempos depois, a Lilia tinha casado e se mudado do Rio de Janeiro para Três Pontas, no sul de Minas. Um dia ela chegou para o meu futuro padrasto (Josino Campos) e falou: “Temos de ir para Juiz de Fora porque o Bituca não está bem”. Com dois meses de casamento, decidiram me buscar. Eu estava sentado na soleira da porta da casa da minha avó quando vi o carro verde se aproximando e comecei a me levantar. As pessoas que viram a cena contam que, ao perceber que eu iria cair e bater a cabeça numa pedra pontiaguda, Lilia abriu a porta do carro ainda em movimento, saiu em disparada e conseguiu me pegar antes de eu me estatelar na pedra. Houve uma época que fui muito a Roma e sempre ia ao Vaticano ver a Pietà, de Michelangelo. Ia todos os dias admirar aquela beleza, até que fiquei sabendo que aquela Nossa Senhora, que segurava Cristo, segurava um filho morto. Lilia me salvou, nesse momento e em muitos outros. Foi uma Pietà para mim. Tanto que resolvi fazer um disco em homenagem a ela (Pietá, de 2002). Outras duas mulheres muito importantes em minha vida foram Ângela Maria e Elis Regina.

Brasileiros – Como você e Wagner se tornaram amigos?

Sempre adorei piano, mas não tínhamos dinheiro para comprar um. Foi então que minha mãe decidiu me dar uma sanfona. Não aquela que tem teclado, mas uma bem simples, de quatro baixos. Ganhei também uma gaita e aprendi a tocar os dois instrumentos ao mesmo tempo. Botava a sanfona no pé e a gaita no joelho. Por muito tempo fiquei na varanda de casa, em Três Pontas, tocando os dois instrumentos. Há alguns anos Wagner Tiso foi ao programa do Jô Soares e o Jô perguntou para ele como é que tínhamos nos aproximado. Ele contou que me ouvia tocando os dois instrumentos e pensava: “Não é com minha família que vou tocar, não – a família dele é toda de músicos –, é com esse aí que eu vou!”. Passado um tempo nos encontramos e começamos a tocar e a cantar juntos.

Brasileiros – Por que você decidiu partir para Belo Horizonte?

Eu estava no ginásio, queria fazer Astronomia e falei para os meus pais que ia a Belo Horizonte para mexer com música. Meu pai insistiu: “Eu, se fosse você, estudaria alguma coisa, porque viver de música não é só uma questão de talento, é questão de sorte também”. Concordei com ele, mas fui para Belo Horizonte pensando nas duas coisas. Como, por lá, não havia faculdade de Astronomia pensei em estudar Economia. Eu já era amigo dos Borges, e fui com o Márcio até a universidade, peguei um material sobre o curso, para avaliar. Subíamos uma rua, no caminho de volta para casa, e perguntei para o Márcio se ele tinha fósforos. Ele olhou para mim e estranhou: “Ué, mas você não fuma”. “Mas eu quero, e não é para fumar!”, disse a ele. Peguei o fósforo, queimei toda a papelada da faculdade e gritei: “Viva a música!”. Na sequência, fomos comemorar em um boteco e enchemos a cara. Nunca mais parei com a música.

Brasileiros – Você se aproximou dos Borges logo que chegou?

Eles são 11 irmãos e logo que os conheci resolvi que seria o 12º. Acabaram me adotando. Só quando cheguei a Belo Horizonte é que fui conhecer músicos profissionais. Quando morava em Três Pontas ouvia no rádio um monte de músicas que eu gostava, mas, na maioria das vezes, a melodia e a letra eram até possíveis de pegar, mas a harmonia não, porque a qualidade da transmissão do rádio era precária. Eu até criava minhas harmonias, mas fui ver um show de outros músicos, com os Borges, e falei: “Meu Deus, faço tudo errado! Preciso começar tudo de novo”. Aí, o Marilton, o mais velho dos irmãos, me falou: “Nada! Você não tem de mexer em nada do que você faz!”. Foi também com eles que eu ouvi pela primeira vez o Miles Davis, o disco era Someday My Prince Will Come. Até hoje não sei por que fiz isso, mas um dia estava com eles, botei o disco do Miles para tocar e tive o ímpeto de levantar e dar um grito: “Isso aí não é trompete, não! Isso aí é minha voz!”. Ninguém riu de mim, ninguém me zombou, e acabei adotando o Miles como meu rei. Comprei tudo quanto é coisa dele, fui aprendendo a lidar com o jazz e descobri a força da música instrumental. Foi aí que comecei a tocar contrabaixo e nasceu o Berimbau Trio, com Wagner e Paulinho Braga.

Em 1963, Milton empuinha um baixo acústico no Berimbau Trio
Em 1963, Milton empuinha um baixo acústico no Berimbau Trio, combo formado por ele, o pianista Wagner Tiso e o baterista Paulo Braga. Foto: Arquivo pessoal

Brasileiros – Nesse mesmo período, você gravou com o conjunto Sambacana, do Pacífico Mascarenhas. Como surgiu o convite?

O Pacífico foi gravar um novo disco, me convidou, e também chamou o Wagner e mais dois músicos do Rio. Os produtores de um festival de São Paulo ouviram a gravação e resolveram me chamar para cantar. Chegando a São Paulo, no estúdio havia uma sala com vários músicos e uma porção de partituras em um canto. Fiquei andando pela sala, olhando disfarçadamente as partituras, até que reconheci uma música do Baden (o violinista Baden Powell). Escondi as folhas e fui lá passar o som com eles. Voltei para Belo Horizonte, e quando mostrei a partitura para os Borges e o Wagner eles ficaram doidos comigo, porque essa música certamente estava destinada a alguém. Era Cidade Vazia (de Baden e Lula Freire). Pouco depois, acabei tendo a felicidade de conhecer o Baden.

Brasileiros – Elis Regina o incentivou a participar dos primeiros festivais. Como vocês se aproximaram?

Tornei-me amigo da Elis em uma festa no Rio de Janeiro e nos reencontramos, pouco depois, em São Paulo. Ela tinha ganhado o festival da Record com Arrastão (1966), e nos encontramos no corredor da emissora. Hoje acho graça, mas na hora não foi nada divertido. Elis vinha caminhando e eu, que não queria encher o saco, abaixei a cabeça ao passar por ela. Ela deu uma pisada forte com o tamanco, virou para trás e disse: “Ei mineiro, não tem educação, não?”. Envergonhado, respondi: “Não Elis, só não queria ser mais um a te encher o saco”. Ela respondeu, brava: “Deixe de bobagem! O negócio, aqui em São Paulo, funciona da seguinte forma: de manhã a gente encontra uma pessoa e fala ‘bom dia’, à tarde diz ‘boa tarde’ e à noite diz ‘boa noite’. Simples assim. Quero que você vá até a minha casa mostrar umas músicas suas”. Ela passou o endereço e fui até lá. Era a semana em que Gil chegou a São Paulo e ele também estava lá. Toquei um monte de músicas. Gil costuma dizer que toquei três ou quatro, mas, mentira dele, foram umas 20 e tantas. Cansado, encostei o violão e Elis perguntou: “Você não tem mais nenhuma na manga?”. Aí, lembrei que não tinha tocado Canção do Sal e ela disparou: “É essa que eu quero!”.

Brasileiros – Pouco depois você se tornou avesso a festivais, mas Agostinho dos Santos te pregou uma peça, que seria divisora para a sua carreira…

Nessa época, em São Paulo, para cada instrumento havia uns 20 músicos desempregados, inclusive eu… Teve um dia em que fui substituir um rapaz em um bar pequeno, ambiente meio escuro, estava lá tocando, quando percebi um vulto se aproximar de mim. Acabei a música e ouvi uma voz dizer: “Ô, bicho, quem é você?”. Foi a primeira vez que alguém me chamou de “bicho”. Era Agostinho dos Santos. Reconheci imediatamente, porque eu era fanático, louco pelo Agostinho. Contei para ele que eu era de Minas, conversamos bastante e ele falou para mim: “Em todos os lugares que eu for, a partir de agora, você virá comigo!”. E assim foi. Depois começamos a andar juntos para lá e para cá. Um dia ele chegou na pensão onde eu morava, na rua Marquês de Itu (na região central de São Paulo), e falou: “Olha, vai ter um festival internacional de música no Rio. Vai ter gente do mundo inteiro. Você tem de botar alguma música sua lá”. Fiquei um mês discutindo com ele, rejeitando o convite, e ele sumiu. Achei até que ele tivesse desistido. Um dia ele voltou com a seguinte conversa: “Olha, eu vou gravar um novo disco, falei de você para o meu produtor e ele quer três músicas tuas para fazer parte do disco”. Agostinho me levou na casa de um amigo que tinha equipamento e gravamos três músicas: Maria, Minha FéMorro Velho e Travessia. Entreguei as gravações e ele sumiu. Agostinho, Elis e o pessoal do Zimbo Trio, que tocava com ela, Amilton e o irmão dele, Adilson (Amilton e Adilson Godoy, respectivamente, pianistas do Zimbo e do Bossa Jazz Trio) eram as pessoas que eu mais me dava em São Paulo. Um dia eu estava na porta da Record, na saída do programa da Elis, e ela surge correndo, pula em cima de mim e diz: “Eu sabia!”. E eu: “Sabia o que, Elis?”. “Que você estaria no festival do Rio!” “Não, como assim, eu não inscrevi música alguma?!”. “Então tem outro Milton Nascimento andando por aí”, ela ironizou. Pouco depois desci a rua e ouvi uma baita gargalhada. Era Agostinho. E ele já chegou dizendo: “Não adianta, você vai ter de ir! Suas três músicas foram selecionadas e isso só aconteceu, até hoje, com Vinicius de Moraes. O pessoal tá doido para te conhecer. Encontrei um representante do festival e ele disse que você tem de ir para o Rio o quanto antes”. “Mas, como é que vou para o Rio se não tenho dinheiro nem para pegar ônibus aqui em São Paulo?”. Eles pagaram minhas passagens e reservaram um hotel que ficava bem perto do festival.

Brasileiros – E como a coisa se desenrolou?

Fui lá conversar com Marzagão (o produtor Augusto Marzagão, criador do Festival Internacional da Canção), ele tinha uma secretária, e eu disse pra ela: “Preciso falar com o senhor Marzagão”. Indiferente, ela respondeu: “Acho que não vai dar, porque ele está muito ocupado hoje. Talvez você possa deixar um recado e ele combine um encontro”. Daí eu disse pra ela: “Então, por favor, avise a ele que o Milton…”. O Nascimento ela nem me ouviu falar, pois saiu correndo até a sala dele e gritou: “O Milton Nascimento está aí!”. Saíram da sala o Marzagão e todos que lá estavam para me ver e me receber. Fiquei numa tremenda vergonha. Foi aí que eu conheci o Eumir Deodato, que fez os arranjos das três músicas…

Brasileiros – E foi ele quem o convenceu a cantar, não?

Eumir me contou depois que quando eles começaram a tocar minhas músicas houve quem dissesse “tira isso daí!”. Alguém foi lá, atendeu o pedido e ele levou as gravações para a casa dele. No dia seguinte, Eumir voltou e disse para o Marzagão: “Mas nunca que você vai tirar essas músicas do festival!”. Ficamos muito amigos e, logo depois, ele me apresentou ao Tom Jobim e vários outros músicos. Dias depois eu estava na casa dele, tocando violão, ele escrevendo os arranjos, e fiz a confissão: “Eumir, o negócio é o seguinte: tá tudo perfeito, mas eu não quero cantar. Queria que a Elis cantasse, mas a Record não deixou. Precisamos pensar em alguém”. Ele rebateu, sem hesitar: “O negócio é o seguinte” digo eu: estou indo amanhã para os Estados Unidos e não vou voltar tão cedo. Resolva agora se vai cantar ou não, porque se você não for cantar eu não vou fazer os arranjos das suas músicas”. Não tive escolha.

Brasileiros – Eumir tinha partido para os EUA, a convite de Luiz Bonfá, e pouco depois convidou você para gravar um disco lá…

Sim, mas Tom Jobim também o chamou para fazer os arranjos do disco com o Sinatra (o álbum Francis Albert Sinatra & Antonio Carlos Jobim, lançado pela Reprise Records). Para mim, foi uma coisa muito maluca, pois “apareci” em 1967, depois de passar por Minas Gerais e São Paulo, e  fui parar no Rio. Quando me dei conta estava nos Estados Unidos gravando com ninguém menos que Herbie Hancock.

Brasileiros – Foi Eumir que o apresentou ao Herbie? Que lembranças você tem das gravações do Courage?

M.N. – Não, não foi o Eumir. Eu estava no Rio, e alguns músicos falaram: “Olha, o Herbie está na cidade, veio passar a lua de mel, vamos procurá-lo”. Eu reprovei: “Ah, que é isso? O cara vem para cá passar a lua de mel e nós vamos lá encher o saco dele?!”. Dias depois fomos a um lugar em que ele estava tocando piano, com vários músicos, e fiquei meio afastado. Fui convidado para uma canja, criei coragem e comecei tocando Tarde. Herbie me interrompeu com um “espera um pouquinho”, foi buscar um gravador, voltou e disse: “Agora, sim. Vamos nessa! Pode tocar, Milton!”. Toquei Tarde e, depois, Outubro, uma música minha que ele ama. No ano seguinte, estávamos juntos, em Nova York. Eu nem sequer desconfiava que pudesse existir um estúdio como aquele, era de um alemão (o engenheiro de som Rudy Van Gelder, da Verve, na verdade, norte-americano). Uma loucura! Cabia uma banda de fuzileiros navais com uma sinfônica naquele estúdio. Gravamos o disco durante o inverno, e foi tudo muito bonito. O produtor, Creed Taylor (que depois fundou a gravadora CTI Records), me deu a maior força. Eumir também foi muito generoso e tomou conta de tudo.

Lô Borges, Milton e Beto Guedes durante as sessões de estúdio de “Clube da Esquina”
Lô Borges, Milton e Beto Guedes durante as sessões de estúdio de “Clube da Esquina”. Foto: Arquivo pessoal

Brasileiros – E como foi que você e Lô Borges se uniram para compor as canções eternizadas em Clube da Esquina? Aliás, você está com um bottom que reproduz a foto da capa, imagino que deve ser um dos álbuns prediletos de sua carreira.

Lô tinha 10 anos e tocava em uma banda que fazia várias versões dos Beatles. O quartetinho dos meninos era muito bom. Eu sempre ia a Belo Horizonte para visitar os Borges. Um dia, quando ele tinha uns 14 anos, cheguei lá e não tinha nenhum dos irmãos em casa. Na hora em que eu estava saindo, chegou o Lô. Disse pra ele: “Que coisa boa te encontrar! Vamos ao botequinho, que eu vou tomar uma batida de limão e você toma um guaraná comigo”. Chegando lá, pedi minha batida e o Lô emendou: “Outra para mim!”. Ele levou aquele tremendo olhar de reprovação, mas disse: “Bituca, adoro as coisas que você faz, sou fã da sua voz, mas tem algo que eu preciso reclamar. Sei bem que você, meus irmãos e seus amigos não gostam de mim”. “Que é isso, Lô? Como assim?!”, disse pra ele. “É isso mesmo. Vocês saem todas as noites, vão para tudo que é lugar, e nunca fui chamado para sair com vocês”, ele desabafou. Olhei bem para ele e falei: “O problema é o seguinte, Lô. Sabe quando foi que eu descobri que você não era mais uma criancinha? Há poucos minutos, quando você pediu essa batida de limão”. Ele sorriu, falou que tinha composto algumas canções, que havia escrito umas harmonias, e perguntou se eu não gostaria de ouvi-las. Voltamos para a casa dele e Lô começou a tocar umas coisas muito bonitas. Peguei um violão que estava ao lado, abaixei a cabeça, fechei os olhos e comecei a tocar com ele uma das músicas. Quando abri os olhos estava a mãe dele (Maria Fragoso Borges), encostada no batente da porta, chorando, emocionada, e o Marcinho escrevendo uma letra. Foi nossa primeira música juntos, Clube da Esquina 2, em homenagem à tal esquina que a vizinhança detestava.

Brasileiros – E como se deram as negociações com a gravadora para lançar o disco?

A partir desse dia Lô começou a escrever muitas músicas, até que eu disse a ele: “Vamos para o Rio fazer um disco, Lô”. Lógico, tive de ter uma discussãozinha com a mãe dele, mas o levei para o Rio e compusemos muitas outras músicas. Voltamos a Belo Horizonte, para buscar o Beto Guedes, e um belo dia concluí: “Acho que temos um disco. E vamos dar a ele o nome de Clube da Esquina”. Fui à Odeon, que hoje é EMI, expliquei como pretendia fazer o álbum e ouvi: “Não, de jeito nenhum. Não será aqui que você vai fazer esse disco, Milton!”. Disse a eles: “Ok, se não querem que eu faça o disco por aqui tem muita gravadora por aí. Tchau, para vocês”.

Brasileiros – E como foi que vocês reverteram isso?

Tinha um cara na Odeon, Adail Lessa (então produtor-executivo da gravadora), o apelido dele era “Pai dos Músicos”. Em 1958, João Gilberto, Tom Jobim e Milton Banana foram até a Odeon apresentar algumas canções e os diretores não deram a mínima. Lessa abriu o estúdio de madrugada, contratou uma orquestra, chamou João, Tom e Milton, e fez a primeira gravação do que seria o compacto de Chega de Saudade e Bim Bom. No dia seguinte ele botou o  registro para tocar e falou para os diretores: “Taí o que vocês não queriam gravar!”. Foi ele que me ligou e disse: “Pode mandar todo mundo vir para cá que vou abrir o estúdio para vocês. Tenho certeza de que vocês vão fazer uma coisa linda”. E foi assim que surgiu o disco.

Brasileiros – Seu disco solo posterior, Milagre dos Peixes, foi mutilado pela censura. Como foi enfrentar esses dias sombrios?

Foi terrível. Voltei para o Brasil e percebi que vários amigos estavam indo embora, sendo expulsos do País, e pensei: “Não vou sair, vendo tudo o que está acontecendo por aqui. Não posso sair. Se quiserem me mandar embora, então, me mandem, me matem, mas eu não vou sair”. Em 1973, eu tinha duas músicas que queria gravar com o Caymmi e com a Clementina de Jesus, mas era um negócio impossível, porque bastava aparecer o nome Milton Nascimento que a censura vinha e cortava tudo sem ao menos ler a letra ou ouvir a música. Perseguição total. A Odeon chegou a sugerir que eu gravasse outro disco e falei: “Não, o disco vai sair assim mesmo. Quem tiver sensibilidade para perceber o que nós quisemos transmitir vai sentir”. E o Milagre dos Peixes saiu todo mutilado, mas foi sentido do jeito que a gente pretendia. Ao mesmo tempo que cortaram nossas ideias e toda a felicidade que estava sendo para nós fazer o disco, todos que o ouviram sentiram o que aconteceu ali. O disco saiu em vários países e o recado foi dado. Então, quem perdeu, no fundo, foram os censores e os militares.

Brasileiros – Mas você sofreu ingerências que foram além da questão artística?

Sim, houve muitos episódios. Coisas terríveis, que prefiro nem falar. Não podia conversar com ninguém sobre o que estava acontecendo, pois, para o meu próprio bem, fui recomendado a não contar nada. Para poder continuar cantando eu tive de me juntar aos estudantes da UNE e sair pelo Brasil afora fazendo o circuito universitário. Tive de sair de cena por um tempo, uns dois anos, nos quais eu não podia tocar no Rio nem em São Paulo. Foi terrível.

Brasileiros – Foi nesse período que você começou a ter problemas com o álcool?

Sim. Nesses 20 anos em que não pude falar e fazer quase nada, a única coisa que me restou foi beber muito. Como é que eu ia viver?! Um dia eu estava voltando do Jóquei Clube, fui encontrar um amigo meu e, quando estávamos voltando para a Barra da Tijuca, vi outros amigos saindo da praia, todos vestidos em roupas coloridas, felizes e, para mim, parecia que havia um vidro escuro que me separava daquela vida colorida. Dei uma volta pela praia e falei para mim mesmo: “Esse pessoal não merece que eu me mate”. Fui para o meu apartamento e decidi que ia parar de beber. Fiquei três dias trancado em meu quarto, deitado e olhando para o teto. Havia uma senhora, a Maria, que fazia comida para mim, mas eu não queria saber nem mesmo de me alimentar. No terceiro dia, no final da tarde, sentei na cama, estiquei minhas mãos e vi que elas não tremiam. Resolvi levantar e percebi que não ia ficar tonto. Saí do quarto, encontrei a cozinheira e falei: “Dona Maria, tem algo para comer?”. Ela disse: “Graças a Deus, meu filho!”. Saí de casa, de madrugada, e fui para Três Pontas. Quando cheguei, minha mãe estava na janela. Descarreguei minhas coisas, entrei em casa e ela falou: “Deixa tudo aí e me acompanhe”. Atravessei a casa com ela e fomos ao pomar do quintal. Quando eu era pequeno, plantei, com um amigo, uma laranjeira e ela nunca tinha dado frutas. Nesse dia surgiram duas laranjas, e comentei com minha mãe: “Caramba, até que enfim essa porcaria resolveu dar um presente para a gente”. Ela olhou bem para mim e falou: “É porque você parou de beber, Bituca”. Uma coisa maluca, pois ela ainda não sabia o que estava acontecendo. Sempre tivemos uma ligação muito forte.

Milton e o saxofonista norte-americano Wayne Shorter
Milton e o saxofonista norte-americano Wayne Shorter. A amizade entre os dois músicos teve início no Brasil, em 1972,e culminou, dois anos mais tarde, no álbum “Native Dancer”. Foto: Arquivo pessoal

Brasileiros – Voltando a sua discografia, o disco posterior ao Milagre dos PeixesNative Dancer, foi feito com Wayne Shorter, que recentemente completou 80 anos. Vocês ainda são amigos. Como vocês se aproximaram?

Somos grandes amigos. Em 1973, estávamos fazendo uma série de shows na Lagoa Rodrigo de Freitas e ele estava na cidade se apresentando com o Weather Report no Theatro Municipal. Soube que eles perguntaram onde estava o Milton Nascimento e pedi para que dissessem pra eles que eu não estava no Rio. Acontece que a mulher do Wayne era portuguesa, um belo dia els abriu o jornal e lá estava algo como “Milton Nascimento e Lô Borges apresentam no Rio de Janeiro o repertório do novo disco, Clube da Esquina“. Ela saiu correndo pelo hotel, a procura de Wayne, e disse: “Veja isso, Milton tá no Rio, esses filhos das putas estão enganando a gente!”. Na mesma noite, eu estava me preparando para entrar no palco e alguém veio me dizer: “O Wayne Shorter está aí e quer te ver”. Tímido demais, disse: “Então, hoje não vou nem subir no palco”. Não bastasse ser o Wayne Shorter, ele tinha tocado com meu maior ídolo, Miles Davis. Entrei, fizemos o show e fui encontrar o Wayne. Depois desse primeiro encontro aconteceu um lance curioso, eles diminuíram o tempo do show deles no Municipal e deixaram um carro escondido na porta dos fundos. Acabava o show do Weather Report e não tinha nem bis, pois eles pegavam o carro e saíam correndo para ver ao menos um pedaço do nosso show. Dois anos depois fizemos, nos Estados Unidos, o Native Dancer. Ele me perguntou se eu queria convidar algum músico brasileiro e decidi levar o Wagner e o Robertinho Silva.

Brasileiros – A superação do alcoolismo coincidiu com a reabertura política, quando você compôs Coração de Estudante, que se tornou um hino das Diretas Já! Como surgiu a canção?

M.N. – Silvio Tendler fez um documentário chamado Jango e fui convidado para compor a trilha, com o Wagner. Quando o filme ficou pronto Silvio nos chamou para assistir e foi aquele negócio que mexeu demais com a gente. O final mostra o Jango numa tremenda solidão, de muleta, em sua fazenda, e essa cena me fez lembrar a época em que eu andava com os estudantes. A música que tocaria na cena não tinha ainda o nome Coração de Estudante. Dias depois recebi o telefonema de um amigo que estava em Roma e estava mal, não conseguia se concentrar e estudar direito por lá. Disse a ele para vir passar uns dias no Brasil, porque aqui ele conseguiria se isolar e mergulhar nos estudos. Reservei um quarto, um escritório, e fiz de conta que ele não existia. Um dia ele chegou tão cansado que sentou na cama e caiu duro. Peguei um caderno, subi no segundo andar da casa, e fiz a letra, de uma tacada só. Terminada a letra, afundei no sofá e, ao olhar para cima, vi uma planta que tinha folhas semelhantes a corações e que, por conta disso, tem o nome de coração de estudante. Foi aí que tive um estalo e pensei: “É isso. Agora sim a música está pronta!”.

Brasileiros – Quase 30 anos depois, insurreições históricas acontecem no País. O que pensa dessas manifestações, Milton?

Tomei um susto, que depois se transformou em felicidade. Nunca pensei que algo assim fosse acontecer tão cedo no País. Ver jovens, famílias, crianças, pessoas mais velhas, a estudantada toda indo para as ruas exigir aquilo de que tem direito… Para mim, foi uma felicidade enorme poder ver isso acontecer. No auge das manifestações houve um show meu em que, no meio de uma música, um rapaz invadiu o palco e colocou uma bandeira do Brasil nas minhas costas. Foi linda a reação do público. Pouco depois jogaram uma camiseta no palco, sem que eu percebesse. Quando chegou o momento do bis vieram mostrá-la para mim. Na frente, havia a frase “Não é só pelos R$ 0,20” e atrás “Milton Nascimento”. Vesti a camiseta e cantei mais três músicas.

Febre amarela preocupa paulistas. Especialistas explicam sintomas

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O macaco encontrado morto na terceira semana de outubro de 2017, no Horto Forestal na Zona Norte de São Paulo, teve comprovada a presença do virus da febre amarela. A Secretaria de Estado da Saúde fechou o Horto Florestal e está aplicando vacinas nos moradores da zona norte da capital.

É importante salientar, no entanto, que a transmissão para o macaco foi a do virus da febre amarela silvestre, comum na mata. Os macacos, são hospedeiros do virus, mas não transmitem a doença à população.

Desde janeiro deste ano, alertamos para este avanço.

Leia a seguir materia publicada no Saúde!Brasileiros:

De acordo com os dados divulgados pela Secretaria Estadual de Saúde de Minas Gerais na sexta-feira (13), a região enfrenta 20 casos prováveis de febre amarela silvestre, com dez óbitos prováveis. Ao todo, são 133 casos suspeitos notificados e 38 mortes suspeitas da doença em 24 municípios. O retorno da febre amarela silvestre não é novo. Nos últimos anos, casos isolados foram registrados nas regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul. A quantidade de afetados em Minas Gerais, no entanto, é maior.

Doença infecciosa febril aguda, causada por um vírus transmitido por mosquito, a febre amarela não é registrada em centros urbanos do Brasil desde a década de 1940. Os principais sintomas são febre, calafrios, dor de cabeça, dores no corpo, fadiga, náuseas e vômitos. As manifestações clínicas incluem insuficiência hepática e renal, podendo evoluir para óbito.

Os casos em investigação em Minas Gerais se referem à febre amarela silvestre, presente em regiões rurais. A febre amarela silvestre e a febre amarela urbana são causadas pelo mesmo vírus, mas são transmitidas por diferentes mosquitos.
Na febre amarela silvestre, os mosquitos dos gêneros Haemagogus e Sabethes transmitem o vírus e tem os macacos como os principais hospedeiros. Na febre amarela urbana, o vírus é transmitido pelo mosquito Aedes aegypti (o mesmo da dengue e do Zika) ao homem. Especialistas reforçam que o vírus nunca é transmitido de ser humano para ser humano.

“Apesar de a área acometida ser considerada área de potencial transmissão de febre amarela, sem ter havido expansão até o momento para novas áreas, o número de casos observados é acima do esperado, levando a maior preocupação”, afirma o infectologista André Siqueira, do Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas (Fiocruz), à Agência Fiocruz.

 

Mesmo com a forma silvestre sendo registrada, o Estado de São Paulo, por exemplo, já está divulgando protocolo para lidar com a doença. As secretarias de Estado da Saúde e do Meio Ambiente definiram estratégias conjuntas para reforçar a proteção contra a febre amarela em São Paulo, com base na orientação à população e na intensificação de medidas preventivas.

Um fluxo específico de notificação foi estabelecido entre as duas pastas para garantir maior agilidade na identificação de possíveis casos. A Secretaria do Meio Ambiente manterá sob acompanhamento as unidades de conservação, como parques e áreas de proteção ambiental localizadas em áreas de risco. Também há vacinas disponíveis na rede pública.

Já o estado de Minas Gerais, em conjunto com os municípios, fará busca ativa nas localidades onde foram registrados casos suspeitos da doença na zona rural dos municípios. Postos de saúde móveis serão montados nas regiões onde estão ocorrendo os casos suspeitos de febre amarela, além da ampliação do horário de funcionamento das unidades.

Segundo o pesquisador André Siqueira, da Fiocruz, uma conjunção de fatores pode estar associada ao aumento de casos de febre amarela – todos relacionados a uma maior quantidade de vírus circulante na região.

Ele destaca: um aumento da população suscetível (não imune) tanto de humanos quanto de macacos; maior proximidade entre macacos, mosquitos e humanos que podem se dever a fatores ambientais, climáticos e/ou demográficos; e baixa cobertura vacinal.

Qual o tratamento?

Segundo a Fiocruz, não há tratamento específico para a febre amarela. A vacinação continua sendo a principal medida de prevenção contra a doença, além do controle do vetor. Produzida pelo Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos (Bio-Manguinhos/Fiocruz), a imunização é oferecida gratuitamente no Calendário Nacional de Vacinação do Sistema Único de Saúde (SUS).

A vacina contra a febre amarela, produzida pela Fiocruz. Foto- Agência Fiocruz
A vacina contra a febre amarela, produzida pela Fiocruz. Foto: Agência Fiocruz

Como se prevenir

“A prevenção contra a febre amarela se dá pela proteção contra a picada de mosquitos com o uso de repelentes e roupas protetoras e com o uso da vacina. A vacina é altamente eficaz e segura nos grupos indicados”, esclarece André Sigueira, à Agência Fiocruz.

“ Vale lembrar que crianças abaixo de 6 meses, gestantes e idosos acima de 65 anos, bem como indivíduos em tratamento ou com condições que levem a depressão da imunidade, não devem tomar a vacina ao menos que haja recomendação explícita do médico”, destaca.

Especial atenção para viagens em áreas de risco e vacina

Quem vai viajar para regiões silvestres, rurais ou de mata deve se vacinar contra a febre amarela com pelo menos dez dias de antecedência. Para residentes em áreas de risco, o Ministério da Saúde recomenda, para crianças, a administração de uma dose aos 9 meses de idade e um reforço aos 4 anos.

Para pessoas a partir de 5 anos de idade que receberam uma dose da vacina, é necessário um reforço; para quem que nunca foi vacinado ou não possui comprovante de vacinação, é preciso administrar a primeira dose da vacina e um reforço após 10 anos. Pessoas que já receberam duas doses da vacina ao longo da vida já são consideradas protegidas.

Organização Mundial da Saúde (OMS) considera que apenas uma dose da vacina já é suficiente para a proteção por toda a vida. No entanto, como medida adicional de proteção, o Ministério da Saúde definiu a manutenção do esquema de duas doses da vacina.

Informações adicionais sobre a febre amarela

A febre amarela silvestre (FA) é uma doença endêmica no Brasil, particularmente na região amazônica, mas também fora dela. Nos últimos anos, as regiões Centro-Oeste, Sudeste e Sul do país também foram acometidas com casos da FA.

O padrão temporal de ocorrência é sazonal, com a maior parte dos casos incidindo entre dezembro e maio. Há casos isolados ou surtos que ocorrem com periodicidade irregular, quando indivíduos suscetíveis entram em contato com locais onde existem os mosquitos transmissores da doença, que usualmente se alimentam do sangue de macacos.

Isso ocorre com maior probabilidade em condições climáticas de elevada temperatura e pluviosidade, que favorecem a multiplicação desses insetos.

Em 2015, foram registrados nove casos de febre amarela silvestre em todo o Brasil, com cinco óbitos. Em 2016, foram confirmados seis casos da doença, nos estados de Goiás (3), São Paulo (2) e Amazonas (1), sendo que cinco deles evoluíram para óbito. Atualmente, o Brasil tem registros apenas de febre amarela silvestre. Os últimos casos de febre amarela urbana (transmitida pelo Aedes aegypti) foram registrados em 1942, no Acre.

*Com informações da Agência Fiocruz, Ministério da Saúde, Secretária da Saúde do Estado de São Paulo e Secretária de Saúde do Estado de Minas Gerais. 

Dossiê Babulina (1966 – 1979): uma compilação de depoimentos de Jorge Ben Jor

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Dias atrás, depois de um papo informal no Facebook, recebi oito páginas digitalizadas da íntegra de uma reportagem com Jorge Ben Jor publicada na edição de janeiro de 1976 da Ele Ela, período em que ele ainda defendia o codinome artístico Jorge Ben. Assinada pela repórter Daysy Cury de Abreu e veiculada originalmente no número 81 da revista voltada ao público masculino, a matéria foi gentilmente escaneada pelo jornalista e pesquisador João Antônio Buhrer, amigo precioso naquela rede social, que dedica o espaço de sua timeline majoritariamente para distribuir, de forma aberta, algumas joias digitalizadas de sua coleção de jornais e revistas da imprensa brasileira dos anos 1950, 60, 70 e 80.

Mas, afinal, porque esssa pílula documental, lançada espontaneamente por João no universo virtual, é algo assim tão valioso? Ora, porque diz respeito à história de alguém como Jorge, um dos artistas mais emblemáticos e proporcionalmente enigmáticos de nossa música popular. Mesmo no auge experimentado por ele nos anos 1960,70 90 e 2000, o cultuado Babulina nunca foi afeito ao expediente de falar regularmente com a imprensa local. Pura timidez, asseguram os mais próximos.

Na “fila do pão” do Jorge eu, por exemplo, sou só mais um repórter da imprensa cultural que passou anos e anos da vida profissional tentando armar um plá com o sujeito. Quando estive perto de tal façanha, fui acometido pela triste reafirmação da finitude que a todos nós persegue. Explico: quem estava dando a maior força para que a entrevista com Jorge acontecesse, Ivone Kassu, sua assessora – a gentileza personificada, uma mulher incrível – partiu dias antes de concretizarmos a ideia do papo.

Ivone esteve ao lado de Jorge e de outros grandes artistas, como Roberto Carlos, por décadas a fio. Braço direito do Rei, outro notório fujão dos microfones da imprensa, ela, melhor do que ninguém, entendia a natureza esquiva de Jorge e tentou me explicar o por que de seu silêncio. Dias antes de partir, em nossa última conversa por telefone, concluiu o papo em tom acolhedor. “Fique tranquilo, Marcelo. Tenho certeza que vai rolar!”.

Em reverência à Ivone, e em respeito à determinação da repórter Daysy, autora da matéria digitalizada pelo amigo João que foi o estopim desta reportagem  – aliás, no texto, ela descreve, de maneira deliciosa, o périplo que foi abordar o sujeito – desencanei da ideia obsessiva de ter um papo com o Babulina e me contento, agora, de fazer aqui para vocês, caros leitores e fãs do Jorge, um apanhado de suas melhores declarações à imprensa entre os anos de 1966 e 1979.

Como fã incondicional do sujeito, passei uma semana mergulhando em tudo que eventualmente pudesse encontrar documentado na web em jornais e revistas do referido período. Quer dizer, fiz essa seleção buscando aquilo que está disponível online sobre ele, fuçando sites, blogs e algumas essenciais hemerotecas digitais, caso de Arquivos Incríveis, do amigo João (siga a página do jornalista no FB), e Velhidade, do colecionador Eduardo Menezes.

Fiquemos então com esse apanhado cronológico de documentação histórica sobre a vida e a obra de Jorge Ben Jor. Além dos recortes de reportagens e entrevistas, acrescentei pequenas resenhas, muito especiais, que abordam o lançamento de álguns dos clássicos lançados pelo sujeito no período áureo da fase Phonogram/Philips, caso de álbuns como Solta o Pavão e África-Brasil.

Boa leitura!

Depoimento de Jorge Ben para a edição 167 da revista InTerValo, da semana de 20 a 26.3.1966, em reportagem, não creditada, intitulada Subversivos do Samba Perseguem Cantor – Jorge Ben fez inimigos porque aderiu ao Iê-Iê-Iê (na ocasião, Jorge era patrulhado por ter, num curto intervalo, participado dos programas Jovem GuardaDivino, Maravilhoso, celeiro televisivo da Tropicália, e O Fino da Bossa, que deveria, no protocolo da TV, ser seu reduto de origem, por associarem Samba Esquema NovoSacundin Ben SambaBen É Samba Bom e Big-Ben ao conceito da bossa, do samba jazz).   

“Recebo gelo, piadinhas, indiretas e críticas dos subversivos do samba e da turma do samba social. Não tenho nada contra eles, mas deixem que eu cante minhas composições para o público que quiser. Sem o pernóstico do jazz importado e de letras sociais, minha música é cantada por todo mundo. Por crianças que mal sabem falar, por jovens e por adultos. O que quer dizer, é ‘sucesso’, mesmo sofrendo esnobação e pichação dos subversivos do samba.”

Trechos de É Dia de Jorge, reportagem de Scarlet Moon para a edição de junho de 1973 da revista POP.

Scarlett diz:
“…todo esse trabalho, por enquanto, está sendo feito para atender a pedidos de outros cantores. Ele faz as músicas de acordo com o estilo de cada um, mas só se o cara quiser gravar. Recentemente, Jorge criou a J.B. Coqueluche Band (as iniciais devem ser pronunciadas em inglês, jei-bi, e o restante com um bom sotaque nordestino), que já gravou um compacto simples, com o Hino do Flamengo numa faixa e Jazzpotato na outra. A banda também entrou na gravação do depoimento de Jorge para o Museu da Imagem e do Som. Mas a grande surpresa mesmo é o jazzpotato, um novo ritmo bolado por ele, bem quente, bem latino. O segredo está no tipo de harmonia que Jorge faz com a linha melódica. É uma espécie de portunhol (português com espanhol), misturado com inglês (“Is coming jazzpotato / aqui yo no quiedo más”).

Jorge, então, explica a origem do jazzpotato e fala sobre sua intuitividade.
“Nós ficávamos repetindo essa harmonização, até ficar todo mundo aceso para tocar as outras músicas. Mas aí apareceu a palavra jazzpotato (assim como ele agora está vidrado no som da palavra coqueluche, diz Scarlett) e o tema virou música mesmo. Quando escrevo música, vou fazendo as coisas do jeito que sinto, sem me preocupar com rimas ou adjetivos. Comigo as coisas são muito intuitivas e as pesquisas e elaborações não funcionam. Na maioria das vezes, não corrijo minhas músicas. Às vezes, a correção pode melhorar, mas acredito que existem casos em que a gente começa a mexer muito e a música se transforma em outra coisa, bem distinta e distante da idéia, da sacação inicial.”

Influências
“Sem nenhum vedetismo, sou uma pessoa que procura o mais possível defender suas ideias e agir de maneira própria. As coisas têm que ser sempre do jeito que eu quero, mesmo que eu quebre a cara. Não identifico meu trabalho com o de nenhum outro compositor. Não sei precisar as influências que possa ter sofrido, e acho isso muito legal.”

Páginas de abertura da reportagem É Dia de Jorge
Páginas de abertura da reportagem “É Dia de Jorge”, publicada por Scarlett Moon na revista POP, em junho de 1973. Foto: Reprodução / “Revista POP” (fonte blog Velhidade, do pesquisador Eduardo Menezes)

Resenha do álbum Solta o Pavão, não creditada, publicada na edição de dezembro de 1975 da revista POP. 
Ninguém Segura Jorge Ben – Músicas simples, letras inspiradas, e uma influência maneira de Gilberto Gil: o novo álbum de Jorge Ben pintou, seguindo a mesma linha que ele adotou em A Tábua de Esmeraldas. O disco é Solta o Pavão, e suas músicas mais fortes são Jorge da CapadóciaDumingazJesualdaDorothy e Cuidado com o Bulldog. Jorge, cuja excursão ao México foi o maior ouriço (ficou lá 20 dias), voltou e, depois de um descanso natalino, retoma suas transas europeias.

Resenha de Solta o Pavão, não creditada, também publicada na revista POP, em dezembro de 1975, na sessão Em Cartaz.  
O pavão, o bulldog, Santo Tomaz de Aquino, velhos, flores, criancinhas, cachorros, o rei, Jesualda, o zagueiro que não pode marcar toca – Jorge Ben abre as janelas de sua cabeça iluminada e vai soltando tudo, numa mistura danada e irresistível. Neste novo disco, lançado pela Phonogram, Ben confirma que é um dos compositores mais soltos e descontraídos da moderna música popular brasileira. E que é um dos intérpretes mais fortes e originais. E sua música cheia de balanço, quase crua, com jeitão primitivo. Ah, chega de adjetivos! Vamos é cair na dança, ao som de Jorge Ben!

Resenha do álbum África-Brasil publicada por Ana Maria Bahiana no Jornal de Música na edição de janeiro de 1977
Voa Jorge, Jorge voa! Lição de antropofagia, de volta por cima, de salutar digestão da massificação nossa de cada dia. Contra os enlatados e a música de merchandising, Jorge constrói sua cabeça de ponte com puro ritmo animal, negro, infinitamente brasileiro. De novo, Jorge voa!

Resenha de África-Brasil publicada por Oscar Pitta na edição de janeiro de 1977 da revista POP
É realmente impossível ficar indiferente ao ritmo quente e explosivo que Jorge Ben e seu grupo – o Admiral Jorge V Ben – detonam em África-Brasil. É rock? É samba? É soul? É maracatu? Nem isso nem aquilo. É simplesmente o som (e marca registada de Jorge Ben, que nasce da genial união de guitarras, teclados, cuíca, surdo e atabaques, contagiando os sentidos num irrecusável convite à dança primitiva e sensual). África-Brasil é uma celebração. Aproveite.

Trechos da reportagem Eu Quero é Fazer um Som que Seja Universal, não creditada, publicada na Revista Música, em dezembro de 1977. 
“Eu não me apresento (em teatros) porque dependo do empresário Marcos Lázaro. Sempre achei legal trabalhar em teatro, mas quando chego para bater um papo, Marcos diz que não é uma boa, que a ocasião não é propícia. Eu gostaria de fazer um trabalho para universitários e realmente já pintaram muitas propostas, mas eu não posso passar por cima do empresário. Sabe, eu curto tanto o público de teatro como o de baile. O primeiro vai curtir caladinho – e a gente vai trabalhar com a aquela vontade de fazer tudo certo, de cantar bonito, de transar aquele som gostoso. Vai ser um trabalho quase que despreocupado. Agora, em baile, é aquela agitação, e eu também gosto de sentir o cara cantando e dançando. Realmente isso também me empolga muito.”

Sobre os shows feitos por ele na Europa e nos Estados Unidos em 1977. 
“A gente toca um samba médio, como Que Nega é Essa, com características mais universais, que pode ser um blues, mas é sambão mesmo. Tocamos um frevo, como Taj Mahal, que é mais sofisticado, e tocamos Zazueira, com um ritmo bem brasileiro, mas de baião. Os caras querem morrer!.”

Jorge aponta que fez shows na Itália, no Teatro Sistina, além de 15 dias de temporada com Jair Rodrigues no Olympia de Paris, com casa lotada. 
“Eu percebi que os caras ficavam bobos, abismados, porque pensavam que música brasileira é só aquela que toca na época do Carnaval. Eu acho que vai ser a hora da música brasileira, porque os caras estão cansados de música pop. E, depois, os artistas de lá já não cantam as canções deles. Podem cantar no idioma local, mas as músicas são americanas: soul music, rock. Então, a nossa música mexe com eles.”

Jorge aposta no sucesso de Belchior e João Nogueira.
“Eu acho que futuramente vai aparecer um grupo fazendo música brasileira diferente. Há aqueles que estão tentando um som universal, mais eletrônico, e há aqueles que estão tentando um som de raízes. No momento, há um cara que está na moda, e que eu considero poeta, é o Belchior. Ele fala mais do que canta, e fala uns troços bonitos. E tem um outro, João Nogueira, que dá um recado importantíssimo com a divisão dele. Eu acho que o trabalho dos dois vai criar escola.”

Jovem Guarda, Tropicália e posicionamento político.
“A Jovem Guarda foi um impacto e uma barreira que eu consegui ultrapassar, porque eu era muito tímido musicalmente. Eu tinha medo de me apresentar para o público, ficava nervoso para tocar. Na Jovem Guarda conseguia me desinibir pelo calor que o público dava pra gente. E depois, quando passei para a Tropicália, foi demais. Aliás, foi uma pena acabar a Tropicália, porque era um negócio, assim, bem alegre e dançante. A minha música não tinha nenhuma conotação política. Nesse período compus Que PenaPaís TropicalZazueira, todas bem dançáveis e uma música real e verdadeira. Charles Anjo 45é a história de um amigo de infância. Mas eu não sei fazer nada político. Minhas músicas são românticas, e eu acho que digo alguma coisa com elas.”

O som universal
“Meu trabalho é de raízes, mais para o popular. Quando faço uma canção, faço primeiro para mim, porque eu gosto de música, mas daí eu as testo em crianças. Se elas gostam é porque é boa mesmo. Eu quero é fazer um som que seja universal, mesmo sendo cantado em português”.

Do violão para a guitarra*
“Em princípio eu tentei colocar um microfone no meu violão, mas dava microfonia, daí eu adquiri um violão Ovation, de cordas de náilon e amplificado. Finalmente passei para a guitarra. Mas não foi fácil, porque a guitarra tem mais recursos, mais braço, então tem que estar bem afinada e a gente tem que ferir as cordas direitinho, tem que swingar diferente do violão”.

*Jorge fecha o papo revelando que tem dois violões nacionais “que são os melhores”, um Giannini e um Di Giorgio.

Trechos da reportagem Jorge Ben: Meu sonho é Ser Presidente, não creditada, publicada na edição de março de 1978 da revista POP.  

A decepção com África-Brasil*
“O lançamento de meu disco África-Brasil, no começo de 1977, foi a maior falta de respeito profissional. A Phonogram lançou o disco sem me consultar – eu estava na Europa, na época, e eles não quiseram nem saber. Mandaram ver, modificando muita coisa. Até a capa não foi a que eu tinha escolhido – essa que está nas lojas é horrível.”
*Reclamando, aliás, dessa precariedade dos estúdios, Jorge afirma, sobre o ambiente de gravações: “Temos, no Brasil, apenas material humano bom”.

Lembranças de Tokyo
“Em 1973, por exemplo, cantei no Japão para um teatro lotado só por japoneses: todos sentadinhos, comportados, esperando o show começar. Mas logo eles estavam batendo palmas no ritmo, até cantaram comigo o coral de Zazueira, imagine! No fim, subiram no palco, dançaram. Uma festa! Curti muito aqueles carinhas.”

Presidente / Rei de um reino “cheio de flores”
“Além do futebol, eu sonhava em ser advogado, profissão importante… Eu gostaria de ser rei de um reino cheio de flores, onde criança nenhuma tomaria injeção. Presidente? Gostaria de ser, sim. Mas presidente do Mengo. Nuns dez anos chego lá. E aí o Mengo vai ser sempre o melhor.”

Trechos de Salve Jorge! – Seu Som Eleva o Astral e e dá uma Sensação de Gol, reportagem publicada por Daisy Cury de Abreu na revista Ele Ela, em janeiro de 1976, na edição 81.

Louco por natureza
“Não bebo e não fumo. Meu barato é futebol e música. Além da praia, é claro. Bebo no Natal e no Ano Novo. Mas uma taça de champanha me faz entrar em órbita. Sou louco assim, por natureza.”

Rosa, a musa de Mas, Que Nada!.
“Quando vim para zona sul morei na República do Peru (rua de Copacabana que desemboca na orla da praia). Lá tive a minha primeira turma de violão. Depois, quando fiz Por Causa de Você, Menina, eles me ajudaram muito. Telefonavam para as rádios pedindo a música. Como era uma turma muito grande, eu era tocado toda hora no rádio. Lá também morava a minha primeira musa – a Rosa – ela vivia falando “mas, que nada, rapaz!”, e me inspirou a fazer a música.”

Melhor ser alegre que ser triste.
“Quando não estou alegre, procuro ficar. Não adianta ficar triste. Porque só vai atrapalhar, entendeu? Não adianta nada. Mesmo que eu esteja triste por dentro, tento ficar alegre. Porque a tristeza só vai ser negativa – e não vai resolver nada!”.

São Paulo, selva de pedra,
“Está muito difícil morar em São Paulo. Só mesmo trabalhando muito. Até os paulistas já não estão aguentando mais. Estão saindo do centro, procurando outro lugar nas redondezas para morar. Mesmo as firmas, como a Phonogram, estão se mudando, a procura de um lugar retirado, mais humano. Onde eu moro ainda á bonito. Ainda escuto passarinho e tem muito verde. Moro no Ibirapuera. À tardinha, escuto ronco de avião, que eu gosto e me faz bem.”

Madureira, terra do samba. 
“Nasci na terra do samba, que não é Vila Isabel, mas Madureira. Fui garotinho para o Rio Comprido. Me lembro bem de minha infância. Era um menino pobre, não tinha luxo, mas tinha o amor de meus pais. Tinha o que eles podiam me dar. Jogava muita bola, brincava no morro, dançava no carnaval, Graças a Deus, agora estou tentando retribuir tudo a meus pais, quando posso.”

Páginas de abertura da reportagem Salve Jorge
Páginas de abertura da reportagem “Salve Jorge” – Seu Som Eleva o Astral e dá uma Sensação de Gol, publicada por Daysy Cury de Abreu na revista “Ele Ela”, em janeiro de 1976. Foto: Reprodução / “Ele Ela” (fonte: Arquivos Incríveis / João Antônio Buhrer).

O método Patrício Teixeira

“Meu primeiro violão ganhei com o sacrifício de minha mãe. Ela tocava violão e meu pai era sambista. Quando entrei para o Exército, ela me deu de presente o violão e o método que ela usava. Um método antigo demais, chamado Patrício Teixeira. E eu comecei sozinho com aquele método. Como gostava do instrumento, foi fácil e rápido aprender. Naquela época eu pensava: que bacana a gente cantar e se acompanhar!”

João Gilberto, às dez da noite.
“Também fui influenciado pelo João Gilberto, meu ídolo. Achava bacana o estilo dele tocar violão. Eu dizia para os amigos: surgiu um cara aí muito bacana e tal. E a gente ficava esperando para ouvi-lo no rádio. Só tocava na Tamoio depois das 10 da noite, e a gente ficava esperando para curtir o som dele.”

Babulina, a origem.
“Meu irmão mais velho, oficial da Marinha, viajava muito. Certa vez, ele foi para os Estados Unidos. Na época, era aquela empolgação toda pela música americana, pelo rock e outros bichos. Então ele trouxe para mim um disco que estava na onda, Bob and Lena (na verdade, Bop a Lena, sucesso de Ronnie Self) e uma camisa que trazia o nome da música. Eu cantava isso, dava a entender que era ‘Babulina’ e usava a camisa. Então o apelido pegou, na Tijuca e no Rio Comprido.”

Jorge coroinha, seminarista e alquimista. 
“Quando era garoto, lia alguns livros de meu avô, que era rosa cruz, e comecei a admirar a maneira deles verem o mundo, a perseverança no trabalho. Desde pequeno, estive ligado com a arte hermética, embora não soubesse bem o que significava. Quando estive em Paris, comecei a pesquisar livros sobre alquimia. Andava pelo Quartier Latin procurando livros esotéricos. Tem uma livraria muito famosa no Boulevard Saint-Gerrmain, a Livraria Ariete. Você está lá e de repente encontra um filósofo, escritor ou um professor da Sorbonne procurando o mesmo livro que você. É bacana isso. Acabei fazendo amizade com o livreiro, e ele me deu muitas dicas. Na Europa há a facilidade de obter informação, não é? Quando descobri que na arte hermética também existe música, quis fazer uma alquimia musical. Daí saiu o A Tábua de Esmeraldas e agora o Solta o Pavão, que é uma continuação do TábuaSolta o Pavão eu fiz em homenagem ao pavão real. Sempre gostei dessa ave, e na arte hermética ele representa assim como um descobrimento, entendeu? Dizem que quando se solta o pavão é porque se achou uma coisa maravilhosa, um tesouro.”

Filho de Ogum.
“Gosto de prestar homenagens através da música. Jorge da Capadócia é para homenagear São Jorge. Sou filho de Ogum, São Jorge. Além de santo, é para mim um ídolo. Acho ele muito bacana. Não só por sua história, pelos momentos difíceis que passou, mas também pela nossa amizade. Até na música eu trato o Jorge com muita intimidade. Como se ele estivesse presente, entendeu?”

Daysy pergunta como Jorge escreveu O Circo Chegou, do álbum epônimo de 1969.
“O palhaço para mim é uma figura que amo. Para mim é o grande herói do circo. Quando vou a um circo, vou principalmente para ver o palhaço. Eu imaginei um palhaço, e ele tinha uma mulher sensacional, incrível, que sabia de tudo o que acontecia. Adivinhava e segurava todas as barras. Sempre na dela, olhando tudo com muita sabedoria. Eu pensei: uma mulher tão incrível como Daisy só pode ter um homem que come raios laser.”

Compor para você é como espirrar, como defendem alguns, pergunta Daysy?
“Não é bem assim. Para compor eu sinto como se uma coisa começasse a martelar em minha cabeça. Às vezes, uma coisa simples, uma frase de um amigo, uma palavra que fica na minha cabeça e uma coisa que começa a se criar. De repente pego o violão e sai a música. Minhas músicas têm sempre uma história. Coisas que aconteceram comigo, que eu presenciei ou vivi. Uma coisa simples pode me inspirar. Só não consigo fazer música encomendada. Aí não sai mesmo. Antes de tudo, tenho que sentir. Não é como uma prova que se estuda para fazer tudo certinho. Eu sinto e faço um arranjo daquilo tudo, da melhor maneira possível que eu possa interpretar. Tenho o meu estilo e estou acostumado com ele. Quando estou compondo sei a minha linha de ritmo e melódica. Estou com uma coisa na cabeça. Quero fazer uma música universal. Todo mundo vai curtir e entender. Normalmente, gosto de todas as minhas músicas. Mas a minha preferida é Mas, Que Nada!

O que você pensa das mulheres de hoje, mais descontraídas, falando gírias, trabalhando, questiona a repórter?
“Mas isso é da época. É o modernismo atual. Eu concordo com elas. Poxa, não pode cortar a onda. Nós estamos quase no século XXI, e todo mundo está mudando ou se dando conta da mudança. As mulheres de hoje são bem diferentes das do meu tempo de garotinho.  Para mim, mulher pode fazer de tudo. Mas tem uma coisa, tem de ser feminina”.

Daysy pergunta o que Jorge ouve em casa. Ray Charles, James Brown e Stevie Wonder, a resposta.
Pinga-fogo: para fechar a conversa, a repórter pede veredictos sobre alguns colegas de ofício.
Gilberto Gil?: Maravilhoso, um cara que eu gostaria de ser!
Milton (Nascimento)?: Está prestes a encontrar um tesouro.
Caetano (Veloso)?: É a ternura!
Gal (Costa)?: Gostaria que fosse minha namorada.

Colocando o pinga-fogo de escanteio, talvez porque o assunto cobre maiores explicações, Daysy pergunta: “Simonal ainda é seu amigo?”. Jorge Responde, de maneira sucinta. 
Acho o Simonal um cara muito bacana. Ele, aliás, foi o primeiro cantor a acreditar em mim como compositor.

Você não ficou decepcionado com ele? Não acha que ele se tornou um mau-caráter (Daysy esmiuça a polêmica que, até então, 1976, ainda não havia silenciado, enquanto Simonal definhava artisticamente).
A mim ele nunca decepcionou. Não que ele fez um troço, assim, feio. Não consigo achar nada feio em ninguém. Gosto de todo mundo. Tenho uma filosofia de vida. Uma filosofia meio barata, mas com senso de humor e que eu acho muito bacana: ‘Jacaré tem que ser malandro, porque quando não é malandro vira bolsa de madame’. Sabe o que quer dizer? Não se meta com a vida dos outros, se não quiser que os outros se metam com a sua vida. E é assim que eu sigo.”

Nota triste, que consta no rodapé da reportagem: “Recado para o Jorge: depois de tanto trabalho e de ter uma entrevista tão simpática, aconteceu uma zebra. A fita do gravador pifou e só gravou a metade de um lado. Foi muito azar, mas não há de ser nada. Vou à forra! Um beijo”, afirma Daysy.

Voa Voa Jorge, Jorge Voa – o alquimista voltou. reportagem de Ruy Fabiano para o Jornal de Música, publicada em janeiro de 1978

Música caipira, chorinho, samba e Black Rio,
“Às vezes, eu estou sozinho em meu apartamento de São Paulo e ligo o rádio de madrugada para ouvir aquelas duplas caipiras. Acho incrível aquela transação deles. Chorinho, que agora é moda, ouço desde pequeno, pois meu pai é velho seresteiro. Sou do Salgueiro, e minha ligação com o samba é também antiga. Nada disso impediu que eu me interessasse pelo rock e pelos diversos ritmos que entraram e saíram de moda. Sempre participei de bailes e embalos de subúrbio, essas coisas que hoje em dia resolveram rotular de Black Rio.”

Fuga da Guerra do Vietnã. 
“A minha primeira experiência internacional foi em 1965, quando o Itamaraty enviou alguns músicos, entre eles o Sergio Mendes, em missão cultural aos Estados Unidos. Fui incluído e ganhei uma bolsa para estudar música. Não cheguei a fazer o curso, pois não falava inglês. Não fiz muita coisa por lá, porque fiquei pouco tempo. É que para trabalhar por lá era necessário adquirir o Green Card, e acabei tendo que me alistar no Exército Americano. Fiz isso por pura formalidade, para conseguir trabalho, só que acabei convocado para ir ao Vietnã e tive que voltar às pressas.”

A passagem pelo festival Midem, em Paris
“Quando subi ao palco e vi aquelas pessoas seriíssimas, engomadas, pensei ‘o que é que eu faço agora?’. A minha sorte é que Mas, Que Nada! era sucesso com o Sergio Mendes e todo mundo conhecia. Bastou eu começar a cantar para sentir que todo mundo tava na minha. Fui bisado, e a partir dali choveram propostas de trabalho”.

De novo, a decepção com África-Brasil (e também com Solta o Pavão) e a partida para a Som Livre.
“Os meus últimos LPs – Solta o Pavão e África Brasil – não saíram com a qualidade técnica que eu esperava. O último, então, foi demais. Tive o maior cuidado com as gravações, já sabendo das limitações do estúdio Havaí, onde o disco foi feito. Queria participar da mixagem e já tinha apresentado sugestões para a capa. Pois bem: quando cheguei de viagem encontrei o disco pronto, mal mixado, com uma capa que não tinha nada a ver com o que eu queria. Mas isso tudo é o de menos. O mais grave é que, pelo contrato da Phonogram, não posso regravar nenhuma das minhas músicas num prazo de 10 anos, contados a partir do momento em que eu deixei a empresa. Quer dizer, a música é minha, mas eu não posso cantar. Se eu quiser regravar País Tropical ou Mas, Que Nada!terei que esperar até 1987. Assim, fui pra Som Livre, que me apresentou uma proposta bastante interessante: um contrato de um disco, sem qualquer exigência, podendo ser renovado, se não houver problemas.”

A reverência do público japonês
“Uma coisa incrível é a plateia japonesa. É impressionante a musicalidade deles. E batem palmas acompanhando o samba sem atravessar o ritmo em nenhum momento. Lá, tudo que eu cantava dava certo. Desde o Hino do Flamengo até Cidade Maravilhosa.”

Jorge reitera sua atração pela alquimia como coisa antiga, despertada desde os tempos remotos em que estudava em colégio de padres e chegou a ser seminarista.
“Uma coisa que sempre me fascinou foram os vitrais de igreja. Certa vez, lendo sobre aquilo, encontrei referências aos alquimistas. Fiquei curioso, e tendo o que encontrei sobre o assunto – uns livros velhos de meu avô, que era rosa cruz – li com interesse. Cheguei mesmo a conversar com alguns filósofos franceses hermetistas, mas não me filiei a nenhuma seita. Há muito mais coisas que gostaria de saber, porque a alquimia tem muito a ver com música. Por exemplo: todo alquimista – e geralmente eram homens de algumas posses – contratavam um menestrel para decorar suas fórmulas. Quando a memória falhava, o trovador cantava a fórmula e resolvia a situação, Meu interesse pelo assunto, embora grande, é exclusivamente amadorístico”.

Trechos da reportagem Jorge Ben foi um Sucesso em Nova Iorque, não creditada, publicada na edição de abril de 1979 da revista Música.

Studio 54 versus Xenon
“Eu dei um show grandioso numa discotchèque. Foi uma festa. Mas não foi na Studio 54, como todo mundo anda falando, foi na Xenon, rival da 54. Ciraram essa discotchèque porque a 54 costuma barrar as pessoas, mesmo que a casa não estivesse cheia. Eu fui convidado para essa festa porque o Ricardo Amaral fez um convênio com a Xenon de levar gente para lá e de trazer o pessoal de lá para a Hippopotamus. E o primeiro cara que ele convidou fui eu. Fiquei contente porque pela primeira vez eu me apresentava em Nova Iorque e numa casa conceituadíssima como a Xenon. A recepção foi ótima. Discotchèque cheia. Logo no começo as pessoas estavam dançando aí o locutor me apresentou daquele jeito deles ‘ladies and gentlemen…’. As pessoas pararam de dançar e chegaram mais perto para assistir. Na terceira música ninguém resistiu, todo mundo caiu na dança até o final do show. Foi 1 hora e 40 de pauleira, eu cantei tudo, e todas as músicas em português. Cantei País TropicalBanda do Zé PretinhoMas, Que Nada!Chove ChuvaFio Maravilha etc. De Nova Iorque eu fui a Los Angeles porque fui convidado para conhecer a gravadora AM Record – que foi estúdio de filmagem do Chaplin. Futuramente devo voltar lá para fazer um disco nessa gravadora. Já ficou tudo acertado.”

Efervescência nova-iorquina
“Em Nova Iorque tem de tudo. É um lugar eclético. Existem muitos bares com música ao vivo. Num barzinho só tem jazz, no outro rock, no outro blues. Tem também o funk – música mais pro lado dos negros. É um outro ritmo para dançar. O funk deverá ser a música do futuro. As multinacionais já estão programando sua entrada no mercado para daqui a dois anos – tempo que as gravadoras prevêem que a discotchèque vai permanecer enquanto modismo.”

O preconceito inerente aos movimentos
“Já passei por vários movimentos, na Bossa Nova existia um certo preconceito contra mim, o pessoal achava que eu não era muito Bossa Nova e eu mesmo me sentia muito preso. Era um negócio que eu não conseguia acompanhar muito bem. Um dia eu fui convidado pelo Roberto Carlos para cantar no Jovem Guarda. O programa era no domingo. Na segunda-feira, quando fui me apresentar no Fino da Bossa, programa do qual eu participava toda semana, fui barrado porque eu tinha ido ao programa do Roberto. Veja só, e isso era porque eram da mesma emissora (a TV Record). Depois os baianos me procuraram, através do empresário Guilherme Araújo, me convidando par fazer parte de um novo movimento que iria surgir, o Tropicalismo. ‘Sua música vai se encaixar direitinho nesse movimento. A Tropicália tem tudo a ver com você’, disse o Guilherme. Aí eu fui só para conhecer, gostei e resolvi ficar. Foi legal por ter sido mais um avanço na minha música. Tudo isso permitiu uma abertura no meu trabalho. Se eu não tivesse passado pela Jovem Guarda ficaria preso à Bossa Nova. Eu prefiro como está hoje onde existem várias tendências, porque esse negócio de movimento cria muito preconceito. A abertura de hoje é válida, na medida em que enrique a música popular brasileira.”

Trechos de Rod Stewart Plagiou Jorge Ben, reportagem da revista Música, não creditada, de julho de 1979 (matéria que repercute o processo de plágio movido contra Do You Think I’m Sexy, de Rod Stewart, acusada de ser um plágio de Taj Mahal). 
“Coincidência musical pode existir. Uma pessoa ouvindo muita coisa, não atual, já fica difícil. Se você está acostumado a ouvir muito músicas antigas, de dez ou 20 anos atrás, então, pode até acontecer. E há perigo de todas as formas, no meio da música e até mesmo no refrão. Taj Mahal foi no refrão, o que é mais forte. Vejo isso como o próprio compositor disse que foi: uma ‘coincidência musical’. Só que depois ele já mudou de ideia, falou que não foi de sua autoria a música, e sim do seu baterista (no processo, Rod deu essa explicação), doando, inclusive, os direitos para o Unicef. Agora, se fosse eu ter feito uma música parecida com a de um compositor estrangeiro, ou mesmo  qualquer outro compositor brasileiro que fizesse isso, ficaria logo desmoralizado. Nosso povo ia malhar e repudiar. Graças a Deus não fomos nós que fizemos isso, nem qualquer outro compositor de expressão, senão seria fim de carreira. Música de folclore, de domínio público, a gente pode gravar e pôr o nome. É a primeira vez que acontecesse isso comigo. Não estou muito chateado. Realmente, Taj Mahal é o tipo de música que todo o mundo está querendo fazer. Ela já tem cinco anos e eu sempre tive fé nela. Está (por conta da polêmica) sendo sucesso novamente.”

Gilberto Gil, em defesa de Jorge, diz, na mesma reportagem:
“Qualquer operário brasileiro, montado num andaime, trabalhando, assobia e acompanha o refrão de Jorge Ben, podendo até mesmo comentar: ‘Bem, isso aí até eu mesmo faria, sem ser músico’. E seria até verdade, porque é uma coisa… Uma música bem brasileira. Bem feijão com a arroz. Mas Rod Stewart não! Ele não faria, e não fez.”

MAIS

Leia também, na íntegra, entrevista de Jorge Ben Jor publicada, em 2009, pelo jornalista Pedro Alexandre Sanches na revista Trip.

Veja parte do MPB Especial Jorge Ben, atração da TV Cultura, dirigida por Fernando Faro, que foi ao ar em 1972.

FHC e a missão histórica do PSDB

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Por volta de 1980, Fernando Henrique Cardoso tomou uma decisão importante. Ele tinha sido eleito suplente de senador em 1978, com votos que iam da esquerda para o centro. Estava no horizonte da época montar-se um “partido popular”, que uns queriam que fosse uma grande coalizão dos setores progressistas, outros desejavam que fosse mais de esquerda – como acabou sendo, chamando-se Partido dos Trabalhadores.

Parte dos que apoiaram FHC em 1978 foi criar o PT. Mas FHC fez outra escolha. Penso que sua análise foi a seguinte: a direita brasileira é golpista. O que melhor posso fazer pela democracia é convencer a direita de que ela pode ganhar e conservar o poder dentro das regras democráticas. A oportunidade era de ouro: a ditadura, que a direita implantou em 1964, estava indo para a falência. Com o esgotamento do regime de força, dava para civilizar a direita. Era uma missão, uma tarefa histórica – que FHC cumpriu anos depois. Porque, ao se eleger presidente, ele submeteu a direita tradicional, egressa da ditadura, à liderança dos que combateram o regime militar e que formavam o núcleo do PSDB.

Além disso, é claro que não caberiam no mesmo partido FHC e Lula. Estava ficando claro que o sindicalista seria a escolha preferencial das esquerdas. Para FHC, era melhor capitanear um campo moderado, que atraísse a direita, embora lhe deixando uma posição subalterna.

O surgimento de uma direita despudorada, agressiva, preconceituosa marca a dificuldade dos tucanos de continuarem liderando, a partir do centro, a direita.

A outra opção, por volta de 1980, era dar voz a quem não tem voz, aos novos protagonistas da cena política, a começar pelos trabalhadores em greve, liderados pelo jovem Lula, e pelos membros das Comunidades Eclesiais de Base. Essa tarefa, também uma missão histórica, ficou com o PT. E assim sucedeu que gente que esteve no mesmo palanque em 1978, que trabalhou junto anos a fio, se dividiu. Nas eleições de 1994, quando muitos queriam PT e PSDB formando uma chapa para mudar o País, o PT ficou liderando a pequena esquerda, enquanto os tucanos chefiavam uma ampla coalizão de centro-direita.

O que essa divisão causou de bom? O enfrentamento sempre repetido, às vezes por pessoa interposta, entre FHC e Lula tirou o espaço de qualquer aventureiro, no caso de direita, que quisesse concorrer à presidência. Collor foi o último a ocupar esse espaço – por sinal, ocultando cuidadosamente sua trajetória de apoio à ditadura. Os saudosos do regime militar não passariam de 10% numa eleição. Isso valeu durante vinte anos, de 1994 a 2014.

Mas essa missão histórica do PSDB continua – ou acabou? É crescente, dentro do partido, o número de pessoas, algumas delas bem votadas, que são hostis à pauta básica dos fundadores do PSDB, que defendia os direitos humanos às vezes mais até do que o PT. Dos principais nomes dentro do partido, apenas FHC e Serra estão perto dos princípios do PSDB. Alckmin é relativamente indiferente ao que eu chamaria de valores humanistas tucanos, Aécio mais ainda e Doria nem se fala. Uma das maiores realizações da vida de FHC – civilizar, democratizar a direita – entrou em crise séria.

 

O dia em que sambei com Caetano, Gil, Rita e Cauby

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• por João Luiz Vieira

Pulei frevo, dancei maracatu, fui atrás de trio elétrico, segui os Filhos de Gandhi, mas nunca havia saído em escola de samba. Tirei essa demanda da frente. Convidado por uma amiga, encarei a ideia de defender o enredo “Tropicália da Paz e do Amor”, da Águia de Ouro, escola de samba do bairro da Pompéia, em São Paulo. O desfile foi na madrugada de ontem, domingo 19. Em uma palavra: inesquecível embora absolutamente cansativo.

Decorar samba é difícil? É. As letras são enormes, as informações contidas nas frases atravancam a cadência, e em alguns casos você não entende exatamente o que está cantando. Mas o samba da Águia é lindo e o refrão é contagiante e pegajoso. Passado esse susto, vem a fantasia. A minha eu peguei no dia do desfile. Eles têm sua medida, então não tem erro. No meu caso, ao menos. Mas há quem use calçados menores que os pés. Tive sorte.

A minha ala era a última, atrás do último carro alegórico. Sabe o que é ala? Sessenta pessoas, no mínimo, formam esse grupo coeso que defende um trecho do enredo defendido pela escola. Fomos de homens da paz. No início, estava muito feliz porque a roupa não incluía esplendores e outros penduricalhos que ferem a cabeça, ombros, braços e pernas. Só depois eu descobri porque nossa ala era a mais “simples”. Como encerraríamos o desfile, se a escola estivesse atrasada quem correria contra o tempo? Nós, a ala final. E foi isso o que aconteceu. Estávamos em cima do lance e por segundos não perdemos ponto por causa disso.

Sambar é o que você menos faz em um desfile. Você anda, na verdade, com uma ou outra chance de evoluir e requebrar as cadeiras. A preocupação é manter sua fila reta e aprumada para não perder ponto em evolução. Assistir ao desfile de sua escola é outra lenda. Não vemos nossa escola, ou melhor, enquanto a comissão de frente está sob holofotes você ainda está em pé, esperando sua vez. Os outros é que nos veem. No máximo, conferimos os fundos do carro alegórico.

Desfilaram pela Águia de Ouro Caetano Veloso, Gilberto Gil, Rita Lee, Cauby Peixoto, Angela Maria. Pergunta se eu vi algum deles na concentração. Claro que não. Eles ficam em camarotes e só surgem na hora do show. Encontrei, sim, Wanderléa, na dispersão, exausta, como todos nós. Se eles sabem cantar o samba? Dificilmente. Sabe qual é o truque que me ensinaram nessas horas? Mastigar chiclete, saudar a arquibancada e virar o rosto naquela frase indecifrável. Foi o que fiz. Quem sabe volto no Desfile das Campeãs, na sexta. Sabe o que também ouvi sobre essa nova passagem pela avenida? Neste dia será comemoração, portanto é para entrar semibêbado. Então tá.