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A filosofia selvagem permanece viva!

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Na sexta feira 15 de dezembro, o Masp abriu ao público a visitação da mostra Tunga: O Corpo em Obras, individual que encerra o programa de 2017 do museu e que também dialoga com Histórias da Sexualidade, a polêmica coletiva em cartaz no museu paulistano. Tunga: O Corpo em Obras (saiba mais) tem curadoria de Isabella Rjeille e expografia da Metro Arquitetos Associados.

Em 2009, a trajetória do artista pernambucano foi tema da matéria de capa da primeira edição da revista ARTE!Brasileiros. Com sua partida, em junho de 2016, a editora Leonor Amarante fez novas reverências a Tunga na reportagem A Filosofia Selvagem Permanece Viva (leia abaixo). 

Tunga transformou-se em marca registrada na história da arte brasileira. Sua obra é um rio sem margens, levada pela vida “selvagem” e intensa experimentada por ele em diferentes territórios. Nasceu em Palmares, Pernambuco, viveu no Rio de Janeiro, em Valparaíso, no Chile, durante um período da ditadura, e morou em Paris por uma “evidência intelectual e não um refúgio romântico”, como se insinuava no Brasil. Redefiniu e recompôs sua obra, em vários períodos, movido pela curiosidade por outras formas de expressão. Suas incursões pela dança, música, cinema reforçaram a preocupação de descolonizar espaços e atuar como mediador de transdisciplinas com grupos de outras “galáxias”. Seu imaginário ficcional é paradigma dos insights afetivos na construção de mitologias individuais apoiadas na ciência, arqueologia, zoologia e, sobretudo, literatura. Tunga é filho de Léa de Barros, uma das gêmeas da famosa tela de Guignard, e do jornalista e poeta Gerardo Mello Mourão. Conviveu com intelectuais brasileiros e franceses que frequentavam a casa de seus pais no Rio de Janeiro e, sob essa influência, tornou-se leitor voraz. Não por acaso, sua obra está impregnada do realismo fantástico latino-americano, presente em textos curtos que acompanham algumas performances, como Semeando Sereias (1983), em que surge um Tunga dramático e alegórico que “dialoga” com sua própria cabeça decepada, com cabelos exageradamente crescidos, arremessada ao mar por ele mesmo. Com “seu” crânio em jogo, Tunga aprofunda as reflexões sobre a artificialidade das formas, incitando o espectador a não se intimidar diante delas. Afinal, conscientemente, ele trata a “escultura” como figura enigmática e estranha que pode causar mal-estar.

Tunga, performance ‘Inside Out Upside Down’, 1997

Na Bienal de São Paulo de 1987, assume um protagonismo tão espetacular quanto a sua obra, Enquanto Flora a Borda (1987), estrutura flutuante de finíssimos fios de aço que pendem do teto e chegam ao chão desestabilizando o espectador. Na década seguinte, passa a trabalhar com material oposto: manipula formas leves e delicadas executadas com vidros, ora repletos de líquido viscoso, colocando em evidência a estrutura material, ora simplesmente vazios. True Rouge (1994) é o ápice dessa fase, uma instalação composta por centenas de frascos de vidro de formato e tamanhos diferentes. Tudo trazido diretamente do MoMA de Nova York para a II Bienal do Mercosul de Porto Alegre, em 1999, da qual fui curadora adjunta com Fábio Magalhães. Os dois locais eram diametralmente opostos: o MoMA com sua arquitetura e limpeza formal e o armazém de madeira, de 1922, já desgastado, inserido numa paisagem bucólica, às margens do rio Guaíba. Harald Szeeman, crítico e curador da 48ª Bienal de Veneza, em 1999, conferiu a instalação em Nova York e ao encontrá-la na Bienal do Mercosul comenta: “Essa obra tem o seu hermetismo, e aqui, em contraste com o entorno, abre um campo de significações provisórias, mas perturbadoras”. Em qualquer local em que True Rouge seja “instalada”, a montagem se revela a alma da obra e não o que se sucede depois. Nesse sentido, Tunga defendia a arte como evolução de rupturas e não de continuidade. Na X Documenta de Kassel, em 1997, com a performance Inside Out Upside Down, na antiga estação de trem da cidade alemã, ele aponta uma nova fase para as artes corporais, não mais relacionadas só com a performance, que já fora sua gestadora. Agora ele reforça a presença da psicanálise com pequenas narrativas como agente de um exercício da transitoriedade.

tunga semeando sereias
Tunga, ‘Performance Semeando Sereais’, 1983.

Desde cedo Tunga cria estratégias para desestruturar a normalidade do circuito de arte, talvez por influência de Pasolini, Rimbaud, Foucault, Lacan, que ele lia desde sempre. Eu o conheci muito jovem, com 22 anos, apresentado pelo crítico carioca Roberto Pontual como “um artista a ser seguido”. Tunga acabara de inaugurar sua primeira mostra no MAM do Rio de Janeiro, já causando polêmica. Seus desenhos, com insinuação de masturbação infantil, chegam ao público para provocá-lo a tomar posição sobre aspectos da nossa cultura conservadora, mesmo que fosse entendido como autor de imaginário libertino. A sensualidade converte-se em fonte primária de investigação e sua trajetória passa a ser marcada pelas representações corporais e seus fluidos. Tunga sempre defendeu o status do corpo, sua bandeira de vida até a morte. O atrevimento e a postura daquele jovem diante da crítica me fisgaram, e passei a segui-lo.

tunga Xifópagas Capilares
Tunga, performance ‘Xifópagas Capilares’, 1998.

No vídeo Ão, de 1980, filmado em 16 mm, em looping, ele manipula a emoção ao projetar a curva de um túnel sem fim: sem entrada nem saída. A convite do curador e crítico Walter Zanini, o vídeo é exibido na Bienal de São Paulo, de 1981, em um vetor dedicado à arte eletrônica.

Tunga volta a expor na mostra paulista, agora com obras de grande escala em 1987, 1994, 1998 e 2013. Já conhecido internacionalmente, participa da Bienal de Veneza, Bienal de Havana e da Documenta de Kassel. Na França, expõe no Museu de Arte Moderna de Paris, no Jeu de Paume, no Museu do Louvre, no Palais de Tokyo, todos na capital francesa, e na Bienal de Lyon. Também mostra seus trabalhos, entre outros museus, no Museu Ludwig de Colônia.

tunga Morfológicas
Obras Sem Título, da série ‘Morfológicas’, iniciada em 2014, e em andamento no momento do falecimento de Tunga.

No cinema, une-se ao diretor Eryk Rocha, filho de Glauber Rocha, na trilogia audiovisual: Medula e Quimera (2004), exibida nos festivais de Cannes e Sundance, e recebe o título de sonhometragem pela dupla. Essa parceria gera ainda  Laminadas Almas (2006), filmada durante a performance no Jardim Botânico do Rio de Janeiro com 600 rãs, 40 mil moscas, girinos, larvas… Esses eventos complexos foram agenciados por analogias sensíveis com alusão às religiões, à biologia e à transmutação dos elementos.

Nos últimos anos Tunga manipula terracota, gesso, cristais, presentes na obra From la Voie Humide em que tripés e partes de corpos ligam seu mundo à alquimia. Mesmo sem a apresentação física, sua obra traz resultados como objetos mentais, como atesta a série realizada em parceria com o compositor e cantor Arnaldo Antunes.

Além da presença em acervos de museus pelo mundo, a obra de Tunga está exposta em Inhotim, localizado em Brumadinho, Minas Gerais, no maior centro de arte contemporânea do Brasil. Responsável também pela concepção desse complexo, inaugurado em 2012, o artista tem neste espaço a Galeria Psicoativa Tunga, onde estão Lézart (lagarto em francês) de 1998, composto de tranças, tacapes e pentes conectados por ímãs, e a ficção Xifópagas Capilares, performance de 1984, em que a sedução pela anormalidade ganha corpo e onde ele celebra, radicalmente, a proximidade do homem com ele mesmo. Em outro pavilhão, inaugurado em 2006, brilha solitária True Rouge, uma ode ao artista desaparecido.

Bienal, pero no mucho

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Há muito que o formato bienal deixou de ter um único padrão e, mesmo que em geral contenha uma presença multinacional, muitas experiências costumam ser feitas. Há bienais criadas para abordar apenas uma região, como foi a do Mercosul, em Porto Alegre, ou a Europa, como a Manifesta. A iniciativa mais recente delas é a Bienalsur – Bienal Internacional de Arte Contemporânea da América do Sul.

“Usamos o termo bienal como um cavalo de Tróia”, ironiza Diana Wechsler, diretora artístico-acadêmica da Bienalsur. Para ela, esta era uma forma de conquistar apoio e interesse de interlocutores na Argentina e no exterior. A metáfora faz sentido, afinal tudo o que abarca esta recente bienal com sede em Buenos Aires vai muito além do que qualquer outra mostra do gênero já alcançou.

BIENALSUR
O artista africano Romuald Hazoumé da República de Benin, Diana Wechsler, diretora artístico-acadêmica da Bienal sur, a artista Carolina Wolmer, Anibal Jozami, diretor da Bienal SUR, a artista voluspa jarpa, Bertrand Ivanoff, a jornalista Marlise Ilhesca, organizadora da Bienal, e o brasileiro Eduardo Srur FOTO: Patricia Rousseaux

Primeiro, ela é organizada a partir de uma universidade pública, a UNTREF (Universidad Nacional de Tres de Febrero), o que lhe dá um caráter mais voltado à pesquisa e menos preocupado com turismo ou mercado de arte, apesar de seu reitor e diretor geral do evento, Anibal Jozami, e sua mulher, a jornalista brasileira Marlise Ilhesca, serem um prestigiado casal de colecionadores de arte contemporânea.

Além de Wechsler, contudo, que dirige os cursos de mestrado e doutorado em artes visuais na UNTREF, um comitê acadêmico com 30 universidades de todo o planeta, do Japão ao Brasil, reforçam o lado de pesquisa da bienal.

A UNTREF, vale lembrar, possui um espaço expositivo importante em Buenos Aires, o Centro de Arte Contemporânea e Museu da Imigração, onde já passaram excelente mostras, como “Levantes”, em cartaz no Sesc Pinheiros, em São Paulo, do francês Georges Didi-Huberman, que possui uma cátedra na universidade portenha, e “Perder a forma humana”, organizada junto com o museu Reina Sofia.

Portanto, sem dúvida, não é forçado dizer que surja dela uma bienal. Estranho, em se falando desse circuito, é que ela ocorre simultaneamente em 84 espaços de 32 cidades de 16 países, a maioria na América Latina, mas também na Austrália, França e Japão. Com isso, é praticamente impossível uma avaliação precisa dessa iniciativa.

BIENALSUR
Alice Creischer (1960), Andreas Siekmann (1961), As trabalhadoras de Brukman, Instalação composta por dez trajes costurados e desenhos digitais em papel FOTO: PR

Apesar de conter explicitamente no título que é da América do Sul, o conceito de sul está mais próximo ao que o Festival Sesc Videobrasil vem apresentando, isso é, de exibir práticas contra-hegêmonicas, que ocorrem não apenas no sul formalmente. Na documenta 14, aliás, que também tratou dessa questão, isso ocorria com a apropriação da revista grega “South as a State of Mind” (Sul como um Estado Mental), que na Europa representa um modo de pensamento menos duro e racionalista como o que ocorre nos países do norte.

Com essa ampliação do conceito de sul, a bienal argentina também se ocupa de um posicionamento político.  Para Jozami, que além de reitor é também empresário, investir em um evento tão complexo faz parte da função da universidade. “Arte e cultura costumam ser vistos como paliativo para quem sofre desigualdades sociais, mas um de nossos eixos é justamente apoiar projetos sociais que dão visibilidade a grupos marginalizados”, afirmou à ARTE!Brasileiros, no amplo gabinete com móveis de madeira da sala da reitoria, no bairro da Recoleta. Lá ele responde a tudo com detalhes, menos quando a pergunta é sobre valores. Na Argentina, não há leis de incentivo à cultura, o que torna o patrocínio direto, seja do Estado seja da iniciativa privada, e o reitor diz apenas que “a mostra custa menos do que aparenta”.

Marion Baruch, Rumania, 1929, Retrato 4, 2013, Seda, 19cm x 140cm, Coleção Mamco, faz contraponto na coleção do Museu de Belas Artes de Buenos Aires FOTO: PR

Finalmente a seleção de artistas pende entre uma democrática chamada de projetos por edital – de 2500 recebidos, cerca de 300 foram aprovados – para convites a mostras que já circulam em instituições de arte, como “Take me (I´m yours). Concebida originalmente por Julia Peyton-Jones, Andrea Schlieker  e Hans Ulrich Obrist, em 1995, seguindo a moda das reencenações, ela ressurgiu em 2015, na França, com ajuda de Christian Boltanski, e desde então vem circulando pelo mundo, de Nova York a Milão, onde também se encontra agora. O conceito é simples: constitui-se de múltiplos de artistas, como cartões-postais, camisas, posters e bottons, que podem ser levados pelos visitantes gratuitamente.

“Nós trouxemos essa mostra porque essa ideia tem a ver com o conceito da bienal. Aqui, por ocorrer em um local gratuito, tivemos que repor tudo muito mais rapidamente do que nas outras cidades”, conta Jozami.

Aqui se explicita uma das contradições da Bienalsur que, se por um lado busca um lastro acadêmico, por outro não se furta a apelar a Obrist, o mais estelar dos curadores do circuito contemporâneo, que se utiliza de sua celebridade para estar em toda parte, mesmo que com a mesma mostra.  Tal estratégia lembra a recorrente necessidade de validação dos países latino-americanos pelos países do norte. Desnecessário.

Mesmo assim, dentro de um espectro tão amplo, Obrist dilui-se em Buenos Aires, onde outros 26 espaços sediam mostras e projetos ligados à Bienalsur, congregando museus, como o Malba e o de Belas Artes, a centros culturais, como o recém-inaugurado CCK (Centro Cultural Kirchner).

Há de tudo, e dessa diversidade parece nascer a força desse evento: de um desfile-manifesto de Ronaldo Fraga, utilizando temas latinos em modelos não convencionais, às gigantes garrafas Pet de Eduardo Srur, que se assemelham às denuncias de movimentos ecológicos como o Greenpeace.

Ivan Grilo, Nadie ha dejado de existir, 2017, duas placa de 100 cm x 25 cm, bronze FOTO: PR

Entre esses dois exemplos, há mostras sobre colecionismo – dos cinco eixos da bienal, um se chama Coleção de Coleção -, como “Arte para pensar a nova razão do mundo”, com aquisições recentes do museu espanhol Reina Sofia, em geral com alta voltagem política. Os outros eixos da Bienal são: Arte no Espaço Urbano; Arte nas Fronteiras; Arte e Ação Social, e Curadorias Bienalsur.

O título que o escritor espanhol Enrique Vila-Matas dedicou a seu livro sobre a (d)OCUMENTA 13 cairia bem para descrever a Bienalsur: “não há lugar para a lógica em Buenos Aires”. É certo, contudo, que uma ação de arte contemporânea tão ampla e inclusiva, presente desde museus históricos a zonas fronteiriças e carregada de polêmica, é essencial para oxigenar os tristes tempos do avanço conservador no planeta. E Jozami garante: vem mais em 2019.

 

Foco na produção local

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Exposições vibrantes movimentam a cena de Buenos Aires para além da Bienalsur que surgiu em 2017 na Argentina. O Museu de Arte Latinoamericano de Buenos Aires, MALBA, além de apresentar a reorganização de seu acervo permanente, com Verboamerica, um excelente conjunto de narrativas sobre a produção latina por meio de destaques de sua coleção, exibe “México Moderno, Vanguarda e Revolução”, até fevereiro de 2018.

Uma das últimas mostras da gestão de Agustin Perez Rúbio a frente da instituição, a mostra, com curadoria de Victoria Giraudo, Sharon Jazzan e Ariadna Patiño Guadarrama reúne 170 obras de 60 artistas, que atestam como a arte mexicana vai além de Frida Kahlo e dos muralistas Diego Rivera e David Siqueiros.

Já a Fundação Proa exibia “Manifesto”, de Julian Rosefeldt, uma videoinstalação com  13 projeções de interpretação de Cate Blanchett em distintos papéis, misturando trechos de 50 manifestos artísticos. A Mostra de São Paulo apresentou uma versão para a sala de cinema, sem, obviamente, o poder imersivo que 13 telas possibilitam, como se viu na Proa.

O Museu de Arte Moderna de Buenos Aires (Mamba) apresentou três mostras individuais dedicadas a artistas argentinos, em um conjunto realmente impressionante, a começar por “Tomás Saraceno: como prender o universo em uma teia ”.

A primeira impressão de quem entra na única, ampla e escurecida sala da mostra é que Saraceno se apropriou da “TTéia”, a icônica obra de Lygia Pape composta por fios dourados. No entanto, trata-se de uma instalação construída de fato por sete mil aranhas, durante seis meses, alcançando um total de 40 mil fios. Com uma iluminação dramática, semelhante à de Pape, a obra permite uma experiência tão intensa como a brasileira. A instalação de Saraceno, no entanto, por seu tamanho e natureza, assemelha-se a uma constelação repleta de universos, um desses trabalhos quando a palavra sublime não dá conta de expressar tudo o que ele representa.

As outras duas mostras do MAMBA apresentam artistas que tiveram suas carreiras interrompidas de forma precoce, Liliana Maresca (1951 – 1994), vítima de Aids, aos 43 anos, e Sergio Avello (1964 – 2010), aos 36 anos, por conta de um câncer.

Apesar das exposições terem curadorias e mesmos salas distintas, ambas são essencialmente expressões de artistas sintonizados com seu tempo.

Maresca, com uma larga produção nos anos 80 e 90, abordou questões de gênero, em fotos performativas, assim como temas do mundo da arte e das políticas neoliberais que a Argentina atravessou após o fim da ditadura.

Ela participou agora em 2017 da Bienal de Istambul, justamente com “Recoleta” (1990), peça que também faz parte da exposição em Buenos Aires. Composta por uma dessas carroças de carregar papéis velhos, ela é uma crítica ao regime do presidente Carlos Menen (1989 – 1990), ao abordar o empobrecimento da Argentina, naquele período.

Já Avello, com uma produção mais centrada no início do século 21, também aborda questões argentinas, como o nacionalismo, só que usa materiais mais pop, como lâmpadas de neon, que constroem “Bandera”, exibida na Bienal do Mercosul, em 2003, e reconstruída na retrospectiva do Mamba.

Sua obra abrange também trabalhos sonoros, desenhos, pinturas, instalações, refletindo um artista que transitava por várias mídias, como é grande parte da produção da atual geração, em diálogo com a produção minimalista norte-americana, que Avello ironizava.

Por meio desses três artistas, o Mamba consegue, com mostras de fôlego, apresentar as últimas décadas da produção argentina, em uma seleção complementar, mas respeitando individualidades. Programação exemplar desenvolvida por sua diretora, Victoria Noorthoorn.

Lenora de Barros enfrenta o medo

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Alguns meses de pesquisa em Nova York  colaboraram para a entrada de Lenora de Barros num trabalho mais manual, mais artesanal, mexendo com cerâmica.

Na instalação que cubre o chão do Anexo Millan, o visitante é convidado a pisar num chão de letras de argila que compõem a palavra Paúra, sinônimo de medo ou pavor.

Na sala ao lado, espécies de luvas se assemelham a Máscaras de Mão, nome da obra. Todo isto forma parte de um desafio para a artista que comenta que, “no inicio tinha medo de processar,  de criar a forma”. Hoje essa relação assume um caráter mais sensitivo.

Por último, mas também ligado à  importância e ao valor da palavra na sua obra, a artista produziu um trabalho extremamente impactante, Alvos,  onde varias máscaras foram alvejadas à tiro, específicamente nas suas bocas, como se fossem especialmente atingidas no seu lugar de fala.

pisa-na-paura
A escrita como pintura de parede, Pisa na Paúra, argila e papel

Uma enorme carga de violência parece ecoar segundo a artista nos momentos de hoje. Seu trabalho reflete “como se tivesse sido levada a isso” a necessidade de uma resposta. Parte desse trabalho foi motivado pelo impacto que as declarações que a jornalista russa Masha Gessen deu em entrevista ao jornalista Jorge Pontual, no programa Milênio.

Gessen que é é lésbica, casada e tem dois filhos com sua companheira – ,  se exilou por anos nos EUA e resolveu voltar a Russia para lutar pela liberdade de gênero. Uma das coisas que mais a impressionaram foi a dificuldade de voltar a se expressar na língua russa. Segundo ela é como se com o tempo de censura e violação de direitos individuais, a linguagem tivesse sido “pilhada, estuprada, violada”.  A palavra cria um significado que ao não se comprovar no real vai perdendo seu sentido.

alvos
“Alvos”, video e instalação, 2017

O futuro não se comprova então, as palavras perdem seu valor. “Liberdade às vezes significa “prisão”, “eleição” significa “ritual vazio”, “democracia”  se tornou um termo depreciativo”  disse Gessen.

Lenora não está equivocada, no lugar de ficarmos impávidos temos que pisar na paúra.

 

Miami Art Basel expõe trabalhos de diversas fases da carreira de Wesley Duke Lee

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Não faço um texto linear para falar de Wesley Duke Lee, artista multifacetado, cheio de narrativas transterritoriais, inventor de identidades múltiplas fragmentadas, que desde sempre provocam polêmicas. O estilo aristocrático, já presente no sobrenome, o acompanha até a morte em 2010. Filho de pai norte-americano conservador, em 1951 vira a mesa, decide ser artista, frequenta as aulas de desenho no MASP e, no ano seguinte, ingressa na Parsons School of Design, em Nova York.

Pintura, xerox, colagem, escultura, gravura, livro de artista, computação gráfica, quase nada escapou da criatividade de Wesley, pioneiro da linguagem pop no Brasil. Em 1963 adere ao realismo mágico e ensina artistas como Carlos Fajardo, Frederico Nasser, José Resende e Luiz Paulo Baravelli, com os quais trabalha intensamente por dois anos. Alguns anos depois, sua obra sai do plano e ganha o espaço tridimensional. Trabalhos como O Trapézio ou Uma Confusão (1966) e O Helicóptero (1967) já se articulam como ambientes.

Como resgate da produção de um artista imprescindível, é inegável a contribuição do Wesley Duke Lee Art Institute, criado em 2015 pelo galerista Ricardo Camargo com a sobrinha do artista, Patrícia Lee, em espaço anexo à galeria de Ricardo, no Jardim Paulistano. Uma visita ao Instituto coloca o público em contato com o cotidiano do artista, repleto de peças singulares, como o famoso bar onde ele fazia as refeições, além de objetos pessoais, como pincéis, livros, discos e também pinturas, gravuras, desenhos e muitas fotos. A questão central é compreender uma produção que incomoda, transgride, não se deixa domesticar, e que agora está acessível, em escala reduzida, quase uma réplica da charmosa casa/ateliê da av. João Dias, espaço de originalidade e criatividade sedutoras.

Com acesso ao público, o Wesley Duke Lee Art Institute foi criado, na concepção de Camargo, como um espaço para quem quiser ter contato com o realismo mágico, por meio da biblioteca, organização dos objetos nas paredes e do banco de dados com 6.000 documentos. Um dos objetivos do Wesley Duke Lee Art Institute é produzir um catálogo raisonné, para preservação e autenticidade de sua obra. A produção de Wesley é atemporal e transita entre a origem do homem, a sexualidade, a morte, o erotismo e tem a densidade tão forte quanto seu cosmopolitismo vivido entre Brasil, Estados Unidos, Europa e Japão.

Agora, durante a Art Basel de Miami, um público especializado, vindo dos quatro cantos do planeta, pode ter contato com alguns trabalhos e móveis do estúdio de Wesley. A mostra, organizada por Ricardo Camargo e Patrícia Lee, tem a participação efetiva da galeria paulistana Almeida & Dale. Camargo está empenhado na mostra que ocupa um estande de 36 metros quadrados no setor S3 da Feira, onde o expositor só pode exibir um artista. “Escolhemos o Wesley e vamos mostrar nove obras além do seu cavalete principal, um móvel de apoio do estúdio, a máscara de quando ganhou o prêmio na 8º Bienal do Japão, de 1969, fotos, entre outros itens”.

A escolha de obras de várias fases proporciona uma panorâmica da produção de Wesley, como o Capacete do mestre Khyrurgos 1962, o mais antigo entre os trabalhos desta mostra, que marca o nascimento de duas fortes tendências em sua obra: o experimentalismo de cunho mitológico e a colagem. Outra obra pontual é Zona: I Ching, 1964, óleo e colagem s/ tela, que faz parte da série I Ching, composta de seis obras. Com ela, o artista esteve na Wesley Duke Lee Exhibition, na Tokyo Gallery, em 1965, grande momento de sua trajetória, quando vive no Japão por oito meses, e na The Emergent Decade: Latin American Painters and Paintings in the 1960’s, no Guggenheim, em Nova York, em  1966.

duke lee ligas
Wesley Duke Lee, ‘Ligas’, 1972.

Assim como vários artistas, Wesley fez todo tipo de experimentação; uma delas resultou na obra A Zona: Arino Boa Viagem, 1969, lápis de cor e colagem, que tem importância especial dentro da sua trajetória. O trabalho foi realizado em 1969, em Los Angeles, durante uma “viagem” lisérgica com dois amigos. Camargo comenta que “apesar dos traços serem delicados, eles carregam uma identidade pictórica forte e definida”. Ao longo de seis décadas Wesley passa por vários “ensaios” e escolhas. Quando chega ao LSD, via experimentação de novos processos, marca uma nova etapa em sua produção. Assim como grande parte dos artistas dos anos 60, ele se interessa em explorar experiências artísticas com a substância.

Wesley sempre teve paixão por mitologias e a leitura da mitologia grega para ele era como se lesse a vida. Na obra O/Limpo: Anima 1971 (arte ambiental) ele agrega objetos variados como papel machê, metal, tecidos, madeira, plástico, ferro, palha, terra, pedra e osso. Camargo comenta que Wesley inicia o projeto O/Limpo, “quando realiza 15 pinturas e esta única instalação, em que retrata máscaras no universo particular ligado às configurações da Mitologia Grega”. O diferencial é que esta obra perpassa por toda a vida de Wesley até sua morte em 2010. Torna-se um work in progress eterno, no qual, de tempos em tempos, ele incorpora novos elementos, como um objeto pessoal de estimação.

Um dos trabalhos que chama a atenção no conjunto é A iniciação do mito de Narcisssus, 1981, lápis, de cor, guache, nanquim, carimbo, colagem, fita adesiva s/ cartão e papelão. Nele, a inspiração de Wesley é a atriz Sônia Braga de quem ele era admirador. É ele mesmo quem comenta esta obra. “Na lenda, Narciso era castigado por admirar sua própria imagem no lago. Eu levo o mito mais adiante: ele olhava o fundo do lago… isso eu captei deste momento de Sonia”. Sensualidade e erotismo são o binômio essencial na obra de Wesley. Com Tantratem, 1999, tinta spray, óleo, cadarço e colagem s/ cartão, ele remete à energia sexual do Tantra, evidenciando o que sempre foi tão importante em sua poética: duplicidade dos seus temas, o real e o mágico, o diálogo entre o mundo presente e o mundo dos sonhos. Com Retrato de Luzia ou a respeito de Titia 1969 (arte ambiental) liquitex s/ tela e planta viva com um vaso, Wesley integra objetos e plantas aos quadros na tentativa de  aprofundar a aproximação de mundos diferentes, criando um jardim sobre o jardim de sua memória.

Camargo fala com entusiasmo sobre o renascimento da produção de Wesley. “No ano passado, a obra  Trapézio ou uma Confissão”, feita para a Bienal de Veneza de 1966,  integrou a coletiva The Word Goes Pop, na Tate Modern Gallery. Soffia Gotti, que colaborou na mostra, diz que descobriu a obra de Wesley quando visitou São Paulo pela primeira vez, durante o processo de pesquisa para The World Goes Pop”, quando conheceu a coleção Roger Wright, que está agora na Pinacoteca do Estado. “Lá eu pude ver pela primeira vez a incrível instalação, uma das poucas que Wesley produziu, chamada Trapézio ou uma confissão. E foi interessante porque nós lemos o título de maneira errada.” Eles não leram confissão, mas sim confusão. “O que é na verdade o elemento chave em toda essa discussão porque há muita confusão sobre o trabalho de Wesley. Mais ainda, essa instalação em particular foi catártica no meu entendimento sobre a sua prática de maneira mais geral, porque é um cubo imersivo em barras, suspenso em painéis, sendo dois de madeira e dois de acrílico.”, comenta Soffia.

Camargo fala da forte presença de Wesley nessa mostra e se diz satisfeito com o conjunto significativo que expõe na Miami Art Basel. Diante de um mercado nem sempre conhecedor da historia da arte, no qual as vezes um artista é considerado importante pelo montante que sua obra atinge, é muito oportuno que se coloque foco sobre a esquecida produção de Wesley Duke Lee. Um paulistano especial na história da arte brasileira, um aristocrata entre nós.

De quem é o corpo da mulher?

Quando um discurso se faz presente no momento histórico em que vivemos e está incluído em nossa mentalidade, pensamos que sempre foi assim. É o que nos acontece com o discurso sobre a “diferença dos sexos”: estamos acostumados a pensar que existem dois sexos diferentes, mas foi só a partir do século XVIII que o discurso sobre a existência de dois sexos diferentes se impôs como paradigma na sociedade Ocidental. Foi só então que homem e mulher passaram a ser concebidas como duas “essências” diferentes, sendo que esta diferença foi concebida como estritamente biológica; a partir destas “essências” que se desdobraram as funções e os lugares sociais ocupados por cada um deles.

Até então, durante toda a Antiguidade imperava a teoria do “sexo único”, o masculino, pensado como sendo o sexo perfeito enquanto que o feminino não era pensado como um sexo diferente e sim como imperfeição do outro. Era um modelo de superior/inferior, ou seja, de “hierarquia ontológica” e não de diferença. Uma das expressões desta forma de pensar se fazia presente nos desenhos dos livros de anatomia, que até o século XVII eram baseados no corpo masculino – por ser o corpo perfeito permitiria construir o saber perfeito sobre a morfologia do corpo.

A questão da diferença começou a fazer algum barulho no século XVII, mas só se impôs como modelo no XVIII. Se por um lado as descobertas anatômicas do Renascimento colaboraram para sair do primeiro modelo, será no meio da luta pela igualdade de direitos da Revolução Francesa que se fechará definitivamente o espaço possível de existência da teoria do “sexo único”. O reconhecimento das diferenças se impôs, embora a sociedade não tenha concedido naquele momento os direitos iguais pelos quais as mulheres lutaram na revolução.

Em 1792, veio a público a “Reivindicação dos Direitos da Mulher”, considerado o documento fundador do feminismo, de autoria de Mary Wollstonecraft e em resposta à constituição francesa de 1791, que não incluía as mulheres na categoria de cidadãs. A autora foi uma grande lutadora tanto na causa das mulheres quanto na luta antiescravagista, denunciando o enclausuramento feminino na vida doméstica, propondo a igualdade dos direitos da mulher à educação, ao voto, à propriedade privada e à herança. O feminismo de Mary se opunha à escravidão dos africanos, dos indígenas e à escravidão doméstica das mulheres, já que estas eram condenadas a uma eterna “minoridade”, no casamento viravam dependentes legais dos maridos não podendo gerir os bens nem trabalhar sem consentimento deles. Ou seja, não tinham direito aos bens mas eram quase um bem nas mãos dos maridos.

Nos séculos que se seguiram, as conquistas das mulheres foram grandes nos direitos e no espaço social, na política, nas artes e na ciência, no entanto há lugares nos quais o peso hierárquico se mantém com força, o domínio masculino ainda exercita a violência patriarcal. É significativa a violência sobre o corpo das mulheres apoiada no sentido de propriedade e de dominação masculina.

Na corrente das violências – situações de assédios, abusos, estupros e feminicídios –, o feminino como “outro” é apagado, borrado pela apropriação “colonialista” do corpo das mulheres, e o masculino se reafirma como “masculinidade hegemônica”. Enquanto o feminino fica no lugar do que pode ter dono, ser violado, violentado, o masculino não tem que se deparar com a “autonomia subjetiva”.

Como pensar a temática do domínio e da submissão? A partir do caminho da constituição psíquica? A partir do caminho da cultura e das relações de poder? No entrecruzamento entre ambas?

A psicanalista norte-americana Jessica Benjamin estudou as formas pelas quais as relações sociais opressivas se estruturam nos vínculos primitivos e na constituição do psiquismo, sem por isso “naturalizar” a opressão sexual masculina. Pelo contrário, tentou entender como a dominação se apoia no entrecruzamento das relações de amor e de poder. Benjamin estudou a forma pela qual a organização patriarcal e o modo em que dentro dela são pensados o feminino e o masculino se infiltra na própria constituição dos primeiros vínculos.

A autora entende o desenvolvimento do infans com um interesse social desde o início, sendo que o sujeito se desenvolve na relação com outros sujeitos e através deles. Por isso o eixo da mutualidade, do reconhecimento mútuo, é fundamental e precisa ser levado em conta para entender como se pode construir uma conexão que permita depois encontros marcados pela reciprocidade.

Benjamin retoma Hegel para pensar o “paradoxo do reconhecimento”, afirmando que no processo de construção da autoafirmação se precisa, por sua vez, do reconhecimento alheio, criando uma tensão permanente e necessária entre a afirmação de si próprio e o reconhecimento mútuo. Essa tensão precisa ser sustentada para permitir que dois sujeitos se encontrem como semelhantes e é na sua ruptura que se instaura a dominação/submissão.  Na relação entre o sujeito e o outro há um permanente conflito entre a tentativa de reconhecê-lo como semelhante e anulá-lo, incorporando-o como parte de si mesmo. Cada um de nós quer afirmar-se como individualidade única desconhecendo os outros como autônomos ao mesmo tempo em que precisa deles para ser reconhecido.

Na primeira relação mãe-bebê se constroem os primeiros signos de reconhecimento pois a mãe ao mesmo tempo que reconhece o filho como tal tem que reconhecê-lo como outro. Entre mãe e bebê se troca reconhecimento, quando este se deixa acalmar pela mãe ela sente-se reconhecida e fica gratificada quando aos poucos ele a reconhece mais que aos outros. A mãe se liga ao bebê pela gratificação. O filho aos poucos tem que ir reconhecendo a mãe como sujeito independente, mas para isto é necessário que a mãe se enxergue a si mesma como sujeito autônomo.  Para a autora, a “mutualidade” é um eixo central na relação entre filho e mãe, sem que por isso desconheça toda a complexidade intrapsíquica e dos processos inconscientes. Para construir a mutualidade é necessário que se mantenha a conexão com o outro como tal e que se mantenha a tensão entre o reconhecimento de si mesmo e o reconhecimento da dependência do outro.

Quando o conflito entre dependência/independência fica muito agudo, esta tensão pode se romper e primar a fantasia de onipotência; quando alguém quer afirmar a si mesmo sem o reconhecimento do outro segue-se o caminho da dominação. O outro é submetido para arrancar-lhe o reconhecimento sem reconhecê-lo reciprocamente. A autora não dá como inevitável a dominação masculina, pelo contrário, pensa que esta pode ser modificada, por isso a importância de entender a constituição dos lugares no relacionamento mútuo e de pensar na forma pela qual os lugares maternos e paternos se exercitam, assim como as dicotomias, dissociações e hierarquias do social podem influenciar neste exercício.

Na nossa cultura, o masculino se constrói na dissociação e projeção de tudo o que é da ordem da fragilidade, do infantil e do indefinido, que ficam do lado do feminino. Isto tem efeitos significativos na constituição da subjetividade autônoma das mulheres e no exercício dos lugares maternos e paternos, e portanto na forma em que os caminhos seguidos pelos meninos e pelas meninas na construção dos vínculos e da independência se processam. O eixo do domínio/submissão se acompanha do não reconhecimento do “outro como” sujeito diferente, é autônomo.

No filme de Pedro Almodóvar (diretor espanhol) de 2011, A Pele Que Habito, estes dois processos se põem juntos em cena. Um cirurgião plástico, cuja mulher sofreu um acidente no qual ficou com grande parte da pele queimada, produz uma pele muito resistente na tentativa de salvá-la, com a qual vai recobrindo seu corpo. No entanto ela, desesperada ao ver seu rosto refletido no vidro da janela, se mata. A filha que presencia o suicídio da mãe fica extremamente perturbada e é internada numa clínica psiquiátrica. Numa saída durante o processo de recuperação vai numa festa com o pai e acaba sendo estuprada por um jovem, o que piora seu estado levando-a ao suicídio. O médico sequestra o jovem que a estuprou e começa um processo de transformação com uma cirurgia de reversão de sexo, e a partir daí vai esculpindo um corpo feminino de belas formas e pele macia.

Poderíamos entender que esta seja sua vingança com o jovem da qual a filha foi vítima, e também o é, mas certamente o filme diz muito mais do que isto, entendo que diz das relações entre homens e mulheres e dos movimentos de dominação masculina. No filme há um permanente escapar dos corpos femininos seja pela traição ou pela morte, perante o qual ele esculpe um corpo feminino, feito pelas próprias mãos, sua própria criatura pela qual acaba se apaixonando. Ou seja, o corpo feminino feito pelas suas mãos, em cada pedacinho dele e que se mantém preso no seu território e no seu desejo. Quando pareceria ter feito a prisão perfeita, um corpo o qual teve seu desejo anulado, sendo imposto um gênero que o rapaz não queria, um corpo com dono, o qual deveria oferecer-lhe o gozo, este o mata e foge, não sem antes ter sido estuprado pelo meio irmão do médico, o mesmo que estava com sua mulher no momento do acidente. Nesta produção de um feminino preso, nas mãos do escultor, um feminino que perdeu o caráter de “outro”, nesse não desejo e não sujeito, o domínio masculino perdido quando as mulheres lhe escapam se afirma, se consolida.

Nas linhas de fuga, as mulheres do filme se deparam também com outro homem que se apropria de seus corpos e de seus desejos. O filme parece ser uma boa mostra da luta entre a procura da autonomia dos corpos femininos e as recorrências dos movimentos colonizadores sobre o corpo feminino com os quais nos deparamos tantas vezes na história da humanidade e nas histórias singulares.

Entre os muitos movimentos em defesa da liberdade dos corpos femininos, todos lembram de 1968, quando um grupo de ativistas nos EUA denunciou a forma com que os padrões de beleza são impostos às mulheres queimando objetos em praça pública – salto altos, maquiagens, etc. – o que se fez conhecer como “a queima dos sutiãs”, imagem que passou a ser uma metáfora dos movimentos feministas. Mas sem precisar ir longe no tempo, é só lembrar da polêmica que no mês passado circulou na mídia acerca de uma matéria do jornal sobre as vaginoplastias, à qual várias feministas reagiram por entender que a forma com que tinha sido escrita deixava novamente os corpos das mulheres nas mãos dos parâmetros dos homens, que são os que se encarregariam de dizer o que é bom, desta vez se tratando do mais íntimo do corpo da mulher.

No entanto, penso que o campo no qual nos deparamos com a força maior do domínio masculino sobre o corpo das mulheres é o das violências contra o corpo feminino no assédio, estupros e no mais extremo nos feminicídios. Estes se repetem com tanta frequência (!) e parecem ressurgir com mais força após qualquer novo movimento de autonomia e de conquista das mulheres. Segundo um levantamento feito pela Thomson Reuters Foundation, numa pesquisa feita entre as cidades com populações de mais de 10 milhões de habitantes, São Paulo está entre os primeiros lugares no potencial de risco de violência sexual para as mulheres. O crime de estupro aumentou em 10% neste ano em relação a 2016 e o número de casos de feminicídio é imenso.

Entende-se por feminicídios os casos em que mulheres são assassinadas por homens por questões de gênero, ou seja estes matam agindo não só com o ódio e o desprezo pelas mulheres, mas fundamentalmente com a ideia de propriedade sobre elas. Portanto, as razões destas mortes tem que ser procuradas nas relações desiguais entre os gêneros, relação entre alguém que se acha superior e com mais direitos sobre alguém que é considerada inferior e com menos direitos.

Pensando no filme, todas as mulheres que lhe escapam, encontrando uma linha de fuga ou uma janela aberta, parecem produzir no protagonista uma necessidade cada vez maior de que o corpo feminino seja a criatura esculpida por ele próprio.

Ou seja, tratam-se de relações de poder e o que está no fundo é o sentido de propriedade sobre o corpo das mulheres e da “naturalização” que disso tudo é feito na cultura patriarcal. Algo que está presente em toda a corrente das violências sobre o corpo feminino como estupros, esterilização forçada, exigência de maternidade não desejada, mutilação genital, abuso sexual e que chega ao limite nos feminicídios.

As pesquisas tem mostrado que os motivos pelos quais as mortes acontecem com maior frequência são situações de infidelidade, separações, rejeição sexual, atos de desobediência, gravidez, maternidade, ou seja, todas situações nas quais o domínio sobre o corpo feminino se põe em questão. Na cultura patriarcal o corpo da mulher é dele, de sua propriedade. Toda autonomia subjetiva do feminino desafia o domínio masculino e tende a ser abafada com violência. Só que isto está na mentalidade dos homens, das mulheres que educam os filhos e dos legisladores que promulgam as leis que mantém a desigualdade.

* Psicanalista, Silvia Alonso é supervisora do Curso de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae e coordenadora do grupo de pesquisa “O feminino e o imaginário cultural contemporâneo”. Silvia é uma das colunistas do páginaB!.

Referências bibliográficas

Benjamin, J. Los lazos del amor, psicoanálisis, femenismos y el problema de la dominación. Buenos Aires: Paidos, 1996.

Laqueur, T. La fabrique du sexe. Paris: Gallimard, 1992.

Morin, T. Virtuosas e perigosas. As mulheres na revolução francesa. São Paulo: Alameda, 2013.

A volta do Tim Maia “irracional”

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Há cerca de 10 anos, o Brasil do século 21 enfim descobriu que, em meio ao discurso monotemático de Tim Maia sobre a redenção mística por meio das crenças do Universo em Desencanto, havia pérolas musicais do soulbrother que ficaram obscurecidas por décadas. Para além da inspiração autoral que permeia as composições e arranjos de Racional nos volumes 1 e 2 (há também um terceiro registro lançado, com sobras dos dois álbuns), claro, não foram poucos os que pontuaram que Sebastião Rodrigues Maia estava ali em plena forma vocal por temporariamente ter aberto mão do que ironicamente chamava de triatlhon (o consumo simultâneo e regular de álcool, cigarro e cocaína).

Mas ao se dar conta de que Manoel Jacintho, o famigerado líder da seita Universo em Desencanto, que dizia receber mensagens de seres extraterrenos, não era mesmo o “maior homem do mundo”, como bradou o Síndico em O Grão Mestre Varonil, e sim um notório charlatão, Tim e os músicos da banda Vitória Régia, que, leais ao seu líder, também adotaram a indumentária branca e entraram em abstinência da chapação, decidiram voltar em grande forma no álbum lançado por ele em 1976.

Com a mesma riqueza musical impressa nos dois biscoitos racionais, Tim Maia fez deste seu sétimo LP, epônimo como alguns antecessores, mais um título obrigatório de sua discografia. Melhor: repetiu a dose dispensando o discurso enfadonho em torno de Manoel Jacintho e seu famigerado livro de inúmeras reimpressões oportunistas. Como sugere o título deste texto, abordaremos hoje a volta do bom e velho Tim Maia “irracional”, artista que tanto amamos, na plenitude de seus melhores predicados.

Lançado pela Polydor, com produção executiva da Seroma (gravadora de Tim, que levava as sílabas iniciais de seu nome, Sebastião Rodrigues Maia), Tim Maia(1976) reúne músicos insuspeitos: Tim (bateria, percussão, guitarra, flauta e vocais), Carlos Simões (baixo), Reginaldo Francisco (teclados e voz), Paulinho Roquete (guitarra), Paulinho Batera (percussão e bateria), José Maurício (guitarra), Antonio Pedro (baixo, percussão e voz), Paulo Ricardo Rodrigues Alves, o inseparável “Paulinho Guitarra” (guitarra solo, percussão e voz), Antônio Claudio, Luis Mendes Jr. e Gastão Lamounier (vocais). Impecáveis, os arranjos do álbum foram divididos por Tim, o maestro uruguaio Miguel Cidras e o brasileiro Arthur Verocai, que orquestrou a última canção, The Dance is Over, composta por Tim, Hyldon e o tecladista Reginaldo, também autor de Me Enganei, que abre o lado B do LP.

Capa do álbum de 1976. Foto- Divulgação : Polydor
Capa do álbum de 1976. FOTO: Divulgação / Polydor

Se o álbum é encerrado com a sentença de que a dança chegou ao fim, é justamente convocando todos a dançar, com a canção Dance Enquanto é Tempo, que Tim dá início aos quase 30 minutos de deleite musical do sucessor dos dois volumes de Racional. À mensagem hedonista de abertura, Tim sobrepõe discursos que tratam de questões diversas, como o amor expresso aos filhos em Marcio Leonardo e Telmo(canção composta em homenagem a Leo Maia, seu filho adotivo, e Carmelo Maia, seu único rebento legítimo); a nulidade que ele voltava a dar aos credos religiosos, como em Nobody Can Live Forever e Brother, Father, Sisther and Mother; e a exaltação de sua altivez negra, manifestada na poderosa Rodésia. Outro grande momento do álbum é Batata Frita, o Ladrão de Bicicletas, título que talvez faça referência a um dos clássicos do neorrealismo italiano, o filme Ladrões de Bicicletas, de Vittorio De Sica.

Em dezembro de 2009, os repórteres Marcio Gaspar e Lauro Lisboa Garcia publicaram na edição impressa de Brasileiros uma entrevista inédita com Tim Maia, resultante de um bate-papo com o músico em 1995. Leia, na íntegra

Em setembro de 2012, a repórter Natalia Chiarelli entrevistou Yale Evlev, diretor de marketing da gravadora Luaka Bop, selo criado pelo talking head David Byrne, que então havia lançado a coletânea Nobody Can Live Forever – The Existencial Soul of Tim Maia.

Apaixonado por música brasileira, Evlev enfatizou características de ineditismo na obra autoral de Tim e de um sujeito também amado por nós, que, como ele, ganhou a alcunha de Babulina, Jorge Ben Jor. Segundo Evlev, Jorge e Tim são artistas dotados de artifícios irresistíveis para o público estrangeiro.

“O soul brasileiro é soul de uma maneira tão diferente, dentro de um gênero em que isso parece ser uma impossibilidade. É justamente isso que é tão refrescante na coisa toda que eles fizeram. Tim Maia e Jorge Ben são cheios de soul, mesmo não fazendo música baseada no blues como fizeram os soulmen norte-americanos. Mas, apesar disso, o sentimento e as emoções que dão nome ao gênero, ou seja, a alma, estão amplamente representados em suas obras”, defendeu Evlev.

Boas audições e até a próxima Quintessência!

Texto Originalmente publicado no site da revista Brasileiros em 30.1.2014

Ouça o álbum, na íntegra, no Youtube

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Veja o clipe de Rodésia

Um grito de altivez no salão

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Nesses tempos obtusos, em que a ascensão do conservadorismo no País faz surgir personagens esdrúxulos como Fernando Holiday – jovem negro, egresso do Movimento Brasil Livre (MBL), que foi eleito vereador por São Paulo com um discurso de combate ao “vitimismo” dos negros, de fim das cotas raciais e de revogação do Dia da Consciência Negra, celebrado neste dia 20 de novembro–, é mais que bem-vinda a chegada às livrarias de um trabalho como 1976 Movimento Black Rio, livro-reportagem dos jornalistas Zé Octávio Sebadelhe e Luiz Felipe de Lima Peixoto.

Publicado pela editora José Olympio, com apoio do projeto Natura Musical, o trabalho de fôlego, também integrou uma série de ações da Secretaria Municipal de Cultura do Rio de Janeiro em celebração aos 40 anos do Movimento Black Rio.

Ao longo de 252 páginas, a dupla de jornalistas reconstitui, com o auxílio de muitos personagens que viveram o período, a história desse fenômeno jovem consolidado com a profusão de bailes majoritariamente frequentados pela negritude carioca.

A efervescência em torno de festas que reuniam até 15, 20 mil pessoas foi tão inspiradora que fez surgir uma cena local de bandas e compositores que amalgamavam os ensinamentos do funk e da soul music norte-americana com gêneros da música popular brasileira, como o samba e o baião.

Maior expoente dessa mistura, a Banda Black Rio lançou em 1977 seu primeiro LP, Maria Fumaça (ouça), um clássico das fusões retroalimentadas por essa cultura pulsante advinda dos bailes cariocas, principal alicerce do movimento que deu aos jovens negros do Rio de Janeiro um sentimento inédito de altivez.

Nesse contexto, além da Banda Black Rio, surgiram artistas municiados do mesmo ímpeto de amplificar a soul music à brasileira criada por antecessores como Tim MaiaToni TornadoHyldonCassiano e o grupo Dom Salvador & Abolição.

Na nova safra, destaque para União BlackCarlos DaféGerson King ComboDon BetoBeto ScalaLady ZuMárcia MariaTony BizarroSerginho MeritiCopa 7Junior MendesAlmir RicardiSandra de Sá e a dupla Robson Jorge e Lincoln Olivetti. Com ritmo explosivo, eles fizeram a trilha sonora dos blacks, como se autointitulavam os simpatizantes do movimento.

Mal documentada, tema de muitas reportagens preconceituosas feitas na época, a trajetória desses personagens é contada com propriedade no livro.

No texto de apresentação da obra, Peixoto pontua argumentos que eram recorrentes para deslegitimar a importância do movimento, como a influência estrangeira e a aparente frivolidade de uma articulação movida à festança.

“A história do Black Rio se encaixa, de certa maneira, numa situação parecida com os escassos registros históricos da cultura negra nacional, obliterados pela amnésia reinante da memória imaterial, característica comum deste País. Pouco se sabe sobre o que foi a influência do soul americano nos subúrbios do Rio de Janeiro no início dos anos 1970. Alguns afirmam não ter sido um movimento autêntico, organizado. Outros alegam que foi apenas um momento em que a juventude negra resolveu dançar uma música diferente”, diz Peixoto.

Pelo conturbado contexto histórico em que surgiu, o jornalista reitera a importância da articulação do Black Rio. “Num período ditatorial, a representatividade desse movimento não teve parâmetros. Os negros daqui se mostraram contextualizados num âmbito internacional, estavam em sintonia com o que acontecia pelo mundo. E, através dessa identidade de raça, o Movimento Black Rio se tornou um fenômeno sociológico e político incomparável. Um divisor de águas.”

A crítica de superficialidade da proliferação dos bailes no subúrbio carioca chegou a motivar um protesto do sambista Candeia, manifestado na música Sou Mais Samba (veja vídeo), lançada em 1977.

Provocativo, na letra, o partideiro ironiza: “Esse som que vem de fora não me apavora / Nem rock nem rumba / Pra acabar com o tal de soul / Basta um pouco de macumba”.

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Foto originalmente publicada em reportagem do “Jornal do Brasil” e reproduzida no livro “1976 – Movimento Black Rio”. Foto: Divulgação / Editora José Olympio

Na última estrofe, depois de afirmar “quem presta à roda de samba não fica imitando estrangeiro”, Candeia pondera: “Calma, calma minha gente / Pra que tanto bambambã / Pois os blacks de hoje em dia são os sambistas de amanhã”.

O manifesto anti-Black Rio de Candeia, que contou com a colaboração de Clementina de Jesus e Dona Ivone Lara, é documentado no 15° dos 28 capítulos do livro.

O embate “samba versus soul” chegou a contar com a inusitada opinião do sociólogo Gilberto Freyre, que, em artigo publicado no Jornal do Brasil, alertou “a nação para o perigo da mistura de negros norte-americanos com os brasileiros negros que possuem um movimento chamado Black Rio, com a finalidade de transformar a música negra – o samba, principalmente – em música de protesto”.

Na introdução de 1976 Movimento Black Rio, Sebadelhe reafirma o equívoco de menosprezar as intenções de jovens negros que, ao contrário do que pensavam os que compartilhavam da opinião da velha-guarda do samba e do autor de Casa-Grande & Senzala, não tinham como mote único o hedonismo alienante da dança.

“O Movimento Black Rio teve características tão peculiares que não apenas mudaria as formas de produção cultural da cidade, mas também os hábitos de convivências e as relações do lugar. Essa particularidade uniu jovens negros de outros estados com o mesmo propósito: o direito de se expressar livremente, absorver, produzir cultura e se divertir. Surgia, então, uma mocidade que questionaria veementemente estatutos e modelos arcaicos da civilização brasileira, traços de uma sociedade forjada em severos conceitos da era da escravidão.”

Além da importância textual, o livro também apresenta ao leitor uma rica pesquisa iconográfica, com filipetas, cartazes e fotografias em preto e branco que evidenciam o sentimento de feliz irmandade que havia entre os adeptos da cena difundida em festas promovidas por equipes como Baile da Pesada, Soul Grand Prix, Dynamic Soul, Soul Maior, Cash Box, Black Power e Furacão 2000.

Neste mês de celebração ao espírito aguerrido de Zumbi dos Palmares, temos aqui um livro essencial tanto para desinformados, como o vereador Fernando Holiday, quanto para a negritude que sempre defendeu o direito de trazer à tona sua própria história e, assim, preservá-la.

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Baile da equipe Black Power, em foto originalmente publicada no “Jornal do Brasil” e reproduzida no livro “1976 – Movimento Black Rio”. Foto: Divulgação / Editora José Olympio

Negro é lindo: história dos bailes black de SP

“Negro é lindo / Negro é amor / Negro é amigo / Negro também é filho de Deus”, canta Jorge Ben Jor (então Jorge Ben) na primeira estrofe da canção que dá título a seu oitavo álbum, de 1971. Naquele início de década, no Brasil e no mundo, a exaltação à negritude era palavra de ordem.

Em São Paulo, um dos artífices para o levante de autoestima empreendido pela juventude afrodescendente foi a cena de bailes black, como eram chamadas as festas espalhadas pelos subúrbios e periferias da capital paulista.

Por meio de alguns dos personagens que construíram essa história, CULTURA!Brasileiros contará em dois capítulos – o primeiro deles um recorte entre os anos 1960 e 1970 – como surgiu e como foi disseminada a vertente brasileira do Black Power, movimento que marcou a luta dos negros norte-americanos por igualdade de direitos civis e reverberou em diversos países do mundo.

Capítulo 1 – Dos discotecários aos DJs
Em 1958, um Brasil moderno despontava com o surgimento da Bossa Nova, a construção de Brasília e a conquista, na Suécia, do primeiro de cinco títulos mundiais de futebol. Foi também naquele ano que Osvaldo Pereira, um técnico de rádio e TV, nascido em Muzambinho, em Minas Gerais, e radicado em São Paulo, fez história ao se tornar o primeiro DJ do País, ou melhor, o primeiro “discotecário”, como prefere ser chamado.

Em entrevista à CULTURA!Brasileiros, Seu Osvaldo, codinome artístico do veterano, de 82 anos, revelou que sua paixão pela música teve início na adolescência, em festas familiares onde sempre dava um jeito de tocar os discos de 78rpm que continham temas dançantes de artistas como Jacob do Bandolim, Luiz Gonzaga e Jorge Veiga.

Também aficionado por rádios e determinado a desvendar a magia por trás do aparelho, logo que chegou a São Paulo, Osvaldo soube de um curso ministrado à distância pela empresa norte-americana National e decidiu investir na formação de técnico de rádio e TV. O conhecimento adquirido com o curso abriu caminho para um emprego na loja Eletro Fluorescente Harpaco, situada na rua Guainases, no centro de São Paulo, onde passou a construir rádios portáteis e também a cuidar da sessão de discos, como vendedor e responsável pela renovação do estoque

Naquele fim de anos 1950, estavam em voga nos centros urbanos do País os grandes bailes conduzidos por big bands. Com a premissa de música ao vivo executada por grupos de dez a 15 músicos, custava caro produzir festas dessa natureza. Consequentemente, os ingressos eram restritivos, sobretudo para o público negro. Mas, a partir da profissionalização de Osvaldo como discotecário, surge na capital paulista uma alternativa de baixo custo.

“Em 1958, comecei a ganhar dinheiro tocando em domingueiras no Edifício Martinelli. Vendo que o público era crescente, o organizador do baile apostou que também podia lucrar fazendo festas que virassem a madrugada e alugou um imóvel no número 82 da avenida Rio Branco, onde passei a tocar aos sábados das 22h às 4h.”

Por sugestão de Francisco, um grande amigo do trabalho, que cursava Inglês, Osvaldo deu ao baile o enigmático nome de Orquestra Invisível Let’s Dance. Batismo justificado pelo fato de o discotecário, municiado do potente equipamento de som que construiu para as festas, tocar seus discos sempre por trás de uma cortina. Quando menos se esperava, o palco era descortinado e os casais descobriam que não havia orquestra, mas sim Osvaldo a manipular o toca discos que os fazia dançar ao som de big bands lideradas por artistas como Glenn Miller, Ray Conniff e Ray Charles.

O baile de música mecânica deu tão certo que logo surgiram seguidores de Osvaldo. Discotecários pioneiros na cena dos bailes black, como Amauri, Eduardo e o trio Os Carlos, começavam a organizar festas em outras regiões da capital paulista e, cada vez mais, atraíam um público majoritariamente negro.

As peculiaridades entre o discotecário e o DJ, Seu Osvaldo explica, tinham a ver não só com a técnica adotada por ambos, mas também com as nuances de comportamento do público. “Em 1962, eu fiz uma espécie de mixer (equipamento que mistura e faz a passagem das músicas tocadas pelos DJs) e meu patrão me emprestou um segundo toca-discos. Achei que a novidade seria um sucesso, mas fui reprovado, porque aquele intervalo entre a troca dos discos servia justamente para os rapazes continuarem de mãos dadas e de galanteio com as moças. Depois disso, nunca mais fiz bailes com dois toca-discos.”

A decisão de abandonar a vida de discotecário se tornou irremediável para Seu Osvaldo, em 1972. Com a morte de sua mulher, Carolina, ele teve de se desdobrar para trabalhar na linha de produção da fábrica de televisores da Philco e cuidar dos cinco filhos, quatro meninos e uma menina. Dos garotos, dois seguiram o exemplo do pai, o mais velho, Tadeu, de 56 anos, também um renomado discotecário, e o caçula, Luís Claudio, o DJ Dinho, de 43 anos.

Em 2003, Seu Osvaldo ganhou justo reconhecimento ao ser incluído na galeria de personagens perfilados no livro Todo DJ já Sambou, da jornalista Claudia Assef. Na festa de lançamento da primeira edição, o patrono dos DJs brasileiros foi convidado a voltar a tocar. Feliz com a retomada, ele permanece em atividade até hoje.

O ponto de encontro com os entrevistados que compõem essa reportagem foi o Boteco Pratododia, um pequeno clube de música sediado no número 34 da rua Barra Funda, na zona oeste de São Paulo, que é reduto de dezenas de DJs dos mais diferentes gêneros. O local não foi escolhido por acaso. Afinal, o estopim da matéria foi um bate-papo informal com outros dois veteranos, os DJs Claudio Costa e Lula Superflash (vulgo artístico de Márcio Pequeno), que realizam, no clube, um baile mensal chamado Pixaim. Durante uma edição recente da festa, ao ouvir boas histórias contadas pela dupla, este repórter e um dos sócios do Pratododia, Luis Felipe Freitas, também jornalista, chegaram à conclusão de que as trajetórias da dupla e de outros anônimos que construíram a história dos bailes black em São Paulo deveriam ser contadas, sobretudo por seu papel de exaltação à negritude.

O fenômeno foi mesmo significativo. No auge do movimento, festas como a Chic Show, criada por Luizão, outro ícone da era dos discotecários, chegavam a reunir mais de 15 mil pessoas. Empreendedor, Luizão trouxe ao País artistas como os grupos Zapp e Whodini e, o mais emblemático deles, James Brown, que veio a São Paulo, em 1978, e lotou o ginásio do Palmeiras, palco frequente dos maiores bailes da Chic Show.

Claudio estava lá e assegura: “Para resumir, foi sensacional, de tirar o fôlego. Imagine a gente, que não tinha acesso a grandes shows, víamos um Jorge Ben aqui, um Gilberto Gil ali, de repente estar frente a frente com ninguém menos que James Brown…”.

primeira apresentação de James Brown em São Paulo
Flyer – ou filipeta, como era mais comum dizer nos anos 1970 – da segunda apresentação de James Brown em São Paulo, façanha da equipe Chic Show, capitaneada pelo DJ Luizão. Foto: Reprodução / Arquivo pessoal

O efeito James Brown

Mas, se em 1978 o patrono do funk era unanimidade entre blacks da capital paulista, dez anos antes, os organizadores de bailes locais viam com desconfiança a ascensão do novo ídolo. Caso do advogado Sérgio Nogueira Teófilo, o Serjão, discotecário de primeira hora que começou a tocar profissionalmente em 1964.

“Como eu dançava muito, meus colegas ficavam enciumados porque as garotas só queriam fazer par comigo e acabei sendo mandado para os toca-discos. Mas tomei gosto pela coisa e onde havia uma festividade lá estava eu com meus discos. Na minha seleção entravam artistas como Gary McFarland, Trio Esperança, Milton Banana, Lenny Dale, Bossa Três, Elza Soares, Luiz Carlos Vinhas, Bert Kaempfert, Gal Costa, Jorge Ben, Trio Mocotó, Wilson Simonal, Som Três e Os Caçulas. Só parei de tocar por causa de um novo tipo de música que veio com um cara chamado James Brown. Depois de todos esses artistas maravilhosos que eu mencionei vem esse rapaz, gritando alucinado com um ritmo que, para mim, era sempre o mesmo. Parei”, diz Serjão.

Também presente na entrevista, Dinho explica: “Houve uma ruptura geracional. Não foi só o Serjão que não engoliu o soul e o funk. Foi praticamente toda a dinastia oriunda da Orquestra Invisível. Tanto é que esse tipo de som que eles tocavam só foi voltar a fazer sucesso nos bailes dos anos 1980, com a volta da equipe Os Carlos. Foi aí que o estilo ganhou o nome de nostalgia”, diz. Segundo Lula, as divisões dessa fase transitória eram perceptíveis não só nas escolhas das equipes de som que surgiram nos anos 1970, mas também nas preferências do público de cada região. “Na zona leste, nos bailes do salão Guilherme Giorgi, a equipe Zimbabwe só tocava funk e soul. Depois veio a equipe Zambezi, que fazia o mesmo estilo e não rolava nada de samba-rock. Quem voltou a tocar samba-rock foi a Chic Show, nas festas São Paulo Chic, o Clube da Cidade, na Barra Funda, e a Black Mad, na Vila Brasilândia.”

Boteco Pratododia, na foto, Cláudio Costa e Lula Superflash
Egressos dos bailes dos anos 1960 e 70, os DJs Cláudio Costa e Lula Superflash mantém em São Paulo o baile Pixaim, no Boteco Pratododia, onde foram retratados. Foto: Luiza Sigulem

Lula, que foi fundador das equipes WMS, Side One e Master One, e colaborador da Zimbabwe, da Black Mad e da Dinamite, conta agora sua história. “Ao contrário do Serjão, virei DJ porque não tinha a menor vocação para dançar. Aos 14 anos, deixei o emprego de office-boy para trabalhar na loja Fernando Discos, que ficava no Edifício Zarzur, na avenida Prestes Maia, no centro. Na história dos bailes black de São Paulo, todos batem palmas para o Fernando, porque ele foi o primeiro lojista a deixar a gente ouvir os discos. A gente gastava muito dinheiro comprando LPs, mas nem todos serviam para os bailes. Desde que entrei na loja, tive a sorte de ver todas as transições que eles estão contando: os discotecários, as equipes e os DJs. A única diversão que os afrodescendentes de São Paulo tinham era o futebol, o samba e o Carnaval. Os bailes abriram uma nova possibilidade de união.”

A questão racial

“No começo dos anos 1970, toda sexta-feira havia um corpo a corpo no Viaduto do Chá. A negrada se reunia para saber dos bailes que iam rolar no fim de semana e o viaduto ficava tomado de ponta a ponta”, diz Claudio. Ele, que completará 60 anos em julho, começou a tocar, em 1968, em festas familiares e bailes de garagem no bairro da Saúde, na zona sul de São Paulo. Nos anos 1980, foi DJ do Asa Branca, clube de Pinheiros, na zona oeste da cidade, fez muitos bailes da Chic Show e também trabalhou para a Rádio Bandeirantes FM, onde foi produtor e locutor dos programas New York ExpressSweet Love e Até Que Enfim é Sexta-Feira.

Marcados pela despretensão da dança, os encontros dos anos 1960 resultaram no sentimento de coesão que, na década seguinte, estimulou o enfrentamento do racismo, como atesta o relato de Serjão. “As reuniões para divulgar os bailes tiveram início na rua Direita, porque havia a divisão entre os de pele clara, que ficavam no Viaduto do Chá, e os de pele escura. Depois é que, na marra, a rapaziada passou a se reunir no viaduto.”

Lula aproveita o gancho para mapear a migração do movimento black pelas ruas do centro: “Os encontros começaram na rua Direita, passaram pelo Viaduto do Chá e foram para as galerias da rua 24 de Maio na segunda metade dos anos 1970, onde permaneceram até o começo dos anos 1980, quando a Polícia Militar começou a sentar a borracha na turma. Foi então que partimos para a praça Antonio Prado, no lado oposto do centro, e depois fomos para a estação de metrô São Bento, onde surgiu o hip-hop brasileiro. Como a estação tem mais de dez saídas, era ideal para fugir da PM. Se eles viessem por um lado, a gente fugia pelo outro. Até o Djavan tomou borrachada na rua Direita”, recorda Lula. “Também, negro e com aquele cabelo…”, provoca Serjão, que esclarece: “Naquela época, bastava juntar um grupo de pretos na rua para a polícia chegar. Os brancos tinham medo e não se misturavam com a gente. Não iam aos bailes, porque temiam ser roubados. O conceito deles era: naquele lugar só tem ladrão. Hoje a mistura é tanta que tem até japonês.”

O depoimento de Serjão converge com o comentário de outro veterano dos bailes black de São Paulo, o DJ Tony Hits, criador, em 1972, da equipe Verde Amarelo, na Vila Santa Catarina, na zona sul de São Paulo. “Nos anos 1970, você contava nos dedos as pessoas de pele clara que iam aos bailes. Hoje, o público é mais diverso e os lugares que tocamos também.” Além de uma loja de discos que leva seu nome, Tony comanda bailes ao lado de parceiros da velha guarda, como Charles Team, outra figura legendária dos bailes black, e Seu Osvaldo.

Naquele período de cisão entre brancos e negros, vestir-se bem e manter o cabelo impecável, explica Serjão, eram práticas decorrentes do preconceito racial: “O dever do negro era andar alinhado para não ser visto como maloqueiro, como bandido. Aliás, se você fosse mal-vestido ao baile, bastava olhar para a fila para desistir de entrar”, defende. “Era a maior onda. Todo mundo de cabelo black. Homens e mulheres alinhados. Os rapazes de paletó xadrez, camisa de seda, sapato brilhando, calça boca de sino”, relembra Claudio.

Nelson Triunfo, o primeiro b-boy brasileiro
Nelson Triunfo, considerado o primeiro b-boy brasileiro, é erguido pelo público que conferiu a primeira passagem de James Brown no Brasil, via Chic Show, no ginásio do Palmeiras. A capa vestida por Triunfo foi um presente do Mr. Dynamite, mas, como o dançarino relatou em “Nelson Triunfo – Do Sertão ao Hip-Hop”, biografia assinada pelo jornalista Gilberto Yoshinaga, o presente, pouco depoios, foi furtado em seu camarim. Foto: Pena Prearo / Reprodução do livro “Nelson Triunfo – Do Sertão ao Hip-Hop

Herança

De ouvidos atentos aos relatos dos seguidores de sua tradição, Seu Osvaldo retribui a reverência que sempre recebeu. “É tão difícil descrever a alegria que carrego comigo. Agradeço aos DJs de agora e tiro o chapéu para eles, porque são eles que continuam a fazer com que aquela sementinha que eu plantei em 1958 esteja viva.”

Parceiro de discotecagens do pai, Dinho comenta que o ofício do patriarca inspirou, além dele e do irmão, Tadeu, mais de 20 familiares que também são DJs, entre eles um personagem que marcou os anos 1980 e a consolidação do rap na década seguinte, Grandmaster Ney. Para Dinho, em um meio comumente afetado por vaidade, um dos valores mais importantes ensinados por Seu Osvaldo é a postura de humildade. “O DJ é uma espécie de médium. Lida com uma coisa meio espiritual, porque ele tem de captar a energia da pista e traduzi-la em música. Tive o privilégio de aprender com meu pai que é a música que tem de ter holofotes e não o DJ.”

Na próxima edição, o capítulo final desta reportagem. Em pauta: a transição para a cena hip-hop dos anos 1980, a redescoberta do samba-rock pela geração dos anos 2000 e as festas que mantém viva a tradição dos bailes black.

MAIS
Leia Segue o Baile, segundo capítulo desta reportagem
Veja depoimentos de Luizão, criador da equipe, sobre os bailes da Chic Show no Palmeiras

Como fica o home office após a reforma trabalhista

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Como uma alternativa para cortar gastos e ao mesmo tempo flexibilizar o ambiente de trabalho, muitas empresas têm adotado e incentivado políticas de home office para seus funcionários. Agora, com a nova legislação trabalhista – que entra em vigor neste sábado (11/11) -, entre as dezenas de artigos que alteram o texto da Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) há definições que formalizam e estruturam a disciplina do teletrabalho.

De acordo com levantamento da World at Work, de 2017, nos Estados Unidos, 89% das empresas norte-americanas já possuem políticas estruturadas para o home office. No Brasil, como a atividade não era regulamentada, muitas empresas não adotavam a prática por receios legais. Segundo estudo realizado pela SAP Consultoria, com a reforma, a previsão é que o teletrabalho cresça em torno de 15% ao ano.

Para muitos, trabalhar de casa oferece suas vantagens. Além de redução de custos com aluguel e estrutura para as empresas, funcionários encontram conforto em não ter que encarar, por exemplo, o trânsito de grandes cidades para chegar ao local de trabalho e, consequentemente, tendem a focar melhor em suas tarefas.

“A mensuração de resultados varia de caso a caso. Mas posso comentar um exemplo recente em um segmento nada tradicional em relação a flexibilidade: um órgão público aqui de São Paulo está utilizando as soluções Citrix desde abril deste ano”, afirma Luis Banhara, diretor geral da Citrix Brasil. A companhia de software desenvolve aplicações de virtualização da área de trabalho, incluindo aí aplicativos como o XenApp, XenDesktop e NetScaler. No projeto piloto, 30 dos 90 fiscais do órgão público receberam autorização para trabalhar de casa por até dois dias na semana. Segundo o coordenador do projeto, a produtividade da equipe aumentou de 15% a 40%.

Mas mesmo diante do potencial da adoção do home office, uma das grandes preocupações das companhias diz respeito ao controle de informações. Em um ambiente de trabalho à distância, como ter certeza de que dados sigilosos não ficarão vulneráveis a ciberataques ou ainda ao compartilhamento indevido dos mesmos? À sombra de mega ataques como o WannaCry, Petya e o mais recente Bad Rabitt, empresas têm visto a urgência de aumentar os investimentos em TI.

“Adotar o teletrabalho está intimamente ligado a uma decisão estratégica dentro da empresa. Porque você tem um conjunto de talentos e a questão é como melhor dispor esses talentos, como entregar as ferramentas corretas para que esse talento possa ser produtivo e para que ele possa também te ajudar nessa perspectiva da matriz de custos que a empresa quer ter”, argumenta Banhara. Para o executivo, a tecnologia, então, se apresenta como o grande viabilizador do home office. “Se o empregador utilizar as ferramentas certas, ele não perde o controle sobre as atividades que o funcionário desenvolve e garante a segurança dos dados da empresa”, pontua.

A Sobratt – Sociedade Brasileira de Teletrabalho e Teleatividade tem acompanhado a discussão dos aspectos jurídicos da modalidade. “Toda novidade traz inseguranças até ser completamente entendida”, ressalta Wolnei Tadeu Ferreira, presidente da Sobratt.

Diante de muitas dúvidas e controvérsias a respeito do tema, a Sobratt e a Citrix se uniram para comentar e esclarecer alguns pontos, que vão desde infraestrutura e obrigações das empresas e funcionários quanto a preciosismos referentes à segurança da informação. Confira, no texto a seguir.

1. A empresa precisa fornecer infraestrutura para realizar o trabalho remoto?Depende. Ainda é um consenso que os custos efetivos pagos pelo trabalhador são os que não são mensuráveis de maneira direta, como água, luz, espaços utilizados da residência do próprio trabalhador. Já os gastos adicionais necessários à realização dos serviços devem ser bancados pela empresa.

“A minha leitura é que os custos efetivos pagos pelo trabalhador são os que não são mensuráveis de maneira direita, como água, luz, móveis utilizados da residência do próprio trabalhador. Já os gastos adicionais necessários à realização dos serviços devem ser bancados pela empresa”, afirma Wolnei Tadeu Ferreira.

2. A empresa não precisa controlar horários nem pagar horas extras?
Depende. O controle do trabalho será por tarefas e não por hora trabalhada então não haverá necessidade de pagamento de horas extras, salvo se o monitoramento da atividade for exigível.

“A lei reconhece que não há necessidade de controlar horário. O importante mesmo é acompanhar a produtividade dos colaboradores. Com mais flexibilidade, eles podem trabalhar a qualquer hora, sem se preocupar com trânsito, falta dos dados ou dos aplicativos empresariais”, afirma Ferreira

3. Funcionário em trabalho remoto não desligará nunca?
Não é verdade. Funcionário será mensurado pela sua produtividade e não pelas horas trabalhadas.

“Manter uma rotina de trabalho semelhante à do escritório ajuda na organização de quem está trabalhando à distância. Mas também é necessário usufruir de um hobby ou de atividades físicas para equilibrar a vida pessoal e profissional. Além disso, é essencial que a família do funcionário que está fazendo home office entenda que ele possui tarefas para entregar e uma jornada para cumprir nas dependências de casa”, comenta Banhara.

4. Legalmente, o empregado em trabalho remoto é responsável por vazamento de informações da empresa?
Sim. Ransonwares fizeram milhões de vítimas este ano por falha de atualização do Windows. As empresas passam a ser responsáveis pela atualização dos softwares em dispositivos pessoais dos usuários. A segurança da informação tem que controlar isso, mesmo no trabalho presencial.

5. A empresa fica mais vulnerável a vazamentos de informações com trabalhadores remotos?
Depende. Se não houver uma preocupação da empresa com os dados, pode haver vulnerabilidades. O segredo é não focar no dispositivo (porque o colaborador pode estar com software de segurança desatualizado ou o dispositivo pode ser roubado) e sim focar na segurança dos dados. Devem ser criadas políticas de acesso individualizadas, com várias ferramentas de controle de acesso e identificação.

6. A empresa que oferece opção de trabalho remoto possui melhores índices de retenção de talentos?
Sim. Segundo o Estudo Oxford, esta é uma das melhores formas de reter talentos com 83% das respostas.

“Os ‘novos’ trabalhadores estão cada vez mais exigentes e buscando equilíbrio entre vida pessoal e profissional. Hoje, reter talento é uma das tarefas mais difíceis dos administradores”, afirma Banhara.

7. Tecnologias de mobilidade são viabilizadoras do trabalho remoto.
Sim. Elas endereçam as principais questões corporativas como controle de produtividade, segurança dos dados e flexibilidade para os colaboradores.

“Hospital das Clínicas de São Paulo conseguiu reduzir o tempo dos atendimentos ao público com a virtualização, mesmo com números expressivos: 124 mil consultas ambulatoriais e outros 60 mil atendimentos só na farmácia que fornece os medicamentos gratuitos à população, exemplifica Banhara.

8. O comparecimento às dependências do empregador para a realização de atividades especificas não descaracteriza o home office.
Verdade. A própria legislação (arts. 75-A a 75-E da Lei 13.467/2017) prevê esta situação, pois em muitos casos é necessário que o empregado compareça à empresa para reuniões, treinamentos, confraternização e outras atividades, o que não descaracteriza o teletrabalho.

“Apesar de trabalhar remoto, há momentos que o olho no olho é necessário. Cada empresa pode definir as regras para o trabalho remoto”, afirma Ferreira.

9. No home office, a empresa não possui a mesma responsabilidade no que diz respeito à Medicina e Segurança do Trabalho.
Não é verdade. A nova legislação passa a exigir que, nesses casos, o trabalhador seja ostensivamente orientado pela empresa quanto às normas de segurança, devendo fazê-lo conforme seja a atividade e o cargo a ser ocupado.

“Continua sendo responsabilidade da empresa zelar pela segurança do colaborador, ele trabalhando de casa ou no escritório”, comenta Ferreira.

10. Profissionais que optam por home office terão seus benefícios como vale alimentação e vale transporte reduzidos?
Mito. O vale transporte, devido nos deslocamento residência-empresa e vice-versa, continua sendo devido quando o empregado tiver que se deslocar para a empresa ou para alguma outra atividade a serviço. No caso do vale-alimentação, se isso for uma obrigação prevista em norma sindical, não poderá ser subtraída ou reduzida, salve se houver previsão na própria norma neste sentido. Do contrário, o benefício deve ser mantido. Caso o benefício seja espontâneo pela empresa, sua eliminação ou redução poderá trazer uma injusta diferenciação para quem trabalha em Home Office, sendo necessário que a empresa avalie bem se esta situação seria estratégica.

“Como outros pontos da nova lei, ainda há necessidade de um entendimento mais profundo destas questões e uma análise caso a caso”, finaliza Ferreira.