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A polícia que quer uma nova polícia

Orlando participou do 55º CONUNE em debate sobre desmilitarização da polícia e novas política de drogas. FOTO: Mídia Ninja

O caso Amarildo transformou o de­le­gado Orlando Zaccone em um “policial que incomoda”, como ele mesmo se define. O carioca da Tijuca já defendia publicamente questões controversas, ainda mais nesse meio, como a legalização de todas as drogas e a desmilitarização do modelo de segurança. Além disso, o delegado tem uma trajetória incomum: antes de entrar para a polícia, foi repórter do jornal O Globo durante um ano, ainda na juventude, desistiu e virou monge hare krishna, “estava com alguns questionamentos existenciais”, e depois foi cursar Direito.

Mas nada disso o estigmatizou tanto quanto o papel que desempenhou ao rejeitar a tese de que o assistente de pedreiro, levado à interrogatório na Unidade da Polícia Pacificadora na Favela da Rocinha, Rio de Janeiro, e desaparecido desde então, tinha ligações com o tráfico: “Fui obrigado a realizar na prática aquilo que sempre defendi. Não podia deixar que se construísse a imagem de Amarildo e de sua mulher como traficantes pelo simples fato de morarem na favela do lado da boca de fumo. No Brasil, o que está em jogo não é a violência policial, mas contra quem essa violência é exercida. Se o Estado não consegue transformar o pedreiro em traficante, o policial vai preso. Se consegue, ganha medalha”.

Após seis meses de buscas pelo corpo do pedreiro, a Justiça decretou a morte presumida de Amarildo. Em fevereiro deste ano, 12 dos 25 policiais militares denunciados pelo desaparecimento e morte de Amarildo, crime ocorrido em julho de 2013, foram condenados por tortura seguida de morte, ocultação de cadáver e fraude processual.

Depois do caso célebre, Zaccone saiu dos holofotes. Foi afastado da titularidade e transferido para uma delegacia de acervo de cartório, no qual trabalhava com inquéritos antigos, sem fazer atendimento ao público nem investigações.

Ainda que minoritário, é crescente o número de policiais adeptos ao discurso crítico com relação à segurança pública, que dialogam nacionalmente pela internet e se dedicam cada vez mais a formações acadêmicas.

Secretário-geral da Leap Brasil (Associação dos Agentes da Lei contra a Proibição), mestre em Ciências Penais e doutor em Ciência Política, Zaccone é um dos 2.288 membros da página de Facebook “Policiais Antifascismo”. “Na contramão do pensamento hegemônico de uma polícia a serviço do Estado brasileiro, policiais civis, militares e guardas municipais se reúnem para construir uma polícia mais próxima do povo”, diz o texto de apresentação do grupo.

A segurança militarizada, segundo Zaccone, é antidemocrática porque constrói a figura de um inimigo dentro do Estado e o despe de todos os direitos de cidadania. “Isso começa com o traficante, mas pode ser o black block, o manifestante do MST. Temos duas questões: uma é a existência de uma força policial militar, com um regimento militar e os trabalhadores que são construídos não como trabalhadores, mas como soldados. A atuação militarizada da segurança pública é outra questão. O fim da PM não resolve esse problema”, diz o delegado.

Para Zaccone, a discussão sobre um novo modelo de segurança pública precisa passar por uma guinada e começar a envolver policiais: “Tem que falar com praça, com escrivão. Se perguntar para oficial e delegado, eles vão dizer que está tudo ótimo. Esses modelos de segurança são pensados para garantir privilégios. Deixar com que policiais participem disso pode ser um problema. Um policial que se identifica como trabalhador pode não querer jogar bomba e cassetete contra professor, porque a luta é a mesma. Eles querem o policial como cão de guarda”.

É também o que defende o tenente Anderson Duarte, da Polícia Militar do Ceará, criador da página de Facebook “Policial Pensador”, com 3.813 membros. “Criei a página em 2014, quando percebi a falta de vozes dissonantes no debate da segurança pública. Ou se fazia um debate conservador, militarista, de reforço à guerra, ou, por outro lado, um debate ‘de esquerda’ que não se preocupava em ouvir policiais progressistas, que via na polícia algo apenas ruim e não buscava compreender o policial como um trabalhador”.

Polícia atuou repressivamente nos protestos de 2013. FOTO: Mídia Ninja

O antropólogo Luiz Eduardo Soares, estudioso de segurança pública há 20 anos e um dos autores da PEC 51, que propõe uma reforma na arquitetura institucional, diz que os policiais foram excluídos do debate por uma soma de fatores: repressão política, proibição de sindicalização de policiais militares e um discurso da categoria em sua maior parte exclusivamente corporativista, que não mobiliza o resto da sociedade por não discutir uma política mais ampla de segurança pública. “Esta reportagem não poderia ser escrita há dez anos. É algo absolutamente novo essa intelectualidade orgânica na polícia e nos dá muita esperança porque as mudanças só acontecerão se os policiais fizerem parte. Eles são os protagonistas”, diz Soares.

Na época estudante universitário de Geografia, Duarte entrou para a polícia “sem a menor noção” dos problemas da segurança pública brasileira – segundo ele, um modelo falido. A oportunidade de se aprofundar no assunto aconteceu especialmente em cursos de pós-graduação. Durante o governo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, foi criada a Renaesp (Rede Nacional de Altos Estudos em Segurança Pública), programa nacional de estudo gratuito para agentes de segurança pública.

“Os mais de 50 mil homicídios ao ano, junto à crescente taxa de encarceramento, demonstram como nosso sistema é falido. Nossos policiais são mal remunerados, desvalorizados, matam e morrem muito, inclusive há altas taxas de suicídio. A democracia ainda não chegou plenamente aos quartéis, como mostram as prisões disciplinares, que colocam os policiais militares em condições de cidadãos de segunda categoria. Isso só se explica numa situação de guerra, de exceção. A guerra que temos é a ‘guerra às drogas’, que subverte o trabalho da polícia, fazendo com que ela deixe o seu papel de mediação de conflitos, fundamental para qualquer democracia, e se dedique majoritariamente à apreensão de drogas, que não é um problema de polícia, mas de saúde pública e de economia, já que há uma demanda e uma oferta que precisam ser regulamentadas. Como resultado do abandono do Estado nesse campo, mortes e prisões dos mais pobres, sem qualquer diminuição da sensação de insegurança da população. É preciso desmilitarizar a política”, diz Duarte.

Dados do 10º Anuário de Segurança Pública mostram que nove pessoas são mortas por policiais por dia no Brasil e ao menos um policial é morto, em sua maioria em horário de folga. De 2014 a 2015, houve uma estabilização do número de mortes violentas no País, mas as decorrentes de ações policiais cresceram 6,3%, chegando a 3.345. O número de policiais mortos caiu 3,9%, para 393.

Apesar de seu ativismo, Duarte nunca foi preso administrativamente. Segundo ele, no entanto, há formas de punição veladas, como transferências não motivadas e a não promoção. Em 2015, Duarte foi selecionado pela Secretaria Nacional de Segurança Pública para compor uma equipe de cinco policiais que trabalhariam no Pacto Nacional pela Redução de Homicídios. A Secretaria de Segurança Pública do Ceará, no entanto, não o liberou para ir.

Abusos cometidos pela polícia não são um desvio de função da corporação – pelo contrário. Desde sua origem, o sistema de segurança pública no Brasil existe para servir ao Estado e à elite, e não à sociedade como um todo. É o que diz Elisandro Lotin, cabo da Polícia Militar de Santa Catarina: “Nós temos um Estado altamente concentrador e idealizado a partir de uma lógica econômica excludente e elitista. A polícia tem por função manter o controle social de 95% da população, que está fora de qualquer discussão político-econômica, quando necessário, com a utilização da violência. A grande questão é que o policial não se dá conta de que faz parte desses 95% de excluídos”.

Em outubro, a Justiça de São Paulo havia determinado, com base em Ação Pública Civil movida pela Defensoria Pública, que o Estado pagasse R$ 8 milhões de indenização por danos morais coletivos em função da violência policial ocorrida nas manifestações de 2013, que a PM elaborasse um protocolo de uso da força em protestos no prazo de 30 dias e cada soldado que atuasse nesse tipo de evento portasse identificação visível com o nome e o posto na hierarquia. A sentença dizia também que armas menos letais, como balas de borracha, bombas de efeito moral e gás lacrimogêneo, só poderiam ser usadas em “situação excepcionalíssima”, cabendo à PM, em caso do emprego do armamento, “informar ao público em geral que circunstâncias justificaram sua ação e qual o nome do policial militar que determinou a repressão”. Menos de um mês depois da decisão em primeira instância, o Tribunal de Justiça suspendeu, em 7 de novembro, a liminar que limitava a atuação da PM em manifestações.

A violência contra manifestantes se repetiu nos diversos protestos contra o governo de Michel Temer neste ano. No primeiro dia de Presidência definitiva do peemedebista, uma jovem perdeu a visão de um olho ao ser atingida por uma bala de borracha durante um ato em São Paulo. Profissionais da imprensa, ainda que identificados, também foram vítimas de agressões da polícia enquanto cobriam manifestações. Caso da repórter fotográfica Marlene Bergamo, da Folha de S.Paulo, que foi atingida por uma bala de borracha no dia 2 de novembro, durante a desocupação de um prédio na região central de São Paulo.

Lotin é presidente da Anaspra (Associação Nacional dos Praças), membro da diretoria da Aprasc (Associação dos Praças de Santa Catarina), do Conasp (Conselho Nacional de Segurança Pública) e do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Foi também candidato a deputado estadual pelo PSOL em 2014.  Pelo Código Penal Militar e pelos regulamentos vigentes, ele não poderia sequer conceder esta entrevista: “Fui punido várias vezes, inclusive com prisão administrativa. Você consegue imaginar um médico que não possa falar de saúde? Pois é, os policiais da base não podem falar sobre segurança pública. Mas, cada vez mais, nosso pessoal questiona e se mobiliza contra isso”.

Em vários protestos, a bandeira sobre a desmilitarização é levantada. Foto: Mídia Ninja

A Anaspra defende a desmilitarização da polícia como forma de desvincular a corporação do Exército, inserir esses profissionais no âmbito dos direitos trabalhistas e humanizar as relações dentro dos quartéis. Para Lotin, defender os direitos dos policiais é o primeiro passo para combater a violência cometida pelo Estado brasileiro, uma das mais altas do mundo, e repensar um novo modelo de segurança pública: “Se o policial é aviltado em seus direitos mais básicos enquanto trabalhador e cidadão, ele vai respeitar os direitos dos outros?”.

Segundo o cabo, o número de denúncias de tortura e maus-tratos nos quartéis é crescente, o que não significa necessariamente aumento dos casos de abuso, mas das denúncias em si. Para ele, isso se deve principalmente ao uso das redes sociais. “Essa é a minha percepção. Não tem nenhum levantamento das denúncias, nem dos órgãos de segurança, que tentam esconder, nem dos órgãos de pesquisa, que não têm acesso a esses dados.”

Soares conta que a promotora Glaucia Santana, do Rio de Janeiro, apresentou um termo de ajuste de conduta ao Estado em dezembro de 2015, após receber denúncias anônimas de policiais de UPPs: “Originalmente, o relatório dela começava assim: ‘Eu encontrei os policiais trabalhando em condições análogas à da escravidão’. Fizemos reuniões com três coronéis da PM para apresentar esse documento. Os três disseram, de forma unânime, que isso acontece porque os policiais são militares. Se eles reclamarem, denunciarem, se recusarem a cumprir essas jornadas, eles são presos administrativamente e correm o risco de perder as suas carreiras. Eles não têm direito à manifestação, desobediência, sindicatos. Isso é muito útil para os governos, que podem exigir que eles trabalhem em turnos dobrados, submetidos a todo tipo de pressão. É evidente que a luta corporativa necessária e legítima se encontra naturalmente com uma luta política muito maior, que é a desmilitarização. Outra bandeira coincidente é pela carreira única, acabando com essa fronteira que faz com que praças nunca cheguem a oficiais, os não delegados jamais virem delegados”.

Treinamento

O índice de assédios moral e sexual de mulheres nos órgãos de segurança pública chega a quase 40%, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública. “Tem imagens na internet, qualquer um pode ver, de policial em treinamento e comendo a mesma comida que um cachorro, na mesma gamela. Tortura psicológica, isso é regra. As ameaças. Tivemos casos de policiais fazendo flexão no asfalto quente às 15h, num sol de 40 graus. O filme Tropa de Elite mostra aquela cena dos caras comendo comida no chão. Aquilo acontece”, diz Lotin. Em 2013, um policial militar teve morte cerebral dias após passar mal durante um treinamento no qual fazia exercícios no chão quente.

A primeira dificuldade de mobilização acontece entre os próprios PMs, segundo Lotin: “Para começar, a Constituição nos proíbe de ter sindicato, temos uma associação. Primeiro você tem que vencer barreiras internas, nosso próprio pessoal tem dificuldade em aceitar que tem direitos pelos quais deve lutar. Quando ouve falar em manifestação, o cara fica com um ponto de interrogação: não sabe se é trabalhador, policial ou militar, se é cidadão, se não é. Ele é condicionado ao longo da sua vida para não pensar nisso”. Lotin diz que não existe um movimento organizado desses policiais, tampouco uma agenda de mobilização em comum. Segundo ele, foi algo que surgiu “espontaneamente” em diversos lugares do Brasil.

Em setembro deste ano, a Anaspra se reuniu com o secretário Nacional de Segurança Pública, Celso Perioli, e com o ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, para discutir as demandas da categoria, como o fim das prisões administrativas, a rearticulação de um grupo de discussão sobre assédio moral e sexual dentro dos quartéis e a questão previdenciária.
O projeto de lei 148, que extingue as prisões administrativas, foi aprovado na Câmara em agosto e agora tramita no Senado. “Essa prisão é discricionária, ou seja, depende de o comandante ir com a sua cara ou não. Não tem um regulamento claro e que esteja de acordo com os ditames da Constituição. Se eu me envolver em uma ocorrência e acabar tirando a vida de alguém, é bem provável que eu responda em liberdade. Mas se tiver sem chapéu, posso ir preso”, diz Lotin. A prisão administrativa segue um rito mais rápido do que a comum e é determinada por um comandante, via de regra por questões internas, como vestir uma bota suja, chegar atrasado ou dar uma declaração para a imprensa.

O sargento Luciano Galesco, da Polícia Militar de São Paulo, ficou preso administrativamente por dois dias após reclamar em sua página de Facebook do lanche oferecido no quartel. Segundo seu advogado, Raul Marcolino, o deputado estadual Coronel Telhada (PSDB-SP) alegou ter se sentido ofendido com a publicação e comunicou o fato ao comandante-geral da PM, que determinou a prisão.

Marcolino foi policial militar por 12 anos, período no qual se formou em Direito. Em 2014, pediu exoneração para ser advogado e defender policiais vítimas de abuso: “Presenciei casos e fui vítima de outros. Fui preso injustamente diversas vezes, processado administrativamente e sempre consegui me defender, por isso fui ser advogado. Sendo policial, não conseguia ajudar ninguém, agora posso ajudar policiais”.

Marcolino recorrentemente recebe ameaças veladas por causa de sua atuação profissional e diz que precisa andar de carro blindado. O advogado conta que seus clientes costumam sofrer repressões no quartel depois de serem defendidos por ele. Ainda assim, é cada vez maior o número de policiais que o procuram.

Lotin defende que o fortalecimento do movimento de policiais questionadores acompanhou a criação do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, que completa dez anos: “Essas pesquisas referendaram aquilo que a gente sabia empiricamente. Saber que 74% dos policiais militares entrevistados defendem a desmilitarização como forma de humanização da segurança pública nos dá um sentido maior e nos diz que temos que mudar o modelo”.

Ainda assim, as ideologias de direita e extrema-direita predominam dentro das instituições de segurança. Em um encontro de policiais trabalhando nos Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro, o deputado federal Jair Bolsonaro (PSC-RJ), conhecido por defender a pena de morte e ações violentas da polícia contra criminosos, foi ovacionado e recebido com flexões. “Bolsonaro é uma espécie de ícone entre os policiais, e é estranho isso porque ele nunca defendeu a categoria. Aliás, recentemente, votou a favor da PEC 241, que poderá congelar salários e até promoções. Acho que o pessoal está começando a acordar para a demagogia do mito”, diz Lotin.

Zaccone enxerga a atual crise econômica como oportunidade de conscientização: “Do ponto de vista político, é um momento maravilhoso porque os policiais estão vendo que todo o exercício do modelo que interessa ao poder político e jurídico não traz nenhum retorno para eles enquanto trabalhadores. Com a crise financeira dos estados, os policiais estão sem salário. Nesse momento cai a ficha de que são trabalhadores”.

Os tiros de março

enterro edson luis
Protesto na fachada do cinema, durante os funerais de Edson Luís, em março de 1968 – Foto: Reprodução

Cinemas do Rio de Janeiro anunciaram em letras garrafais filmes que não estavam em cartaz naquele momento: Coração de Luto, À Queima Roupa e A Noite dos Generais. Era uma forma de se unirem aos protestos que tomaram conta do Rio depois que o secundarista Edson Luís de Lima Souto foi morto com um tiro no peito, durante invasão da Polícia Militar ao restaurante popular Calabouço, no centro da cidade.

Nascido em uma família pobre de Belém do Pará, Edson Luís mudara-se para o Rio para estudar no Instituto Cooperativa de Ensino. Tinha 18 anos. Como outros 300 colegas com poucos recursos financeiros, fazia as refeições no Restaurante Central dos Estudantes, mais conhecido como Calabouço. Eles se preparavam para fazer uma passeata-relâmpago quando a polícia chegou atirando. Vários estudantes saíram feridos.

Atingido no peito, Edson Luís chegou a ser levado a um hospital a três quarteirões do Calabouço, mas já estava morto. Era final da tarde do dia 28 de março de 1968. Em vez de deixar o corpo com a necropsia, os estudantes o carregaram para velório na Assembleia Legislativa. No dia seguinte, pelo menos 50 mil pessoas acompanharam o caixão até o cemitério, realizando a primeira grande manifestação contra a ditadura.

O ano estava apenas começado, mas seria tão tumultuado e trágico que inspiraria a obra 1968 – O ano que não terminou, do jornalista Zuenir Ventura. Na prática, 1968 fechou o tempo em 13 de dezembro, com o decreto do Ato Institucional Número 5, aquele que acabou com todas as garantias constitucionais. A partir daí, desmoronou a democracia de faz-de-conta encenada pela ditadura desde o golpe de março de 1964.

A morte de Edson Luís ficou impune. Cinquenta anos depois, o Palácio Pedro Ernesto, antiga sede da Assembleia Legislativa, abriga a Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Cinquenta anos depois, de novo tiros transformaram o palácio em espaço para velar vítimas da violência, desta vez a vereadora Marielle Franco e o motorista Anderson Gomes, executados no dia 14 de março. Sinal que a redemocratização deixou tanto a desejar que agora retrocede. Por isso mesmo, a morte de Marielle não pode ficar impune.

Em tempos de gravação por celular, vídeos de homenagens à Marielle estão correndo mundo. Não era assim no passado recente. O cineasta Eduardo Escorel filmou cenas do cortejo e enterro de Edson Luís em março de 1968 mas, com o recrudescimento da repressão, preferiu entregar o material à Cinemateca do Museu de Arte Moderna. A filmagem de 12 minutos só reapareceu em 2008, depois de passar 40 anos extraviada. Veja cenas:

Agenda: confira os destaques da semana 17 a 23/3

 

Sétima edição do programa Arte Atual apresenta mostra no Tomie Ohtake, Bruno Dunley lança seu primeiro livro, na galeria Nara Roesler em São Paulo e no Rio, e Nelson Leirner abre nova individual na carioca Silvia Cintra + Box 4. Na Bahia, Antônio Dias ganha exposição na Paulo Darzé Galeria. Confira a agenda completa abaixo:

 

Juliana Cerqueira Leite, ‘H1’ (detalhe), 2017

Arte Atual: Fratura, coletiva no Tomie Ohtake, até 6/5.

Nesta sétima edição do programa, que conta com o patrocínio da Recovery, a partir das
obras de Adriano Costa, Arjan Martins e Juliana Cerqueira Leite, os curadores propõem
questionar as urgências do tempo presente e seu apego à própria descartabilidade. “Em
uma época que resiste a planejar seu futuro ou a conhecer seu passado, talvez seja o
momento de questionar a fugacidade do que se propaga ao redor: e se nada – nenhum
produto, nenhum corpo, nenhuma história – for tratado como descartável? ”, analisa Paulo
Miyada.


Bruno Dunley, Sem Título, 2014

Bruno Dunley, lançamento de livro na galeria Nara Roesler, em São Paulo e no Rio, nos dias 20/3 e 22/3, respectivamente.

O livro apresenta pela primeira vez uma seleção de trabalhos emblemáticos no contexto da produção do artista com cerca de 100 obras dos últimos dez anos. Livro audacioso do ponto de vista editorial, composto por páginas duplas, o projeto gráfico surpreende pela criação de espaços escondidos que propõem novas relações espaciais para o expectador-leitor, que tem liberdade para estabelecer associações entre as imagens.


Nelson Leirner, Fita Métrica, 2017

Nelson Leirner: A Nova Revolução Industrial, individual na Silvia Cintra + Box 4, no Rio de Janeiro, abertura em 17/3.

Com curadoria de Lilia Schwarcz, a exposição apresentará ao público nove tapeçarias que foram produzidas manualmente, reproduzindo os projetos do artista, por um grupo de tecelões durante o último ano.

A “nova revolução” proposta por Leirner é na realidade uma volta no tempo, quando o mundo não estava dominado pelas máquinas da revolução industrial, e nem pela tecnologia que recentemente inundo nossas vidas, mudando inclusive a forma como nos relacionamos com o tempo.


Antônio Dias, ‘Sem Título’, 2016

Antônio Dias: Cruz Credo, individual na Paulo Darzé Galeria, em Salvador, até 20/4.

A mostra contém 16 trabalhos de Antonio Dias, artista que marca profundamente a arte brasileira desde os anos 60 com uma obra exemplar na utilização das mais variadas formas e materiais para criação de ideias estéticas, através de um estilo muito pessoal na depuração de uma poética plástico-visual, o que o tornou um dos mais importantes artistas na arte internacional hoje.


 

 

Tacita Dean, Descanso, 2013

Esse Obscuro Objeto do Desejo, coletiva na Carpintaria (RJ) e na Galeria (SP) da Fortes D’Aloia & Gabriel, abertura simultânea em 17/3.

Esse Obscuro Objeto do Desejo explora as interseções entre abstração, percepção, desejo e memória através do trabalho de oito artistas que compartilham um interesse na morfologia do desejo: Miroslaw Balka, Tacita Dean, Iran do Espírito Santo, Félix González-Torres, Douglas Gordon, Roni Horn, Rivane Neuenschwander, Wolfgang Tillmans.


Myriam Glatt, Série Lux, 2017.

Myriam Glatt: descartes, individual no Centro Cultural dos Correios de São Paulo, abertura em 22/3.

A exposição descartes é  primeira individual da artista Myriam Glatt na capital paulista. A mostra reúne um conjunto de trabalhos produzidos a partir de materiais recolhidos em entulhos – papelões, principalmente – que são apropriados pela artista e reutilizados como suporte das obras. A partir da pintura e da colagem, Myriam cria instalações visualmente potentes, concebidas especialmente para o espaço expositivo, que tocam em temas como ecologia, consumo, arquitetura e apropriação na arte contemporânea.


 

Jean-François Rauzier, Escadaria Selarón, 2014.

Jean-François Rauzier: Hiperfoto-Brasil, individual no Centro Cultural São Paulo, até 6/5.

Com curadoria de Marc Pottier e idealização de Bertrand Dussauge, o projeto chega à capital paulista depois de ter passado pelas cidades do Rio de Janeiro, Brasília e Salvador. A edição de São Paulo apresentará ao público cerca de 100 trabalhos, entre hiperfotos e hipervídeos – parte deles ainda inéditos, recriações de uma série de espaços da cidade. A mostra é parte de uma iniciativa que o artista desenvolve em diversas metrópoles do globo desde 2002, quando começou a desenvolver suas primeiras hiperfotos.


Gabriel Bonfim, ‘Maria da Pena e Luiza Brunet’

Gabriel Bonfim: M, individual no Palácio dos Correios de São Paulo, até 20/4.

A exposição dos trabalhos de Gabriel Bonfim acontecem em São Paulo, Curitiba e Rio de Janeiro. São fotografias em cores – 9 em São Paulo e 7 no Rio de Janeiro e em Curitiba – além de uma videoinstalação artística com 11 telas, na qual Gabriel Bonfim retrata cenas aparentemente comuns na vida de mulheres brasileiras. No registro da transexual na escadaria Selarón, no Rio de Janeiro, ou da Ialorixá na igreja da Ordem Terceira de São Francisco, em Salvador, as imagens descortinam histórias que levam o espectador a perceber algumas das dificuldades enfrentadas por essas mulheres.

 

 

O pensamento humano disponível em uma biblioteca digital

Com tantas informações disponíveis na rede, um projeto da Biblioteca do Congresso dos Estados Unidos, com o suporte da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO), tem como objetivo reunir e disponibilizar milhares de materiais de diferentes culturas. O acervo, nomeado Biblioteca Digital Mundial (WDL, na sigla em inglês), conta com mais de 19 mil obras que vão da literatura a fotos e filmes, passando por gravações e mapas.

Para facilitar a acessibilidade ao material, os conteúdos do site podem ser acessados em sete idiomas, além das descrições em áudio para pessoas com deficiência. Além dos idiomas oficiais das Nações Unidas, consta também o português, devido ao papel essencial da Biblioteca Nacional brasileira no desenvolvimento do projeto. A maior parte do material foi cedido por instituições educacionais e culturais, acervos, museus e organizações internacionais ao redor do mundo.

O patrocínio do projeto parte de contribuições de fundações e instituições financeiras que apoiam a promoção da difusão de trabalhos que fazem parte das histórias culturais da humanidade. São obras, manuscritos e referências que datam de 8.000 a.C.

Como funciona o projeto?

Com tantas produções de variados momentos da história, algumas tão frágeis que requerem manuseio especial que somente museólogos podem prover, digitalizar esses arquivos não é tão simples quanto colocá-los sobre um scanner.

A parceria entre a Biblioteca do Congresso estadunidense, a UNESCO e as instituições que cedem suas obras para o projeto também prevê a criação de centros de digitalização especializados.

Para garantir o sucesso da digitalização, sem danos as obras, a Biblioteca Digital Mundial promoveu investimentos em países em desenvolvimento para a criação de centros de digitalização. Entre os beneficiados estão Egito, Iraque, Uganda, Rússia (embora não seja considerado um país em desenvolvimento) e o Brasil. Além dos equipamentos, o programa ofereceu treinamento e softwares para a implementação do projeto.

A Biblioteca Digital Mundial desenvolveu também, com parceiros, três publicações com temáticas específicas, para difundir entre os usuários materiais de grande relevância para a história da humanidade: “As Bíblias”, “O Projeto Afeganistão” e “Os Primeiros” .

O medo de andar nas ruas

Foto reproduzida de capazes.pt/cronicas/nada-vai-mudar-se-nao-lutarmos-e-denunciarmos/

A sensação de medo também varia de acordo com o gênero. Pesquisa
recém-concluída constatou que 83% das mulheres têm medo de andar
sozinhas à noite. Entre os homens, o índice cai para 55%. “Todos os
indicadores mostram que a sensação de medo em andar na rua, ir para o
trabalho, sair para comprar pão, é muito maior entre as mulheres do que
entre os homens”, afirma Renato Meirelles, presidente do Instituto
Locomotiva, que entrevistou três mil pessoas, em 35 cidades, nos dois
primeiros meses do ano.

A ideia de pesquisar o tema surgiu da hipótese de que a sensação de medo
era generalizada nas cidades brasileiras, associada à dúvida se essa vivência
dependia do gênero. Constatada a discrepância entre os gêneros, Meirelles
trabalha com a possibilidade de o pano de fundo desse temor estar no fato
de, em geral, a fonte do medo vir do sexo masculino: “Uma mulher não
atravessa a rua para não cruzar com outra mulher. Por outro lado, os
homens não têm medo de ser assediados. Não têm medo de ser violentados.
Eles não fazem ideia do que seja isso.”

Embora a ameaça de violência sexual não faça parte do universo
masculino, o tema permeia o cotidiano de todos. De acordo com a pesquisa,
28% dos brasileiros conhecem uma mulher que foi violentada. O índice
aumenta para 34% quando o universo pesquisado é apenas feminino.
“Existe uma proximidade com casos de estupro muito maior do que nós
imaginávamos”, afirma Meirelles.

Outro detalhe que chama a atenção na pesquisa é o fato de 96% das
brasileiras defenderem que é preciso ensinar os homens a respeitarem as
mulheres. Faltam, no entanto, políticas públicas nesse sentido. Por outro
lado, é cada vez mais intenso o debate sobre o tema organizações, redes sociais e manifestações. Assim como há um medo generalizado, há também
muito empenho para não sofrer violência calada.

A cantora americana Katy Perry homenageia Marielle Franco

Marielle Franco. Midia Ninja
Marielle denunciou, dias antes de morrer, violencia policial em Acari. FOTO: Mídia NINJA

Durante show no Rio de Janeiro, na Praça da Apoteose, no último domingo, Katy Perry fez questão de lembrar as mortes de Marielle Franco e Anderson Gomes, executados no dia 14 de março. A cantora levou a irmã e a filha de Marielle ao palco e abriu espaço para que as duas se pronunciassem. Além de prestar solidariedade às famílias, dedicou uma de suas canções à vereadora.

Assista:

 

Executados

Eram cerca de 21h30 de uma quarta-feira (14 de março) quando Marielle Franco, vereadora do PSOl pelo Rio de Janeiro, passava de carro pela rua Joaquim Palhares, na região central da capital. O carro em que estava, acompanhada do motorista Anderson Pedro Gomes e de sua assessora, foi abordado por homens armados que dispararam nove tiros contra o veiculo. Marielle morreu na hora, atingida por pelo menos quatro disparos na cabeça. Anderson Pedro também morreu no local, atingido por três tiros nas costas.

A noticia pegou de surpresa eleitores da quinta vereadora com mais votos na ultima eleição. A “cria da Maré”, como se autointitula, Franco começou sua jornada de militância após a morte de uma amiga. Desde então, formou-se socióloga na PUC do Rio de Janeiro e tornou-se mestre em administração publica pela UFF, a Universidade Federal Fluminense. Jovem, com 38 anos, já havia coordenado a Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro.

Para além da surpresa, houve também quem sugerisse a possibilidade da ligação do crime com a intervenção militar na Segurança Pública estadual, uma vez que Marielle foi nomeada relatora da comissão que acompanharia a intervenção sob a ótica da conservação dos Direitos Humanos. Outra possibilidade levantada por militantes nas redes sociais é a de retaliação contra a vereadora por ter denunciado casos de violência policial em Acari, na zona norte do Rio de Janeiro, no último dia 10 de março.

A vereadora, que recebeu 46.502 votos na eleição de 2016, voltava de um evento de empoderamento de mulheres negras quando foi emboscada. Ela deixa para trás uma filha de 19 anos e um espirito de luta por democracia e comoção que deve levar pessoas às ruas das grandes capitais nesta quinta-feira.

Pelo menos dez capitais brasileiras têm manifestações de homenagem e por justiça marcadas para este 15 de março. Entre as cidades que recebem atos de repudio contra a violência que tirou a vida do motorista e da vereadora do PSOL, estão São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Salvador, Recife, Brasília, Natal e Porto Alegre.

Marielle não é a primeira mulher e, certamente, não é a primeira mulher negra a ser vitima de feminicido no Brasil. De acordo com levantamento da Agência Lupa, com base nas informações do Atlas da Violência do IPEA, uma mulher é assassinada a cada duas horas no país e em 65,3% dos casos a vitima é uma mulher negra.

A cada 2 horas uma mulher é assassinada no Brasil, 65,3% são negras

Os corpos de Marielle Franco e do seu motorista, Anderson Pedro Gomes, que cobria um colega que estava de licença, foram velados na ALERJ, Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, no começo da tarde.

Colegas de partido e militância de Marielle deixaram recados sobre a vereadora. Jean Wyllys, deputado federal pelo PSOL-RJ, disse em discurso durante sessão solene na Camara dos Deputados, que “as ideias de Marielle Franco são a prova de bala!”. O deputado solicitou à Casa a criação de uma comissão para que se possa acompanhar a investigação do assassinato da vereadora e de Anderson Gomes.

Entrevistado logo que chegou ao local do crime na noite da ultima quarta-feira (14), Marcelo Freixo, deputado estadual também pelo PSOL-RJ, emocionou-se ao comentar os anos de trabalho ao lado de Marielle Franco na coordenação da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Hoje, em sua conta no Twitter, Freixo desabafou, “Mari era uma amiga, companheira com quem dividíamos o cotidiano, nossas vidas, esperanças, angústias, sonhos”.

De Canudos ao MST

Walnice Nogueira Galvão é uma intelectual como poucos. Seu entusiasmo é contagiante, assim como sua verve crítica, que não poupa ninguém “abaixo” de Proust e Homero, e o humor espirituoso. Discorre com imensa erudição sobre assuntos os mais diversos, de marchinhas de carnaval a reforma agrária – é colaboradora das escolas do MST, para as quais prepara livros de estudos literários. Mas é mesmo na obra de Guimarães Rosa e Euclides da Cunha que se debruça constantemente, sem perder o interesse, desde sua tese de doutorado na USP, As formas do falso – um estudo sobre a ambiguidade no Grande Sertão: Veredas, de 1970, e a de livre-docência, No calor da hora – a guerra de Canudos nos jornais, em 1972.

Publicaria vários livros sobre os dois autores, em meio a outros de crítica literária ou de pesquisa cultural. Entre eles, a reunião das reportagens feitas por Euclides em Canudos e também um volume com sua correspondência. E agora preparou a edição crítica do novo lançamento de Os Sertões (trabalho este que ela ensina chamar-se “ecdótica”, expressão da Grécia antiga). Na conversa a seguir, ela conta que ficou oito anos reunindo as milhares de correções feitas por Euclides, fala dos conflitos vividos pelo autor diante da tragédia em Canudos e afirma que, se estivesse vivo hoje, o vingador dos jagunços chacinados seria “líder do MST”.

CULTURA!Brasileiros – Reunir e comentar todas as correções feitas por Euclides nas primeiras edições de Os Sertões deve ter dado um trabalho des­­comunal. Como foi isso?
Walnice Nogueira Galvão – Olha, eu não tenho nada de monge medieval (risos), mas eles preparavam edições com anotações e variantes nos mosteiros; passavam a vida inteira fazendo isso. Um por um, à mão! Me agrada muito a ideia de pensar que o que eu fiz com esse livro se localiza nessa linhagem. Fiquei oito anos fazendo esse trabalho.

Que tipo de correções ele fazia?
Ao todo, em vida, ele faz dez mil correções. É um louco, né (risos)? São, sobretudo, correções miúdas. Ele não muda nenhum capítulo, nenhum parágrafo inteiro. Você percebe que ele não está nem um pouco interessado em corrigir informação (embora ele soubesse, depois, que havia ali uma ou outra informação errada); ele está corrigindo estilo. É um artista, não um historiador. Vou te dar um exemplo que parece maluquice: ele percebeu a certa altura que usava excessivamente o particípio passado, o que deixa o texto com muitas palavras terminando em “ado”. Então ficou obsessivamente transformando, rabiscando, cortando os finais em “ado”. Sabe por quê? Porque dava um defeito de estilo chamado eco, que a gente evita até quando fala. Você não diz: eu estou com a mão no coração para fazer uma declaração. É horrível. Outra correção que ele faz muito é de pontuação. Ele cortou umas mil vírgulas, mais ou menos. Implicou também com a palavra “estrada”, pois não tinha estrada nos sertões. Então a maioria das vezes que aparece “estrada” ele troca por um sinônimo: vereda, trilha, picada, caminho. Isso dá uma percepção dos mecanismos do processo criador do Euclides.

Muita gente prefere pular a primeira e segunda partes e ir direto para A Luta, que conta da guerra. O que você acha disso?
A Luta é muito bom, mas a primeira parte, A Terra, é a de que mais gosto, acho de uma beleza extraordinária. Aquilo é uma maravilha! É como se a natureza que ele descreve estivesse dentro dele. Ela não é nem descrita, é vivida com paixão! Ele é um artista visionário.

Como você vê a posição de Os Sertões na literatura nacional?
É estranhíssima, porque é um dos livros mais renegados que já vi e, no entanto, um dos mais influentes. Os modernistas odiavam o Euclides da Cunha. Ele era tudo aquilo contra o que eles pregavam. Essa retórica altissonante, essa demagogia, esses efeitos de estilo, essa escrita caudalosa. Eles queriam o coloquial, o simples, o direto; queriam rebaixar o discurso. No entanto, o que o Euclides fez nos Sertões vai servir ao chamado romance regionalista de 30: um mapeamento dos principais temas da literatura e do pensamento social brasileiro. Ele foi levantar lebres da miséria, do sertão, do jagunço, do cangaceiro, do sertanejo, do coronel, da reforma agrária, do latifúndio, da religiosidade popular, do fanatismo religioso, do subdesenvolvimento, do colonialismo, dos retirantes, da seca. Aí nos anos 1940, o que acontece? Nascem as ciências sociais brasileiras. Que estão até hoje lidando com esses mesmos temas. O Euclides da Cunha vira um precursor da sociologia, da antropologia, da ciência política, das ciências sociais em geral.

E a questão do racismo, tão apontada no livro?
Ah, sim, aí ele se atrapalha, tropeça e cai. Toda vez que ele enfrenta esse tema de frente, envereda por umas teorias estranhíssimas que estudou na Escola Militar, provavelmente a mais avançada em sua época no Brasil, em que predomina o determinismo, o cientificismo e o positivismo. Ele se arma dessa ciência europeia e não percebe que aquilo é uma taxonomia dos recursos do mundo inteiro para que os países imperialistas possam pilhar. E isso inclui as teorias sobre as raças inferiores, que só existe para justificar que o branco europeu pudesse dominar as riquezas das colônias e escravizar seus habitantes. Isso atrapalha o Euclides. Só que quando ele descreve aquilo que viveu na guerra de Canudos, essas teorias não servem. Não tem nenhuma teoria, dessas todas da ciência europeia, que explique para ele onde é que reside a bravura, a coragem e a dignidade que levam aquelas pessoas até a morte para não se entregarem. Não tem! Isso virou o mundo dele de cabeça para baixo, completamente.

O que você acredita que ele estaria fazendo hoje?
Estaria liderando o MST. Gostou (risos)? Que é a consequência lógica do que ele escreveu. O MST gosta muito dele. Eles têm um assentamento chamado Antonio Conselheiro e outro, em Mato Grosso, chamado Euclides da Cunha. Legal, né?

E o que você achou de A Guerra do Fim do Mundo, do Vargas Llosa, inspirado nos Sertões?
Eu tenho horror (risos)! Os Sertões expressa a consciência dilacerada do Euclides diante daquilo que ele viu. Aquele cara que tinha estudado a mais nova ciência europeia em todos os campos, chega lá e descobre que ela não serve para nada. Então ele se alinha, emocionalmente, ao adversário. Ele fica do lado dos jagunços, torce por eles. E fica horrorizado com o comportamento do exército dele. É um processo para ele extremamente doloroso, cheio de contradições, que ele não consegue resolver até o fim. Por isso que o livro é trágico do jeito que é. E o Vargas Llosa o que faz? Transforma o livro num best-seller. Ou seja, facilita tudo. Retira o conflito, retira as contradições, retira as antíteses, retira figuras de linguagem como o Hércules-Quasímodo e a Troia de Taipa. Fica tudo simples, fácil e bem explicado para o Vargas Llosa. Ele acabou com o livro. Ele devia ter uma tal inveja do Euclides da Cunha que faz uma coisa pior: cria um jornalista míope, que está fazendo a reportagem da guerra e que depois perde os óculos. É um insulto. Retratar o Euclides como um cara que não enxerga? Eu acho isso de uma baixeza que você não imagina.

E o que acha de outras obras que também partiram de Os Sertões?
A melhor de todas é Deus e o Diabo na Terra do Sol, do Glauber Rocha, que era outro gênio. Ele mistura Euclides da Cunha com Guimarães Rosa e o José Lins do Rego de Cangaceiros e Pedra Bonita. Transfere, em ficção, a dualidade entre a violência do cangaço e o fanatismo. Não botou o Antonio Conselheiro no filme. Mas vai nas profundezas do livro e pega o fundamento.

“Talvez a política mais honesta da América Latina foi impedida pelos políticos mais corruptos da América Latina”, diz Boaventura

O sociólogo Boaventura de Sousa Santos recebeu a reportagem para um chá em São Paulo. Foto: Maria Carolina Trevisan

*Por Maria Carolina Trevisan e Gustavo Aranda, dos Jornalistas Livres

Referência mundial no campo da ciência social, o premiado pensador Boaventura de Sousa Santos esteve no Brasil para lançar seu novo livro A difícil democracia (Boitempo Editorial). Em uma análise primorosa da situação política atual, Boaventura discute o que chama de “democracia de baixa intensidade”, reflete sobre as causas das crises que envolvem países da América Latina, Europa e África e, principalmente, alerta para a urgente necessidade de ‘reinventar as esquerdas’, subtítulo da obra. O sociólogo chama a atenção para as consequências políticas, econômicas e sociais depois de períodos em que o poder esteve com as esquerdas. Alerta para a ameaça fascista aberta sob a bandeira do combate à corrupção, que se impõe como proteção à democracia.

“A frustração pode plasmar-se numa opção política pelo fascismo, sobretudo se a frustração for vivida muito intensamente, se for acirrada pela mídia reacionária, se houver à mão bodes expiatórios, estrangeiros ou estratos sociais historicamente vítimas de racismo e sexismo”, escreve. Para ele, o crescimento de movimentos fascistas “é funcional aos governos de direita reacionária na medida em que lhe permite legitimar mais autoritarismo e mais cortes nos direitos sociais e econômicos, mais criminalização no protesto social em nome da defesa da democracia.”

Autor reconhecido e premiado no mundo todo, Boaventura escreve sobre sociologia do direito, sociologia política, epistemologia e estudos pós-coloniais, movimentos sociais, globalização, democracia participativa, reforma do Estado e direitos humanos, além de fazer trabalho de campo em Portugal, no Brasil, na Colômbia, em Moçambique, em Angola, em Cabo Verde, na Bolívia e no Equador. Entre seus livros mais importantes estão Um discurso sobre as ciências (1988), Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade (1994), Reinventar a democracia (1998), Democracia e participação: o caso do orçamento participativode Porto Alegre (2002), Se Deus fosse um ativista dos direitos humanos (2013), A cor do tempo quando foge: uma história do presente – crônicas 1986-2013 (2014), O direito dos oprimidos (2014) e A justiça popular em Cabo Verde (2015).

Boaventura recebeu a reportagem para uma conversa sobre Brasil, colonialismo, esquerdas e democracia. “O capitalismo nunca atua sozinho. Ele atua com o colonialismo e atua com o patriarcado, isto é, com o racismo e com a violência contra as mulheres. Não é uma forma de dominação que seja capaz de conviver exclusivamente com o trabalho assalariado. Tem que desqualificar seres humanos, sejam os trabalhadores, sejam os jovens negros, as mulheres negras, as mulheres em geral, e portanto o colonialismo não acabou. Nós vivemos em sociedades coloniais com imaginários pós coloniais.”

Sobre o Brasil, Boaventura afirma: “O País estará em um impasse durante um tempo. O neoliberalismo é uma farsa e está sendo implementado aqui exatamente como farsa, até que as forças populares de esquerda se dêem conta que é possível uma alternativa política. Os partidos de esquerda, em nenhuma condição, se devem aliar a partidos de direita. A esquerda tem que se aliar com a esquerda. Se não é possível uma aliança com outros partidos de esquerda, mantenha-se na oposição até que essas condições sejam criadas. Não podemos governar na base de conciliação com grupos de direita que no momento oportuno nos largam, como aconteceu com o PMDB e com o PSDB, não sejamos ingênuos.”

Ele diz que a saída pode estar em um novo partido de esquerda, que esteja baseado mais nos movimentos sociais e menos nos interesses partidários. “O presidente Lula é um fator muito importante. Se ele voltar à presidência, não vai poder governar como governou. Se ele não voltar a ser presidente, o mito estará intacto. A aceitação que ele continua a ter é absolutamente notável e todos os cientistas políticos deveriam estudar no mundo. Lula foi uma parte muito importante do passado, vai ser uma parte importante do futuro. Mas é preciso que digamos publicamente que temos consciência para pressionar eventualmente um presidente Lula ou um candidato Lula a atenuar um pouco a ideia da conciliação e a unir-se mais ao movimento popular. Nós não vamos estar numa década de Lula paz e amor. Não há condições para isso.”

Leia, a seguir, a conversa completa com o sociólogo e professor português: 

Brasileiros – Em seu livro mais recente, “A difícil democracia”, tem a seguinte afirmação: “vivemos em sociedades politicamente democráticas mas socialmente fascistas”. O que o senhor quis dizer?

Boaventura de Sousa Santos – É uma frase que procura mostrar que as democracias realmente existentes são parcialmente falsas, são truncadas. Não têm nada a ver com o ideal democrático de soberania popular e de livre ação dos cidadãos, que se sentem espiados nos seus representantes e, portanto, entre representados e representantes a distância será mínima. Pelo contrário, as distâncias hoje são máximas em muitas sociedades ditas democráticas.

Por outro lado, a democracia é um ideal de livre ação e de soberania, que não tem que estar confinado ao sistema político. Acontece que a democracia liberal foi sempre desenhada para poder aplicar exclusivamente ao sistema político, e portanto não poder estender-se à família, às relações sociais, às empresas, às ruas, às comunidades, ao espaço público, às universidades, etc.

“A democracia é de fato uma ilha democrática no arquipélago do despotismo.Despotismos na família, na escola, na fábrica, na empresa, na rua, tanta violência, tanta forma de brutalidade no sistema mundial.”

Exatamente quando a democracia não atua, precisamente porque grande parte das relações sociais estão fora do controle democrático e são geridas por vontades até democráticas e mais frágeis nessas áreas sociais (seja na família, na empresa, na rua), são sujeitas a uma situação em que suas aspirações de vida estão reféns de um direito de veto do mais poderoso. Os grupos sociais que estão sujeitos a um direito de veto dos mais poderosos, como o jovem negro que vai na rua e é abordado pela polícia, pede-lhe uma identificação sem qualquer motivo, apenas pela sua cor de pele. Ele está a ser sujeito a uma forma de fascismo social. Por que é fascismo social? Não é fascismo político porque esse foi um sistema político que se opôs à democracia. Este convive com a democracia em todas as áreas onde a convivência das relações sociais não são democráticas. Infelizmente, grande parte das nossas sociedades e grande parte da nossa população, não vive relações sociais democráticas em que há um equilíbrio de poder. Vive por vezes em situações de poder despótico, ou seja, vivem situações de fascismo social. Essa coexistência é que está presente.

Então nos países em que há maior desigualdade a democracia é mais frágil e mais sujeita ao fascismo social?

Muito mais frágil. E pode ser um instrumento para aumentar essa fragilidade. Por que o neoliberalismo vem, desde os anos 1980, a tentar destruir os direitos sociais dos trabalhadores, tem vindo a tentar destruir o poder que o Estado tinha na distribuição social? Ao mesmo tempo se mostra muito adepto da democracia e a democracia hoje é de fato, numa das suas versões, característica do nosso tempo, a democracia é um instrumento de imperialismo. Destrói a Líbia para impor a democracia, destroi-se o Iraque para impor a democracia, destroi-se a Síria para impor a democracia, destroi-se o Afeganistão para impor a democracia.

“A democracia que eu chamo de ‘baixa intensidade’ transformou-se num instrumento do imperialismo. Não é essa a democracia pela qual lutamos e isso é exatamente a característica do nosso tempo: são diferentes conceitos de democracia que dividem os campos democráticos, digamos assim. Nós precisamos saber de que lado estamos.”

O campo democrático o qual me identifico, que é uma luta da radicalização da democracia, da ampliação do campo democrático, a ‘democracia de alta intensidade’ é que efetivamente luta contra as formas de fascismo social na nossa sociedade, portanto procura ampliar o campo de livre ação democrática, para que o arquipélago do despotismo seja mais pequeno, gradualmente mais pequeno, e idealmente não exista.

Trazendo para a nossa realidade no Brasil, fica cada vez mais evidente que quem manda na nossa democracia é o capital. Como o senhor vê essa situação?

É evidente que o capitalismo nunca atua sozinho. Ele atua com o colonialismo e com o patriarcado, isto é, com o racismo e com a violência contra as mulheres. O capitalismo não é uma forma de dominação que seja capaz de conviver exclusivamente com o trabalho assalariado, ele tem que desqualificar seres humanos, sejam os trabalhadores, sejam os jovens negros, as mulheres negras, as mulheres em geral, e portanto o colonialismo não acabou.

“É um dos pontos do meu trabalho hoje: ao contrário do que a gente pensa, nós vivemos em sociedades coloniais com imaginários pós-coloniais. O colonialismo não tem que ser apenas ocupação territorial estrangeira, como aconteceu historicamente. Pode assumir outras formas: colonialismo interno na forma de xenofobia, de racismo, de islãmofobia. O capitalismo no século XVI não tem nada a ver com o capitalismo do século XXI.”

Mas a gente continua a falar do capitalismo do século XVI e no capitalismo do século XXI. Eu faço o mesmo com o colonialismo: o histórico, de ocupação territorial, era uma forma. Temos que analisar as outras formas de colonialismo, porque há muita gente que vive na nossa sociedade sob o domínio das revoluções coloniais, a casa grande e a senzala. E portanto, isso em sociedades sobretudo que foram colonizadas historicamente, continua sob outras formas.

Aliás, nos anos 1960, sociólogos importantes deste País, como Dom Pablo Gonzáles Casanova, teorizaram a ideia do “colonialismo interno”. Criou-se as elites com a ideia do mito da democracia racial, através do olhar de intelectuais, alguns deles bastante importantes, como Gilberto Freire. Permitiu, durante muito tempo, a ideia do mito da democracia racial. Foi preciso chegar ao século XXI para o Brasil, muitas décadas depois da intendência, chegar à conclusão de que realmente é uma sociedade racista e que por isso era preciso haver cotas, por exemplo, para inclusão dos jovens na sociedade, porque não é nem toda a desigualdade no Brasil se justificava apenas pelas diferenças de classe, que obviamente são muito fortes. Houve aqui uma articulação entre raça e classe, e gênero, obviamente, porque as mulheres também compõem um grupo muito substancial dos mais pobres deste País.

É essa a constelação de dominações que domina as nossas sociedades. O que acontece é que essas dominações atuam em conjunto, os movimentos que lutam contra elas estão separados: as feministas podem lutar apenas contra o patriarcado, mas descuidam da luta anti-colonial, anti-capitalista; os movimentos quilombolas podem lutar contra o colonialismo na sociedade, mas descuidam da luta anti-capitalismo e anti-patriarcal, os próprios indígenas a mesma coisa.

“Os movimentos estão divididos e a dominação está unida. É essa situação que nós temos. Nós precisamos unir os movimentos. Quando o capitalismo se reforça, reforça-se também o colonialismo e o patriarcado.”

Por exemplo, ao olhar para o governo da presidente Dilma, tinha mulheres e tinha negros. No momento em que houve o golpe para forçar o capitalismo de origem neoliberal, desaparecem as mulheres e desaparecem os negros nos ministérios. E houve aquela coisa caricata do presidente dizendo que não tinha encontrado mulheres para os ministérios. Aquela coisa absurdamente caricata num País onde a maioria são mulheres.

Como foi possível que o processo de impeachment acontecesse daquela forma, tão desrespeitosa com a primeira mulher presidente do Brasil, eleita com 54,5 milhões de votos?
É difícil dizer porque é especulativo. Mas ela foi vítima de discriminação, sem dúvida nenhuma. Isso mostra também que os partidos progressistas e o movimento popular andaram 13 anos distraídos porque pensavam que a sociedade tinha sido profundamente transformada. As forças de esquerda tomaram o governo, mas não tomaram o poder social. E nem sequer cuidaram de democratizar a sociedade. No futuro, não haverá democratização do Estado se não houver democratização da sociedade, o que é uma tarefa muito mais ampla. Portanto, todas essas conquistas parece que se desfazem no ar, de um dia para o outro, e se viu que era tudo um certo verniz. Passado esse verniz, as empregadas domésticas tinham que ser servis, como tinham antes, estavam tendo demasiados direitos, já não dependiam tanto da filantropia.

“A classe no Brasil é sempre racista e é sempre patriarcal. Isso nos trouxe uma grande virulência e está se mostrando uma grande virulência neste momento.”

As esquerdas foram surpreendidas com essa fraqueza da democracia? Houve um descuido? Como se pode reorganizar as esquerdas? 

O que é a esquerda? Temos a esquerda organizada em uma pluralidade de partidos e temos a esquerda que são os movimentos sociais que lutam contra a opressão e as diferentes formas de dominação, e que estiveram ou não ligados a partidos, muitos deles em uma estrutura apartidária, digamos assim. É evidente que os partidos populares e os governos, como na Bolívia, no Equador, na Venezuela e aqui no Brasil, que saem da emergência de forte mobilização popular, criam uma ilusão nos movimentos sociais de que seus amigos tinham chegado ao poder. E, portanto, descansaram. Quando exatamente deveria ter sido o contrário porque no momento em que os amigos chegavam ao poder, sabiam que esses amigos iam ser sujeitos a múltiplas pressões para se distanciarem dos seus amigos, e portanto governar o País contra eles. Mesmo não crendo, era preciso continuar a haver uma pressão de baixo.

Isso é uma coisa que nós lutamos em todos os países. Os movimentos sociais do Equador e da Bolívia lutaram muito por uma Constituição e quando foi promulgada, descansaram. O primeiro dia de luta era esse: lutar para que a Constituição fosse cumprida. Não. Descansaram. No Brasil, os movimentos sociais de alguma maneira descansaram. Talvez o único que não descansou e continuou com uma atividade de intervenção foi o MST, um dos maiores movimentos sociais da América Latina e quiçá do mundo, e portanto continuou com um certo ativismo.

Muitos outros pensaram que, tendo amigos no Planalto, podiam descansar. Finalmente nós íamos ter uma sociedade um pouco mais inclusiva. Isso descuidou a retaguarda dos movimentos. No que diz respeito aos partidos, o partido protagônico, PT, é sempre a mesma ideia de tomar o governo ou tomar o poder.

“Realmente houve a ilusão de que num sistema político que não foi reformado se poderia governar à moda antiga para outros objetivos. Com as mesmas alianças, as mesmas formas, com a mesma ideologia que vem da segunda República, que é um pacto entre as elites, onde as classes populares não deveriam entrar para perturbar o jogo.”

Mas na verdade, como as sociedades não podem ser planeadas como uma linha de montagem, houve aqui uma perturbação e em 2003, um operário consegue chegar à Presidência da República. A partir daí, cria-se uma primeira fissura na própria hegemonia das classes dominantes: alguém que não pertence às elites, o primeiro movimento é tentar absorver. O que foi de certa maneira fácil, na medida em que, como eu digo, basta ver a “Carta aos brasileiro” do presidente Lula, dizendo que não iria alterar os compromissos internacionais, financeiros do País, um modelo de desenvolvimento que não era sustentável a longo prazo, era uma modelo de continuidade do colonialismo, que era o extrativismo e a extração de recursos naturais, tornado possível devido ao impulso de desenvolvimento da China, num contexto de altos preços das commodities. Era uma situação em que todos ganham. É mais fácil governar numa situação desse tipo.

A partir daí, os bancos nunca tiveram tantos lucros. O Brasil transformou mais de 50 milhões de pessoas através do Bolsa Família e das políticas de inclusão. Não se pode trivializar a ideia de que tantos milhões que não comem uma vez por dia passaram a comer 3 vezes por dia que isso não é uma revolução. Obviamente que é uma revolução, mas que foi feita com o mesmo modelo de desenvolvimento e com o mesmo sistema político que favorecia as elites e as classes dominantes.

No momento em que a solução do ganha-ganha entra em crise, o modelo entra em colapso, praticamente. Entra em colapso também por conta de situações internacionais, por exemplo o preço do petróleo, que de uma semana para outra passou a metade. Não foram os mercados, foi uma intenção do imperialismo norteamericano, no meu entender, que queria neutralizar a Rússia, que tem muito petróleo, neutralizar o Irã, que com o fim do embargo ia entrar no mercado internacional do petróleo e era preciso fazer baixar o preço, e a Venezuela. Era preciso neutralizar o Brasil, que estava tendo algum protagonismo internacional como um dos países emergentes. O erro foi um pouco esse: terminou a hegemonia da própria classe dominante. Ou seja, ela vai aguentar a sua hegemonia até a produção do golpe? O golpe é o ponto final da hegemonia da classe dominante? A partir desse momento ela esbroa-se. Exatamente o que estamos a ver.

Diante do quadro de combate à corrupção e do desgaste dos partidos políticos o Poder Judiciário ganhou força. Qual a sua opinião sobre esse quadro?

Como a corrupção é sistêmica, a hegemonia que permitiu a segunda República caiu completamente e as classes dominantes estão a comer-se umas às outras, com escândalos diários de escutas em que os periódicos que criaram o golpe e que promoveram o golpe estão neste momento a atacar os golpistas, digamos assim, como se realmente agora se repusesse a democracia pondo apenas os golpistas à vista. Nós já tínhamos visto que eram golpistas, não é? É uma crise de hegemonia na sociedade brasileira, que não pode, neste momento, ter nenhuma solução muito criativa. A solução criativa numa situação em que, por um lado, a classe dominante perdeu a hegemonia, nitidamente, está sem ter um norte para onde ir, metem-se na prisão uns aos outros, digamos assim, por outro lado, as classes populares não têm ainda uma capacidade organizada de resposta, foram apanhadas de surpresa, houve um grande choque, as medidas que estão aí em preparação não chegaram ainda ao bolso das pessoas, leva tempo para que esse empobrecimento, o sucateamento da educação, da saúde, atinjam a sociedade, leva um tempo até filtrar, até a base.

Houve um impasse entre uma classe dominante que tem uma crise de hegemonia muito forte, e as classes dominadas, as classes populares, que ainda não conseguiram se organizar como uma resposta.

“Temos aqui uma dualidade de impotências: a da classe dominante e a das classes populares. Dos três órgãos de soberania, todos eles um pouco deslegitimados, o único que não foi eleito – o Judiciário – assume uma posição de gerir esse impasse durante algum tempo. É natural. E pode geri-lo de várias formas: mantendo-se no campo do Judiciário, ou algum de seus membros passa a se firmar como líder político. Isso vai criar uma perturbação enorme nos movimentos populares e pelas Diretas Já.”

 

Está se construindo a ideia de que as reformas trabalhista e previdenciária são a única saída para salvar o País. Que consequências essa política neoliberal pode nos trazer?
As medidas que estão aqui sendo impostas são as medidas que foram impostas aos portugueses em 2011. É exatamente a mesma coisa: crise da previdência, das leis trabalhistas, privatizar a saúde e privatizar a educação. A receita neoliberal é global, com nuances de país para país. Na Europa, temos vindo a vivê-la, a própria Grécia, também sob alguma forma violenta, e Portugal em 2011, conseguiu livrar-se. O que mostra o seguinte: essa receita neoliberal é global, apresenta-se com uma total rigidez, isto é, ou se fazem essas reformas ou não há investimento externo, ou não há competitividade, ou o fim da recessão, e portanto o país não tem como avançar, tem mesmo que fazer essas reformas.

Podemos dizer que, se calhar, o fato de Temer ter caído em desgraça na Globo é parte da convicção de que ele não tem poder suficiente para levar a cabo as reformas. E provavelmente em um sistema de eleições indiretas ou de qualquer outra forma, alguém pode ter legitimidade suficiente – se for alguém do Judiciário provavelmente ainda mais legitimidade, porque não traz a mácula da corrupção, e isso vai ser muito importante: não é o movimento popular a lutar contra a corrupção, porque quem é candidato é quem lutou contra a corrupção. Isso altera completam tente o cenário. Mas o objetivo é aplicar essas medidas, obviamente.

E isso é que nós temos que ver que é uma grande farsa do neoliberalismo. Já está demonstrado que não é assim. Há um grande poder de convicção, por ter o oligopólio da mídia, que mostra e entra nessa forma de alienação das classes populares e quer convencer as classes populares que vivem acima de suas posses, que realmente a sua pensão, mesmo magra, está em perigo se não for privatizada, e é melhor que a gente liberalize o mercado de trabalho e precarize porque vamos aumentar empregos. É um pouco essa a lógica que está aí.

O que acontece é vermos que quando isso resiste, com êxito, mostra-se efetivamente que é uma farsa. O melhor exemplo é o caso português: entre 2011 e 2015 tivemos um governo reacionário, que aplicou essas medidas. Em final de 2015 há eleições, e os portugueses como sempre, desde 1974, votam à esquerda, mas quem governa é a direita. Porque a direita está unida e a esquerda está desunida.

Pela primeira vez em 40 anos, os três grandes partidos de esquerda decidem articular-se, não para se fundirem, de maneira nenhuma, mas com um acordo de governo que ponha travão à precarização das leis trabalhistas e à privatização da previdência, entre outras austeridades. Foi possível criar uma alternativa através de uma coisa muito corajosa, que é o Estado “geringonça” – palavra depreciativa criada pela direita e que está a funcionar.

Funciona há pelo menos 4 anos, os alemães já tem uma palavra correspondente a geringonça e os ingleses também. Ou seja, nós transformamos um nome negativo contra a esquerda em um nome positivo, e temos muito orgulho nessa geringonça. É um pacto de governo mas que teve este efeito. É que fizemos exatamente o oposto ao que diz a receita neoliberal. E os resultados que estamos a ter é exatamente o oposto ao que eles diziam: o país nunca teve tão pouco desemprego, estamos em 9%; é um dos países que mais cresce na Europa, estando acima dos 10%; o déficit público está a diminuir; a dívida pública se mantém porque é impossível diminuir de um ano para o outro, e o país está exatamente fazendo o contrário do que diz a receita neoliberal, e está a erguer-se de novo.

Ou seja, o neoliberalismo é uma farsa. O capitalismo só é rígido enquanto não tiver que se confrontar com uma alternativa. É mais fácil, para garantir a acumulação deles, produzir o empobrecimento das classes populares, precarização das leis trabalhistas, privatização da previdência – porque é um bolo de dinheiro enorme – que anda no sistema financeiro que é quem domina este País, obviamente. Eles querem essas vantagens, não os critique por isso. Nós temos a criticar é promover forças suficientes para resistir contra isso. No momento em que eles tem que se confrontar com uma alternativa política, adapta-se. Diziam que não haveria investimento direto em Portugal, está a aumentar o investimento direto, e é por isso que Portugal está a crescer.

O neoliberalismo é uma farsa e está sendo implementado aqui no Brasil exatamente como farsa, até que as forças populares de esquerda se dêem conta que é possível uma alternativa política eventualmente como a reforma política, porque esta, como vê, só é possível numa condição, que é a grande reforma política. Por isso, o Brasil estará em impasse durante um tempo.

“Os partidos de esquerda, em nenhuma condição se devem aliar a partidos de direita. A esquerda tem que se aliar com a esquerda. E portanto se não é possível uma aliança com outros partidos de esquerda, mantenha-se na oposição até que essas condições sejam criadas. Ir governar na base de conciliação com grupos de direita, com partidos de direita, que no momento oportuno nos largam, como aconteceu com o PMDB, com o PSDB, não sejamos ingênuos, podemos cometer o erro uma vez. Mas não vamos cometer o mesmo erro muitas vezes porque senão um político daqui disse que a esquerda é burra. É burra se continuar a cometer os mesmos erros.”

Alguns políticos costumam classificar o Partido dos Trabalhadores, e seus líderes, como “inimigos”. O que significa essa construção?
É realmente a perda da face dessa democracia fársica. Porque na democracia não há inimigos, há adversários. É a grande distinção. O inimigo é aquele que se quer destruir, o adversário é aquele com quem se tem que articular na oposição e tentar ganhar ou perder, mas tem uma posição contrária e que democraticamente pode ser elaborada, para ganhar ou perder. O inimigo é para destruir. A lógica do amigo-inimigo, do nazismo alemão, a ideia é que nos dividimos entre duas águas. Aliás todo o conservadorismo, o projeto que está em curso neste momento não é o liberalismo. É a que já não tolera a democracia, mesmo de baixa intensidade, passa a se tornar mais “fascizante”, digamos assim, por exemplo, começa a não ter confiança nem sequer na classe política, e quer que sejam os seus a governar – é o caso do Macri, do Trump, do Macron – são os homens de negócios que se transformam em políticos.

Eles vão perdendo a confiança porque no jogo democrático são muito impacientes. A direita aqui no Brasil, dada que a alteração no preço dos commodities estava a levar a uma crise no sistema, no seu segundo mandato, a presidente Dilma teve que tomar medidas anti-populares, e ter um ministro [Joaquim Levy] que era totalmente contrário a tudo aquilo que ela tinha proposto na campanha eleitoral. Então, era de prever que houvesse crise e que nas próximas eleições esta orientação política perdesse as eleições. Estavam impacientes. Nós nunca vimos em nenhum outro país, poucos meses depois de um presidente ganhar as eleições, estar-se a pedir o seu impeachment, sem prova nenhuma de crime de responsabilidade.

“É essa a grande novidade que o Brasil deu ao mundo. Infelizmente é uma novidade triste: talvez a política mais honesta da América Latina foi impedida pelos políticos mais corruptos da América Latina. Em plena democracia. Isso é que mostra a falência do sistema democrático.”

Qual a sua opinião sobre o atual movimento das Diretas Já?

As Diretas Já tem um impulso interessante que é repor a legitimidade democrática. É uma ideia de dar a palavra ao povo. É também a forma mais eficaz de travar essas leis porque ninguém que vá dizer numa campanha eleitoral que quando chegar ao poder vai aplicar aquelas leis é eleito. Provavelmente, depende de como os mídia vão funcionar, sobretudo num País que passa 4/5 horas por dia a ver televisão, penso que seria difícil que ocorressem.

A luta é exatamente entre aqueles que querem aplicar as medidas e aqueles que querem travar as medidas. O que se viu efetivamente é que não querem recuar de maneira nenhuma nas medidas, porque muitos acreditam genuinamente que é a única maneira de repor a sua rentabilidade. Mas há muitas outras medidas possíveis, bastava que o capital financeiro não fosse tão voraz como é no Brasil, que tem as taxas de juros mais elevadas do mundo. E que 7,9% do PIB é para pagar os juros da dívida, coisa que nenhum outro país no mundo faz.

Que tempo é esse da reinvenção das esquerdas, subtítulo do seu livro?
É muito difícil prever porque os sociólogos são bons para prever o passado, mas o futuro não somos muito bons. Evidente que com o bombardeamento midiático que se fez, dando sinal das medidas e da demonizarão da esquerda e do partido que foi protagonista durante este período, nós vamos precisar de um certo tempo, porque a pessoa na rua que não é militante começa a sentir no bolso o sucateamento do sistema de saúde, que já é fraco mas que vai ser muito mais fraco; o pagamento da educação dos seus filhos; a possibilidade de perder a casa e ser despejado; o salário que vai baixar; a distância entre a periferia e o centro, que o Haddad de alguma maneira tinha tentado encurtar vai aumentar; portanto vão começar a sentir isso, mas o sofrimento humano nunca é ativo politicamente.

“O sofrimento pelo sofrimento não vai lá. É preciso organizar-se politicamente, que as forças políticas, os movimentos sociais e os partidos possam captar a insatisfação que se vai gerar. Mas leva um pouco de tempo porque as pessoas ainda não viram as consequências. Há espaço para um partido novo de esquerda, de outro tipo.”

Quanto tempo? Depende de quanto tempo de doutrinação. A doutrinação tem muitos limites, ela não consegue doutrinar completamente porque os seres humanos vivem na História e fora da História. Ninguém esperaria que Portugal fosse criativo politicamente e agora foi criativo. Amanha pode ser o Brasil, pode ser outro país. O que é preciso é o poder de agregação das forças de esquerda – e não vai ser fácil. Vai ser difícil. O que aconteceu com Jeremy Corbin, que ninguém esperava, diferente dos jovens que criaram o Podemos, os jovens ingleses decidiram inscrever-se em massa no Partido Trabalhista. Foi o que o levou ao poder. Eles achavam que o partido tinha sido completamente descaracterizado por Tony Blair, tinha apoiado a guerra no Iraque e feito todas aquelas estripulias. Através de uma inscrição massiva, alteraram a política do partido.

No Brasil, eu corro o Brasil todo, o jovens não estão a sentir-se atraídos de maneira nenhuma pelo PT, alguns pelo PSOL, mas eu trabalho muito com rappers, são esses os jovens que eu vejo, que estão a fazer uma atividade política extraordinária neste País mas fora do movimento partidário. Isso vai durar algum tempo, não sabemos como vão se reorganizar, penso que há efetivamente espaço para um partido novo de esquerda, de outro tipo.

Qual a sua opinião sobre a presença do ex-presidente Lula na crise e no processo de saída da crise?
O ex-presidente Lula é tanto parte do problema como é parte da solução. Eu tenho respeito por ele, sou amigo dele. É um homem que sem dúvida é a figura mais notável da História do Brasil depois da Independência. É a quem o Brasil deve, para sempre, tem uma dívida absolutamente extraordinária. Mas é evidente que é um homem refém do seu passado, como também todos nós somos. É um homem que teve como ninguém mais tem, e como não teve a presidente Dilma, a capacidade de conciliar classes. É uma pessoa que realmente conseguiu fazer uma política de conciliação muito forte. Isso é um trabalho notável que ele realizou e que transformou o Brasil. O Brasil é hoje muito diferente de 2003. E o legado dele vai se dar até contra ele, mas foi devido a ele que hoje as pessoas pensam o que pensam no Brasil. A possibilidade de uma sociedade melhor.

O presidente Lula, evidente que neste momento, como não houve renovação nos partidos de esquerda, é o único nome da esquerda com alguma viabilidade para ganhar as eleições. Se a esquerda quer ganhar as eleições, tem que ser com o presidente Lula. É evidente que isso é importante para ganhar as eleições. Agora, com o presidente Lula não vai haver renovação do PT, não vai haver renovação política muito profunda. Porque essa renovação passa pela transformação do PT num partido-movimento, passa pela democracia participativa dentro do partido, como tem o Podemos, passa por uma articulação com o PSOL e com os movimentos sociais, que eu penso que neste momento, com a lógica de conciliação que o presidente Lula tem no seu imaginário, vai ser muito difícil de levar.

Estando Lula não vai ser possível criar outro partido político. E eu penso que a política brasileira tem espaço, eventualmente para um novo partido a partir dessa mobilização social ainda incipiente. O que é curioso é que aquilo que em Portugal foi possível unindo as esquerdas pela via partidária, no Brasil está a se fazer via movimentos sociais. Temos duas frentes: Brasil Popular e Povo Sem Medo. São duas articulações que falam uma com a outra, em que algumas organizações estão nas duas, portanto eu penso que essa articulação profunda está-se a dar.  Se amanhã vai se transformar ou ter uma voz partidária, depende muito do futuro.

O presidente Lula é um fator muito importante, evidente que a direita sabe exatamente isso que estou dizendo, há uma fração eventualmente da direita mais inteligente que até é capaz de pensar que talvez fosse bom que o presidente Lula voltasse à Presidência, para destruir de uma vez para sempre o mito Lula. Porque ele não vai poder governar como governou, não há uma reforma política que lhe permita governar de outra maneira, os preços das commodities são o que são e portanto destroi-se o mito de uma vez para sempre. Se ele não voltar a ser presidente, o mito está intacto. A aceitação que ele continua a ter, que é absolutamente notável, é que todos os cientistas políticos deveriam estudar no mundo, o homem mais demonizado pela imprensa continua a ter aceitação popular enorme. Foi uma parte muito importante do passado, vai ser uma parte importante do futuro, e essa parte de futuro tem um lado muito claro e outro menos claro. É preciso que digamos publicamente que temos consciência disso, para pressionar eventualmente um presidente Lula ou um candidato Lula a atenuar um pouco a ideia da conciliação e a unir-se mais ao movimento popular, que foi também a sua tradição. Só que ele não teve que tomar uma grande posição entre uns e outros, era amigo de todos, Lula paz e amor. Nós não vamos estar numa década de Lula paz e amor. Não há condições para isso.

Esse momento de crise profunda pode se transformar em oportunidade? 
É um momento interessante na sociedade brasileira, de renovação. A democracia se defende na rua, neste momento. A rua é o único espaço público que não é colonizado pelo mercado financeiro, portanto é um espaço importante de manifestações pacíficas. Vai ser problemático porque vai haver infiltrados e agentes provocadores para provocar violência, dizer que são todos violentos e suscitar a brutalidade policial.

A rua é muito boa para manifestar as aspirações políticas das classes populares e dos jovens, mas não pode formular política, ela não é capaz de formular política. Tudo isso vai levar o seu tempo. 

“O grande problema é que essa crise de hegemonia pode entrar em uma crise social muito forte. Que desagrega o tecido social.”

Mas o Brasil vai se reinventar. As crises, se não forem permanentes – e o neoliberalismo quer a crise permanente porque assim a crise se transforma ela própria em solução e destrói a oportunidade – e essa no Brasil não é porque é uma crise política, de hegemonia e econômica, cria oportunidades. Vamos ver como o campo popular se articula, pode reagir pela reposição das energias democráticas e por isso as Diretas Já é uma sinalização nesse sentido. O importante é bloquear as medidas. Esta é a luta em que o Brasil vai estar metido nos próximos tempos.

Assista a entrevista:

https://www.youtube.com/watch?v=RYAQZQCdOg8

Racismo: a máquina de matar e encarcerar negros

POLÍTICAS PÚBLICAS E RACISMO Usando brincos feitos de projéteis, Deborah Small fala para a Brasileiros na zona oeste de São Paulo - Foto: Luiza Sigulem/Brasileiros

O primeiro grande passo para enfrentar a segregação racial nos Estados Unidos foi dado por uma mulher negra. Em 1º dezembro de 1955, a costureira Rosa Parks se recusou a ceder seu lugar no ônibus para um branco. Há apenas 60 anos, a legislação de Montgomery, Alabama, nos Estados Unidos, obrigava os negros a dar preferência aos brancos no transporte público local. A prisão de Parks deflagrou um boicote aos ônibus, que durou um ano, até a revogação da lei. Sua atitude abriu caminho para o Movimento dos Direitos Civis, a favor da liberdade e da justiça, que teve Martin Luther King Jr. como um dos principais líderes.

A repressão racial se dá, ainda hoje, pela via da Justiça. É uma forma de institucionalizar o racismo. A máquina de encarcerar e matar negros é a chamada “guerra às drogas”. Uma das principais lideranças norte-americanas na luta pela reforma das políticas de drogas e no enfrentamento ao racismo é a ativista e advogada Deborah Peterson Small, 60 anos, graduada em Direito e Políticas Públicas pela Universidade de Harvard. Ela foi diretora para assuntos legais da New York Civil Liberties Union, dedicando-se aos direitos de pobres e presos e mais tarde dirigiu a área de políticas públicas e articulação comunitária na Drug Policy Alliance. Conheceu as entranhas do sistema que mantém presos 2,2 milhões de pessoas, a maior população carcerária do mundo, e compreendeu o mecanismo que transforma negros em suspeitos.

Com essa bagagem, Deborah fundou, há dez anos, a organização Break the Chains, que tem como missão sensibilizar lideranças e a comunidade negra para os efeitos perversos da guerra à drogas. No Brasil, a lógica é a mesma: o superencarceramento, com ajuda das políticas de drogas, mantém nas cadeias do País 515.482 pessoas. Dessas, 57% são negras e mais da metade é jovem (Infopen, 2014). Um quarto dos crimes se refere a entorpecentes. A polícia brasileira é também uma das mais letais do mundo. Segundo levantamento do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, as forças policiais mataram em 2015 o equivalente a oito pessoas por dia. A impunidade se repete no Brasil e nos Estados Unidos, onde 97% dos casos de violência policial não resultaram em condenação, de acordo com o site Mapping Police Violence, com dados de de 2015.

Brasileiros – Como a letalidade policial e a guerra às drogas contribuem para a violência contra a população negra?
Deborah Small – Em 2001, fui à África do Sul para a Conferência Mundial contra o Racismo, em Durban. Ali percebi as dimensões internacionais do problema. Vi que a guerra às drogas estava devastando pobres e negros, com altos níveis de letalidade policial. Também compreendi que as condições da população negra no mundo são muito similares: relações guiadas pelo racismo, pela colonização e exploração econômica. Em relação às políticas de drogas, temos enorme quantidade de dinheiro e de polícia focada em combater o tráfico de drogas, que é um “crime consensual”. As negociações sobre drogas são feitas por partes que concordam. Uma pessoa quer algo e a outra fornece. A finalidade dessa política é transformar essas partes em criminosas, permitindo que a polícia possa agir com violência até o ponto de matar.

O Brasil está passando, neste momento, por uma instabilidade política. Se o governo de Michel Temer se mantiver, o que a senhora acha que vai acontecer com as políticas afirmativas voltadas para a população negra?
Vão piorar. Isso está muito claro. O fato de Temer ter montado uma equipe ministerial sem negros e sem mulheres, ter feito cortes em muitos programas sociais iniciados no governo anterior, de a repressão policial estar aumentando e de o número de mortes estar crescendo, aponta para isso. Fiquei chocada ao saber que a letalidade policial é a segunda causa de morte no Brasil. Os números nos Estados Unidos não chegam nem perto do que está acontecendo aqui. Não se vê clamor da sociedade brasileira por isso (segundo o Fórum de Segurança Pública, a polícia matou, em 2014, 3.009 pessoas, o equivalente a um homicídio a cada três horas. A média de mortes causadas por policiais nos Estados Unidos, por ano, é de cerca de 360).

Por que as pessoas no Brasil não se sensibilizam com as mortes de jovens negros?
Em parte porque os próprios negros no Brasil foram obrigados a acreditar que os seus jovens são os inimigos, os traficantes e, por isso, mereceriam o que está acontecendo. O mais problemático não é a maneira como os não negros brasileiros se sentem acerca da letalidade policial contra os jovens negros. Mas como a população negra brasileira se sente em relação a isso. Há tantas comunidades negras que foram convencidas a pensar em seus próprios jovens como “o perigo”… Dessa forma, o único jeito que encontram para se proteger é deixando que a polícia entre nas comunidades e os mate. É o que está acontecendo. A polícia “pacificadora” é direcionada apenas às comunidades negras. Quem eles estão “pacificando”? Os jovens negros. Nessas comunidades, o fato de as pessoas se sentirem ok com isso é estranho para mim.

“O Brasil nunca será um País de primeira classe enquanto considerar natural tratar os negros como cidadãos de segunda classe”

Como abordar o racismo e a violência policial com as crianças negras?
O triste de viver num país racista é que suas crianças negras não chegam a ser elas mesmas por muito tempo. Meu neto agora tem 4 anos e meio. Ele não sabe que é negro. Ainda não sabe o que isso significa. Ele sabe que sua cor é marrom. Para ele, é só o que ele é, assim como outras crianças são de outras cores. A cor da pele, nesse momento da vida, não tem significado. Ele não vê limitações, não tem conversas sobre isso com outras crianças. O triste é que em algum momento, no futuro próximo, isso vai mudar. Ele vai perceber as coisas que eu percebi: que as pessoas reagem ao fato de ele ser negro e como isso aparece em diferentes espaços públicos. Assim que ele ficar um pouco mais velho, seu pai e eu teremos que falar com ele sobre violência. Terá de aprender que determinadas atitudes das pessoas serão tomadas pelo fato de acharem que ele é um ladrão. Terá que viver com a suposição de que, em qualquer lugar que ele for, suspeitas de crime e caos irão segui-lo. E que isso não tem nada a ver com quem ele é, ou como ele age, ou o que ele veste. As pessoas não prestarão atenção nesses detalhes.

Como isso se expressa?
Eu moro na Bay Area, Califórnia, um lugar supostamente liberal. Mas continuo assistindo a pessoas brancas segurarem firmes suas bolsas quando me cruzam na rua. É inconsciente. Elas nem notam que fazem isso porque vivem dentro de uma realidade na qual a negritude está ligada à criminalidade. Nessa situação, a população negra é involuntariamente responsável. Assim que vêem um negro, reagem automaticamente, entram em modo de autoproteção. Não importa como você aparenta, quantos anos tem. Porque essa é uma resposta programada. Isso é o que o racismo faz: você reage à simples presença de pessoas negras. Por exemplo, se eu vou a um caixa eletrônico e tem uma pessoa branca usando a máquina antes de mim, vou contar a distância que preciso manter dela para que não se sinta ameaçada por mim. Já percebi que os brancos não fazem isso. Nós, negros, passamos a vida, constantemente, fazendo esse tipo de calibragem.

Como é ser negro e viver em áreas de concentração de brancos no seu país?
É difícil. Você vai precisar se acostumar com o fato de que ser detido pela polícia é um componente da sua vida. Porque essa é a maneira com que a sociedade se estruturou. Isso tem menos a ver com crime e violência e mais a ver com o jeito com que nossos países lidam com a subjugação. É assim: não temos mais escravidão, mas continuamos tratando as pessoas como escravos, continuamos perseguindo, apreendendo, acorrentando, restringindo seus movimentos, explorando suas forças de trabalho.

A senhora sentiu isso no Brasil também?
Absolutamente. O tempo todo. Aqui no Brasil esse comportamento é ainda mais pronunciado. É um país que não está acostumado a ver negros frequentando espaços como hotéis e restaurantes, por exemplo. Te olham como se perguntassem: o que você está fazendo aqui? Acho curioso em certa medida. Porque é o oposto do que os brasileiros dizem de si mesmos. E é triste também. Com tudo isso que o Brasil está fazendo, com os Jogos Olímpicos, nunca será um país de primeira classe enquanto achar natural tratar os negros como cidadãos de segunda classe. Porque o mundo está cheio de pessoas negras. Eles não vão tolerar isso, não visitarão o Brasil e dirão a todos que não venham.

 “É uma forma de autogenocídio. Um grupo de negros matando outro grupo de negros. Porque se convenceram de que são inimigos”

É uma situação extremamente cruel…
É cruel mas está no espaço da negação. Funciona como a dependência: as pessoas cometem racismo porque têm necessidade. Provavelmente pensam que não é um bom comportamento, mas não têm a habilidade de não fazer porque toda a sua identidade está associada a esse comportamento.

Sobre identidade, nos Estados Unidos basta uma gota de sangue negro para que a pessoa seja considerada negra. No Brasil, a identidade se dá pela autodeclaração de cor. Como isso se reflete?
Nos Estados Unidos a distinção é entre negros e brancos. No Brasil é entre negros e não negros. Ou seja, as pessoas podem escolher quem elas são dentro do espectro negro. Querem ser pardas? Querem ser morenas? Você tem várias categorias. Todas relacionadas a ser negro. É um desafio porque não é necessariamente como você se percebe na sociedade. Eu vi muito isso em Salvador. Você vê muita gente que não se identifica como negra, mas é tratada como negra pela sociedade. Por isso considero o movimento de empoderamento negro na Bahia tão interessante. Se eu fosse governante, trabalharia para que essa energia chegasse à polícia, o que poderá acontecer um dia.

O que aconteceria se esse movimento chegasse à polícia?
O que vocês têm aqui é muito interessante: uma forma de autogenocídio. Um grupo de negros matando outro grupo de negros. Porque se convenceram de que são inimigos. São todos negros. A sociedade não dá a mínima para nenhum dos lados. Não se importa com os policiais negros que são mortos nem com os traficantes assassinados pela polícia. Pode ser que os policiais percebam isso eventualmente e comecem a se solidarizar, uma solidariedade racial. Seria um desenvolvimento incrível.

Como a guerra às drogas opera nesse contexto?
É uma cortina de fumaça. Eles sabem que não se trata de drogas. A polícia sabe melhor do que qualquer um que existem drogas em vários lugares onde a polícia não é enviada. Até que ponto o governo brasileiro e a sociedade esperam que os policiais continuem arriscando suas vidas e sendo mortos em nome de uma guerra que ninguém acredita que pode ganhar? Em algum momento, vão se dar conta de que estão sendo explorados também. As pessoas só reconhecem a violência quando acontece com elas. Se isso acontecer, a sociedade vai se tornar mais violenta. Mas a violência já está presente.

O policial que matou Michael Brown em Ferguson, Missouri, em 2014, não foi condenado. O que isso significa?
Acho que os brasileiros deveriam se preocupar (porque não reagem). O que levou à morte de Michael Brown foi uma série de acontecimentos: a polícia vem trabalhando nessa comunidade há anos. As pessoas têm sido constantemente abordadas e agredidas. Sempre o mesmo grupo de pessoas tem sido alvo da polícia. Quando o policial mandou que Michael Brown saísse da rua e ele disse “não”, foi um ato contra todo esse comportamento. Ele matou Brown e deixou seu corpo estendido na calçada por quatro horas, sem cobrir nem nada. Acaba de balear uma pessoa e não chama socorro médico. São sinais de falta de respeito. A população reagiu. É por isso que “Vidas Negras Importam” (referindo-se ao movimento Black Lives Matter, que surgiu em 2013 com a absolvição do policial que matou o adolescente negro Trayvon Martin). Os policiais que matam os negros continuam impunes.

Qual é o limite para esse sofrimento?
Nós temos uma alta tolerância para o sofrimento porque fomos condicionados. Mas não somos inquebráveis. Quando as pessoas chegam ao ponto de perceberem que o limite foi atingido, normalmente as coisas não acabam muito bem. Neste País (o Brasil), há muito sangue de jovens negros sendo derramado. O fato de provocar pouca comoção significa que você não se importa com essa juventude, nem com o bairro de onde ela vem, nem com sua comunidade. Não estamos dizendo que as vidas negras importam mais que outras vidas. Estamos falando que as vidas negras importam tanto quanto qualquer vida.

Qual é o papel das pessoas brancas no enfrentamento ao racismo?
Existe esse mito de que o racismo só machuca negros. Mas agride os brancos também, direta e indiretamente. O racismo dá um falso senso de quem são. Faz com que acreditem que são mais espertos do que são, mais poderosos do que são, que merecem mais do que merecem de fato. Não estou dizendo que não tenham essas características. Mas o elemento do racismo confere uma falsa percepção sobre si mesmo. Porque você está se comparando com gente com quem nunca teve que competir. Por exemplo, na universidade há sempre aquela conversa que muitos brancos têm com os estudantes negros de que “você deve se sentir sortuda por ter tido a oportunidade de estar aqui”. E eu sempre disse: “Não, não me sinto sortuda. Porque muitos de vocês não estariam aqui se seus pais tivessem de competir com os meus. Alguns de nós somos melhores. E vocês não teriam os privilégios que têm”. O que é difícil com o racismo é que essas pessoas não discutem as injustiças e privilégios que sempre tiveram. É por isso que vocês (no Brasil) brigam porque 10% de vagas foram destinadas aos negros nas universidades, mesmo a população negra sendo 50% dos brasileiros. Sério? Deveriam estar gratos em vez de contestar o acesso dos negros ao ensino superior. É tão absurdo. Esse é o problema do racismo. Parece que as cotas são um favor. E que os negros deveriam ser gratos. A obsessão dos brasileiros é tratar os negros como objetos de música e dança, mas não intelectualmente.

O presidente Barack Obama conseguiu mudar esse pensamento nos Estados Unidos?
Uma das coisas mais importantes que Obama fez foi ter destruído a ideia da inferioridade intelectual dos negros. Enfrentar o racismo é lutar contra privilégios, contra a noção de supremacia branca. Trata-se de entender do que você vai abrir mão para ter o mundo que deseja. Todos nós teremos que abrir mão de algo com o que nos importamos para ter um mundo melhor.

“O racismo leva à morte prematura. não se trata apenas de discriminação. nós morremos mais cedo”

Como a senhora vê o crescimento de Donald Trump e a possibilidade de suceder um presidente negro?
Vejo Trump como o equivalente político a um lap dancer (dançarinos de boate que recebem dinheiro ao se insinuar para a plateia). Naqueles minutos de dança, em que a plateia oferece dinheiro ao dançarino, ele faz com que as pessoas infelizes se sintam bem, nem mesmo importantes, mas se sintam bem sobre si mesmas. Mesmo que saibam que ele não está interessado nelas, vão continuar o exaltando para manter aquele sentimento bom, de que podem ser vencedoras, que podem ser poderosas, que o “mundo ficará em ordem”. Mas não é possível manter esse sentimento para sempre. A dança acaba. O dançarino troca de pessoa.

A senhora acha que Donald Trump tem chances de ganhar?
Ele tem uma grande chance de ganhar. Mas Obama tem mais popularidade do que Hillary ou Trump. Deveríamos parar com essa obsessão de proteger a classe média. Em pleno século XXI é como se houvesse só dois tipos de pessoas: as que trabalham por dinheiro e aquelas cujo dinheiro trabalha para elas. Se você trabalha por dinheiro, não importa se você ganha muito ou pouco, quando a sua fonte de rendimento acabar você estará arrasado. Se você tem dinheiro suficiente e o dinheiro trabalha para você, tudo na nossa sociedade e na economia está configurado para que você mantenha esse dinheiro, para que ele cresça e você continue tendo dinheiro. A grande maioria de nós pertence à parcela que trabalha por dinheiro. Mas a classe média não se enxerga dessa maneira, não se solidariza.

Qual a sua opinião sobre o programa de justiça criminal de Hillary Clinton? Ela trata da questão racial?
É engraçado. Por conta do Black Lives Matter e do Bernie Sanders, ela se saiu forte nessa área de justiça criminal. Mas ela tem uma questão: muito do que está errado neste momento sobre o sistema de justiça criminal está baseado em políticas promovidas por seu marido (Bill Clinton foi presidente dos Estados Unidos entre 1993 e 2001). Está sendo interessante vê-la falar sobre promoção de uma reforma na Justiça sem criticar o marido. Mas estou muito confiante de que, se for eleita, fará muito mais para mover essa agenda. Francamente, acho que ela poderá fazer mais do que o próprio Obama. De alguma maneira ela terá mais liberdade.

“Veja o que está acontecendo com a mulher branca que comandava o brasil. Se ela fosse um homem, ainda estaria na Presidência”

Por quê?
Porque Obama não poderia fazer políticas que beneficiassem especificamente a população negra. Ele seria acusado de favoritismo. O fato de presidentes brancos não fazerem nada para a população negra é perfeitamente aceitável. Mas, você sabe, não está certo ter um presidente negro comprometido em fazer algo para melhorar as vidas negras. Então, tudo o que ele fez teve que se caracterizar por impactar na sociedade como um todo. Ainda assim, a medida mais importante do governo Obama, que foi a reforma na Saúde, beneficia diretamente grande parte dos pobres e negros. É o que os brancos mais detestam e estão constantemente falando em acabar, o “Obama Care”. Essa é a realidade da política americana: parte da percepção sobre a razão de os brancos se identificarem como brancos é que suas vidas deveriam ser melhores do que as vidas negras. Então, quando ele propõe políticas para preencher esse buraco, isso é visto como uma perda, algo que estaria sendo tirado dos brancos.

As mulheres negras, pelo que já tiveram que lutar e suportar, são das pessoas mais fortes do mundo. No Brasil, são chefes de família e grandes lideranças intelectuais, como Sueli Carneiro e Luiza Bairros. Mas as mulheres negras continuam na base da pirâmide. Por que isso acontece?
O Brasil é um país misógino. Veja o que está acontecendo com a mulher branca que comandava o País. Se ela fosse um homem, ainda estaria na Presidência. O que está acontecendo com Dilma Rousseff é uma ação clássica de misoginia. Não estou dizendo que seja apenas misoginia, mas é uma grande parte. Este País não trata realmente de empoderar as mulheres, a não ser como objeto sexual e serviçal, o que acontece com todas as brasileiras, independentemente de cor. Quando se pensa na mulher brasileira, vem logo à cabeça a imagem de uma bunda na praia. Essa é a imagem que tem sido cultivada e promovida dentro e fora do País. Gera muita misoginia, que leva à violência contra a mulher e a práticas direcionadas a diminuir o poder da mulher. Se os negros estão na base da pirâmide, então, mais embaixo estão as mulheres negras. Mas eu diria que quem está bem abaixo são os indígenas, que continuam sendo exterminados e ninguém presta atenção a isso. Nem mesmo se fala sobre isso. Pelo menos se fala das pessoas negras. Os indígenas são totalmente invisíveis. É ridículo.

O movimento negro no Brasil é um dos mais importantes do País, um dos mais antigos. Mesmo com conquistas essenciais e sendo um movimento social tão potente, por que não avançamos mais?
Creio que as políticas conquistadas até agora não vão nem continuar. Porque o Temer vai se livrar delas. Tudo no Brasil que está comprometido com equidade racial ou social está ameaçado com esse governo. Vamos encarar: este País foi construído sobre a exploração das fontes físicas, materiais e humanas.

O que é o racismo para você?
O racismo é como uma morte prematura. Essa frase é da minha amiga Ruth Gilmore, professora de Geografia (docente do doutorado na City University of New York – CUNY). O racismo é uma série de práticas e políticas que um grupo de pessoas faz para impor a outro grupo de pessoas, e o resultado é a morte prematura. O racismo leva à morte prematura. Não é um exagero dizer que o que está acontecendo no Brasil é uma forma de genocídio. Não se trata apenas de discriminação. É como nos Estados Unidos. Todas essas práticas do racismo americano fazem com que os negros morram mais cedo. Nós morremos mais cedo.

O violão soberano de Rosinha de Valença

A violonista Rosinha de Valença. Foto: Reprodução / Youtube

Bem, amigos, chegamos hoje ao 30° álbum destacado em Quintessência. Na antevéspera do Dia Internacional da Mulher, cabe aqui a mea culpa deste humilde escriba: só agora me dei conta de que este espaço se tornou espécie de “Clube do Bolinha da Música Brasileira”, porque até o momento nenhum álbum destacado aqui havia sido dedicado a compositoras, instrumentistas ou intérpretes femininas.

Não pensem vocês, amigas leitoras, no entanto, que este pobre colunista vem sendo acometido por notória misoginia. Pelo contrário. Distinção de gêneros, com exceção catalogar dos desdobramentos das vertentes musicais, é algo que não existe em minha discoteca, em minhas pesquisas e tampouco em meu pensamento.

Vamos, então, aos possíveis álibis desse machista esquivamente confesso: no período tratado nesta coluna – entre 1960 e 1980 – patente é o fato que a produção masculina em nossa música popular, sintoma histórico, é volumétrica e predominante.

Exceto às grandes cantoras dos anos 1950 e 60 – Elizeth, Dalva, Claudette, Doris, Alaíde, Flora, Wanda, Leny, Nara, entre outras – trabalhos autorais assinados por mulheres, infelizmente, só começaram a ser mais valorizados, no Brasil, a partir dos anos 1970 – década marcada pela afirmação de super-intérpretes como Gal Costa e Maria Bethânia.

Outro porém contemporâneo, em pleno início da segunda década do século 21, os álbuns aqui dissecados dependem do pré-requisito de terem disponíveis online os arquivos virtuais, e eles são escassos, para que nossos leitores possam ouvir a íntegra e, assim, entender, de fato, do que estamos falando. Você mesmo poderá constatar, em uma busca rápida na internet associando nomes femininos de artistas brasileiros com o quesito “álbum completo”, ou “full álbum”, os resultados, infelizmente, são pífios.

Capa do LP lançado, em 1964, pela Elenco. Foto: Reprodução

Perante essa limitação, vamos então ao tema da coluna de hoje: o violão magistral de uma moça nascida, em 30 de julho de 1941, no interior fluminense, na mesma cidade de Valença que nos deu Clementina de Jesus, esse talento ímpar, que atendia pelo nome de batismo Maria Rosa Canellas.

Além do irmão Roberto, músico de um regional atuante em Valença, Maria Rosa era também sobrinha do violonista Fio da Mulata, músico dos mais requisitados na Época de Ouro do Rádio, que atuou ao lado de Araci de Almeida, Ademilde Fonseca e Lúcio Alves, entre outros.

Fio também dirigiu programas de calouros na Rádio Clube. Por influência de Roberto e do tio, seu primeiro professor, a menina Rosinha começou a estudar violão na infância.

Aos 12 anos de idade, já impressionava o público local, se apresentando em bailes e em participações de regionais. Em 1960, aos 19, abandonou de vez os estudos ao concluir que o caminho para a música era irreversível. Três anos mais tarde, no início de 1963, driblando a enorme timidez, Rosinha mudou-se para a capital fluminense em busca de maior projeção para sua carreira artística.

Na Cidade Maravilhosa, teve a sorte de cruzar o caminho do cronista Sergio Porto – o saudoso e genial Stanislaw Ponte Preta. E foi ele quem levou a prodigiosa moçoila para apresentá-la a Aloysio de Oliveira, o patrão da Elenco, e a outro ás das seis cordas, Baden Powell – que há pouco também havia arrebatado o público carioca, ao chegar da pacata Varre-Sai com um violão do tamanho do mundo.

Mergulhando no universo boêmio e masculino do Beco das Garrafas, Rosinha deu início a uma temporada de oito meses de shows, de enorme sucesso e consolidação de seu nome no circuito instrumental, no legendário Bottles. Teve também carta branca de Aloyiso para produzir, pela Elenco, seu álbum de estreia. Lançado em 1964, Apresentando Rosinha de Valença é um dos clássicos do selo carioca.

A bela capa foi produzida com a excelência da dupla Cesar Villela (arte gráfica) e Francisco Pereira (foto). Em meio a uma exuberante arte não creditada, mas ao que tudo indica é do ilustrador Fortuna, a contracapa traz texto de Sergio Porto, em que o cronista esclarece o porque do nome artístico dado por ele à violonista:

“Elogiar Rosinha eu não posso. Sou padrinho da moça. Quando ela chegou ao Rio, vinda de Valença, fui eu quem a levou, pela primeira vez, para se apresentar em público. O sucesso foi enorme. Escolhi nesse dia o seu nome, ‘Rosinha de Valença’, porque achei que ela toca por uma cidade inteira”.

Contracapa do LP. Foto: Reprodução

Para acompanhar a moça, às vésperas de arrebatar cidades de todo o mundo, Aloysio – como de praxe, produtor do biscoito fino – convocou um time de primeiríssima: o baterista Dom Um Romão, o baixista Sergio Barroso, o flautista Jorginho e o violonista e pianista Oscar Castro Neves, gentilmente cedido pela gravadora RGE.

Autor do tema Até Londres, no qual faz scats vocais com Rosinha, Castro Neves é também o arranjador do LP. O repertório inclui clássicos da nascente bossa nova, como Ela é Carioca, de Tom e Vinícius e Minha Saudade, de Donato e João Gilberto, da bossa paulista, o Tema do Boneco de Palha, de Vera Brasil e Sivan Castelo Neto, e um afro-samba que já nasceu clássico, Consolação, de Baden e Vinicius. Completam o LP Tristeza em Mim, de Mauro Tavares e José Guimarães, Praça 11, de Herivelto Martins e Grande Otelo, Atirei o Pau no Gato, o tema infantil, de domínio público, e Com Que Roupa, o clássico de Noel Rosa, interpretado na voz miúda e acanhada de Rosinha (a propósito, a timidez da moça com trejeitos de caipira, reza a lenda, inspirou Jorge Ben a compor a deliciosa Bicho do Mato, um dos destaques de Ben é Samba Bom, terceiro álbum do Babulina).

Ainda em 1964 Rosinha integrou no Paramount, o legendário teatro de Walter “Pica-Pau” Silva, o show O Fino da Bossa, megassucesso da TV Record, apresentado por Elis Regina e Jair Rodrigues. A violonista colaborou também para artistas como Nara Leão, as baianas do Quarteto em Cy e Eliana Pittman.

Mas as fronteiras literalmente ficaram invisíveis para Rosinha a partir de 1965. Ocasião em que ela partiu em turnê para os Estados Unidos integrando o Brasil 65’ do pianista niteroiense Sergio Mendes, ao lado de Jorge Ben, Chico Batera, o baixista do Bossa Três, Tião Neto, e a cantora Wanda Sá.

No início da turnê americana, Jorge abandonaria o grupo, depois de sofrer preconceito em uma barbearia de Los Angeles ao ser ignorado pelo par de profissionais do salão, que ociosamente lia o jornal do dia quando ele chegou ao estabelecimento. Abrindo aspas, o episódio lamentável é narrado por Ruy Castro em Chega de Saudade e reproduzido a seguir.

“Jorge sentou-se despreocupadamente numa das cadeiras vazias, disse ‘barba e cabelo’ e ficou esperando. Só se tocou quando um dos barbeiros lhe disse, usando apenas um canto da boca ‘estamos ocupados’. Ben saiu dali e foi direto à Varig comprar a passagem de volta.”

A incursão americana de Rosinha ainda rendeu participação em outro belo álbum, Bud Shank & His Brazilian Friends, LP do saxofonista e flautista norte-americano, que conta com a participação do mestre João Donato, lançado pelo selo Pacific Jazz.

Mesmo sem a presença de Jorge Ben impulsionados com a releitura de duas canções de sua autoria, Mas Que Nada e Chove Chuva, Sergio e sua trupe conquistariam os EUA. Sob o codinome Brasil 65’, o grupo lançou dois álbuns, ambos com o violão de Rosinha reinando soberano e a cantora Wanda Sá como intérprete: Brasil’65 Wanda de Sah featuring Sergio Mendes Trio e In Person at El Matador!: Sergio Mendes & Brasil’65.

De volta ao Brasil, em 1967, Rosinha integrou o grupo de Maria Bethânia no espetáculo Comigo me Desavim. No ano seguinte, a convite do Itamaraty, a violonista fez uma turnê por países da Europa e da África e teve a oportunidade de tocar com estrelas como Stan Getz, Sarah Vaughan e Henri Mancini.

Nos anos 1970, Rosinha tornar-se-ia fiel escudeira do sambista Martinho da Vila. Em 1980, encerrando uma discografia de 11 grandes títulos, fez par com outro gigante do violão brasileiro, o maestro Waltel Branco. O encontro histórico ficou registrado no LP da Som Livre Violões em Dois Estilos: Rosinha de Valença e Waltel Branco.

Mas, dessas grandes injustiças da vida, a trajetória triunfal da maior violonista do País teve fim de forma lenta e trágica. Em 1992, após sofrer uma parada cardíaca, Rosinha teve uma paralisia cerebral que a colocou em estado vegetativo por 12 anos.

Em 1994, liderados por Maria Bethânia, com o objetivo de arrecadar fundos para as despesas do tratamento de Rosinha, uma série de artistas prestaram homenagens à ela, no Canecão.

A menina que tocava por uma cidade inteira e encantou o mundo partiu há exatos 10 anos, em 10 de junho de 2004. Ponto final para uma grande mulher e uma embaixadora das belezas indizíveis de nossa música popular ao redor do mundo.

Naquele mesmo ano foi lançado pela Biscoito Fino, em CD, o tributo Namorando a Rosa. A compilação reúne, entre outros, artistas como Bethânia, Miúcha, Caetano, Chico, Hermeto e Alcione.

Boas audições e até a próxima Quintessência!

*Originalmente publicado no site da revista Brasileiros em 6.3.2014, por Marcelo Pinheiro

MAIS

Veja Rosinha de Valença, Chico Batera, Rubens Bassini (tamborim), Sergio Barroso (contrabaixo) e J.T. Meirelles (flauta transversal) interpretar uma versão instrumental de ‘Consolação’ (Baden Powell / Vinicius de Moraes) no programa ‘Folklore Der Welt – Bossa Nova do Brasil’. na Alemanha, em 1966.