“Não vi arte no espaço carcerário. Vi um problema social, humano, e por esse motivo pensei em fazer um trabalho de arte para refletir sobre essas questões”,
É desta forma que a artista Berna Reale descreve como começou a conectar a arte que faz com o trabalho de perita no estado do Pará. Nascida em Belém no ano de 1956, Berna formou-se em Arte na Universidade Federal do Pará, mas há oito anos também trabalha no Centro de Perícias Científicas Renato Chaves, na capital.
Artista antes de se tornar perita, Berna reconhece a carga trazida para sua arte com o novo ofício: “A perícia que influenciou a arte que eu fazia. Hoje tenho um olhar mais focado em problemas sociais mais do que antes”, comenta. A artista cresceu no norte do país, região que nos últimos anos tem registrado diversos casos que trazem à tona a precariedade do sistema carcerário: “Pelo que vejo ainda temos um longo caminho para que o problema carcerário se resolva, pois a fonte do problema não está nas prisões, não está entre muros, e sim fora deles”, afirma Berna. Para ela, isso era algo que iria estourar em breve.
Apesar da violência ter se enraizado em seu trabalho artístico desde que o trabalho como agente pública começou, também aborda em suas performances, fotografias e instalações outros problemas sociais e políticos que invadem o País. Afinal, Berna acredita que o problema da violência não existe por si só, mas é, sim, um conjunto de calamidades: “Enquanto a educação não for a base e a estrutura social, nada vai mudar. Enquanto não tiver alimentação e saúde básica para a grande maioria da população, vamos continuar enxugando gelo e assistindo rebeliões”. Muitas vezes, confessa, se assustou ao ir trabalhar com cenas de crimes cometidos dentro de presídios, tamanha a brutalidade: “Não é possível que ninguém veja, que ninguém se incomode, que ninguém resolva”, pensava ao sair de locais assim.
Berna Reale, ‘Quando Todos Calam’, 2009.
Ter sido artista antes de perita ajudou Berna a olhar com mais sensibilidade para cenas de crimes, enxergando minuciosidades que transpõe para a arte. O que para muitos poderia ser horrorizante, para Berna também não deixa de ser, mas também se torna um material a ser transformado com o repertório que ela traz. A arte e a perícia, então, se encontram e a artista faz com que o público reflita, muitas vezes com choque, sobre uma realidade muitas vezes pode parecer distante: “A perícia fez com que eu conhecesse a miséria humana, antes eu conhecia a pobreza mas não a miséria”.
A emoção também é parte de tudo o que se relaciona a seu fazer artístico. Mas foi ao realizar uma performance no complexo penitenciário de Santa Izabel, onde no último mês ocorreu uma tentativa de fuga em massa que assustou a região, que Berna encontrou o ápice da comoção. “Um lugar escuro e com uma energia parada, pesada . Uma pessoa aprisionada é uma energia parada carregando seu peso absoluto”, disse.
Naquela ocasião, realizou a performance Americano, percorrendo os corredores escuros da penitenciária com uma tocha. Ela só foi autorizada a entrar na área onde os prisioneiros foram detidos no dia da performance: “Quando sai dali a tristeza me acompanhou por um longo período, pois eu saia e eles continuavam ali em uma vida não-humana”. Berna pontua, ainda, que ver a rebelião ocorrer ali anos depois da realização de sua performance a faz “acreditar que o artista tem as vezes um sentimento anterior”.
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Berna Reale, 'Limite Zero', 2012
Berna Reale, 'Número Repetido', 2012
Berna percorre os corredores da complexo penitenciário de Santa Izabel, na performance Americano, de 2013.
Não é fácil para ela, apesar da longa trajetória nas artes (incluindo uma Bienal de Veneza), lidar com essas questões: “Transpor pra arte esses problemas é o desafio do artista. Eu procuro estudar os elementos conceituais e estéticos que estão inseridos no cenário que o problema social está acontecendo, assim fiz em Americano”, conclui.
No momento, a artista trabalha em três projetos: uma performance na rua que se baseia no encarceiramento, fotografias e instalações sobre a miséria humana e um projeto que desvia de tudo o que já fez no quesito performance. Sobre este último, ela confessa, bem humorada: “Espero não desistir de fazer, pois é um enorme desafio e, às vezes, me pergunto se não é um delírio”. Apesar da dificuldade, se mostra otimista: “Mas não sou uma artista que quer estar numa zona de conforto e pra isso tenho que correr riscos”, conclui.
O processo de vistoria dos edifícios ocupados pelos movimentos de moradia em São Paulo, na perspectiva de melhoria das condições de segurança neles existentes, desencadeado a partir do incêndio e da tragédia associada à ruína do edifício Wilton Paes enseja uma discussão sobre a qualificação dos prédios antigos da cidade. Não se trata aqui dos prédios históricos, mas das edificações construídas há várias dezenas de anos e que não tiveram uma manutenção preventiva adequada.
São Paulo é uma metrópole cujas edificações e estruturas urbanas foram quase integralmente produzidas nos últimos 100 anos – sua população chegou a pouco mais de meio milhão de habitantes em 1920, depois de uma verdadeira explosão de crescimento a partir de 1872, quando tinha cerca de 26 mil habitantes.
Metrópoles como Tóquio, Roma, Londres e Paris passaram por vários ciclos de manutenção e reconstrução e, naturalmente, o conhecimento técnico sobre as reformas e recuperação do patrimônio edificado foi valorizado. Em São Paulo, a construção das novas estruturas foi a iniciativa hegemônica nos últimos 100 anos e a formação técnica dos nossos profissionais se adaptou a esse contexto de grande demanda por novas construções. Tópicos relacionados à recuperação do patrimônio edificado existente, como patologia das construções, técnicas de manutenção e recuperação de estruturas e infra estruturas, melhoria das condições de acessibilidade e segurança de antigas edificações ficaram esquecidos ou relegados ao segundo plano.
A definição de técnicas e normas para produção do novo foi atônica – a manutenção, recuperação e critérios para qualificação do existente não foi prioridade. Benedito Lima Toledo, em seu livro São Paulo, três cidades em um século, descreve como a cidade de barro (taipa e adobe) foi destruída para dar lugar à cidade de tijolos, que por sua vez foi destruída para dar lugar à cidade de concreto que hoje marca nossa paisagem.
Há 100 anos, iniciou-se a rápida multiplicação da construção dos grandes edifícios em São Paulo. E hoje há centenas deles abandonados na cidade, como se houvesse se encerrado sua “vida útil”. A durabilidade de uma edificação depende muito dos cuidados e estratégias de manutenção e recuperação. Sua vida útil pode ser longamente estendida.
A pesquisa realizada por Edmur Arantes nos prédios do bairro de Santa Cecília, por exemplo, mostra a importância das políticas públicas e estratégias de manutenção dos prédios antigos antes que se deflagre sua decadência, que torna muito mais difícil a recuperação.
O ótimo estado de conservação de prédios de alguns séculos existentes no “Velho Mundo” tem a retaguarda de políticas públicas e esforço técnico envolvido na manutenção e recuperação do patrimônio edificado. Do ponto de vista da sustentabilidade é claramente interessante recuperar as estruturas e edificações existentes. Porém um século de prioridade ao “novo” fez com que nos descuidássemos do envelhecimento das estruturas existentes e tem-se hoje um verdadeiro vácuo nas políticas de qualificação do patrimônio edificado.
Faltam relatos de experiências, políticas públicas, conhecimento e orientações técnicas para adaptação e melhoria dessas edificações. A qualificação de uma edificação existente não pode ser um simples processo de “adaptação” às normas técnicas atualmente aplicáveis às novas edificações. Se assim fosse, seria necessário demolir quase totalmente a parte antiga e histórica de Paris.
Ao longo dos últimos oito anos, tivemos oportunidade de levar alunos da graduação e pós-graduação da Universidade Federal do ABC para visitar prédios antigos e abandonados que foram ocupados por movimentos de moradia. Essas visitas foram motivadas pela necessidade de aproximar nossos formandos da realidade da área central da cidade e também das dificuldades enfrentadas pela população de baixa renda para fazer valer seu direito constitucional à moradia.
Durante esse tempo, foi possível acompanhar as iniciativas de limpeza, manutenção, adaptação e recuperação dos edifícios que estavam abandonados e que constituíam um verdadeiro passivo ambiental na cidade, locais que foram transformados pelo esforço dos moradores. Essas iniciativas praticamente não contaram com o apoio financeiro e técnico do poder público. Considera-se que a tragédia recentemente ocorrida enseja a reversão deste quadro, no sentido do apoio técnico e financeiro para a qualificação dos prédios antigos, de forma abrangente e de qualificação dos prédios ocupados pelos movimentos de moradia de forma emergencial.
Além disso, considera-se que são de inequívoco interesse público as políticas voltadas para o estímulo e apoio, tanto para a manutenção preventiva quanto para a recuperação e adaptação do nosso patrimônio edificado.
No caso de São Paulo, por exemplo, isto envolve grande parte das edificações da área central da cidade. Quando a população beneficiária da iniciativa é vulnerável em múltiplas dimensões, esta política assume contornos especiais: inclui a criação de linhas subsidiadas de financiamento, em alguns casos a fundo perdido, para que se façam as obras de qualificação, adaptação, recuperação e melhoria.
Em linhas gerais, essa política inclui a revisão de normas e leis, que precisam melhor contemplar a questão específica de adaptação e melhoria de edificações existentes, na medida em que é absolutamente inviável a aplicação de critérios de novas edificações em processos de qualificação de edificações existentes. Inclui ainda a ampliação do esforço de experimentação e pesquisa, considerando a pequena prioridade dada à área de manutenção preventiva e recuperação predial.
É grande o potencial e também o risco envolvido na iniciativa de vistoria dos prédios ocupados pelos movimentos de moradia em São Paulo. O fato de já termos 28 mil famílias na iniciativa de bolsa aluguel aguardando uma solução definitiva para suas moradias e, ainda, de contabilizarmos mais de 15 mil pessoas em situação de rua evidencia a inviabilidade de processos de remoção dos moradores desses prédios. A remoção pode desencadear riscos ainda maiores que aqueles aos quais essa população vulnerável já está obrigada a vivenciar.
É evidente a importância de uma abordagem que busca a identificação de possibilidades de qualificação gradativa das condições de moradia e de segurança destes prédios. O processo precisa ser gradativo, precisa contar com o apoio técnico e financeiro do poder público, e é fundamental que haja transparência e humildade para reconhecer que não temos uma larga experiência acumulada na melhoria da qualidade e da segurança de edificações existentes, ainda mais neste contexto específico de grande vulnerabilidade e conflito social.
Ricardo de Sousa Moretti é Engenheiro civil, professor titular da Universidade Federal do ABC, aposentado, com atuação no LabJuta- Laboratório de Justiça Territorial, Labgris- Laboratório de Gestão de Riscos e do Programa de Pós Graduação em Planejamento e Gestão do Território. Foi pesquisador e professor do IPT- Instituto de Pesquisas Tecnológicas do Est. São Paulo e da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da PUC Campinas.
Por Giorgia Cavicchioli e Matheus Moreira, especial para Ponte
A estudante negra, que prefere não ser identificada, conta que, quando passou em publicidade e propaganda na Faculdade Cásper Líbero, na cidade de São Paulo, esperava se deparar com algum episódio racista quando pisasse naquele espaço — que, até poucos anos, era quase que exclusivamente branco, como todo o ensino superior do Brasil. “Por ser uma faculdade elitista, eu imaginei que sofreria algo”, diz. O que ela não esperava é que o racismo partisse de uma professora.
Durante uma aula, em 22 de março, folheando o álbum da Copa do Mundo de uma aluna, a professora comentou que na Croácia “só tem gente bonita” e, diante das imagens da seleção da Nigéria, disse que “queria saber como esse aqui faz pra pentear o cabelo, deve ser um ninho”, segundo o relato de alunos. No final da aula, a aluna e seus colegas procuraram a professora para questionar essa e outras falas dela que consideravam discriminatórias. Durante a conversa, a professora negou que fosse racista, disse que não havia racismo no Brasil (“tem até um outro negro na Cásper”) e ainda pôs a mão no cabelo da jovem, alegando “curiosidade”.
O episódio foi levado à direção da Cásper Líbero pelo coletivo de alunos Africásper. Nesta semana, a faculdade demitiu a professora, que não teve o nome divulgado. “Após analisar os apontamentos relatados pelo corpo discente e ouvir as partes envolvidas, a Faculdade Cásper Líbero optou pelo desligamento do docente por uso de expressões e atitudes inadequadas. A Faculdade reforça que repudia qualquer atitude de conotação discriminatória e preconceituosa, seja no espaço público ou privado”, afirmou a direção da faculdade, em nota divulgada nesta quinta-feira (26/4).
‘Um lugar que não é seu’
Episódios como esse têm se mostrado comuns no ambiente universitário, revelando o racismo dos mais escolarizados. Segundo dados obtidos pelo G1 junto à Secretaria Estadual da Segurança Pública de São Paulo, o estado registrou, entre 2016 e 2017, um caso de injúria racial em instituições de ensino a cada cinco dias.
O problema demora a ser percebido porque “parte da população entende que isso não deveria acontecer, porque o universo é composto por pessoas de nível de escolaridade mais elevado”, segundo Jefferson Mariano, doutor em desenvolvimento econômico, analista socioeconômico do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), professor universitário e homem negro.
Porém, com o ingresso de mais jovens negros nas universidades e faculdades — de acordo com o Ministério da Educação, desde que a política de cotas virou lei, em 2012, 150 mil estudantes negros ingressaram em entidades de ensino superior no País entre 2013 e 2015 —, a busca dos brancos por defenderem privilégios de raça se torna mais explícito. Na cabeça de muitas pessoas, segundo Mariano, “o negro passa a ocupar um lugar que não é seu”.
Mariano lembra que, no início da carreira, enfrentou casos explícitos de preconceito. “Lecionei no interior de São Paulo em cursos de Administração e já cheguei ouvir afirmações racistas de alunos, foi uma situação bastante complicada. Em turmas de economia, muitos alunos achavam que não havia o menor sentido discutir inserção do negro no mercado de trabalho, por exemplo”, conta. “No meu mestrado tive um problema sério. No fim do curso, uma das minhas notas sumiu. O professor errou, mas foi à secretaria questionar a minha índole. A minha sorte é que a secretária localizou meus trabalhos nos arquivos. O professor não se desculpou.”
Comentários racistas feitos pelo aluno Gustavo Metropolo, da FGV (à direita) | Foto: reprodução
Ainda assim, os ataques racistas no ensino superior são apenas mais um dos vários obstáculos enfrentados por quem, para chegar ali, teve que matar vários leões pelo caminho. “O fato de um menino negro conseguir completar o ciclo do ensino fundamental é um ato heroico”, afirma o professor, para quem “o negro fica sempre com a sensação de que está no lugar errado”. De acordo com estudo do IBGE, realizado em 2015, a porcentagem de jovens negros entre 18 e 24 anos que chegaram até a universidade era 12,8%. Entre brancos na mesma faixa etária a porcentagem é de 26,5%. Números que mostram, portanto, que o acesso de negros ao ensino superior ainda é abaixo da média.
Para um estudante negro chegar ao ensino superior, ele precisa, primeiro, sobreviver emocionalmente às outras etapas do ensino. “O negro sente o racismo na sua vida escolar desde o primeiro dia de aula. Já comentei que o pior lugar para um negro estar, aos sete anos de idade, é na escola. Não há lugar mais hostil”, afirma o pesquisador, que hoje leciona na Faculdade Cásper Líbero e na Saint Paul Escola de Negócios.
‘Racistas vão ter que pagar’
“Achei esse escravo no fumódromo! Quem for o dono, avisa!”, disse um aluno branco, Gustavo Metropolo, estudante da FGV (Faculdade Getúlio Vargas) ao se referir a um colega negro. A frase foi compartilhada em um grupo do WhatsApp com uma foto de João Gilberto Lima. O estudante soube do ocorrido por parte da própria coordenação do curso de administração pública, do qual faz parte. Ao saber o que tinha acontecido, João registrou boletim de ocorrência no 4º DP (Consolação), por injúria racial.
Segundo João, ele sabia desde o princípio que tinha que denunciar o caso formalmente. “Fiquei chocado com o que tinha acontecido, mas o meu maior sentimento foi o de indignação por aquilo estar acontecendo no ambiente da FGV”, afirmou o estudante à Ponte. O agressor foi suspenso por três meses da universidade pela comissão de ética. Atualmente, a congregação da instituição analisa se dará outras punições.
João Gilberto Lima, aluno da FGV | Foto: arquivo pessoal
Segundo João, ele já tinha sofrido outros casos de racismo na vida, mas que nada tinha sido parecido com o que sofreu na universidade. Para ele, é preciso que as pessoas que sofrem com o racismo “tenham a coragem de denunciar”. “Eu não tenho a utopia de achar que as pessoas vão deixar de ser racistas. Eu não vou mudar a cabeça das pessoas nem o que elas pensam, mas a partir do momento que elas externalizarem isso, elas vão ter que pagar por isso conforme está previsto na lei”, conclui.
O racismo à brasileira vem muitas vezes disfarçado de brincadeira. “Aqui no Brasil, as pessoas ofendem a dignidade da população negra dizendo que se trata de piada, mas isso se trata de racismo”, analisa o professor Tiago Vinícius dos Santos, doutor em direitos humanos pela USP (Universidade de São Paulo).
Para que casos de racismo sejam investigados dentro da academia, o professor afirma que é preciso criar um órgão responsável para apurar denúncias. “É fundamental criar um centro de diversidade ou um departamento das universidades”, afirma. Sobre estudantes vítima de racismo, Santos afirma que é preciso que os alunos façam uma denúncia no campo institucional e também nas delegacias. Dessa forma, ele afirma que as denúncias não irão só penalizar aquele que praticou alguma ofensa, mas também irão servir como objeto de reflexão para as instituições.
‘Odeio pretos e pardos’
O que não faltam são instituições acadêmicas precisando refletir sobre seu papel. Em março, um professor do IFSP (Instituto Federal de São Paulo) publicou nas redes sociais um texto, que mais tarde classificaria como mal compreendido, em que proferia uma série de ofensas e concluía: “Odeio pretos e pardos”. Alunos do instituto fizeram a denúncia à diretoria e à reitoria do Instituto e organizaram pelo menos duas manifestações para cobrar a exoneração de José Guilherme de Almeida, que lecionava no curso de Geografia. O Instituto emitiu nota afirmando repúdio ao racismo e prometendo apurar o caso.
Professor apagou perfil nas redes sociais após a publicação | Foto: divulgação/IFSP e reprodução/Facebook
Dois estudantes da instituição relataram perseguições. José Guilherme teria reprovado Christopher de Lima Machado e Fábio Santos Souza em duas disciplinas apesar de ambos os estudantes terem notas suficientes para passar de ano. De acordo com Christopher, “ele faz questão de falar que os bandidos periféricos roubaram todos os Iphones que ele já teve”.
“Tive aulas com ele e é torturante”, diz Fábio. “Ele não aceita confronto de alunos contra as coisas que ele falava em aula. Sempre que havia confronto em sala de aula, os alunos negros sofriam represálias, mesmo que entre os envolvidos também tivessem brancos”, afirma. A Ponte tentou entrar em contato com o professor para que ele se posicionasse sobre os casos e as acusações, mas ele não respondeu às tentativas da reportagem.
Não é fácil para as instituições de ensino superior entenderem as questões relacionadas ao racismo. Em junho de 2017, a estudante de jornalismo Thamires Menezes ouviu de um professor da Universidade Tiradentes (Unit), em Aracaju (SE), que ela não poderia ser âncora de jornal por conta do cabelo afro, estilo black power, que ela usava na época. Thamires denunciou o caso, mas afirma que colegas, professores e direção da universidade começaram a ver a vítima como culpada. O acontecimento levou a aluna a abandonar o curso.
“Ainda estudei durante o período passado, fazendo meus trabalhos sozinha, mas vi que estava pagando faculdade em vão. O professor continua lá, a coordenadora também. O caso no Ministério Público foi arquivado e minha advogada sumiu. O processo nunca aconteceu e pronto. Fui lá tranquei o curso. O pior foi sair do estágio. Eu amava trabalhar lá”, lamenta.
Thamires Menezes e o cabelo que “não servia” para o telejornalismo | Foto: arquivo pessoal
Agora, a estudante mudou de estado para terminar o curso. Há três meses, ela foi para Salvador e afirma que pretende voltar aos estudos no próximo período. Mesmo com o sofrimento que passou, ela afirma que encara tudo como um “novo desafio”.
Sobre o episódio, a Unit afirma que não houve racismo. “O ocorrido se deu em uma dinâmica comum de sala de aula, quando os alunos e professor discutiam sobre resumos da área de Comunicação que abordam acerca da postura do profissional em bancadas de telejornais, sem expressar qualquer opinião pessoal sobre a matéria. (…) Portanto, ficou constatada a inexistência de qualquer manifestação depreciativa, forma de discriminação ou preconceito, por qualquer motivo (sexo, idade, cor, preferências, convicções, etc.) por parte do professor em relação a aluna em questão”, afirma a universidade em nota. A Unit diz que “os fatos foram apurados internamente (pelos setores de Ouvidoria, que registra as reclamações, e Comissão de Ética, que atua na apuração das denúncias envolvendo docentes e discentes), pela autoridade policial de Sergipe e outros órgãos estatais, no âmbito de suas competências processuais”, sem que o crime fosse constatado.
Luta e vitória
Para Larissa Mendes, aluna da Escola Politécnica, unidade da USP que em 121 anos de existência formouapenas sete mulheres negras, o preconceito se manifestou de formas menos diretas. “Dentro da Poli o racismo se dá quase que da mesma forma que o Brasil como um todo: ninguém é diretamente racista”, conta. “Eu nunca ouvi nenhum comentário evidentemente racista, mas, sempre que eu descia do circular na Poli, as pessoas iam me empurrando, porque na cabeça delas eu não faço parte do perfil de pessoas que desce no ponto de ônibus da maior faculdade de engenharia do país.”
Larissa faz parte da Poli Negra, coletivo que impulsionou a discussão sobre cotas na faculdade, obrigando os alunos de lá a enxergarem que havia uma questão racial a ser debatida. “Até então, por mais que um ou outro aluno pobre e negro falasse alguma coisa, as pessoas achavam normal olhar pros lados e só ver gente igual a eles: brancos, ricos, vindos de bons colégios”, diz. Realizando diversas reuniões com os centros acadêmicos, a Poli Negra conseguiu impulsionar um plebiscito que, em 2017, apontou que 70% dos alunos apoiavam as cotas. No mesmo ano, quando o Conselho Universitário da USP aprovou a implantação de cotas sociais e raciais. “Foi uma vitória imensa”, conclui.
O artista gráfico e músico baiano Rogério Duarte em retrato não creditado do início dos anos 1960. Foto: arquivo pessoal.
Um retrato multifacetado do artista gráfico, poeta e compositor Rogério Duarte. É o que revela a mostra Marginália I, em cartaz até 26 de agosto no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-RJ). Composto por 70 itens, entre pôsteres cinematográficos, capas de discos e livros, poemas, cartazes, fotografias e documentos pessoais, o mosaico diverso e multicolorido reunido no MAM atesta o quanto, a partir da segunda metade do século 20, a trajetória de Rogério tornou-se indissociável de alguns capítulos históricos para a cultura do País. Não por acaso, estão na mostra peças emblemáticas, como o cartaz do filme Deus e o Diabo na Terra do Sol, obra-prima do Cinema Novo de Glauber Rocha, lançado em 1964, e capas de obras fonográficas divisoras, como os álbuns homônimos lançados por Caetano Veloso (1967) e Gilberto Gil (1968), dois embriões do tropicalismo enquanto gênero musical.
Unanimidades à parte, Marginália I é também um convite ao público para ir além do usual fetiche estético desses trabalhos consagrados. A mostra, que também contempla a publicação de um livro de mesmo nome (Editora MAM-RJ), amplia a compreensão sobre o artista e permite ao público fazer uma leitura mais diversa do que foi a tropicália. O movimento, circunscrito por muitos como mero fenômeno musical e não como uma ação coletiva, aglutinou outras frentes culturais para capitular uma série de convenções e estatutos que foram derrubados com a adesão e interlocução de outros grandes personagens, como o artista plástico Hélio Oiticica, o dramaturgo José Celso Martinez Corrêa, o poeta Waly Salomão e o romancista José Agrippino de Paula.
Com curadoria do designer gráfico alemão Manoel Raeder e colaboração do músico Diogo Duarte, que é filho de Rogério, Marginália I traz à tona registros esquecidos, como o material gráfico de Apocalipopótese, evento multimídia realizado pelo baiano na área externa do MAM carioca em 1968, e trabalhos que revelam outros interesses do artista, entre eles a estrutura metálica Musicúpula, espécie de teia geodésica que acolherá, em 12 de agosto, uma jam session com canções e temas instrumentais compostos por Rogério – aos 13 anos, ele descobriu a paixão pela música ao decifrar os acordes de um cavaquinho e, aos 17, tornou-se devoto das seis cordas do violão, com o qual compôs mais de 300 peças musicais.
Aos 76 anos, Rogério Duarte reside em Salvador. Com a saúde debilitada, ele preferiu não comparecer à abertura da mostra, realizada no final de junho passado. No entanto, pretende participar da jam session conduzida pelo filho Diogo, que deve reunir amigos de sua geração e antecederá o encerramento de Marginália I. Mesmo recluso, por ocasião da mostra, Rogério gentilmente falou à Brasileiros. Em princípio, as respostas ao roteiro de perguntas enviado ao mestre baiano seriam entregues por e-mail, mas chegaram à redação por meio de um arquivo de áudio em formato MP3, com o registro de sua voz grave e pausada. Entre outros temas, discorridos com extrema lucidez, Rogério também se opôs às interpretações rasas do tropicalismo. “Eu considero que essa é mais uma história mal contada da cultura brasileira. Houve vários tropicalismos e posso até ter sido um dos mentores do movimento, mas eu era muito mais engajado em sua totalidade, que incluía a música, a literatura, o cinema e outras coisas mais.”
O bode de Rogério com essa visão estreita disseminada, sobretudo com o culto tardio ao movimento na Europa e nos Estados Unidos, ganha tom enfático quando ele responde sobre como reagiu ao chamado “enterro da tropicália”, ato simbólico interpretado pelos amigos Caetano Veloso e Gilberto Gil no último episódio do programa Divino, Maravilhoso, apresentado pelos conterrâneos na extinta TV Tupi em 27 de dezembro de 1968, 14 dias após o decreto do AI-5. “Não tenho nada a ver com o parto ou com o enterro desse tropicalismo da mídia musical representado por Caetano e Gil. Eu estava no Rio de Janeiro (o programa era gravado na sede paulista da emissora) e nem soube do enterro. Muito tempo depois é que fui saber dessa atitude de ambos.”
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PAPEL, OFF-SET E REVOLUÇÃO – Seis clássicos do cinema nacional embalados com a grande arte de Rogério: “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, de Glauber Rocha (1964)
"O Desafio", longa-metragem de Paulo Cezar Saraceni (1965)
“A Opinião Pública”, documentário de Arnaldo Jabor (1966)
“Cara a Cara”, de Júlio Bressane (1967)
“Meteorango Kid, o Herói Intergalático”, de André Luiz Oliveira (1969)
“A Idade da Terra”, último filme de Glauber Rocha, que também teve trilha sonora assinada por Rogério
O artista gráfico Rogério Duarte, hoje, aos 76 anos (foto: Lara Carvalho)
Mas engana-se quem enxerga nesse depoimento um ranço do artista gráfico com relação a seus pares de movimento. Ao tratar da recente polêmica que envolve a apresentação da dupla baiana em Israel, prevista para acontecer em Tel Aviv no dia 28 deste mês de julho, e que tem sido alvo de insistentes pedidos de boicote em defesa da Palestina, Rogério desconversa e sai em defesa das liberdades individuais dos velhos amigos. “Não tenho opinião a respeito. Isso faz parte da carreira de Gil e Caetano, que devem ter seus motivos, que procuro respeitar, e não os julgo.”
Ao longo da gravação, a voz que surge dos alto-falantes beira o gutural e expressa opiniões difíceis de divergir. Em alguns momentos, ela paira em silêncio para, depois, desencadear fragmentos de uma história complexa e tortuosa. Poucos artistas personificam como Rogério o misto de perseverança e desencanto experimentado pela geração que viveu no Brasil dos anos 1960 e 70. Em meio à crescente movimentação de oposição ao golpe civil-militar de 1964, Rogério tornou-se alvo preferencial da ditadura. A resposta dos militares à estética de choque desencadeada pelos tropicalistas veio de forma atroz e com a mesma eficácia da repressão destinada a núcleos de resistência – o Centro Popular de Cultura, os CPCs da União Nacional dos Estudantes (UNE), e instituições como a Editora Vozes, reduto católico de intelectuais, como Leonardo Boff e Frei Betto, que defendiam a chamada Teologia da Libertação, de orientação marxista. Aliás, duas frentes de colaboração regular de Rogério na primeira metade dos anos 1960, ocasião em que ele migrou da Bahia para o Rio de Janeiro: no CPC, ele foi artista gráfico do núcleo de propaganda; na Editora Vozes, atuou como diretor artístico.
O exercício de atividades como essas, consideradas subversivas pela ditadura, fizeram com que Rogério, ao lado do irmão, o engenheiro Ronaldo Duarte, protagonizasse um dos primeiros episódios que tornaram pública a prática crescente da tortura. A caminho da missa de sétimo dia do secundarista Edson Luís, morto por militares no restaurante estudantil Calabouço, crime que motivou a chamada Passeata dos Cem Mil, Rogério e Ronaldo foram presos em 4 de abril de 1968 e submetidos à tortura por uma semana. O episódio é relatado com amargo lirismo no capítulo intitulado A Grande Porta do Medo, do livro Tropicaos, lançado pela Editora Azougue, em 2003. Nele, Rogério relata como ele e o irmão, de maneira alternada, um observando o sofrimento do outro, foram submetidos a toda sorte de sadismos dos torturadores. “Os fios elétricos nas costas, na boca, nas axilas. Os fósforos apagados nas costas, o café quente derramado no sexo. É preciso não contar como se tudo tivesse acontecido. É preciso estar ali todo o tempo necessário, é preciso morrer de medo e regar a flor do medo que nascerá sobre o túmulo até a aparição do fruto, mesmo que seja o fruto dourado do ódio, porque as sementes… Que posso eu dizer das sementes ou que haverá o fruto e as sementes a não ser com a loucura de minha esperança?”, assim descreve Rogério, em Tropicaos, a visão do irmão Ronaldo sendo torturado.
Loucura e esperança foram consequências diretas da tortura enfrentada por Rogério, que não se furtou a denunciar o episódio para a imprensa do País e foi silenciado pela ditadura do general Médici com uma internação compulsória, entre 1969 e 1971, no Pavilhão Psiquiátrico do Engenho de Dentro, uma das três unidades fluminenses do assombroso hospício Pinel. “Houve uma brutal interferência, uma ruptura na minha vida a partir desse episódio, mas não deixei de viver ou trabalhar. Depois disso, continuei fazendo capas de livros para a Editora Vozes, até que tive de me refugiar da perseguição militar.” Outra breve pausa de silêncio e o sopro grave da voz de Rogério volta para revelar o local onde, vivendo na clandestinidade, mergulhou em uma busca esperançosa por elevação espiritual. “Eu tinha a mata do interior da Bahia como minha Sierra Maestra particular (Rogério faz alusão ao refúgio das tropas de Fidel Castro e Che Guevara nas cordilheiras cubanas). Foi na Serra da Violeira que me refugiei. Em minha vida, desde a infância, a busca espiritual sempre foi uma constante. Por uma questão de necessidade de sobrevivência, ingressei no movimento Hare Krishna e dele faço parte até hoje. Sou um estudioso da cultura védica.”
Essa faceta mística desencadeada por Rogério entre a segunda metade dos anos 1970 e a década seguinte, o fez questionar a funcionalidade de continuar exercendo a carreira de artista gráfico, ofício que, para ele, era atrelado a um contexto sociocultural combatido por forças nebulosas, que deram fim ao sonho de sua geração de construir uma sociedade mais justa e progressista. Forças que, segundo ele, ainda são recorrentes. “É impossível se desvencilhar de qualquer coisa que faça parte da nossa vida, a menos que a gente se desvencilhe da própria vida. Na verdade, não acredito que esse tenha sido um momento isolado. O Brasil é um País de muitos momentos sombrios e aquele foi mais um, que tocou profundamente a minha geração.”
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CALEIDOSCÓPIO – O universo multicolorido de Rogério, em capas de publicações e álbuns icônicos, como “Caetano Veloso” (1967).
O primeiro LP tropicalista de Gilberto Gil (1968)
“Cantar”, uma das joias da discografia setentista de Gal Costa (1974)
O álbum homônimo de Jorge Mautner, também de 1974, que traz o clássico “Maracatu Atômico”
“Lugar Comum”, segundo álbum em que João Donato solta a voz preguiçosa depois de mais de dez anos de música instrumental (1975)
Capa de “A Automação e o Futuro do Homem”, de Rose Marie Muraro, um dos trabalhos feitos por Rogério para a Editora Vozes
Exemplar da revista alternativa “A Flor do Mal”, um dos marcos da imprensa alternativa dos anos 1970
Edição da revista “Movimento”, publicação da UNE que tinha Rogério como diretor de arte
A voz de Rogério persegue agora as perguntas finais do roteiro. Hesitante, ele questiona: “Meu Deus, será que vai gravar? Vamos em frente, espero que esteja gravando”. O comentário precede a última questão, que aproveita o gancho da anterior para registrar sua opinião sobre a crescente onda de reacionarismo que, ironicamente, assola o País em pleno século 21, quase 50 anos depois de a geração de Rogério acreditar que tudo poderia ser divino, maravilhoso. Questionado se ele receia que essa retração, simbolizada pela eleição do Congresso mais reacionário desde o golpe de 1964, pode levar o País a reviver os dias trágicos da ditadura, Rogério conclui, pragmático, como a desafiar nossa capacidade de resiliência: “Não sei bem o que significa isso. Não participo muito desse tipo de discurso de padrões, reacionarismo/não reacionarismo. Acho que o buraco é mais embaixo, mas não tenho receios, porque acredito muito na lei da história. Se acontecer, é porque não houve meios de evitar. Então, se vier, teremos de enfrentar tudo novamente. Com o mesmo e até redobrado vigor.”
A mostra Lugares do Delírio, Idealizada originalmente pelo curador e então diretor cultural do MAR – Museu de Arte do Rio, Paulo Herkenhoff, foi colocada em pé pela psicanalista e curadora, Tania Rivera e pode ser experimentada no SESC Pompéia em São Paulo até primeiro de Julho de 2018.
A exposição é resultante de um trabalho de pesquisa cuidadoso e delicado com o objetivo de mostrar o quanto, o limite entre “loucura” e “razão” é, ténue.
O que há de delirante na arte e o que há de reflexão sobre a arte na loucura foram questões que orientaram a pesquisa. Outro objetivo foi romper o confinamento da produção dos pacientes psiquiátricos e discutir sua representatividade em paralelo, lado a lado, com a arte exposta em circuitos tradicionais de galerias e museus.
Para Tania “A arte parece sempre querer fugir à norma, ou seja, ao hábito e às regras que delimitam nossa realidade compartilhada. Ela abre janelas na vida cotidiana e nos convida a construir novos mundos”. “A intenção é colocar em suspenso a delimitação entre o normal e o dito ‘louco’. A arte e a loucura têm em comum a força de transformação da realidade”.
Lugares do Delirio apresenta aspectos da Psiquiatria Poética, do antigo “Espaço aberto ao tempo”, hoje denominado Instituto Municipal de Assistência a Saúde Nise da Silveira. A atuação de Lula Vanderley e sua equipe situa-se na intersecção entre arte e cuidado em saúde mental.
Razão, intenção, Expressionismo, imagens do neoconcretismo e delírio construtivo aparecem contaminados. Todos no mesmo barco, eles emocionam e trazem ar fresco à ideia de inclusão.
YoYo: tudo que vai, volta, coletiva Sesc Belenzinho, abertura em 5/5.
Com curadoria de Ricardo Ribenboim, é uma exposição de arte contemporânea feita para crianças, onde é possível interagir com as obras. A mostra parte do princípio de que a relação das pessoas com a arte promove um espessamento da experiência do cotidiano, fundamental em todas as idades. Os artistas participantes são: Dudi Maia Rosa, Franklin Cassaro, Guto Lacaz, Leandro Lima e Gisela Motta, Lia Chaia, Raul Mourão, Regina Silveira e Sandra Cinto.
Ismael Nery, ‘Autorretrato com Adalgisa’, s/d.
Ismael Nery: Feminino e Masculino, individual no MAM-SP, 8/5.
“Não é uma exposição para especialistas, embora esses possam ter o prazer de revisitar trabalhos já conhecidos. É uma exposição em que se revela um artista que, na sua época, teve a coragem de caminhar sozinho, descobrir-se e procurar um olhar que estivesse absolutamente sincronizado com o seu tempo, mas – incrível – não com os intelectuais de seu país”, pontua o curador Paulo Sergio Duarte.
Marcos Amaro, ‘Soft Landing’, 2016.
Marcos Amaro: Sobrevoo, individual no Centro Cultural dos Correios no Rio de Janeiro, até 24 de junho.
Artista multimídia, Amaro mostra exposição já apresentada em São Paulo. Com curadoria de Ricardo Resende, objetos construídos, transformados e desconstruídos compoem “um amontoado de coisas organizadas, sem deixar de evidenciar o equilíbrio precário das peças, esculturas e instalações em seu estado bruto”, pontua o texto da exposição.
Tatiana Blass, ‘Teatro Vitrine’.
Aproximações, coletiva na Galeria Celma Albuquerque, abertura 5/5.
A mostra reúne sete artistas de Minas Gerais e seis artistas do Rio de Janeiro. Já apresentada no Centro Cultural Laura Alvim no Rio de Janeiro, chega agora a Belo Horizonte. “Aproximações evoca acercamentos ou avizinhamentos. Traz inerente a idéia de espaço, sempre presente nas artes visuais e, especialmente, no âmbito da pintura. A história da pintura revela a sua intimidade com os mais variados conceitos de espacialidade surgidos ao longo dos séculos”, escreve a artista Zalinda Cartaxo, que participa da coletiva.
Christus Nóbrega, ‘Espada de São Jorge V e III’, 2013/2014.
Christus Nóbrega: Segunda Natureza, individual na Galeria Murilo Castro, prorrogada a partir de 5/5.
O artista Christus Nóbrega faz um recorte de suas pesquisas artísticas reunindo obras que possibilitam refletir sobre a história decorrente de nós mesmos, a partir do questionamento daquilo que nos propomos a criar como legado. Os trabalhos foram produzidos entre 2012 e 2016 e abarcam a investigação da imagem na interface com outros campos disciplinares, como a botânica, medicina e tecnologia.
Inúmeros artistas expoem na Cavalete. Foto: Divulgação
Foto Feira Cavalete, feira de fotografia no MIS, abertura em 5 e 6/5.
Fotógrafos independentes, galerias, editoras, livrarias e selos se reúnem para apresentar e vender fotografia em suportes e segmentos diversos: de impressão em papel algodão, roupas e acessórios a fotolivros; da fotografia de época à contemporânea; da fotografia documental e fotojornalismo à fine art.
Livros e cadernos do artista no projeto Estante. Foto: Reprodução/Facebook
Alex Ceverny: desenho, corpo e mente, individual na UNICAMP, até 31/5.
Inserido no Projeto Estante, que propoe a apresentação de livros e cadernos de artistas no Instituto de Artes da UNICAMP, Cerveny leva alguns de seus objetos para exposição e apreciação de alunos e público em geral, com entrada gratuita.
O maestro Lyrio Panicali em detalhe da foto impressa na contracapa do LP 'Nova Dimensão', Foto: Reprodução / Odeon
Especialmente àqueles que insistem no reducionismo do desinformado epíteto “música de apartamento” ou “música elitista”, falaremos hoje de um disco essencial para compreender que a bossa nova foi muito além do banquinho e violão. Trata-se de um cinquentão moderníssimo, Nova Dimensão, álbum do maestro Lyrio Panicali e sua orquestra, lançado, em 1964, pela Odeon.
De ascendência italiana, nascido há exatos 108 anos (sim, hoje seria aniversário dele) em Queluz, na divisa entre São Paulo e Rio de Janeiro, Panicali iniciou sua formação de regente em 1922, aos 16 anos de idade, no Instituto Nacional de Música. Aos 26, como maestro e pianista, ingressou na Companhia Negra de Revistas, trupe liderada pelo ator negro Wladimiro di Roma, que marcou época no Teatro de Revista. Discorrer sobre o que depois aconteceu a Lyrio Panicali, como maestro e como compositor, demandaria um sem número de parágrafos. Vamos aqui, então, nos atentar à importância capital de Nova Dimensão.
A despeito do espectro sombrio imposto pelo golpe civil-militar de 31 de março, o ano de 1964 foi dos mais luminares para a música popular brasileira, tanto na seara da canção quanto nas produções instrumentais. O principal agente propagador desse ambiente fértil, claro, era a recém-criada bossa nova. A partir do canto sussurrado de João Gilberto e do horizonte de infinitas possibilidades harmônicas impostas pelo violão divisor do baiano, a geração impactada pela bossa partiu em busca de outras grandes experimentações.
Capa do LP “Nova Dimensão”. Foto: Reprodução / Odeon
Não por acaso, muitos dos álbuns lançados depois de Chega de Saudade (1959) expressavam, desde o título, um singelo adeus ao saudosismo musical e mantinham olhos e ouvidos fixos no para-brisa do futuro. Caso de Novas Estruturas, de Luiz Carlos Vinhas, Flora é M.P.M (sigla para Música Popular Moderna), de Flora Purim, A Nova Dimensão do Samba, de Wilson Simonal (que contém sete arranjos de Panicali), Samba Esquema Novo, de Jorge Ben, Samba Pra Frente, do Samba Trio e A Hora e a Vez da M.P.M., do Rio 65 Trio de Dom Salvador.
Quando lançou o álbum Nova Dimensão, partindo das direções exploradas por combos inaugurais do samba-jazz (ou bossa-jazz), como o Tamba Trio, o Bossa Três, o Sexteto de Jazz Moderno e o Sambalanço Trio, outra experimentação no formato big-band, com repertório bossa nova e de grande relevo, já havia sido feita por Panicali no álbum A Revolução, da Orquestra Brasil Moderno (Odeon, 1963).
Na ocasião, o compositor Chico Feitosa não poupou elogios ao maestro: “De um gênio muito se fala, muito se elogia. E Lyrio Panicali é um gênio, que pouco se fala, que pouco se elogia. Um homem que transmite poesia, beleza e técnica dentro de suas criações harmônicas. Só posso dizer que tudo nasce num som diferente dos acordes deste gênio que é Lyrio Panicali”, referendou Feitosa na contracapa do LP.
Enfatizando o frescor do “irresistível impulso modernista” de Panicali – frase expressa por Gilberto Miranda no verso de Nova Dimensão – o repertório do álbum trouxe releituras instrumentais extraídas da nata do cancioneiro bossanovista. Estão nele, entre os 12 temas, Consolação, de Badden Powell e Vinicius de Moraes, Batida Diferente, de Maurício Einhorn e Durval Ferreira, Balanço Zona Sul, de Tito Madi, Lobo Bobo, de Carlos Lyra e Ronaldo Bôscoli, e Deus Brasileiro, dos irmãos Paulo Sérgio e Marcos Valle.
Há quem insista também na tola teoria de que a bossa nova teve vida efêmera e que ela foi capitulada por consequência dos adventos da jovem guarda e do tropicalismo. Provando o contrário, álbuns como A Revolução e Nova Dimensão fizeram escola e resultaram em obras lançadas, nos anos seguintes, sob a batuta de outros grandes regentes como o primoroso O Som Espetacular da Orquestra de Carlos Piper (Continental, 1965), do regente argentino, e álbuns que se apropriavam de sucessos radiofônicos, exemplo de Big Parada, do trompetista Formiga e Sua Orquestra (Elenco, 1970), e Explosivo! (London, 1970), do maestro Nelsinho.
O maestro Lyrio Panicali em foto de arquivo pessoal extraída da página oficial mantida no Facebook por sua sobrinha, Rosa Maria Panicali.
Por essas e outras, não somente hoje, no dia de seu aniversário, faz-se necessário preservar e reverenciar a memória desse maestro fundamental chamado Lyrio Panicali. Sobre ele, um certo Tom Jobim deu o seguinte depoimento, em 1963: “Este movimento atual que se vê na música popular brasileira deve muito a Lyrio Panicali. Não é de hoje que o meu querido maestro vem lutando pela evolução de nossa música popular. Entre seus muitos fãs havia um que se chamava Heitor Villa-Lobos. Lyrio põe muito amor em tudo que faz e por isso mesmo é muito procurado. Sempre foi um boa praça e me recebeu de braços abertos quando bati a sua porta em busca de ensinamentos. E, talvez por dar muito de si aos outros, recebeu esta graça: alma aberta ao que é novo e o talento necessário para ser Lyrio Panicali”
Boas audições e até a próxima Quintessência!
Originalmente publicado no site da revista Brasileiros em 26.6.2014
Kudzanai Chiurai
Genesis [Je n'isi isi] III
2016
Pigment inks on premium satin photo paper
Image: 130 x 140 cm; Paper 142.4 x 152.4 cm
Edition of 10
A África é lembrada pelo sofrimento. Colonização, pragas, fome, segregação, inúmeros adjetivos de um continente abalado. Não obstante, parece importante observar que há movimentos na arte contemporânea que vem buscando, de forma notavelmente expressiva, trazer a tona séculos de identidade.
Nessa toada, a cidade de São Paulo recebe sua maior exposição de arte contemporânea africana, com 18 artistas do continente e dois brasileiros afrodescendentes. Em cartaz no CCBB, Centro Cultural Banco do Brasil, no centro da cidade, as montagens somam 90 obras, espalhadas pelos andares do prédio.
Ao todo, quatro eixos temáticos dão vida à exposição: Ecos da História, Corpos e Retratos, O Drama Urbano e Explosões Musicais. No último andar da exposição, por exemplo, há uma sala cuja montagem remete à cena musical popular nigeriana com afrobeat, dividido por sua vez em: Poder, Sexo, Riqueza e Religião.
Davido feat. Olamide “The Money”
Diferente da Europa e América do Norte, muitos dos países do continente africano encontram dificuldades para levar a conhecimento artistas e suas obras. As poucas oportunidades e baixos investimentos têm mantido muitos às margens. É o caso de Ibrahim Mahama, de 31 anos, nascido em Gana. Para expor em galerias ao redor do mundo, Mahama venceu adversidades que vão da própria falta de infraestrutura da cidade em que vive à ausência de curadores, críticos, galeristas e mesmo colegas artistas profissionais.
Alfons Hug, curador e idealizador alemão, enfatiza que a exposição tenta mostrar a força que está por trás da realidade histórica africana, de divisões raciais, tribais e econômicas e que aparece nas obras do atual panorama artístico.
Ibrahim Mahama Non-Orientable Nkansa 2017 (screen res) 3
Para ele, artistas como Mahama são essencialmente aquilo que se deve buscar para compreender a importância do intercâmbio cultural direto e simbólico entre os países do continente e o Brasil. “O que conta, em última instância, é arte e seu artista. Ibrahim, por exemplo, além de ser provavelmente o único artista profissional de sua cidade [Accra], ele também é muçulmano. E isso é incrível considerando a história de muçulmanos com a arte contemporânea”, apontou o curador. Ele faz referência à preceitos religiosos e conservadores que tem colaborado, nos países de maioria musulmana, com a sua entrada tardía na arte contemporânea.
Afro-brasileiros
Entre os 20 artistas em exposição no CCBB estão dois brasileiros, afrodescendentes, Arjan Martins e Dalton Paula. Ambos foram convidados pelo curador, para uma residência, no bairro Brazilian Quarter, na Nigéria, onde pesquisaram e desenvolveram trabalhos. Esta região foi povoada por africanos e seus descendentes que, após a abolição legal da escravatura no Brasil, deixaram o país e voltaram para a Nigéria.
Arjan Martins – Fotos da fotógrafa: Ayesca Borenstein Ariza
Há, nas obras de artistas brasileiros grande contribuição cultural dos países do continente, em especial a Nigéria, dada a experiência de ambos no encontro com a ancestralidade durante seus estudos.
Para Hug, este é um bom momento para expor a pluralidade africana. “Existe maior valorização da arte africana e afro-brasileira, porque a presença negra nessa cultura vem aumentando em quase todos as áreas”, disse o curador.
A cada edição, a Bienal de São Paulo tenta introduzir novas formas de pensar o evento. Se, em décadas passadas, parte do quebra-cabeça consistia em atrair artistas estrelados do mercado internacional, hoje o desafio, é criar conceitos inovadores.
Nesta edição, tudo será feito a partir de um “sistema operacional” alternativo, segundo o curador geral, o espanhol Gabriel Pérez-Barreiro. A mostra se organiza com doze projetos individuais, além das mostras coletivas idealizadas por sete artistas – curadores.
A ideia não é nova, já foi experimentada, em uma outra versão pelo crítico, historiador e curador, Walter Zanini, na mesma Bienal de São Paulo, em 1981. A diferença é que desta vez a participação de artistas-curadores é mais explícita e metódica.
Ao escolher artistas interessados nos seus próprios contextos criativos, Pérez – Barreiro evita armar a exposição por seções, vetores ou qualquer outra denominação e se lança numa experiência curatorial múltipla. Uma variante desse formato também funcionou na Bienal dos Jovens de Paris, em 1969, sob a regência de Jacques Lassaigne, concebida sob o signo de comunas com trabalhos em equipe e obras coletivas, surgidas na esteira de Maio de 1968, que se mimetizavam com o trabalho do curador geral. Além da colaboração dos artistas na curadoria, a participação no evento francês contou com Frank Popper e sua Oficina do Espectador, onde todos os visitantes também se tornavam curadores, dando à Bienal Jovens de Paris forte sentido experimental. Infelizmente a mostra francesa fechou suas portas em 1985.
O tema da 33ª Bienal de São Paulo, Afinidades afetivas é retirado do livro de Goethe, Afinidades Eletivas, de 1809 e refere-se também à tese Da Natureza Afetiva da Forma na Obra de Arte, de 1949, do crítico Mario Pedrosa.
Os artistas escolhidos, com projetos comissionados pela exposição, vão de Tamar Guimarães a Vânia Mignone, passando por Alejandro Corujeira, Bruno Moreschi, Denise Milan, Luiza Crosman, Maria Laet, Nelson Felix. Bienais gostam de resgatar obras relacionadas a um fato político social polêmico. O trabalho da vez é de Siron Franco, um dos nomes recorrentes da Bienal, que retorna pela sétima vez ao Ibirapuera, agora com o polêmico Césio/Rua 57, sobre o acidente ambiental, que aconteceu em Goiás com centenas de vítimas, todas contaminadas pelas radiações emitidas por uma cápsula com césio-137.
Entre as exposições/homenagens estão as do guatemalteco Aníbal López, do paraguaio Feliciano Centurión e da brasileira Lúcia Nogueira, residente no Reino Unido.
Pintura, Cérebro e Rosto [Painting, Brain, and Face], 2017 - Sofia Borges.
Com percepção colaborativa, esta edição convida artistas-curadores que trabalham juntos pela primeira vez. Além dos doze projetos individuais, eles são responsáveis pelas exposições coletivas. Alejandro Cesarco se concentra em artistas que trabalham sobre tradução e imagem; Antonio Ballester Moreno propõe diálogo de sua obra com referenciais sobre história da abstração e relação com a natureza, pedagogia e espiritualidade; Claudia Fontes ativa questões envolvendo relações entre arte e narrativa; Mamma Andersson faz reflexão sobre figuração na tradição da pintura, desde a arte popular à arte contemporânea; Sofia Borges prepara pesquisa sobre a tragédia e a forma ambígua; Waltércio Caldas desenvolve reflexão histórica sobre a forma e a abstração e Wura-Natasha Ogunji enlaça artistas que trabalham com proximidade e compartilham questões sobre identidade e a diáspora africana. Ainda compõem a equipe da 33ª Bienal, Alvaro Razuk (arquitetura), Lilian L’Abbate Kelian e Helena Freire Weffort (educativo), Fabiana Werneck (editorial) e Raul Loureiro (identidade visual).
A 33ª Bienal de São Paulo poderá ser conferida de 7 de setembro a 9 de dezembro de 2018, no Pavilhão Ciccillo Matarazzo, no Parque Ibirapuera.
Como pesquisadora, tenho evitado comentar ou escrever sobre tragédias ou desastres, sobretudo por duas razões.
A primeira é porque essas ocorrências, em sua maioria, raramente são inevitáveis e tampouco desconhecidas, como o desabamento do prédio no Largo do Paissandu, que servia de moradia precária para mais de 140 famílias. Falar sobre um desastre, sobre uma tragédia, significa dizer que a esperamos chegar.
Essas tragédias têm sido construídas ao longo da história, resultado da iniquidade social que define todo o resto da história. A especulação imobiliária, com seus projetos de gentrificação, e a omissão do Estado empurram as famílias mais pobres para as áreas com maior risco de ocorrência de desastres relacionados a enchentes, inundações e escorregamentos de terra.
Para se ter uma ideia, de acordo com os números da Secretaria Nacional de Proteção e Defesa Civil, SEDEC, órgão do Ministério da Integração Nacional, nos últimos cinco anos, o país reconheceu uma média anual de 2.400 desastres. E aqui estão somente aqueles que demandaram decretação de situação de anormalidade, como situação de emergência ou estado de calamidade pública. O número de ocorrências, portanto, é muito maior.
Os desastres e as tragédias, como a do Largo do Paissandu, acontecem todos os dias, mas seguem invisíveis midiática e politicamente.
A segunda razão que tem me levado a evitar o tema das tragédias e dos desastres é a atmosfera típica de um cenário de grande apelo midiático e, consequentemente, político, ainda mais em ano eleitoral.
Enquanto as vítimas são atendidas em tendas ou barracas improvisadas por voluntários e instituições humanitárias, e o Corpo de Bombeiros e a Defesa Civil trabalham em busca de sobreviventes, muitos veículos de comunicação querem uma resposta que poderia ser dada depois. Os primeiros momentos de uma tragédia demandam esforços para reduzir as perdas, os danos e o sofrimento das vítimas. Isso porque os culpados estão nas linhas anteriores. São todos aqueles que contribuem para a construção social dos riscos e pelas estatísticas dos desastres e das tragédias.
Com medo das perguntas da imprensa e da crítica da opinião pública, os políticos recorrem ao recurso mais perverso para a blindagem de sua imagem: o dedo em riste na cara de quem já perdeu tudo e ainda assim é apontado como culpado pela tragédia social que culminou com o desabamento do prédio.
Enquanto boa parte do mundo tenta humanizar o atendimento às vítimas, aqui os políticos preferem andar na contramão, rasgando protocolos, agendas e marcos globais adotados ou ratificados pelo país.
O velho recurso da culpabilização das vítimas não apenas foi usado pelo governador Márcio França, como pelo seu adversário, João Doria. A pior rota de fuga.
Poderia associar a fala dos dois à pressão que uma tragédia gera nas instituições que deveriam evitá-la, mas essa pressão não pode ser responsável pelos tropeços ético, moral e humano.
França e Doria avançaram um sinal e entraram pela porta dos fundos, não da tragédia, mas de um mundo que não pode mais tolerar, sobretudo num cenário de dor, a perpetuação da violação de direitos por parte de quem não os garantiu.
França e Doria tentaram desenhar o perfil dos moradores de ocupações irregulares, mas ambos apenas conseguiram desenhar o perfil dos gestores que são e prometem ser. Nenhuma pressão seria suficiente para afastar um gestor da função que ele deve assumir em cenários de desastres e tragédias. A eles não faltaram apenas preparo e lucidez, faltou humanidade.
Esqueci de escrever lá no começo, mas a atitude ultrajante de alguns gestores públicos é a terceira razão que me faz evitar escrever sobre desastres e tragédias. Recordar a fala deles me dá a certeza de que a tragédia ainda não começou para a maioria das vítimas do Largo do Paissandu.
Jornalista das áreas de ciência e meio ambiente. É professora titular do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Metodista de São Paulo – UMESP, pós-doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Planejamento e Gestão Territorial da Universidade Federal do ABC-UFABC, onde atua como pesquisadora dos laboratórios de Gestão de Riscos – LabGRIS e de Justiça Territorial – LabJuta. É doutora em Saúde Pública pela USP, mestre em Comunicação Científica e Tecnológica e especialista em Comunicação Aplicada à Saúde, ambos pela UMESP.