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Jorge Hue, um senhor arquiteto

O arquiteto Jorge Hue, no dia em que completou 90 anos de idade, em sua casa, no Rio. Foto: Marcos Pinto

“Minha desconfiança vem de um comentário que Oscar Wilde fez no prefácio de O Retrato de Dorian Gray. Ele diz mais ou menos o seguinte: ‘Quando fala de si, a pessoa é sempre complacente ou absolutamente corrosiva’. Mas, se você estiver em uma ilha deserta, deitado na areia, sem a necessidade de uma esteira de vime, como cantou Vinicius em Tarde em Itapoã, mas deixando o pensamento correr e fluir, a vida surge de maneira caleidoscópica. Tudo que você fez e sentiu vem de maneira muito mais nítida.”

A observação de Jorge Hue, na manhã desta sexta-feira, 6 de agosto de 2013, dia em que ele completa 90 anos, vem de forma voluntária, e sucede o comentário inicial de que devíamos passar por momentos cronológicos para traçar um perfil que desse conta de sintetizar, em poucas páginas, sua irrepreensível trajetória profissional. Mas Hue, que engavetou o diploma de sociólogo para fazer história como arquiteto, não quer mesmo holofotes, tampouco voltar-se para o próprio umbigo para cantar os louros do passado.

Movido por essa tônica dominante, com impressionante serenidade e conhecimento, Hue começa a discorrer sobre uma série de questões. E assim conduz a conversa do começo ao fim, com uma sutileza que torna suas façanhas quase imperceptíveis. Ele não fala explicitamente sobre si, mas diz muito sobre quem é. De quebra, oferece lições valiosas de sabedoria. De maneira que a conversa a seguir, como as obras de seus pares Oscar Niemeyer e Lucio Costa, que assina o projeto do moderno edifício onde ele vive no Parque Guinle, seguirão estruturalmente despojadas e objetivas. Sem grandes intervenções, dispensemos, então, o supérfluo. Afinal, menos sempre será mais, como escancarou Mies van der Rohe, um de seus mestres.

Desejo
As únicas coisas que eu gostaria que continuassem sempre comigo: a lucidez, a generosidade e a coragem. Seria muito difícil que alguém como eu pudesse ter tido sete filhos, 16 netos e 11 bisnetos – aliás, o 12o está prestes a chegar! –, sem que tivesse o tempo todo presente em minha vida o sentido de coragem e generosidade. A coragem deve estar em tudo. Ela não é um otimismo besta, pelo contrário, é conforto permanente com tudo.

Romana – Banheiro com box, chuveiro, vaso, bidê e cama de massagem, de inspiração romana. Rio de Janeiro, 1962

Ensaios e uma carta
Tenho uma grande quantidade de textos sobre os mais variados assuntos, que jamais publiquei, e tinha também a pretensão de publicar um livrinho de ensaios nesta data, mas não os concluí. Só que a qualquer momento posso escrevê-los, ou simplesmente me deitar no chão e ditar essa coisa toda. Posso fazer um devaneio e gravar. Por que não? São nove ensaios e, por fim, uma carta aberta ao neto de um dos meus bisnetos. Os ensaios são sobre coisas práticas, como a caneta, o lápis, a barba, para não encher o saco de ninguém. Pequenas digressões sobre objetos e divertimentos. O primeiro ensaio é sobre a revitalização do tempo. Outro se chama A Barba do Faraó. Me interesso muito pela história da barba, tenho um livro chamado Thousand Beard. Aliás, depois de uma escravização de anos e anos fazendo a barba, descobri, há três, o quanto é confortável não fazê-la (Hue sempre usou bigode). Outro ensaio se chama A Lua e a Roda. Mas por que a Lua? Porque a roda não surgiu como uma coisa intuitiva, e ela é totalmente intuitiva. Basta dizer o seguinte: os astecas, os maias e os incas não tinham rodas. E, se você observar a lua cheia, lógico deveria intuir a roda. Claro que as bigas romanas, e mesmo as egípcias, já tinham rodas, mas isso não quer dizer que ela se consolidou. A África até então desconhecia a roda. A Ásia ainda não tinha a roda.

Três mulheres e o amor
Antes da carta que deixarei para meu tataraneto, haverá um ensaio chamado As Três Mulheres. São elas: Nossa Senhora, mãe de Jesus Cristo, Maria Madalena e Madame de Warens (Françoise-Louise de Warens), que foi quem iniciou Jean-Jacques Rousseau no amor. Ela foi, para ele, a descoberta do saber junto com uma coisa sublimada, que é a ideia de um sexo mais ligado à natureza, ao saber, à delicadeza, ao toque, ao cheiro, ao calor, à proximidade, à identificação de ideias. O caminho peripatético, toda uma série de revelações tão extraordinárias para Rousseau, que, por uma série de razões, quando, depois de três anos idílicos, teve de abrir mão de tudo isso e voltou para ela, somente dois anos depois, ele encontrou Madame de Warens casada e infeliz. Foi aí que ele perdeu totalmente sua segurança, que perdeu o Paraíso”

Mutações do mundo
Noventa anos é uma vida razoável. Já vivi e vi tantas coisas que não tenho a mínima perspectiva do que acontecerá em 180 anos. O galope que nós fomos conduzidos pela evolução da informática nos coloca numa descartabilidade total. Mesmo coisas estáveis, feito a arquitetura, passam a ser presas de vicissitudes que ninguém pode programar. O Edifício Manchete, por exemplo, por ser do Oscar (o arquiteto Oscar Niemeyer), é tombado pelo IPHAN. Não podem modificar nada, então, sob certo aspecto, ele é um condenado. Sob o ponto de vista de segurança, tecnologia, falta de terminais de computadores, velocidade nos elevadores, vulnerabilidade das esquadrias, má situação de todo o sistema de ar condicionado e a própria doença do tempo, que corrói determinados processos construtivos de concreto, ele não é perene. Perenes são as pirâmides do Egito. Até mesmo os objetos têm em si o micróbio da própria morte.

Turma de notáveis
Li um livro muito interessante, Flores Raras (Flores Raras e Banalíssimas, de Carmen L. Oliveira, recém-adaptado para o cinema por Bruno Barreto), que conta a história da Elizabeth Bishop e da Lota de Macedo Soares. Quando foi pensado o Aterro do Flamengo, evidentemente entrou gente muito boa no projeto, não só a Lota, mas Roberto Burle Marx, Reidy (o arquiteto Affonso Eduardo Reidy), que fez o projeto do MAM, Lucio Costa, Alcides Rocha Miranda, gente da melhor qualidade. O aterro poderia ter sido uma pista, mas foi transformado em um jardim incrível. Faço aqui também justiça a Luiz Emygdio de Mello Filho, que não só era médico, era, sobretudo, um botânico extraordinário. Com o Roberto ele trabalhou na escolha minuciosa de espécies de convivência. O jardim em si é um monumento de acertos, pois ele tem o micróbio da própria transformação, é uma coisa viva. Temos palmeiras e babaçus que morrem depois dos 40 anos. No final da vida, as palmeiras, por exemplo, dão um pendão maravilhoso, morrem, e naturalmente são substituídas, pois, na sequência de séculos, aquelas sementes que caíram vão germinando outras palmeiras.

Obra em retrospectiva – As fotos e desenhos reproduzidos aqui integram o livro Jorge Hue (editora Contracpa). Lançada em 2010, reúne imagens de trabalhos, testemunhos de profissionais e de amigos sobre o arquiteto

Lucio Costa
Foi chamado um primeiro arquiteto (para a construção do prédio onde mora Jorge Hue). Esse camarada tinha um projeto que era uma série de prédios afrancesados. Os herdeiros sentiram a impropriedade do gesto e pediram uma consulta ao Lucio, que disse: ‘Isso aqui vai se transformar em uma grande senzala do palácio’ (o Palácio Laranjeiras, que fica dentro do Parque Guinle e é a residência oficial do governador do Rio de Janeiro, embora, o atual, Sérgio Cabral, não tenha optado por morar lá). E Lucio criou essa coisa inédita, de fazer uma série de prédios, todos embebidos nos princípios básicos do Le Corbusier – pilotis, lajes soltas e independentes, quase a pré-ideia de um loft, com grandes áreas de depósitos onde afloram colunas de sustentação, um brise e uma clautra de tijolo, que filtram as aventuras do Sol. Os únicos pontos de determinação de uma exigência técnica são os pontos hidráulicos. Fora isso, você pode tirar todos os outros elementos do apartamento que ele vira um espaço único. Uma ideia absolutamente extraordinária. O prédio foi construído de 1943 a 1948. O projeto inicial previa sete edifícios, mas foram construídos apenas três. O empreendimento imobiliário foi um fracasso, as pessoas ficavam completamente tontas de morar em um espaço único como esse.

Improvisos no Planalto
A primeira vez que fui convidado a trabalhar no Palácio do Planalto, durante o governo Costa e Silva, me deparei com a seguinte cena: uma sala relativamente longa, com teto acachapado, vidro nas laterais, vidros no fundo e como paisagem a savana! Havia um sofá de madeira e umas espécies de bancos laterais, que lembravam aqueles troncos de cones nos quais os elefantes são chamados, no circo, para por um pé em cima e levantar a tromba. Com a pressa de inaugurar o Palácio do Planalto – e o governo tinha farto dinheiro na mão, mas não importava móveis verdadeiros –, réplicas de peças do Mies van der Rohe foram colocadas lá. Tudo feito com metal dourado e parafuso. Rachavam com o tempo. Cópias de fundo de quintal, feitas a martelo.

Marx, Burle Marx
Minha casa foi invadida por uma série de policiais, às três horas da manhã. Estavam à paisana, mas todos armados. Houve uma coleta de livros, tiraram uma série de títulos suspeitos de minha biblioteca. Um deles, do Burle Marx, imediatamente chamou a atenção deles. Disseram: “Por favor, o senhor tem a necessidade de nos acompanhar até o Ministério da Aeronáutica”. Tratado com correção, fomos ao aeroporto Santos Dumont, no Comando do Espaço Aéreo. Entrei, por volta de 5 horas, quando vi, sem poder trocar uma palavra com eles, dois amigos meus, marido e mulher. Fui levado para outra salinha, onde fui interrogado. Respondi a várias perguntas, mas fui levado de volta a minha casa.

Substituição – O arquiteto foi chamado a São Paulo para complementar um apartamento que estava apenas no esqueleto, após a morte do autor do seu projeto. “O cenário era catastrófico, lamacento e pinguento”, lembrou ele. O resultado ficou assi

Memória do cárcere
Passado algum tempo que Jorge Eduardo (Jorge Eduardo Hue, filho do arquiteto, que militava contra o regime militar) vivia clandestinamente, outros amigos estavam desaparecidos. Um rapaz muito simpático, filho de um diplomata que teve contato com Jorge Eduardo, foi torturado e mencionou meu nome. Eu tinha ido levar o projeto do Palácio do Planalto, que era meu, do Bernardo (o arquiteto carioca Bernardo Figueiredo) e do Roberto (o paisagista Roberto Burle Marx). Quando voltei para casa, vi um sujeito estranho, de costas, fazendo pipi, e fui parado por um mundo de meganhas. Pedi apenas que eles me deixassem estacionar o carro na garagem, mas não pude entrar em casa, porque ela estava cercada. Soube depois que ela tinha sido invadida e os telefones cortados. Fui encapuzado e me fizeram ficar de cócoras no banco de trás de um carro de passeio. Paramos em um quartel na Rua Barão de Mesquita – coisa que soube depois, somente quando saí. Encapuzado, fui levado a uma câmara frigorífica e obrigado a tirar toda minha roupa. Absolutamente nu, me deixaram sozinho. Um frio e um calor danado, que variava de 5 a 30 e tantos graus. Com uma frequência regular, eles vinham em grupos de três, fazendo sempre as mesmas perguntas ordinárias: nome, nacionalidade, nome da mãe, nome do pai… Pouco depois as perguntas foram adensando até chegar à situação em que mudou o tratamento. Tudo foi ficando pior… A namorada do meu filho chamada de puta, Jorge Eduardo chamado de viado… Quando era deixado sozinho ouvia gritos, uivos, lamentos, murmúrios e som de pancadaria. No final de todo esse interrogatório um desses camaradas me deu um tremendo safanão. Passaram-se horas e horas até que vieram outros três, que me tiraram de lá e me fizeram vestir um macacão azul. Nessa altura, com o frio que estava sentindo, o macacão veio bem a calhar. Eles, então, me conduziram para um dos corredores até um lugar onde o chão era úmido, com cheiro de urina. Vi deitada no chão, nua e gemendo, uma moça de 17, 18 anos. Eu a observava por baixo do capuz e percebi que ela estava muito frágil. Choramingava, pedia um médico. Fui levado por dois camaradas uniformizados até a minha cela. Uma cela retangular. Havia nela uma pia, à direita um vaso sanitário rachado e um cano na parede, um pseudochuveiro… Aí é que está a coisa imoral desse negócio. Esses rapazes, que gratuitamente me tratavam com a maior estupidez, eram apenas jovens em serviço militar. Não tinham nenhuma convicção política e não estavam ali defendendo bandeira alguma. Eram movidos por pura estupidez.

Liberdade?
Vieram de novo me interrogar. Trouxeram uma pranchetinha em tamanho A4, um lápis-tinta, uma cor meio roxa, indelével, e o papel era pautado, em folhas soltas. Um extenso questionário. “Quem é De Gaulle?”. “Até que ponto está ligado ao Partido Comunista?”. De novo citaram nome dos meus amigos, queriam saber das minhas ligações com o menino, que, depois de levar choques elétricos, me denunciou. Meu posicionamento era nenhum, tanto quanto tenho agora. Só ajudei pessoas de organizações. Respondi, copiosamente, às perguntas. Escrevi, escrevi… Quando terminei, veio um meganha que me pediu os papéis e o lápis para eu não ter como me suicidar (risos). Depois disso, uma sessão de fotografias. De frente, de perfil, com numeração… Era quase noite quando me levaram para o mesmo banheiro e a menina ainda estava lá, sentada na mesma posição. Eu, descalço e de macacão, novamente de capuz. Veio, então, um camarada que fez uma série de perguntas e disse: ‘Lendo seu questionário encontramos um depoimento sincero, e o senhor vai ser liberado’. Cerca de dois meses depois, recebi um telefonema de alguém dizendo que era do Exército e que eu precisava ir buscar algumas coisas que eram do meu interesse. Preocupado, falei com meu cunhado, que é advogado: ‘Olha João, estou indo ao Ministério da Guerra’ (o episódio aconteceu em janeiro de 1972, em pleno governo Médici que, ironicamente, contratava os serviços de Hue). Entrei numa sala, tinha lá uns sacos e uma grande quantidade de livros meus, entre os quais, o do Burle Marx (risos).

Perfeccionismo – Desenho com minúcias de detalhes de um salão no Rio Janeiro, feito no ano de 1956

Quatro rodas
Demorei muitos anos para me sentir no direito de comprar um carro conversível. Comprei um de segunda mão, mas muito conservado. Tinha sete filhos, e eles é que tinham a preferência. Para me dar o direito de comprar o carro fiz um estudo de dois anos, a fim de saber quantos dias perfeitos existiam no Rio de Janeiro, dias nos quais eu poderia decretar feriado nacional. Eles deveriam ser antecedidos e sucedidos por outro dia perfeito, se não não poderiam ser considerados perfeitos. Encontrei 11 dias por ano. Foi então que me dei o direito de ter o carro. Nesses dias perfeitos eu saía de manhã, chegava até um determinado ponto da Barra, e, quando via a pedra da Gávea do lado oposto, voltava para casa. Nunca tive um objeto em toda minha vida que eu tenha gostado tanto quanto gostei desse carro, um MG conversível, de 1958. Fiquei com ele por dez anos, de 1975 a 1985. Quando o vendi tive certeza absoluta de que estava envelhecendo.

Além da vida
Para uma pessoa de 90 anos a vida desfila, de maneira impressionante. E, é claro, sempre valeu a pena viver. As coisas se fundem: alegrias, tristezas, tudo que você conquistou. Mas não preciso de data alguma para celebrar essas coisas. A partir de um determinado momento elas estão sempre presentes. E não há nenhum sentido mórbido nisso. Pelo contrário, até mesmo minha amiguinha morte é tão alegre quanto as coisas boas da vida.

Depois de quase três horas de uma aprazível conversa, intercalada por cerca de 20 ligações telefônicas de familiares e amigos ansiosos por parabenizar Hue pelos 90 anos, a entrevista chega ao fim. O encontro foi testemunhado pelo cientista político Paulo Sérgio Pinheiro, fundador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo – USP, membro da Comissão da Verdade, e Presidente da Comissão da ONU para a Síria. Personagem de capa da edição de agosto de 2012 de Brasileiros, Paulo Sérgio é amigo incondicional de Hue desde a década de 1960. Foi ele que, em um gesto de coragem e lealdade, acolheu, em São Paulo, Jorge Eduardo, o filho do arquiteto, perseguido pelo governo Médici. Em dia tão especial, Paulo Sérgio fez questão de pegar a ponte-aérea para visitar o grande amigo e sua inseparável companheira, Anna Luiza, espécie de Madame de Warens de Hue – muito embora, claro, ele tenha tido sorte maior do que a de Rousseau.

Letieres Leite, guardião da Mãe África

O maestro baiano Letieres Leite empunha uma flauta transversal. Foto: Fernando Eduardo

* Da coleção de excelentes entrevistas e reportagens do Marcelo Pinheiro

O talento do maestro baiano Letieres Leite talvez encontre páreo somente em sua determinação. Aguerrido, como o cerca de 1,1 milhão de africanos que, escravizados, desembarcaram em Salvador e fizeram de sua terra natal um dos terrenos mais férteis para a música do Brasil, Letieres não poupou esforços para impor suas convicções artísticas. Aos 20 anos, sozinho, deixou a capital baiana, onde estudou Artes Plásticas na Universidade Federal da Bahia (UFBA), para se aventurar em uma casa de shows no Sul do País. Saxofonista e flautista, ao chegar em Florianópolis, em 1981, com o diminuto cachê recebido pelas apresentações, teve de encarar a difícil rotina de, por quase dois meses, dormir embaixo de um viaduto. Pouco depois, na capital gaúcha, viveu dias melhores. Integrou um respeitado grupo da cena instrumental da época, a Banda de Nêutrons, e foi além. Autodidata na escrita musical, foi convidado a assinar arranjos para a Orquestra Sinfônica de Porto Alegre.

De volta a Santa Catarina, em 1985 embarcou em uma viagem para a Espanha com um grupo de músicos. Quando os amigos voltaram para o Brasil, decidiu ficar por lá, pegou um trem e foi parar na Áustria. Em Viena, onde Beethoven e Mozart fizeram história e Strauss e Schubert nasceram, Letieres aprimorou seus conhecimentos musicais. O ingresso em renomados conservatórios veio depois de, no carnaval vienense, encantar a população local e o prefeito da cidade ao apresentar arranjos de escola de samba para peças sinfônicas. Depois de breves temporadas musicais na Inglaterra, França e Suíça, voltou ao País em 1994.

Também inspirado pelo vanguardismo de maestros que marcaram a história da UFBA, como o alemão Hans-Joachim Koellreutter e os suíços Walter Smetak e Ernst Widmer, Letieres tem pleno domínio intelectual de sua arte, mas nem por isso abre mão do despojamento e da irreverência visíveis nas apresentações com a Orkestra Rumpilezz. Com esse mesmo misto de informações, o maestro conversou com nossa reportagem, por telefone, enquanto se deslocava para um compromisso em Olinda. Na primeira quinzena deste mês, ele esteve na cidade histórica pernambucana escrevendo arranjos para uma nação de candomblé chamada Xambá, que há quase 90 anos mantém viva a tradição da cultura bantu. Bem-humorado, o regente batuqueiro brinca que está se sentindo aluno das crianças de cinco, seis anos, que intuitivamente sabem bem mais do que ele sobre a riqueza do Xambá. Com a palavra, Letieres Leite, Guardião da Mãe África e maestro aprendiz.

CULTURA!Brasileiros – Você estudou Artes Plásticas na UFBA no final dos anos 1970. O que o levou à decisão de abandonar a pintura e se dedicar à música?
Letieres Leite – Desde pequeno queria ser pintor, e até meus 20 anos tinha certeza de que era isso que ia fazer da vida. Como aluno de Artes Plásticas, pude participar dos seminários livres de música. Comecei a entrar nessa onda (Letieres tocava saxofone e flauta transversal) e deu tudo muito certo. Logo passei a me apresentar em um evento organizado pelos alunos, a Mostra de Som Universitário contra a Ditadura, e o jogo virou.

O seminário era nos moldes daquele criado pelo Koellreutter no começo dos anos 1960? Em 1980 ainda havia no campus da UFBA a mesma efervescência cultural que marcou a gestão do reitor Edgar Santos?
Edgar fez uma grande revolução, não só na UFBA, mas em toda a Bahia. Transformou a música, o teatro, a dança e a cultura de Salvador, porque fez um investimento altíssimo para que tudo isso acontecesse. No campo da música, trouxe da Europa mestres como Koellreutter, Widmer e Smetak. Quando comecei a frequentar os seminários, Koellreutter já tinha partido do Brasil, mas tive a sorte de pegar os últimos anos do Bastianelli (o maestro italiano Piero Bastianelli) e do Smetak na UFBA. A faculdade ainda respirava aquele ambiente dos anos 1960, tanto que, em 1980, participei do primeiro Festival de Música Instrumental da Bahia, que teve (o guitarrista)
Hélio Delmiro e (o saxofonista) Victor Assis Brasil como convidados.

Seu talento musical teve influência familiar?
Não mesmo. Aliás, até eu resolver tocar não sabia de ninguém da minha família que fosse envolvido com música. Depois é que fui descobrir que um tio-avô foi maestro de uma orquestra de Petrolina, em Pernambuco. Apesar de ele também tocar saxofone, não tive o menor contato com ele.

Antes de participar dos seminários você já tinha algum conhecimento dos instrumentos?
Aos 12 anos, em Salvador, tive a sorte de estudar em um colégio público chamado Severino Vieira, que tinha uma orquestra afro-brasileira criada pela pesquisadora Emilia Biancardi. Entrei nessa orquestra e toquei flauta e sax durante dois anos. Foi o primeiro contato com a música afro-brasileira que tive na vida. Uma experiência tão forte que ficou comigo até hoje. Foi lá também que tive os primeiros contatos com professores de música que eram mestres populares e que me ensinaram a tocar percussão. Um deles, Mestre Moa do Katende, com quem tenho contato até hoje e para quem até fiz uma composição, me deu uma consciência muito forte sobre essa herança musical, algo que serviu como um subsídio para que, depois, eu pudesse entender a força dessa música e quisesse estudá-la. Acho que o começo da Rumpilezz, ou seja, das matérias que quis desenvolver em relação à música afro, veio desse período de descobertas no colégio. Nos trabalhos que fiz na Europa esses elementos já estavam muito bem colocados em mim. Sempre tratei a música instrumental com essa intenção. Quando toquei com Paulo Moura em Montreux, em 1992, o som já era bem parecido com o que faço hoje.

Vocês tocaram juntos no festival de jazz?
Sim. Uma das músicas que apresentei para o Paulo era um frevo, chamado Saideira, e a segunda parte tinha um ijexá em que eu fazia a percussão. Paulo foi um grande incentivador das minhas ideias, porque também gostava da combinação do sopro com a percussão.

Ele fez parte da geração de músicos que, nos anos 1960, explorou matrizes africanas, como os maestros Moacir Santos e Abigail Moura, da Orquestra Afro-Brasileira, e grupos como Os Ipanemas…
Exatamente. E foi uma feliz coincidência eu ter me reencontrado com ele em Montreux – fui aluno do Paulo, em 1984, quando morei em Porto Alegre – porque essa reaproximação fez com que eu insistisse na ideia de improvisar música brasileira por meio desse formato, de percussão e sopro, que me levou ao conceito da Rumpilezz.

 

Enquanto educador, para além da questão musical, mas também do conhecimento da ancestralidade africana, como você desenvolve a formação dos músicos?
Como disse, a estética musical da Rumpilezz surgiu bem antes de a orquestra existir. E todos eles sabem que esse conceito veio também da compreensão de que em muitos países a influência musical da diáspora negra tem organizações próprias, com muito rigor, algo que nós, no Brasil, ainda não tínhamos desenvolvido bem.

Faltavam métodos de aprendizado por aqui?
Sim. E fui entender a falta desse rigor por aqui quando passei a pesquisar a música de Cuba, que também veio da diáspora africana, tem a mesma clave que existe na música daqui, mas é diferente da nossa, por causa das combinações étnicas que aconteceram no Brasil e na maneira como executamos essas mesmas referências. No Brasil, até bem pouco tempo atrás, não havia, por exemplo, a consciência dos subgêneros africanos, algo que os cubanos e os músicos de jazz americanos começaram a desenvolver no final da década de 1940. Quando fui estudar na Europa é que, por conta própria, passei a fazer minhas anotações, partindo, primeiramente, do que eu já sabia desde Salvador. Foi na Europa que comecei a entender que a forma estrutural de toda música derivada da diáspora tem modelos semelhantes de estruturação e rigor. Os estudos em Viena permitiram que eu organizasse as barras de compassos, a duração das notas, o tal “fechamento europeu”, coisas que ainda não eram concebidas teoricamente para a sutileza rítmica que há na música que veio parar por aqui com a diáspora africana.

Até então, sobretudo com o trabalho de maestros como Moacir e Abigail, essas ações eram isoladas em iniciativas de registro, mas não na construção de métodos de ensino.
Acho que esses maestros criaram soluções para que os músicos que viessem depois deles combinassem a seção rítmica e os outros instrumentos com maior tranquilidade. Veja, por exemplo, que nas músicas do Moacir – e digo isso porque tive a oportunidade de estudar seu repertório – os músicos conseguem tocar a anotação afro porque ele cria fórmulas em que a influência percussiva conversa com o piano, com o contrabaixo. Abigail Moura também pensava assim, mas trazia a música em uma essência muito mais próxima das matrizes africanas do que do jazz.

Para além da música instrumental e do samba, essa influência também é muito presente em nossa canção popular.
Sim. É um privilégio de quem trabalha com a música brasileira. Veja o caso da bossa nova: tive a oportunidade de estudar o violão do João Gilberto e percebi que, nele, mesmo que tudo seja organizado de outra forma, também existe essa clave da diáspora. João não atrasa ou adianta a melodia ao bel-prazer. Ele interfere na batida de seu violão justamente porque percebe onde a clave africana está acontecendo. João é alguém que sabe que essa população foi tirada de suas origens na marra, por meio de um grande holocausto, como assim considero, mas que também acredita que essa tragédia construiu algo complexo, tão bonito, que tem de ser respeitado. Quando criei o conceito do disco A Saga da Travessia e tive de pensar nos navios negreiros que ancoraram na costa brasileira, criei também uma imagem de alento. Fantasiei que eles chegavam aqui com o júbilo de que não seriam completamente destruídos, como se pudessem prever: “Chego aqui quase destruído, mas meu descendente vai ser Pixinguinha, meu descendente vai ser Jackson do Pandeiro, meu descendente vai ser Batatinha”. A ideia do Travessia para mim, é justamente propor um júbilo, enaltecer a possibilidade de, em meio à tragédia, poder criar uma arte que influenciou a música das Américas. O jazz, o blues, o samba e até o tango, todos esses gêneros vieram da diáspora.

A Saga da Travessia foi lançado seis anos após o primeiro trabalho da Rumpilezz. Esse longo hiato trouxe distinções entre os dois trabalhos?
Para mim, esse álbum é uma evolução natural da ideia do primeiro, que era bem mais didático. Todos os arranjos e execuções das composições deste novo disco ficaram completamente em sincronia com essa ideia de clave africana e da exploração de seu poder da forma mais consciente possível. Consegui fazer com que os trombones e os trompetes, por exemplo, tocassem em sincronicidade com a percussão, ritmicamente amalgamados. Neste novo trabalho, não tive a menor preocupação de parecer didático. Utilizei, por exemplo, toques de compasso par que foram transformados em ímpar. Senti uma liberdade composicional inédita, tanto no aspecto harmônico quanto nas melodias. A diferença fundamental entre o primeiro disco da Rumpilezz e este segundo vem justamente dessa liberdade. Acho que outro fator central é que, desde o começo, tive um mote muito claro, a questão da travessia atlântica da diáspora, algo que deu um sentido ideológico para as composições desse novo disco.

Mesmo não lidando com o formato na Rumpilezz, você colabora com vários artistas da canção. Como é, por exemplo, sua relação com a música de Gilberto Gil, homenageado por você em Professor Luminoso.
Não é à toa que chamei Gil de professor. Aprendi muito com ele. Na música popular brasileira há vários momentos em que a origem rítmica africana foi muito bem utilizada, mas o trabalho do Gil tem grande importância, para mim e para a Orkestra Rumpilezz, porque, nas coisas que ele faz, não existe apenas o aspecto rítmico. A música de Gil também traz formas de harmonia e melodia que assumem um caráter contemporâneo, uma intenção que coincide com meu desejo, porque, por mais que eu me baseie em elementos ancestrais que estão na música instrumental, minha ideia também é fazer música contemporânea. O ijexá, um dos toques que Gil recriou,
por exemplo, vem embalado na maneira toda especial de ele extrair o balanço do seu violão.

Como foi ter tocado com ele em São Paulo?
Tivemos a felicidade de fazer alguns concertos com ele no Sesc Pompeia. Nesses encontros a sensualidade que há na música de Gil ficou ainda mais evidente. Foram momentos muito felizes para mim, porque eu sempre soube que a música dele está direcionada para os mesmos conceitos que eu defendo. Por isso mesmo não hesitei em fazer essa homenagem para ele.

Aliás, esse encontro com Gil atesta outra faceta importante da Rumpilezz, a versatilidade da orquestra para dialogar com outros artistas…

Tenho o costume de aproximar a orquestra de compositores que impõem desafios rítmicos. Lenine, por exemplo, que já tocou com a gente, sempre gostou de brincar com os ritmos de Pernambuco e, a partir deles, fez construções interessantes. Estou em Olinda, na condição de aprendiz, e percebo o quanto ele defende a música daqui. Vi esse mesmo respeito com a música baiana quando me propus a desvendar o violão de Caymmi, que traz linhas de baixo e divisões rítmicas prontas e precisas. A aproximação da Rumpilezz com o trabalho dele foi muito leve. Geralmente levo os arranjos para ensaiar com a orquestra e começo pela sessão rítmica para depois seguir para as partituras de sopro. Com as composições do Caymmi aconteceu algo interessante, porque nelas tudo está pronto e muito bem insinuado. Ao conhecer o violão do Caymmi descobri que ele tinha plena consciência da construção abrangente que há em sua música. Algo que parece vir de seu inconsciente, e que está evidente no resultado de tudo que ele fez. Algo bonito de perceber. Elementos que estão diretamente ligados ao melhor da música brasileira.

Aliás, vi há dois anos o show do projeto Goma Laca, que reunia músicas de influência afro compostas desde 1902, mas arranjadas por você e com execução de músicos contemporâneos. Tanto no show quanto no disco (ouça e baixe o álbum) é impressionante constatar a modernidade daquelas composições, quase seculares…
Exatamente. Tudo ali parece estar ligado com a música do presente, não é? Tanto que escrevi os arranjos para o disco, mas quando chegou a hora de tocá-los ao vivo coloquei todas as partituras em um envelope, guardei-as embaixo de uma mesa e falei para os músicos: “Vamos fazer tudo do zero”. Eles concordaram e conduzi os arranjos na base da onomatopeia, coordenando baixo, piano, canto e bateria. Claro, deu tudo muito certo. Fizemos ali uma espécie de vivência dessas composições.

Gostaria de encerrar a conversa falando da experiência de perpetuar suas ideias por meio da Rumpilezzinho. 
O projeto nasceu em uma escola de música que tive na Bahia. Quando percebi que havia um grande número de alunos que não podiam pagar pelas aulas, decidi criar esse projeto social. Alguns deles eram tão talentosos que, indiscutivelmente, tinham de continuar com a gente. Depois percebi que havia outra vertente ainda mais dependente de apoio: a de mulheres que desejam tocar instrumentos de orquestra popular. Quando estudei na Europa, toquei em orquestras de Berlim, de Viena, de Londres, e sempre havia mulheres tocando contrabaixo, bateria, sopros. Fiz então uma turma especial, que ganhou o nome de Rumpilezz de Saia. Chegamos a ter quase 40 meninas estudando música e formamos várias delas. Ainda tenho dificuldade de manter esses projetos, porque eles são tocados com apoio da iniciativa privada. Apesar de termos enfrentado um intervalo sem atividades por falta de apoio, a Rumpilezzinho continua na ativa até hoje. A metodologia é a mesma da orquestra, mas inclui instrumentos elétricos, como guitarra, teclado e contrabaixo. Seguimos firmes, de forma consistente.

MAIS
Ouça a íntegra do álbum A Saga da Travessia no canal do Youtube do Selo Sesc.
O CD pode ser comprado por meio da loja virtual do Sesc (acesse)

Gilberto Mendes, o navegante da vanguarda

Gilberto Mendes e a cadela Mel que, segundo ele, não o faz viajar ao exterior nem para tocar com a Filarmônica de Berlim. Foto: Luiza Sigulem

*Da coleção de excelentes entrevistas e reportagens de Marcelo Pinheiro!

A menos de um mês de completar nove décadas de uma vida intensa, o compositor Gilberto Mendes recebe nossa reportagem, em Santos. Arejada pelo vento que rasga as janelas  frontais, a pequena e aprazível cobertura onde ele mora fica a dois quarteirões de uma das praias da cidade litorânea que deu ao mundo o clube de futebol que eternizou o Rei Pelé. Gentil, Gilberto aguarda na soleira da porta. Esbanja lucidez, astúcia e bom humor. Predicados que jamais o abandonaram, nos mais de 70 anos em que ele vem atuando como figura luminar em sua arte.

Autor de obras centrais, pioneiro da música experimental aleatória no País e inventor de peças de teatro musical – com intervenções dramáticas, muitas vezes, aliadas ao canto, quase happenings –, Gilberto é também diretor artístico do festival Música Nova e um dos signatários do manifesto de mesmo nome, lançado em 1963. Carta de intenções do movimento, o texto foi publicado na revista Invenção, dos poetas concretistas Décio Pignatari e os irmãos Augusto e Haroldo de Campos.

Criado por Gilberto um ano antes da publicação do manifesto, o festival defendia uma ruptura com a música nacionalista, de forte acento folclórico, e acaba de completar 50 anos da realização de sua primeira edição. Ao se lembrar desses dias, o compositor abre um parêntese para esclarecer sua relação com o maior nome de nossa música clássica: “Até hoje, o Brasil não soube mensurar a importância de Villa-Lobos. Ele é associado à coisa do nacionalismo, mas o que importa é a modernidade da música que ele fez e não o fato de ele ter ritmos brasileiros em sua obra. Se ele tivesse nascido na Finlândia, obviamente, usaria ritmos finlandeses. A organização moderna da linguagem dele é o que realmente interessa e o brasileiro ainda não entendeu isso. Algo natural, porque ele esteve muito tempo nas mãos de nacionalistas, retrógrados, que queriam uma música com base no folclore. A inventividade é o que interessa no Villa-Lobos”.

Atento às manifestações de vanguarda do Pós-Guerra,  Gilberto integrou um grupo de maestros e compositores sintonizados com o ímpeto modernista que impregnou as artes a partir dos anos 1950. Entre eles, Régis e o irmão Rogério Duprat, Willy Corrêa de Oliveira, Júlio Medaglia e Damiano Cozzella. Nomes reincidentes entre as melhores produções da música clássica e popular lançadas no Brasil a partir da segunda metade do século 20. Enquanto Willy e Gilberto, amparados pelas experiências radicais da poesia concreta, subvertiam linguagens clássicas, Rogério e Júlio davam embalagem estética ao tropicalismo e à MPB, nos ousados arranjos que escreveram para jovens artistas como Gilberto Gil, Caetano Veloso, Gal Costa, Chico Buarque, Jorge Ben Jor e Ronnie Von que, submetido à batuta de Cozzella, lançou, em 1968, um irreconhecível álbum homônimo, psicodélico e cheio de experimentações, cultuado, hoje, por colecionadores.

Nascido em Santos, em 1922, Gilberto é filho do médico Odorico Mendes, que morreu quando ele tinha apenas 5 anos, e da professora primária Ana Garcia Mendes. Cresceu seduzido pelos encantos do mar, que desembocava na orla vizinha a sua casa, mas esteve breves períodos fora do País. Morou em Praga, na extinta Tchecoslováquia, onde aprofundou pesquisas e testemunhou os acontecimentos de 1968 (a Primavera de Praga). Nos Estados Unidos, lecionou na University Wisconsin-Milwaukee, no estado de Wisconsin, entre 1978 e 1979. Quatro anos mais tarde, voltou ao país para dar aulas na Universidade do Texas, em Austin. Gilberto acumula mais de 30 viagens internacionais para divulgar sua música, mas revela que jamais abandonaria a cidade natal. Vive com Eliane, sua companheira há mais de 30 anos, e a cadela Mel. Diz, sorridente, que deixou de viajar para o exterior com a mulher, há algum tempo, para não abandonar a fiel escudeira sozinha em casa: “Não saio de perto dela, nem se a Filarmônica de Berlim me convidar para executar uma peça minha!”, brinca, enquanto enche o animal de afagos.

 

Cinema, mar e música

Das memórias de infância, Gilberto lembra as frequentes idas com a mãe ao cinema e o fascínio dos primeiros filmes falados. Em 1992, quando se aposentou e defendeu seu doutorado na USP, onde passou a lecionar em 1980, proferiu um discurso em que ele se disse apaixonado por cinema, a ponto de pensar que se tornaria um cineasta em vez de músico. Mas que tipo de diretor teria sido ele? Experimental? Fiel à narrativa clássica? Meditativo, ele responde: “Antonioni, A noite”. Depois, fica em silêncio, divaga e diverge. Diz que queria mesmo era ser escritor. “Eu escrevia histórias e fazia o desenho para a capa dos meus livros. Reunia a turminha do bairro para contar histórias e as inventava na hora. Na maioria das vezes, tramas de detetives. Se eles desconfiavam quem era o assassino, eu dava um jeito de mudar o desfecho”, diverte-se.

Mas nas três horas que se seguem, ele volta a demonstrar obsessão pelo poder do cinema de contar belas histórias. Discorre sobre musicais alemãs da década de 1930,  a invenção do imaginário havaiano por Hollywood, cantarola sucessivas canções, com uma paixão explícita por elas, e até imita entusiasmado, repetidas vezes, o Carlitos de Chaplin. Muda de assunto e recorda, em seguida, que passeios furtivos pelo mar, em sua adolescência, também eram recorrentes: “Santos era um convite à vadiagem. Havia, na praia, duas canoas da minha família e não faltavam vagabundos pra colocá-las no mar comigo. Meu progresso musical poderia ter sido outro…”.

Para alguém que construiu uma trajetória como a dele, o comentário parece descabido. Não condiz com a reputação do compositor de obras cultuadas, como Motet em Ré Menor (música para coral, sobre poema de Décio Pignatari, originalmente intitulada Beba Coca-Cola, que inclui um arroto e teve o nome trocado para evitar problemas jurídicos), Santos Football Music (que propõe inusitadas intervenções da plateia e dos músicos, como gritos de gol, emissão de vogais e uma partida de futebol com direito a arbitragem e minitraves sobre o palco) e Nasce-Morre (música aleatória baseada em poesia concreta de Haroldo de Campos).

Humilde, Gilberto sugere que a iniciação tardia nos estudos musicais talvez tenha limitado seu potencial. Algo difícil de concordar, mas é fato que antes de embarcar na música, por dois anos ele insistiu que seria advogado. Cursou a Faculdade de Direito do Largo São Francisco, da USP, até ser intimado por Miroel, casado com sua irmã Míriam, a questionar os rumos que tomava: “Botei a mão no piano pela primeira vez aos 20 anos. Comecei idoso. Meu cunhado foi quem falou: ‘O que você está fazendo estudando Direito? Você não percebeu que é músico?’. Ele recomendou que eu entrasse para o conservatório de Santos e também no clube de regatas, para nadar e tratar da minha asma. Vim para cá e me meti com política, com o velho partidão. Fazia trabalhos de difusão de cultura, mas debaixo da cultura havia certo veneno marxista. Perdi muito tempo, até que Erasmo, meu irmão mais velho, me deu outro pito: ‘Você deixou de estudar Direito, largou a faculdade pela metade e fica se metendo nisso. Você não ia ser compositor?’. Aquilo doeu em mim. Eu havia acabado de ver o filme Os Sete Samurais, do Kurosawa, e estava admirado com o domínio do ofício daqueles extraordinários espadachins. Fiquei pensando que eu, ao contrário deles, não tinha domínio nenhum sobre mim”.

A intimação do irmão surtiu efeito imediato. O caminho que o consagrou vem sendo perseguido desde então, há sete décadas, e Gilberto ainda está em plena atividade. Autor de dois livros dedicados à música – Odisseia Musical – dos Mares do Sul à Elegância Pop/Art Déco (1994), que registra sua tese de doutorado, e Viver sua Música: com Stravinsky em meus Ouvidos, Rumo à Avenida Nevskiy (2007), ambos publicados pela Edusp –, ele tem outras duas obras na manga. Uma coletânea de artigos publicados em jornais, que será lançada em 2013 pela Editora Perspectiva, e um primeiro romance, ainda sem título, que acaba de ter carta branca da Editora Algol para ser publicado. Gilberto também está na reta final de uma maratona de filmagens que faz com o filho Carlos Mendes, cineasta, que em 2005 lançou o documentário Gilberto Mendes, uma Odisseia Musical. Carlos decidiu aproveitar a entrevista e saiu de São Paulo para visitar o pai. Revela que decidiu compor a série de 90 microfilmes pela preocupação de fazer perpetuar a obra do pai para as futuras gerações. Os filmes vêm sendo lançados, capítulo por capítulo, e estarão todos disponíveis no YouTube, a partir de 13 de outubro, quando Gilberto completa 90 anos.

Multidirecional como o vento, aberto como o oceano

Durante o encontro, Gilberto relembra muitas das histórias narradas nas sete horas de entrevistas registradas por Carlos. Vêm à tona os encontros com Olivier Toni e Claudio Santoro, maestros que exerceram grande influência em sua carreira, os seminários com Pierre Boulez e Karlheinz Stockhausen, em Darmstadt, na Alemanha, berço da neue musik, que atravessou o Atlântico com ele e ganhou aqui acentos brasileiros, sob o nome, literal, Música Nova. Mas essas são histórias para serem descobertas, minuciosamente, nas dezenas de filmes feitos por Carlos.

Questionado sobre sua relação com a música popular, Gilberto (que durante a entrevista insiste que é um compositor múltiplo, capaz de escrever até música ruim), faz deliciosas revelações de seus primeiros contatos com dois nomes que revolucionariam a canção no Brasil e no mundo: “Ouvi Chega de Saudade, pela primeira vez, no rádio. Fiquei intrigado, pois era uma música muito bonita e completamente fora do que se fazia na época. No mesmo dia, fui comprar o compacto que tinha Desafinado do outro lado. Fiquei tão entusiasmado com João Gilberto quanto fiquei com os Beatles. Quem trouxe o primeiro disco deles foi o Carlos, o compacto de I Wanna Hold Your Hand. Ouvi e achei aquilo tão lindo quanto ouvir Chega de Saudade, uma coisa muito nova em termos de samba e ali estava algo novo em termos de rock, que para mim era porcaria, uma deturpação do blues e do boogie-woogie. Eu tinha horror ao som da guitarra nos tempos do Elvis Presley. Quando ouvi os Beatles, pensei: ‘Mas que esquisito, eles estão conseguindo fazer essa maravilha com uma guitarra?!’”.

Ao discorrer sobre a bossa nova, Gilberto parte em defesa de Tom Jobim, atribuindo a ele a invenção formal do gênero: “O Jobim frequentou aquele grupinho da Orquestra Sinfônica Brasileira ligado ao Claudio Santoro, que queria uma nova música para o Brasil, e isso incluía uma renovação da canção. O Santoro tem peças tipicamente bossa nova, mas que são eruditas. A bossa teve influência direta do jazz, mas, indiretamente, ela herdou a harmonia francesa do Debussy. Algumas das minhas primeiras canções também tinham essa característica e as pessoas vêm me perguntar se eu fui influenciado pela bossa, mas ela nem existia quando fiz essas canções. Teoricamente falando, a bossa é 100% Jobim”.

Minutos antes da nossa partida, a última pergunta pede a Gilberto Mendes que defina, às vésperas de completar 90 anos, quem é Gilberto Mendes. Ele observa que o vento  acaba de mudar de direção e explica que as novas rajadas vem do sudoeste. Diz que é um pouco como o vento, multidirecional, outro tanto como o mar, aberto para o mundo, e conclui: “Gilberto Mendes, cidadão santista. Filho de um médico e de uma professora primária. Uma pessoa marcada pelo lugar onde mora. Sempre tive essa coisa oceânica, dos mares, pois o mar é também uma abertura para o mundo. Sonhava com o Havaí e até realizei meu desejo de ir para lá. Na minha infância, havia, no mínimo, dois navios por semana que iam para a Europa. As linhas espanholas eram as mais baratas e você ainda podia ir de terceira classe, pois era ali que estava o lado intelectual do navio. Os estudantes e os professores pobres, que iam fazer graduação ou mestrado na Europa. O fino do navio era a terceira classe. Os jornais daqui tinham as duas últimas páginas repletas de anúncios de agências internacionais de turismo. Uma delas, japonesa, se chamava Osaka, e eu ficava fascinado só de pensar no Japão. Outras, levavam à Finlândia, à Inglaterra. Lembro também de uma companhia italiana de navios que se chamava Blue Star Line, o que, para mim, soava como um belo nome de canção”.

Percepção natural para alguém como Gilberto, que enxerga a vida pela lente sensorial da música. Nos despedimos, com a promessa de voltar para comemorar seu centenário. Ele sorri, tímido, e diz: “Combinado!”.

Arqueologia da memória

O diretor Eryk Rocha, em retrato de Marcos Pinto feito para reportagem publicada na Brasileiros em 2011

* Da coleção de excelentes entrevistas e reportagens do Marcelo Pinheiro

Nascido em 1895, o cinema é a mais jovem de todas as expressões artísticas. Seja por meio da narrativa ficcional, seja da documental, as turbulências e glórias do século XX foram registradas na tela grande por meio de ações individuais, mas também em correntes estéticas coletivas que continuam a influenciar realizadores. Uma narrativa de invenções agrupadas em movimentos como o Expressionismo Alemão, o Neorrealismo Italiano, a Nouvelle Vague Francesa, o Novo Cinema Alemão e, no Brasil, o Cinema Novo dos anos 1960.

Sobre este último, com título homônimo, chega aos cinemas de todo o País, nesta quinta-feira (3), o aguardado longa-metragem de Eryk Rocha que, em maio último, conquistou o Olho de Ouro, prêmio máximo da categoria de filmes documentais do Festival de Cannes. Para além do encantamento que Cinema Novo despertou no público e no júri da mostra francesa, a cerimônia de premiação do filme também foi marcada pelo protesto feito por Eryk, filho do cineasta Glauber Rocha, contra o então governo interino de Michel Temer e a notícia, anunciada dias antes, da extinção do Ministério da Cultura. Fazendo uso de discurso contundente, à maneira politizada de seu pai, Eryk afirmou que o País vivia um “momento trágico de sua história” e que a extinção do MinC, depois anulada, era um “reflexo do grande retrocesso imposto ao Brasil”.

Em entrevista à CULTURA!Brasileiros, realizada por e-mail, devido a compromissos internacionais, Eryk Rocha voltou a abordar a crise política no País, e fez considerações sobre Cinema Novo. Com narrativa ousada, construído sobretudo na montagem, por meio de colagens de cenas e excertos de áudio de mais de 130 títulos, o filme é um ensaio poético que, sem recorrer ao didatismo, explica e dimensiona a importância do movimento encabeçado por nomes como Nelson Pereira dos Santos, Ruy Guerra, Joaquim Pedro de Andrade, Cacá Diegues, Leon Hirszman, Walter Lima Jr e, claro, por seu pai. Estabelecendo conexões entre antecessores, sucessores e contemporâneos que correram em paralelo ao Cinema Novo, Eryk também tributa a importância de realizadores como Mário Peixoto, de Limite, Humberto Mauro, de Ganga Bruta, Luiz Sergio Person, de São Paulo S/A, Walter Hugo Khouri, de Noite Vazia, e Jorge Bodanzky, de Iracema, Uma Transa Amazônica.

Além do impacto visual das colagens desses e de outros filmes, Cinema Novo também se inscreve como importante fonte para a compreensão de um período histórico, pela quantidade de depoimentos inéditos de algumas das personalidades mais relevantes para a cultura do País. A seguir, a íntegra da conversa virtual com Eryk Rocha.

CULTURA!Brasileiros – Um dos trunfos de Cinema Novo é a dispensa de recursos narrativos usuais em filmes documentais, como os depoimentos de pessoas próximas do personagem ou afeitas ao tema e o uso recorrente de locução em off. Como se deu essa escolha?
Eryk Rocha – Esse não é um filme que ambiciona explicar o Cinema Novo ou defini-lo, mas que, através dele e com ele, eclode a partir de um caldeirão de vozes, afetos e poéticas. Fazer esse filme me provocou o desafio de superar o aspecto anedótico-historicista e dialogar com o movimento no presente. Criar movimento dentro do movimento. Meu desejo foi olhar o Cinema Novo como um estado de espírito compulsivo de criação que revela o embate do artista/cineasta com seu tempo. Cinema Novo foi construído na montagem. Foram nove meses intensos de invenção, que contou com o belo trabalho do montador Renato Vallone. Em seguida atacamos a fundo a montagem de som realizada com maestria pelo Edson Secco. A montagem (sonora/visual) é o coração que faz pulsar essa obra. Usamos mais de 130 filmes e acervos diferentes. Esse filme nasce a partir de fios, linhas e trechos. Trechos de caminhos, trechos de sonhos, trechos de músicas, trechos de histórias, trechos de gestos, trechos de filmes, trechos interrompidos. Essa multidão de trechos cria uma melodia, uma nova dramaturgia. Um corpo vivo de novos sentidos. Como dizia Humberto Mauro: “O cinema vira cachoeira…”

Como se deu a pesquisa dos títulos que serviram de matéria-prima para o filme? Houve entraves para a obtenção dessas imagens?
Foi uma pesquisa de anos até iniciarmos o processo de montagem. Importante dizer que esse trabalho contou com o apoio fundamental das famílias dos cineastas. Os filhos do Leon Hirszman, do Joaquim Pedro de Andrade, e de cineastas vivos, como Nelson Pereira dos Santos e Carlos Diegues, entre outros. E, claro, também dos meus irmãos, os filhos do Glauber. Em toda essa articulação foi fundamental o trabalho do produtor do filme, Diogo Dahl, que correu atrás das melhores matrizes de cada filme, negociou com cada família, com os diferentes acervos, e montou um verdadeiro quebra-cabeça. Esse é um filme que fala da arqueologia da memória. Nos debruçamos principalmente na produção do Cinema Novo dos anos 1960, que, penso eu, é a década mais fecunda do movimento. Apesar de haver algumas exceções, como, por exemplo, Humberto Mauro e Mário Peixoto, ou na outra ponta dos anos 1970, por exemplo, o Iracema, Uma Transa Amazônica, do Jorge Bodanzky. Vi e revi muitos filmes. Além deles, também pesquisamos em diversos canais de TV, arquivos do Brasil e do mundo, e descobrimos materiais raros, como, por exemplo, os do INA (o Instituto Nacional de Audiovisual) francês. Todo esse árduo trabalho foi realizado em parte com o montador do filme, Renato Vallone. Durante a montagem, também descobrimos filmes e materiais novos que fomos incorporando na partitura do filme, e isso naturalmente foi afetando a própria montagem, complexibilizando a estrutura e enriquecendo a travessia.

No filme, em momento algum você intervém, de forma explícita, para influenciar a compreensão do que está sendo visto. Para além do fato de você ser filho de um dos artífices do Cinema Novo, gostaria que comentasse sua relação com o movimento.
Os filmes nascem das vísceras e da profunda necessidade de dizer algo que não pode deixar de ser dito. Acredito que Cinema Novo nasceu do meu desejo de investigar a história cinematográfica, cultural e política do meu País em cruzamento com minhas raízes afetivas. Quis entender melhor e tentar alumbrar a época em que vivo. A geração do Cinema Novo desejou inserir o cinema e a arte num projeto maior de País. Esse confronto do cidadão/artista com seu tempo foi algo que sempre me mobilizou e me apaixonou a fazer cinema.  A crença do filme foi lançar o Cinema Novo no presente, em pleno movimento, e indagar como o artista pode hoje se engajar nos processos políticos cotidianos do seu povo. O Brasil ainda não passou por um processo básico de compreensão da cultura e da educação como forças estratégicas para o seu desenvolvimento real. Creio que hoje precisamos, com urgência, libertar a imaginação rumo à criação de novos projetos políticos e poéticos. Isso me lembra uma fala do cinemanovista Paulo César Saraceni, que, aliás, está no filme: “Eu quero fazer um cinema político que seja a melhor poesia”.

O filme já foi visto por alguns dos personagens nele retratados, como Nelson Pereira dos Santos, Ruy Guerra e Cacá Diegues? Qual foi a reação manifestada por eles?
O único do grupo que assistiu ao filme foi Ruy Guerra. Por acaso, coincidimos exibições no Festival de Lima, no Peru, e ele viu o documentário lá (Guerra participou da mostra peruana com seu mais recente filme, Quase Memória). Ruy gostou muito, se emocionou, o que rendeu uma longa e bonita conversa entre nós. Daqui a alguns dias faremos uma primeira sessão no Cine Odeon, no Festival do Rio, e todos os cinemanovistas assistirão ao filme. Estou entusiasmado e muito ansioso por esse momento.

A dimensão política do Cinema Novo fica ainda mais evidente nos depoimentos dos diretores reunidos no documentário. Durante o Festival de Cannes, onde o filme saiu vitorioso, você afirmou que o País vive um novo golpe de estado. Considera que este novo contexto, de retração conservadora, pode culminar em um cenário de resistência cultural semelhante ao criado pelos cinemanovistas?
Hoje, o debate político voltou a ocupar um lugar crucial no Brasil. Estamos vivendo um verdadeiro transe político, com contornos trágicos. Essa alta tensão do País inevitavelmente afeta o dia a dia, o corpo, e deixa a sensibilidade à flor da pele. Ao mesmo tempo sinto também que o Brasil está perdido, meio que sem rumo, sem perspectivas muito claras. Tomamos um duro golpe e estamos tentando nos reerguer para, coletivamente, entender o que aconteceu, e seguir a luta.  Penso que o cinema, como um rico meio de expressão, tem o poder de criar memória e ser testemunha desses momentos. Esses “estados” do País pouco a pouco poderão irradiar novas correntes do nosso cinema, e acho que a tendência é que isso se intensifique, se aprofunde, já que os desdobramentos e acirramentos das lutas políticas e sociais são imprevisíveis. Cada época tem suas formas de expressão, e acredito que uma das forças originárias do movimento do Cinema Novo foi realizar uma potente simbiose entre política e estética, entre forma e conteúdo, uma nova gramática. Tudo eclode e irrompe nessa perspectiva e fiquei impressionado ao perceber como vários desses filmes seguem ecoando e dialogando visceralmente com o Brasil contemporâneo. Acho que hoje o desafio é saber como o cinema brasileiro vai refletir e atuar nesse novo processo do País, saber como ele vai traduzir o Brasil na tela. Isso me inquieta, como realizador, me instiga e me provoca querer filmar esse tempo histórico tão estranho que habitamos, um tempo de ruínas.

MAIS:

Veja o trailer do documentário Cinema Novo

CONTEÚDO!Brasileiros
Leia entrevista
com o cineasta Nelson Pereira dos Santos, publicada em fevereiro de 2012, na edição 55 de Brasileiros, na ocasião do lançamento do documentário A Música Segundo Tom Jobim

Sonia Braga em visão panorâmica

Sonia Braga nas ruas do Chelsea, em Nova York, em ensaio exclusivo para CULTURA!Brasileiros. Foto: Alcir N. da Silva

Sonia Braga vive momento feliz. Aos 66 anos, duas décadas depois de participar das filmagens de Tieta do Agreste, de Cacá Diegues, a atriz voltou a atuar no País em 2015. Protagonista de Aquarius, novo longa-metragem de Kleber Mendonça Filho, que estreou nos cinemas de todo País na última quinta-feira (1), ela diz que, ao constatar a dimensão heroica e altiva da personagem Clara, foi arrebatada pelo roteiro original do diretor pernambucano. Viúva, jornalista aposentada e escritora, Clara reside no edifício que dá nome ao filme, um charmoso prédio de três andares construído na década de 1940 na orla da praia de Boa Viagem, um dos metros quadrados mais caros do Recife.

Culta e serena, Clara vive sozinha no apartamento, onde desfruta de sua enorme paixão pela música. Da porta da sua sala para fora, no entanto, o Edifício Aquarius é um campo de batalha. Aguerrida, ela permanece isolada no prédio, depois de todos os vizinhos terem vendido seus imóveis para a construtora Bonfim, que pretende erguer ali um arranha-céu e faturar milhões. A luta contra a especulação imobiliária é, para Clara, um embate de preservação do espaço físico e de sua própria memória afetiva.
De Nova York, em longa entrevista à CULTURA!Brasileiros iniciada por Skype e, depois, por telefone, Sonia revela que recentemente enfrentou um imbróglio jurídico, semelhante ao de Clara, com a Rede Globo. O processo foi motivado pela reprise do folhetim Dancin’ Days. Depois de um ano lutando para ser remunerada pelos direitos sobre o uso diário de sua imagem como Julia, protagonista na novela de 1978, a atriz foi derrotada na Justiça. Ironicamente, ela presidiu a comissão de profissionais do meio que, em 1979, lutou para que fosse aprovada uma lei de proteção aos direitos de artistas do audiovisual.

Embora feliz, Sonia vive também momento de apreensão.  Amplificando o protesto feito no Festival de Cannes com a equipe de Aquarius, ela também demonstra indignação com o governo interino de Michel Temer (tornado efetivo dias depois, com o impeachment de Dilma Rousseff), para Sonia, “um golpe administrativo” que afronta a Constituição de 1988.

Na conversa a seguir, um recorte de quase três horas de prazeroso e bem-humorado bate-papo, a atriz também fala dos motivos que, desde o sucesso mundial de O Beijo da Mulher Aranha (1985), de Hector Babenco, fizeram com que ela trabalhasse cada vez menos no Brasil. Sonia também se diverte ao descobrir duas coincidências entre ela e dois colaboradores desta redação. Em 1983, quando filmava a versão cinematográfica de Bruno Barreto para Gabriela, Cravo e Canela, em Paraty (RJ, ela foi fotografada, em diversas situações, por Hélio Campos Mello, diretor de redação de Brasileiros (“diga a ele que quero cópias dessas fotos, caso contrário não autorizo publicar a entrevista”, brinca). Em 2011, este repórter esteve em Niterói e passou quatro dias na casa da atriz. O motivo? Nas páginas a seguir…

CULTURA!Brasileiros – Por que Aquarius convenceu você a voltar a filmar no Brasil, 20 anos depois de ter feito Tieta do Agreste?
Sonia Braga – Quando li o roteiro de Aquarius, havia nele tamanha força que não restaram questões em relação à personagem e ao filme. O convite de Kleber era irrecusável. Tive uma reação que jamais tive com qualquer outro roteiro que li. Compreendi as palavras de Clara e as situações que ela enfrentava, como se aquela mulher fosse eu.

Que características levaram à constatação de que você e Clara são parecidas?
Tive de criar uma imagem para poder explicar essa semelhança. Primeiro, porque ela e eu tivemos trajetórias muito diferentes, mas a idade que temos, emocionalmente e como cidadãs, nos levou a um mesmo lugar. Foi então que cheguei à seguinte imagem: somos mulheres que escalaram dois pontos diferentes de uma mesma montanha, mas que chegaram à mesma conclusão. Estamos no topo da montanha, temos agora uma visão mais ampla de nossas vidas e enxergamos muito mais longe. Essa imagem dá a dimensão do significado de Clara para mim. Deixei de fazer filmes no Brasil, mesmo amando meu País, porque não estava feliz com minha vida profissional por aí. Há uma questão muito grave, e mesmo distante sei disso, que é a situação dos nossos artistas.
Neste momento, a comunicação via Skype fica insustentável. Depois de muitas falhas nas transmissões de vídeo e áudio, Sonia decide telefonar para a redação de Brasileiros.
Alô, Sonia, está me ouvindo? 
Agora sim. Sorte nossa que não somos astronautas…
Sim. Estaríamos orbitando dispersos um do outro… Você se lembra do que estávamos falando?
Claro que lembro. A pessoa que mente é que tem problemas de lembrar do que diz. Quem fala a verdade nunca se encrenca com a memória.
Você falava dos motivos que justificam o hiato de 20 anos sem trabalhar em cinema no País…
A verdade é que nunca quis me afastar do Brasil, mas não é fácil passar por duas gerações de cineastas que, simplesmente, ignoram quem eu sou. Enquanto isso, os convites para trabalhar fora só aumentavam, ao mesmo tempo que a televisão brasileira começou a ser um meio cada vez mais difícil para mim, algo irônico, porque ela foi muito importante para minha carreira.

Telenovelas demandam meses de gravação. Isso influenciou sua decisão de parar de fazê-las aqui?
Nunca tive problema com relação a isso. Passei a ter problemas com a TV brasileira a partir do momento em que percebi que, apesar de nós, artistas, termos uma lei que, bem ou mal, nos protege, há no País uma grande dificuldade de as pessoas entenderem que ser ator é também uma profissão. Dias atrás, escrevi em minha página pessoal do Facebook o absurdo que é alguém como Joana Fomm ter de se expor na internet para desabafar que está procurando emprego.  As pessoas deviam sentir constrangimento de saber que uma atriz como ela tem de passar por isso – felizmente, ela já recebeu convites. Então, a ideia de trabalhar no Brasil ficou bem complicada, porque sempre respeitei o ofício de ator, uma profissão que, como todas as outras, tem de ser tratada com dignidade. Mas veja, por exemplo, o que aconteceu quando a Rede Globo decidiu reprisar Dancin’ Days: mesmo com picos de audiência e retorno publicitário, ninguém veio tratar do direito de uso da minha imagem – e fui protagonista da novela! Foi então que decidi mover uma ação contra a Globo e o Canal  Viva, e saí em busca da palavra de um juiz para saber se é isso mesmo, se não tenho direitos conquistados. Quando acessei o Supremo Tribunal Federal o que ouvi foi: “Sonia, seus direitos são válidos. Existe uma lei que os assegura”. Mas quando fui ao Ministério do Trabalho, ouvi, pasma, algo como: “Sim, a lei existe, mas, infelizmente, não é executada”. Isso me deixa muito constrangida. Comecei a pensar na minha própria vida e, muito abalada, percebi novamente que meu problema com o Brasil é profissional e não pessoal. Só eu sei o quanto amo meu País.
Esse processo judicial durou quanto tempo?
Pouco mais de um ano…

Ou seja, um embate exaustivo, parecido com a batalha enfrentada por Clara em Aquarius
Exatamente. Veio daí minha clareza sobre a dimensão da personagem e essa imagem: eu e ela estamos no topo da montanha. Dediquei anos e anos de minha vida ao Brasil. Por ser uma artista que representa o País, fui recebida na Casa Branca. Em 2011, quando o presidente Bill Clinton estava prestes a ir ao Brasil, ele fez questão de conversar comigo. Minha função naquele jantar era, como atriz, representar o Brasil. O fato de o próprio País não me reconhecer dessa forma é uma coisa bem estranha. Veja só o que aconteceu. Tudo parecia esgotado, mas o roteiro de Aquarius caiu nas minhas mãos e foi  emocionante descobrir cada cena do filme e ler cada palavra de Clara. Para mim, Aquarius é como uma plataforma de resistência. Tanto que, graças a ele, fizemos o que fizemos nas escadarias do Festival de Cannes.

Aliás, parte da imprensa daqui disse que você foi cooptada a participar do protesto…

Para quem me conhece, essa argumentação não faz o menor sentido. Na minha vida, sempre fiz e faço somente as coisas que quero. Desde namorar alguém que eu sei que vai estragar alguns dos meus dias, até participar de atos políticos. Ninguém nunca me convenceu a fazer nada. Quem me conhece nem tenta.

Quando o protesto começou, você subia a escadaria. E essa imagem foi usada para afirmar que você foi convencida a participar do ato… 
É bom falarmos sobre isso, porque vou explicar direitinho o que aconteceu. Enquanto eles imprimiam os cartazes no escritório, eu estava me maquiando, me preparando para a cerimônia. Eles vieram perguntar se eu iria participar do protesto. Disse que sim, mas que eu não precisava de um cartaz, porque iria sem bolsa e não teria onde levar. Um pouco antes de a gente pisar na escadaria, perguntei para o Kleber quando tudo ia começar. Ele disse que era preciso esperar o melhor momento. Não vi quando eles abriram os cartazes, porque estava de costas, posando para os fotógrafos, e aquele homem, da organização do festival, ao ver que eu estava de salto alto, decidiu me ajudar a subir a escadaria. Percebi que o protesto havia começado e pedi  que ele, imediatamente, me levasse de volta.

E veja a narrativa que foi feita disso…
Um absurdo! Sabe o que penso sobre as pessoas que acreditam em manipulações como essa? Número um, elas não me conhecem; número dois, tenho pena delas; número três, elas têm de entender que, não só no Brasil, mas no mundo todo, vivemos um momento histórico perigoso. Minha posição sobre o que está acontecendo é afirmar que, mesmo não sendo um golpe como o de 1964, estamos diante de um golpe de estado administrativo. Não podemos aceitar um precedente desse. Quem não enxerga isso, que tente enxergar. Do topo da minha montanha, enxergo muito bem.

 

Sua vivência no País, nos anos 1970 e 80, influenciou a forma como você interpreta essa situação?

Não tenho dúvida. Tudo que sofremos para chegar onde chegamos faz com que eu entenda perfeitamente o que acontece agora. Tenho 66 anos, não sou ativista, não sou militante, mas sei da importância das minhas convicções e dos meus atos. Em Niterói, fui dia após dia à Secretaria do Meio Ambiente até conseguir a retirada de um lixão instalado em lugar indevido. Nunca estive nos holofotes da militância, não acordo militante, mas cidadã. Ninguém se lembra que presidi a comissão que foi ao Supremo Tribunal Federal lutar pela lei que defende os direitos de atores e atrizes. Recentemente, com muito esforço, consegui, por meio do arquivo digital de uma edição da Veja, de 1979, encontrar uma foto de minha luta contra Jece Valadão, que se opunha à criação da lei, por que era produtor e, claro, defendia o seu lado. Lamento não ter encontrado fotos da visita que eu, Betty Faria, Nelson Pereira dos Santos e Reginaldo Farias fizemos ao presidente Figueiredo. Fomos deixar bem claro para ele a importância de aquele artigo ser sancionado. Coisas como essa ninguém sabe, entende? E não estou aqui dizendo: “Ah, eu fiz isso, eu fiz aquilo”.

Você sempre agiu assim? 
Desde sempre. Sei dos meus direitos e sempre irei defendê-los. Algo que me assusta e que faz parte da história do Brasil é que não temos um sistema judiciário que funcione. Sem ele o País não caminha. Quem coordena e faz a Justiça no Brasil não assegura ao cidadão que as leis sejam cumpridas. Esse é um quadro complicado de explicar, mas que me parece óbvio: em qualquer país que tem um poder judiciário que não garante os direitos de seus cidadãos, como acontece no Brasil, é previsível que tudo saia do controle.

Voltando ao protesto do Festival de Cannes, como foi a reação das pessoas com a sua participação?
Um horror! Voltei de Cannes e passei cinco dias consecutivos sentada diante do computador por dez, 11 horas, até conseguir limpar todos os ataques que recebi na minha página do Facebook. Claro, demorei tanto porque fiz questão de ir, de página em página, saber quem eram essas pessoas.
E quem eram elas, Sonia? 
Gente infeliz, que me faz perceber o quanto o País vive um retrocesso horrível. Não lembro agora quem disse isso, mas, nesta semana, acompanhei quase todos os discursos das convenções do Partido Democrata, e lembro que, ao dizer que esse retrocesso é um fenômeno mundial, alguém questionou: “Até quando eles querem ir? Até derrubar os direitos civis? Até antes de as mulheres poderem votar?”. O mesmo vale para o Brasil. Até onde vamos retroceder? Até a volta da escravidão?! Vamos mesmo considerar normal um golpe que ofende e fere a Constituição brasileira?
Vivendo fora do País há mais de 20 anos, a evolução desse processo era perceptível para você? 
Sempre procurei me informar sobre o que ocorre no Brasil. Quero deixar claro que a Rede Globo não é a única responsável por tudo que está acontecendo, mas, em um País com mais de 200 milhões de habitantes, o fato de uma emissora de TV ter mais de 70% de audiência é muito perigoso. Isso jamais deveria acontecer em uma nação onde as condições de trabalho são tão injustas que não permitem sequer que as pessoas criem diálogo com seus companheiros para que possam defender seus interesses.
O que acha da nova gestão do Ministério da Cultura?
Simplesmente que ela não tem credibilidade. Aliás, você viu o que eu falei para o ministro interino? Dias depois de ele assumir o MinC – com a pasta ressuscitada, graças à pressão dos artistas –, a imprensa perguntou o que ele achava sobre o protesto que fizemos. Ele teve o disparate de chamar o ato de “criancice”. Veja o nível do debate. Soube disso quando estava na rua. Voltei imediatamente para minha casa e escrevi um texto aberto, em meu Facebook, que começava assim: “Ministro Marcelo, você tem 33 anos de idade. Só de profissão e contribuição para a cultura do País, tenho mais de 50 anos. Desculpe dizer isso, mas é que acho que você não deve saber quem eu sou”. Se ele estivesse verdadeiramente preparado para ser um ministro da Cultura, teria defendido e não atacado todos nós de forma tão cínica.
Você diria o mesmo para quem pediu boicote ao filme?
O que disse ao ministro vale para eles da mesma forma. Não consigo entender de onde surgem pessoas tão desinformadas e raivosas. Não compreendo de onde vem tanto ódio. Como é que alguém que age assim pode dizer que é brasileiro? A bandeira do Brasil virou um símbolo para essa gente, mas não entendo como eles podem dizer que amam nosso País ao mesmo tempo que pedem o boicote de um filme que representou o Brasil, com grande sucesso, no Festival de Cannes, um dos mais respeitados do mundo. Que atitude esquizofrênica é essa?!

Kleber contou que Aquarius já foi vendido para mais de 60 países. Você acha que, no Brasil, existe um ambiente de alienação que transforma em algo coerente o pedido de boicote a um filme de tamanho interesse mundial?
Acho que sim. Essas pessoas não fazem a menor ideia de quantas críticas incríveis foram publicadas sobre o filme ao redor do mundo. Isso é o Brasil sendo visto aqui fora com grandiosidade. Isso é o mundo descobrindo que o Brasil também faz cinema lindo, que nossos filmes emocionam o mundo. Isso é saber que o Brasil tem um diretor tão talentoso, que, sobre ele, a imprensa mundial afirma: “Aguardamos com grande expectativa Aquarius, o novo filme de Kleber Mendonça Filho”. Uma pessoa como ele não ser reconhecida em seu próprio País, por total ignorância das pessoas, é um absurdo. Quando Kleber e a equipe voltaram do Festival de Cannes – sobretudo depois de ele também ter feito uma carreira brilhante com O Som ao Redor –, eles tinham de ser recebidos pela imprensa local, no desembarque do aeroporto, como se fossem um time de futebol que é recebido com festa. Defendo Kleber incondicionalmente. Amo o que ele faz, da mesma forma que amo meu País.

Com o sucesso internacional de Aquarius, não acha um desperdício você ter deixado de fazer filmes por aqui? O cinema brasileiro não perdeu com isso? 

Concordo, e espero que isso mude, porque sou uma mulher de cinema, uma atriz que pertence ao audiovisual, minha essência é essa. Quando fazia telenovelas, gostava de pensar que a TV era a melhor maneira de levar meu trabalho às pessoas que não podiam pagar para ir ao cinema. Ficava muito feliz por saber que milhões de famílias estavam reunidas vendo Gabriela ou Dancin’ Days. E foi essa consciência que me deu a alegria de ser quem eu sou. Não sei se você sabe, mas deixei a escola quando tinha 14 anos de idade. Não tenho formação acadêmica alguma, nem mesmo de atuação, da mesma forma que nunca participei de grupos politicamente organizados. É por isso que insisto: as ideias que tenho são verdadeiras, elas vêm de mim. Em 1988, fiz um filme com  Robert Redford (Rebelião em Milagro, dirigido pelo ator) e viemos, de Hollywood, lançar o longa no Brasil. Os jornalistas telefonavam para a casa da minha irmã e perguntavam: “Maria, onde podemos encontrar a Sonia? Em que festas ela e Robert estão indo?!”. Maria dizia: “Gente, a Sonia está na minha casa. Agora mesmo está dormindo no quarto de minha filha, Daniela”. Os jornalistas respondiam: “Ah, Maria, deixe de brincadeira e diga logo a verdade…”. Ela dizia: “Acreditem ou não, é essa a verdade”.

Sonia, você falou de Maria, e devo dizer que, em 2011, fiz, para Brasileiros, uma reportagem com Jards Macalé, que durou cinco dias, porque acompanhei as filmagens que seriam exibidas em um show dele no Teatro Oficina, em São Paulo. Como Maria é produtora do Jards, a conheci nessa ocasião. A convite dela, fiquei quatro dias na sua casa em Niterói…
Mas que bela coincidência! Não te falei que quem mente não consegue lembrar como quem fala a verdade? Pois essa sou eu, essa é minha família. Maria e Carlinhos (cunhado de Sonia) são gente como eu. Como você pôde ver, minha casa é grudada na deles. Adoro ir a Niterói (a atriz nasceu em Maringá, no Paraná). Quando estou lá, tem dias que acordo, pego uma caneca de café, saio na rua, encontro as pessoas e fico de bate-papo: “Oi, Fátima, tudo bem?! Como está sua mãe?”. Fátima é manicure, nossa vizinha. Gosto de gente assim.

Enquanto isso, a imprensa estava atrás de você e de Robert Redford no Copacabana Palace?
Exatamente. No Copa e na porta de outros hotéis. Veja só o que aconteceu:  Carlinhos é paisagista. Ele me levou para conhecer uma palmeira que só dá flores de 60 em 60 anos. Depois, fomos a um parque lindo, em frente ao aeroporto Santos Dumont, criado pelo Burle Marx. O lugar estava uma coisa horrível, caindo aos pedaços…

E vocês decidiram cuidar do parque?

Sempre digo que meu departamento é o sanitário (risos). E vendo o estado deplorável do parque, perguntei: “Carlinhos, você sabe se o ato de varrer uma rua ou uma praça pode fazer com que alguém seja preso”?. Ele respondeu: “Acho que não. Isso não faz o menor sentido, Sonia”. Então propus: “Vamos limpar esse parque?!”. Ele topou na hora, marcamos tudo para o dia seguinte. Saímos para comprar vassouras, luvas, chamamos amigos para ajudar e convidamos um grupo de músicos para tocar chorinho enquanto a gente trabalhava. Tive também a ideia de dizer: “Maria, a imprensa não quer saber onde estou? Avise a eles que a gente estará lá amanhã, varrendo o parque”. Ela achou a ideia boa, telefonou para algumas redações, mas as pessoas derrubavam a ligação, não acreditavam na história.

Ninguém teve a capacidade de checar se era mesmo trote?
Ninguém deu a menor bola para ela. Foi preciso que eu telefonasse para eles e dissesse algo como: “Alô, aqui é Sonia Braga. Por favor, acredite e não desligue o telefone. Amanhã, domingo, eu e amigos estaremos no parque em frente ao Santos Dumont varrendo o local”. Eles, enfim, acreditaram e foi aí que nasceu o movimento Loucos Varridos. Uma ideia tão bem aceita que o prefeito espalhou cartazes na cidade para incentivar pessoas a fazerem o mesmo.

Quem era o prefeito do Rio, nessa época? 
Era o César Maia. Dias depois, ele veio me procurar. “Sonia, que história é essa de você e o povo estarem varrendo as ruas?!”. Provoquei: “Prefeito, desculpe, mas se as ruas estão sujas, nós vamos limpar”. Um amigo, publicitário, criou cartazes incríveis com a seguinte frase: “De longe o Rio de Janeiro é a cidade mais linda do mundo. De longe, bem de longe…”. Quando o prefeito me procurou, meio constrangido, disse: “Sonia, tem alguma coisa que eu possa fazer por vocês?”. Respondi: “Claro que tem! A prefeitura tem quantos outdoors na cidade?!”. Não lembro quantos eram, mas fizemos ele colocar o slogan do movimento em um por um e também em relógios. Conseguimos muitos voluntários, mas depois de um tempo o movimento foi esvaziado.

Falando em articulações sociais, alguns cientistas políticos defendem que, nos últimos anos, a direita brasileira se uniu de maneira mais objetiva do que a esquerda. Você concorda?

Concordo plenamente. E acho que as pessoas precisam perceber que o futuro do Brasil não é questão de direita ou de esquerda, mas sim de pensar que, como cidadãos, temos de defender a Constituição do nosso País. E fazer isso não transforma ninguém em comunista. Quem acredita nisso e sente orgulho de dizer que é de direita logo vai ter de explicar o que, afinal, quer do País. Não sou de direita nem de esquerda, mas sei bem o que quero. Quero que a ordem, a democracia e a Constituição sejam respeitadas. Quero que Temer saia imediatamente, que Dilma volte ao lugar em que o povo a colocou e que daqui a um ano e meio cada um resolva, nas urnas, o que quer para o País. Se essa tal direita quer dar fim a tudo que conquistamos, ela que reconheça que são eles os agitadores decididos a levar o Brasil ao buraco. Essa direita é feita daqueles que não querem a felicidade de todos, que não querem a alegria de um País inteiro. Uma minoria ridícula, egoísta.

No próximo domingo haverá passeatas em defesa da permanência ou da saída de Michel Temer do poder. Se estivesse aqui, também iria às ruas?
Provavelmente sim, mas, como sou uma figura pública penso que isso funciona de forma diferente. Sei bem que poderia acontecer comigo algo parecido com o que fizeram com o Chico.

Você se refere ao episódio em que Chico Buarque foi hostilizado por um grupo de jovens no Leblon? 
Sim, e pergunto: faz algum sentido uma pessoa com a história do Chico ser tratada daquela forma?! Não conheço os caras que fizeram aquilo, mas conheço Chico muito bem. Se a pessoa diz que ama o Brasil e trata alguém como Chico com tamanha hostilidade, no meio da rua, essa pessoa vive um delírio. Chico é um dos artistas que mais defenderam e divulgaram o Brasil. Da mesma forma que eu, ele está preocupado com o pedreiro, com o padeiro, com o marceneiro, com as pessoas do bairro, com os mais desprotegidos.

Voltando ao filme, desde que vi Aquarius, frequentemente lembro de alguma cena, sobretudo pela força de sua atuação. Nos países onde o filme já foi exibido essa reação de empatia com Clara tem sido comum?

Sim, e espero que o mesmo aconteça no Brasil. E o que você disse é maravilhoso, porque também estou sempre lembrando do filme. Aliás, isso aconteceu comigo desde que Aquarius existia somente no papel. Tudo que estamos passando agora devia servir de aprendizado para a necessidade de encontros como esse que eu e Kleber tivemos. Juntos, seremos mais fortes.

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Kleber Mendonça Filho sob o signo de ‘Aquarius’

Kleber Mendonça Filho, em uma das salas de projeção do núcleo de cinema da Fundação Joaquim Nabuco, no Recife, espaço coordenado por ele há 18 anos. Foto: Fred Jordão

Kleber Mendonça Filho é um cineasta que impõe sua força criativa por meio de narrativas de enorme subjetividade. Na vida real, no entanto, é um sujeito objetivo. De fala pausada e serena, na entrevista a seguir ele expõe, com clareza, observações sobre o cinema, sua trajetória como crítico e atrás das câmeras e a realidade sociopolítica do País. Depois de desconcertar a opinião pública com O Som ao Redor (2012), seu primeiro longa-metragem, ele submete agora ao crivo local Aquarius, filme estrelado por Sonia Braga, intérprete da protagonista, Clara.

Licenciado para ser exibido em mais de 60 países, sucesso no Festival de Cannes, onde foi um dos 20 selecionados para concorrer à Palma de Ouro, Aquarius conquistou três prêmios de Melhor Filme, no Festival de Cinema de Sydney, na Austrália, no Transatlantyk Festival, na Polônia, e no World Cinema Amsterdam, na Holanda. Ironicamente, a chegada de um trabalho tão incensado ao redor do mundo às salas de cinema do País está cercada de suspeição por parte conservadora da sociedade brasileira que não viu com bons olhos o protesto contra o governo interino de Michel Temer (tornado definitivo ontem, 31.8, com impeachment de Dilma Rouseff) feito pelo diretor pernambucano e a equipe de Aquarius na estreia mundial do longa no Festival de Cannes, em maio último. Na ocasião, houve quem pedisse na internet um boicote ao filme. Paradoxo que, na visão do cineasta, escancara o quanto o País está rachado.

Fato é: para além da celeuma política em torno do ocorrido em Cannes, aqueles que se deixarem envolver pelos 140 minutos de narrativa primorosa do roteiro de Mendonça Filho encontrarão em Aquarius um filme emocionante. Se em O Som ao Redor e nos primeiros curtas-metragens o diretor desenvolvia suas tramas a partir de núcleos de personagens, em Aquarius ele traz como trunfo narrativo uma protagonista apaixonante e quase onipresente.

Ao confrontar os interesses da especulação imobiliária, que pretende transformar em escombros o apartamento em que reside, Clara agiganta-se em defesa de seu livre-arbítrio e das lembranças construídas ao longo de décadas naquele espaço. Na contramão de seus oponentes – homens gananciosos e inescrupulosos, para quem a preservação da memória individual e coletiva não vale um centavo –, ela nutre valores que não podem ser mensurados pelo vil metal. Apaixonada por música, vive cercada de milhares de LPs tocados em alto e bom som em um potente sistema analógico, um contraponto ao vazio do edifício que, protegido por ela, se torna um monumento de resistência fincado à beira da praia de Boa Viagem, no Recife.

Nascido na capital pernambucana há 47 anos, o cineasta morou em Londres por cinco anos no início dos anos 1980. Filho de pais divorciados, foi parar em solo britânico ao lado do irmão e da mãe, a historiadora Joselice Jucá. Por levar regularmente o menino para ver filmes nas grandes salas de exibição do centro do Recife, Joselice, morta em 1995, exerceu influência direta na paixão do filho pelo cinema. Autora de trabalhos sobre André Rebouças e Joaquim Nabuco, ela foi à Inglaterra fazer seu doutorado. Na volta ao Brasil, adolescente, Mendonça Filho decidiu cursar Jornalismo na Universidade Federal de Pernambuco. Escolha que, segundo ele, era a “estação mais próxima do cinema”. Como naquela ocasião ainda não havia curso acadêmico de Cinema no Recife, o ofício de jornalista poderia ser facilmente convertido na ocupação de crítico cinematográfico. Em 1997, foi esse o posto que o futuro cineasta assumiu no Jornal do Commercio.

Além de possibilitar o trânsito em inúmeros festivais internacionais e aproximar o jornalista de alguns de seus ídolos, a experiência de atuar como crítico ao longo de 13 anos fez do pernambucano um realizador com sensibilidade aguçada e autoanálise rigorosa. Talvez resida aí, por exemplo, a precisão dramática que há em Aquarius.

A seguir, os melhores momentos da conversa com Kleber Mendonça Filho.

CULTURA!Brasileiros – A trajetória de crítico exerceu influência na sua carreira de diretor?
Kleber Mendonça Filho – Tive contato com muitos filmes e realizei um sonho de criança. Minha mãe dizia que, quando eu era menino, cheguei a falar que queria ser crítico de cinema, algo que não recomendo a ninguém, mas que, ao mesmo tempo, é um belo caminho para se entrar em contato com a cultura do mundo e entender o que ela tem a ensinar em todos os níveis, não só no sentido comercial, mas também pelo viés do cinema autoral. Sou muito grato pela experiência que tive como jornalista e crítico, assim como pelas viagens que fiz e a quantidade de gente que conheci. Foram 13 anos fantásticos, mas que tive de abandonar, em 2010, exatamente na semana em que começamos a pré-produção de O Som ao Redor, meu primeiro longa-metragem.

Entre outras qualidades, Aquarius chama a atenção pela densidade do roteiro e das personagens. Como você chegou a esse resultado?
Para mim, é muito provável que a boa escrita resulte de treinamento. Claro, deve existir algum tipo de talento que define quem escreve bem e quem escreve mal. Existem grandes jornalistas e outros ruins; existem escritores incríveis e escritores medíocres – e a história está aí para mostrar quem são eles. A escrita é um campo misterioso do pensamento. Você demonstra admiração pelo roteiro e me sinto lisonjeado que o texto desperte esse tipo de reação, mas não sei bem explicar por que Aquarius tem um bom roteiro, exceto pelo fato de que, para mim, antes de um filme existir ele tem de fisgar as pessoas a partir das palavras. E sempre que converso com amigos sobre meus roteiros meio que saco se eles estão falando do texto como se ele fosse o próprio filme. Um bom roteiro de cinema precisa ter muita força de sugestão. Recebo muitos roteiros para avaliação, costumo ler alguns deles antes de dormir e existem aqueles que imediatamente me levam para a cama e outros que, ao invés disso, causam insônia. Tem muito roteiro que não passa de um reles amontoado de papel. Em um bom roteiro, o drama, os conflitos e as situações precisam ser muito claras, precisam ter força. Coisas que também determinam a boa literatura. Não estou dizendo que eu faço boa literatura, mas, antes de filmar, preciso ter orgulho de mostrar para alguém o que escrevi.

A maioria dos seus filmes não tem protagonistas, as situações trans­­correm por meio de vários personagens. Em Aquarius, isso muda. Clara é quase onipresente…
Acho que esse protagonismo veio a partir do momento em que eu entendi que tipo de filme pretendia fazer. O Som ao Redor, por exemplo, é um thriller de observação. Um filme que gera angústia, suspense e tensão, a partir de uma série de observações subjetivas de um conflito que se desenvolve à distância, como se fosse visto da janela de um quarto. O mesmo não ocorre em Aquarius, que terminou se tornando um filme clássico de herói – no caso, de uma heroína, Clara. Quando pensei em que trabalhos seriam referência para o que eu pretendia fazer, cheguei aos filmes italianos dos anos 1950 e 60, onde há mulheres fortes, com grande presença cinematográfica e uma série de desafios e obstáculos para enfrentar. Quando entendi que Aquarius seria um filme de resistência, no sentido clássico, tomei o caminho que levou Clara a um final digno de uma grande heroína, uma mulher que sabe reagir, que sabe se defender.

Pela observação da vida no meio urbano, é coerente dizer que O Som ao Redor e Aquarius são semelhantes?
Acho que o tema mais presente em meus filmes é o que chamo de disfunção de comportamento. Em O Som ao Redor, por exemplo, o sobrinho e o tio estão tomando café da manhã quando a campainha ressoa e surge o segurança na intenção de oferecer vigilância para eles e para todos os moradores da rua. A reação de ambos é rejeitar a oferta. Em nossa sociedade, o fato de eles fazerem essa recusa pode ser visto como uma disfunção de comportamento. Em Aquarius, os caras da construtora chegam no apartamento de Clara e decretam que o espaço em que ela vive há décadas é obsoleto e acham que uma boa oferta financeira será imediatamente aceita por ela, porque não passa pela cabeça deles que Clara seja alguém que possa pensar de forma diferente. E ela pensar diferente também é uma disfunção de comportamento.

O cineasta em frente ao Edifício Oceania, na Praia de Boa Viagem, no Recife, principal locação de Aquarius. Foto: Fred Jordão

Você espera que Aquarius suscite discussões tão calorosas quanto as provocadas por seu antecessor?
Em O Som ao Redor essa resposta foi, de fato, bem forte. O filme parece ter atingido um nervo da sociedade, porque tem muitas observações sobre a vida no Brasil de hoje. Desde o cara que oferece um serviço de segurança sem ter sido solicitado até a reunião de condomínio onde as pessoas fingem ser civilizadas, mas se portam como selvagens. Acho que as pessoas identificaram essas verdades no filme. Muitas delas tiveram, inclusive, de se enxergar.

O psicanalista Christian Dunker afirma que parte da classe média e da elite brasileira se ordena em uma estrutura chamada por ele de “lógica de condomínio”. Seus filmes também tratam disso?
Concordo. E digo isso porque o simples fato de Clara querer ficar em paz em sua casa e não querer fazer parte de um novo condomínio transforma sua vida em inferno. O direito de ela dizer não, de forma um pouco sarcástica, mas muito educada, gera tensão. Hoje, quando você define e defende sua posição, é inacreditável, porque parece não haver sensibilidade nas pessoas para que elas entendam que, na vida de cada um, existem posicionamentos diferentes. No filme, Clara diz: “Não, muito obrigado, não tenho interesse de vender meu apartamento. Estou muito tranquila aqui. Agradeço a visita de vocês”. Para gente como eles, isso é inaceitável. “Como assim? Ela tem uma opinião?!”. E eles ainda argumentam: “Não deixaria minha mãe ou minha avó morar aqui sozinha”. Um ponto de vista que não só é machista, mas completamente retrógrado. Isso é muito estranho. O não dela poderia ser só um não mesmo.

Por falar em direito à opinião, é inevitável tratar do protesto que vocês fizeram no Festival de Cannes…
Considero que foi um gesto discreto, simples e preciso. Estávamos na semana em que Dilma foi afastada – a meu ver, de maneira um tanto ilegal – e, além disso, dias depois de o Ministério da Cultura ter sido extinto. Era impossível ficar calado em uma situação como essa. Como em uma democracia não existem leis que proíbam uma pessoa de falar exatamente o que pensa, nós nos manifestamos e a imprensa internacional agiu com enorme interesse de tentar entender o significado daquele protesto. Na ocasião do festival, grandes veículos de imprensa, como The New York Times e Le Monde, já estavam por dentro do que se passa aqui e os jornalistas viram o ato como algo poderoso que um grupo de artistas representativos para o Brasil decidiu fazer em um dos eventos de maior mídia espontânea no mundo. Para mim, a questão, e acho que é isso que muitas pessoas não conseguiram entender até agora – porque, para elas, a personificação do mal se resume, em primeiro, segundo e terceiro lugar, ao PT – é que não sou petista, não sou e nunca fui comunista nem na adolescência, mas tenho uma visão muito clara do que é a democracia. Dilma não estava fazendo um bom governo, concordo, mas, por causa disso, ela foi sabotada desde o primeiro minuto de sua reeleição. Foi tirada do Planalto por uma oposição que não foi eleita pelo povo e que não tinha motivos legítimos para tirá-la de lá. O que defendo é o direito de proteger um sistema democrático conquistado, a duras penas, em 1989.

Que prognósticos você faz para o futuro do País?
Tento ser otimista, mas, dia após dia, as notícias nos levam a acreditar que voltamos alguns anos de nossa história. Juntando todas as decisões do governo interino, fica difícil afirmar quantos anos ou décadas já retrocedemos. Michel Temer está no período em que as coisas ainda não foram definidas (a entrevista foi realizada no final de julho), mas, mesmo assim, deu início ao desmonte do País, o que é pouco racional, porque existem decisões que são partidárias e ideológicas, e existem resultados reais que serão identificados em um futuro imediato. Tenho a tendência de ficar pessimista e triste com o que a gente pode viver nos próximos anos. Quebrar a ideia de democracia a partir de um golpe muito cínico, como esse que está em curso, abre graves precedentes. E olhe que a democracia no Brasil já tinha problemas de sobra. Vivemos em um País onde, por exemplo, existe um massacre de jovens negros e essa realidade é tratada com a apatia do “é assim mesmo”. Escolher líderes por meio do voto direto é uma grande conquista. Perder isso é muito sério, no estágio de desenvolvimento que estávamos da história do Brasil.

Voltando ao filme, outro aspecto marcante é a utilização da música como elemento narrativo. Por exemplo, a frase inicial da canção Hoje (Hoje/Trago em meu corpo as marcas do meu tempo), de Taiguara, parece falar diretamente de Clara…
Na história do cinema esse é um assunto tão rico que podemos falar sobre ele e chegar a várias conclusões. Em primeiro lugar, que a música é como uma máquina do tempo, da mesma forma que o próprio cinema. Taxi Driver, por exemplo, é um filme de ficção, mas que retrata a Nova York de 1975 de maneira tão ou mais fiel do que os documentários feitos sobre a cidade no mesmo período.

Mas em Aquarius as músicas que permeiam a trajetória de Clara são canções e não uma trilha incidental como a de Bernard Hermann em Taxi Driver
Verdade. A música em Taxi Driver (ouça a trilha) é uma apropriação absolutamente clássica. E, devo dizer, não tenho nada contra essa decisão, afinal quando os deuses do cinema decidem que em dado momento de um filme tem de entrar uma música e essa música é de Bernard Hermann isso é magnífico. Em Aquarius eu queria que o significado de cada uma das músicas fosse respeitado ao máximo. Digo isso porque não estamos falando de música incidental e dramática, como a de Hermann em Taxi Driver ou a de John Williams em Tubarão. Estamos falando de quando os filmes usam músicas que fazem parte da cultura popular, como é o caso das que estão em Aquarius. São muitos os filmes que desperdiçam e desrespeitam esse recurso. Clara é uma pessoa que valoriza a música, porque, inclusive, fez parte de sua vida profissional, como jornalista e escritora. Tive a preocupação de não usar essa característica como uma muleta narrativa da personagem, algo que acontece em boa parte dos filmes.

Como foi dirigir Sonia Braga?
Uma experiência fantástica. Mas admito que tive medo de ela não aceitar o convite, tanto que fui a Nova York para falarmos pessoalmente sobre o filme. Lidar com atores em um set de filmagem é sempre tenso para mim, imagine com alguém como Sonia. Digo isso porque o ritmo e o volume de trabalho na produção de um longa-metragem tendem a ser desagregadores. Isso faz parte da história do cinema. Tive o receio de que alguma coisa pudesse não dar certo entre mim e ela. Felizmente, isso não aconteceu e tenho hoje em Sonia uma grande amiga. A primeira coisa que, para mim, sinalizou que tudo poderia dar certo foi a reação que ela teve com o roteiro. Conversamos sobre ele e Sonia parecia estar falando do filme pronto. Ela entendeu a dimensão política e a questão humana que existia na personagem de forma tão intensa que hoje não sei dizer ao certo quem é Clara e quem é Sonia.

Alguns críticos têm afirmado que o Recife se tornou a capital do cinema brasileiro. Você tem alguma boa teoria sobre esse fenômeno?
Não tenho uma boa explicação porque acredito que a cultura não é exata como matemática. Pelo contrário. Para mim, ela é orgânica como bactéria, é como um micróbio que se alastra, um organismo imprevisível. Por pensar assim, se eu ainda fosse crítico de cinema quando o filme Wiplash, daquele merdinha que fica se matando para aprender a tocar bateria, foi lançado, talvez tivesse feito uma resenha muito mal-humorada do trabalho, que um monte de gente adorou. Eu não descarto a possibilidade de alguém realmente chegar à grandeza se sacrificando daquele jeito, mas francamente… A cultura pode ser fruto de sofrimento a partir de uma inspiração ou de um sentimento, mas não de sofrimento físico. Mesmo assim, tenho algumas teorias sobre o que acontece no Recife. Uma delas é o fato de a cidade estar distante do eixo econômico do País. Algo que pode ter criado ao longo de muitos anos uma sensação de independência de ideias. Tivemos João Cabral de Melo Neto, o Ciclo do Cinema do Recife dos anos 1920, o Ciclo de Super 8 dos anos 1960. No começo da década de 1990, veio o manguebit de Chico Science e Nação Zumbi, Mundo Livre S/A e uma série de bandas. Para mim, que era jovem quando surgiu o movimento, foi muito inspirador, porque cresci em uma cidade que tinha um sentimento vira-lata. Quando morei na Inglaterra, tive a oportunidade de ver Prince, por duas vezes, e defini que aqueles foram os melhores shows que vi na minha vida. Tive de rever isso, porque, depois, estive em shows do Chico que também entraram para essa lista.

Gostaria de concluir falando de sua relação com Emilie Lesclaux, sua produtora e companheira…
Quando começamos a viver juntos, em 2003, pouco depois ela pediu para ver o que já tinha sido gravado do Crítico (documentário lançado só em 2008) e foi ela que me convenceu que existia um bom filme naquele material. Já havíamos trabalhados juntos em Eletrodoméstica (curta-metragem, de 2002), mas essa foi nossa primeira grande parceria. Emilie é minha com­panhei­ra de vida, temos dois filhos e ela tem conquistado muito respeito dentro e fora do Brasil. Nesta semana, como produtora, participou do Festival de Cinema Latino-Americano, em São Paulo. Em Cannes, foi convidada a falar em uma mesa sobre a participação da mulher no cinema. Emilie consegue viabilizar os filmes de uma maneira muito tranquila e respeitosa com as pessoas, algo que dá um certo ar de cinema doméstico às nossas produções. Temos um escritório em casa e às vezes telefonam dizendo: “Queria falar com o departamento financeiro da CinemaScópio…”. Tenho vontade enorme de responder: “Só um minuto, vou transferir para o quarto andar”. Uma piada, claro, porque basta eu esticar o braço 30 centímetros e passar o telefone para ela. Mas, mesmo sendo uma operação pequena, com o trabalho de Emilie a produtora tem gerado excelentes resultados. Aquarius já está vendido para mais de 60 países, algo incrível para um filme feito por um grupo de amigos na praia de Boa Viagem. O Som ao Redor também teve uma carreira incrível. Isso nos dá a sensação boa de que estamos no caminho certo e que as coisas têm funcionado.

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Irandhir Santos, um operário do cinema

Irandhir Santos, em uma das locações de 'Piedade', o novo filme de Claudio Assis. Foto: Fred Jordão

Irandhir Santos é desses atores que impressionam pelo talento equivalente à sucessão de trabalhos que acumulam. Seu último trabalho foi na televisão, na minissérie Onde Nascem Os Fortes. No cinema, sua última atuação foi como o tecelão Luzimar, protagonista do filme Redemoinho, que marcou a estreia cinematográfica do diretor de TV José Luiz Villamarim, Irandhir encara agora, de cabelos longos, característica de seu personagem, sete semanas de reclusão nas locações pernambucanas de Piedade, novo filme de Cláudio Assis, com quem trabalhou em Baixio das Bestas, de 2005.

Naquele mesmo ano Irandhir debutou na tela grande depois de ser aprovado em um teste pelo também conterrâneo Marcelo Gomes para atuar em Cinema, Aspirina e Urubus.

Doze anos depois, o ator contabiliza oito peças teatrais, cinco colaborações para a TV e 20 longas. Nada mal para alguém que considerava os meios audiovisuais linguagens “inatingíveis”.

Nas oito páginas a seguir, relatos deste “operário do cinema” que, num futuro breve, sonha em reencontrar seu grande amor, o teatro.

CULTURA!Brasileiros – Soube que você, por conta do trabalho de seu pai, que era bancário, viveu em várias cidades de Pernambuco. Como se deu esse processo?
Irandhir Santos – Nasci em Barreiros, uma cidade mais próxima do litoral de Pernambuco, mas saí de lá com 1 ano de idade. Meu pai, Marcos Pinto, foi gerente do Banco do Brasil por muitos anos e sempre sonhou em trabalhar na agência de sua cidade natal, Limoeiro, no agreste de Pernambuco. Algo que fugia a sua vontade, porque ele acabou sendo obrigado a atuar em várias cidades do estado, geralmente quando novas agências eram abertas e ele era convocado para iniciar a operação. Moramos no agreste, no litoral, no sertão. Passei a infância e a adolescência percorrendo o estado de Pernambuco com minha família.

E como você lidou com isso?
O mais difícil era encarar o recomeço. Estava sempre entrando e saindo de escolas, tendo que partir justamente quando estava começando a fazer amizades. Pegar a mala e recomeçar virou rotina em nossas vidas. Ao mesmo tempo, em meu trabalho como ator, percebo hoje que utilizo de algumas experiências que vivenciei em cada um dos lugares que nós estivemos. Guardo comigo esse quadro rico de memórias.

Imagino que, por conta das contingências de seu pai, sua mãe não pôde estabelecer uma profissão.
Exatamente. Coube a minha mãe, Elena, cuidar de três crianças, eu, meu irmão mais velho, Marcos, e minha irmã caçula, Aneacires – aliás, além de nós, havia um quarto “filho”, porque meu tio, irmão mais novo de minha mãe, também foi criado por ela.

Que lembranças você tem dessa trajetória nômade pelo interior de Pernambuco?
Lembro que eram regiões bem distintas. Cada uma com suas peculiaridades e belezas. Naquele momento, de formação, eu encarava tudo com o olhar de aventureiro. Tinha a ansiedade de saber como seria a nova casa e os novos amigos ao mesmo tempo que sabia que perder aquelas pessoas seria doloroso, mas inevitável. A euforia da chegada fazia contraponto para a tristeza da partida.

Essa experiência, de alguma forma, contribuiu para desenvolver sua subjetividade?
Sem dúvida. Tenho inclusive a memória de sensações físicas desse período. Lembro de estar em regiões mais frias do Nordeste, onde à noite a temperatura cai bastante, algo que promovia uma junção familiar dentro de casa, mas também lembro de regiões mais quentes, que faziam com que houvesse uma dispersão desse núcleo pelas ruas da cidade, pela praia. Houve também as variações naturais da idade. Estive em lugares onde cheguei saindo da infância, entrando na adolescência e querendo explorar coisas de um mundo fantástico. Eram esses estímulos que me ajudavam a encarar a longa trajetória até a chegada a Limoeiro. O desejo de meu pai era tamanho que contaminou toda a família. Volta e meia me pegava pensando “um dia a gente se assenta, um dia a gente finca de vez os pés em Limoeiro”.

E quando foi que o sonho, enfim, se concretizou?
Quando eu tinha 14 anos. A chegada a Limoeiro foi como um gozo, uma alegria sem tamanho. Foi como se tivéssemos voltado para casa depois de uma longa viagem. Esse pertencimento coincidiu com um período de tomada de decisões, de pensar na chegada do vestibular, e foi em Limoeiro que, pela primeira vez, tive contato com a arte da interpretação. Minha mãe queria me colocar em alguma escola tradicional da cidade, mas como a gente chegou num período complicado, no meio do primeiro semestre, acabei indo parar em uma escola pública estadual, chamada Padre Nicolas. Nesse colégio a professora de Português fez uma coisa incrível: indicou para os alunos os livros da série Vaga-Lume (uma coleção de ficção infanto-juvenil lançada, com grande sucesso, pela editora Ática) e pediu para nos dividirmos em grupos, fazer leituras coletivas e transformar trechos dos livros em cenas para apresentar para a turma toda. Ela definiu um período de preparação.Tínhamos a liberdade de fazer do jeito que quiséssemos e aquilo foi, para mim, a descoberta da felicidade. Pela primeira vez, me envolvi em um processo da escola que fazia com que eu não visse a hora passar. Ia para casa pensando naquilo, deitava na cama e escolhia trechos dos livros pensando nas cenas, ou seja, ao mesmo tempo, desenvolvendo uma espécie de liderança no grupo.

Você se lembra qual livro vocês montaram?
Não recordo agora o título, mas era uma trama que se passava em um hotel…

O Mistério do Cinco-Estrelas, do Marcos Rey?
Exatamente. Você leu esse?

Li vários títulos da série também. Lembro que acabava de ler um, via na contracapa os que ainda não tinha lido e corria para a biblioteca da escola checar se estavam disponíveis para pegar emprestado…
Também fiz isso muitas vezes. Como era bom! Então foi isso, fizemos essa adaptação d’O Mistério do Cinco-Estrelas e me envolvi tanto que cheguei a fazer ilustrações do livro, misturei linguagens e fui desenvolvendo essa espécie de liderança estética, assumindo uma possível concepção geral da peça. Claro, tudo era brincadeira, mas nos dedicamos de verdade. Chegávamos cedo, ensaiávamos muito e fizemos uma boa apresentação.

No ano seguinte você foi para o outro colégio, como sua mãe pretendia?
Sim, assim que concluí o ano letivo minha mãe me tirou da escola pública para me colocar no tal colégio tradicional, chamado Regina Celi. Mais uma mudança que tive de encarar, mas com um lado bom, porque havia nesse colégio um teatro de verdade, com toda estrutura e uma professora que cuidava das apresentações em datas festivas. Foi ali que, pela primeira vez, pisei em um palco, fazendo uma montagem chamada Pai Nosso, que era em cima de uma oração de São Francisco. Lembro que peguei três lençóis brancos de casa para fazer o figurino (risos).

A essa altura você já estava contaminado pelo teatro?
Sim, sempre cumprindo as exigências da escola, mas de olho nas próximas datas festivas para fazer novos espetáculos. Tenho até hoje amizade com muitos colegas que ali compartilhavam desse desejo. Nenhum deles foi parar no teatro, mas a ligação permaneceu.

Houve na família alguém que despertasse em você o interesse artístico?
Acho que mais do lado da família de meu pai, que é formada por muitos músicos. Meu avô paterno era saxofonista e era muito convidado para tocar serestas em outras cidades. Todos eles tiveram uma aproximação com a música. Meu pai teve três irmãos – todos eles tocavam algum instrumento – e até hoje adora tocar seu violão. Além dessa coisa musical, o mais novo dos meus tios, Carlos Pinto, tinha uma verve incrível de artista plástico, que não era bem compreendida na cidade e nem mesmo na família. Ele pintava muito bem, fazia esculturas com o lixo que encontrava na cidade e aquilo era encarado muito mais como loucura do que arte. As pessoas simplesmente não sabiam lidar com a figura impactante que era Carlos Pinto. Ele tinha um cabelão, e tanto podia se vestir normalmente quanto aparecer na rua vestido de noiva.

Irandhir contracena com Domingos Montagner, seu irmão na novela Velho Chico. Foto: Divulgação/ Rede Globo

Isso durante o Carnaval?
Não. Fazia isso quando bem entendesse. Uma vez passaram em casa, eu tinha uns 16 anos, e disseram: “Seu tio está caído na rua, vai lá socorrer ele”. Fui com minha irmã e chegando lá nos deparamos com ele vestido de noiva. Levei ele para a casa e decidi tirar a roupa dele para ele poder dormir melhor. Quando fui tirar o vestido de noiva, fiquei intrigado com o monte de botões que tinha nas costas e perguntei: “Tio, quem lhe ajudou a vestir isso?”. E ele disse: “Ninguém, eu mesmo me virei sozinho” (risos).

Esse perfil anárquico de seu tio certamente abriu muito sua cabeça, não?
Sem dúvida. Foi ele, por exemplo, que me iniciou nos desenhos. Gosto de utilizar o desenho nos trabalhos que faço, e lembro das brincadeiras que ele fazia. Vinha sempre com um papel em branco, um lápis e me desafiava: “Rabisque aí qualquer coisa…”. Daí ele tomava a caneta da minha mão e daquele rabisco fazia um desenho incrível. Achava aquilo mágico.

Pouco depois você parte do interior para o Recife. Como se deu essa transição que culminou na sua graduação?
Vim para o Recife antes mesmo de começar a faculdade (Irandhir fez Artes Cênicas na Universidade Federal de Pernambuco). Tinha ainda o segundo e o terceiro anos do colegial (hoje ensino médio) para finalizar, mas um amigo de Limoeiro, Francisco Spencer, estava planejando estudar no Recife e decidi vir também. Viemos estudar no CPI, sigla de Colégio Preparatório Integrado, uma escola de cunho militar, dirigida por coronéis, com toda aquela disciplina de quartel. O colégio tinha a tradição de formar alunos capazes de ser aprovados nos vestibulares mais difíceis do Brasil. Em Pernambuco, quem tivesse esse objetivo não podia ignorar a chance de estudar no CPI. Francisco decidiu que ia encarar esse desafio, e senti o ímpeto de ir também. Ao ver que a escola era realmente muito boa, minha mãe concordou com a ideia. Rapaz, quando entrei lá foi um choque! A formação era muito voltada para o vestibular, isso era claro, mas demorei para engatar o ritmo, quase desisti, pois foram muitas mudanças ao mesmo tempo: sair de casa tão jovem, encarar o rigor de uma escola militar. No começo, fui morar com uma tia, mas depois comecei a dividir apartamento com duas primas. Um mundo novo, para mim…

Numa idade de formação…
Sim, e com a responsabilidade de decidir algo que iria influenciar o resto da minha vida. Tive a sorte de, no CPI, me aproximar de uma professora de Literatura chamada Gorete, e ela me salvou ao me apresentar para um ex-aluno do colégio, André Cavendish, que já estava formado e tinha experiência com um grupo de teatro. Cavendish voltou ao CPI para dar um curso de iniciação ao teatro, que acontecia aos sábados. Foi incrível, porque ele começou o processo nos apresentando não só a teoria, mas também as técnicas de teatro, ou seja, a sonoplastia, o figurino. Então, ele foi realmente o primeiro a escancarar as portas e mostrar para mim que existiam vãos incríveis para que aquela “casa” funcionasse.

Entre 1996 e 2004, você fez três peças com Cavendish e outras cinco com outros diretores. Depois disso migrou para o cinema, quando atuou, em 2005, no filme Cinema, Aspirinas e Urubus, do Marcelo Gomes. Como se deu essa guinada?
Fazer cinema parecia algo muito distante para mim. Eu acreditava que, para que isso acontecesse, teria que me deslocar para o Sudeste, onde as coisas acontecem. Mas tive a sorte de, no Recife, descobrir a Fundação Joaquim Nabuco, que tem um núcleo de cinema que, até há pouco tempo, era coordenado pelo Kleber (o diretor Kleber Mendonça Filho) e ele selecionava filmes incríveis para serem exibidos. Um deles foi uma reexibição do curta-metragem Soneto do Desmantelo Blue, do Cláudio Assis (segunda produção do diretor, lançada em 1993). Ver um filme feito no Recife com produção e atores locais me tirou da cabeça a ideia de distância dessa arte. Foi um momento importante para concluir que era possível fazer as coisas por aqui, até que veio o convite para eu ingressar no cinema. Um professor da UFPE, Marcos Camarote, hoje falecido, me indicou para fazer testes em dois filmes. Tomei coragem e fui fazer os dois testes.

Você já conhecia Marcelo e Cláudio?
Não os conhecia. E acho que justamente por isso tive sensações bem distintas com cada um deles, porque Marcelo é a tranquilidade em pessoa. Eu estava esperando aquilo que as pessoas sempre dizem dos testes, que são difíceis, mas ele fez tudo parecer muito fácil. Hoje digo a ele: “Você me enganou, Marcelo! Os testes não são daquela forma”. Tanto que quando fui conversar com Cláudio foi uma pauleira. Ele passou um trecho do roteiro e exigiu que eu estivesse pronto e afiado quase no mesmo instante. Depois rolou uma sucessão de encontros, ele sempre me desafiando. Tomei isso como impulso, fui na onda dele e deu tudo certo. Fiz com ele o Baixio das Bestas.

Com tantas produções em tão pouco tempo, você se considera um ator de cinema?
Cinema é uma arte que quando falo dela é com o brilho nos olhos de um apaixonado. Mas tanto no teatro quanto no cinema – e agora também na televisão – eu me percebo utilizando dos únicos instrumentos que tenho: meu corpo, minha voz e minhas técnicas de interpretação. Sou um grande passeador. Hoje estou na via do cinema muito fortemente, mas a televisão, por exemplo, nos últimos três anos me tomou com os convites do Luiz Fernando (o diretor de TV e cineasta Luiz Fernando Carvalho, com quem Irandhir trabalhou nas minisséries A Pedra do Reino e Dois Irmãos, e nas novelas Meu Pedacinho de Chão e Velho Chico).

Na televisão, sobretudo com Velho Chico, seu trabalho foi exibido para um público de dezenas de milhões de telespectadores. Como é passar por isso?
Entrar na TV a convite do Luiz Fernando me deu a sensação de ingressar em uma nova faculdade. O trabalho dele é tão intenso, te desafia tanto e te leva a novos caminhos, que saí de lá como se estivesse passando por uma especialização. Das cinco produções que fiz para a TV, quatro foram dele (a quinta, a minissérie Amores Roubados, é de José Luiz Villamarim, diretor de Redemoinho). Passar pelas mãos do Luiz é um processo que lapida o ator. Claro, esse alcance popular vem junto, consequentemente, o que é também uma experiência incrível, de reconhecimento.

Nesses 12 anos em que você atua no cinema brasileiro, que impressões tem sobre a evolução da indústria? No campo narrativo, ela dá conta de retratar as transformações e a realidade do País?
Nos últimos 15 anos, foram produzidos no País filmes em quantidade cada vez maior e percebo que há cada vez mais diretores em busca de sua linguagem ao mesmo tempo que procuram retratar a diversidade do nosso País. Mas percebo também as dificuldades que ainda persistem, principalmente com relação à distribuição e exibição dos filmes. Não há como negar também a força explosiva e marcante que há nos filmes produzidos aqui em Pernambuco. Algo que me impressiona, porque eles são muito diversos, em relação à linguagem e à temática.

Você tem alguma boa teoria sobre o porquê dessa efervescência cultural do Recife?
Pois é, fico me perguntando como isso acontece, mas acho que não tenho uma boa explicação. Sinto que sou um privilegiado por participar desse momento tão rico. Observo e me identifico muito com essa diversidade, da mesma forma que observo a movimentação do meio artístico com relação ao que acontece politicamente em nosso estado e a forma como essa postura pode servir de espelho para o que acontece no País. Percebo que os diretores procuram cada vez mais essa abordagem profunda e isso reverbera fortemente até fora do Brasil.

Inevitável relembrar o episódio envolvendo a equipe de Aquarius no Festival de Cannes de 2016. Como cidadão, como você percebe a realidade sociopolítica que vivemos hoje?
Estou extremamente triste com tudo que vem acontecendo no Brasil. Me sinto realmente roubado em relação ao voto que depositei na urna em 2014. É triste ver isso acontecer de novo em nosso País. É triste ver como isso reverbera na nossa liberdade, nas nossas escolhas. Quando penso em um filme necessário para esse período é justamente em Aquarius, porque ele tem força de sobra para contestar tudo o que está acontecendo. Infelizmente, eu não fui a Cannes, porque estava trabalhando, mas com certeza participaria do protesto com meus colegas e compactuaria com eles a inconformidade que eles levaram para o mundo.

Em meio a esse processo que culminou no governo Temer, ironicamente seu personagem na novela Velho Chico, Bento dos Anjos, era um vereador que defendia a ética na política e uma sociedade mais igualitária…
Quando conheci o personagem e percebi essa verve política tão forte que havia nele, achei muito apropriado para o momento que o País vivia. Este foi um dos motivos pelos quais aceitei fazer Bento. Não queria deixar essa responsabilidade nas mãos de nenhum outro colega, porque quis muito, dentro do que estava acontecendo no Brasil em 2016, ter, ao menos na ficção, um personagem que pudesse fazer contraponto a isso, que pudesse falar o que estava entalado na garganta do povo, sobretudo a população que vinha conquistando seus direitos e no ano de 2016 levou um golpe muito forte, que culminou num retrocesso enorme. Acho que o personagem Bento retratou isso muito bem. Foi uma escolha arriscada, porque eu sabia que poderia ser fortemente alvo de quem pensa diferente, mas o personagem foi muito bem recebido. Acho que nisso também está a mão do Luiz e sua capacidade de coordenar esse discurso com muito cuidado.

Com o ator Rodrigo Garcia, em cena de Tatuagem, filme de Hilton Lacerda que conta a história de uma trupe mambembe de teatro liderada por ele. Foto: Flávio Gusmão/Divulgação

Você disse que podia ser mal interpretado e é patente uma polarização cada vez mais inflamada. O que pensa disso?
Acho que o racha no País é consequência de um grande jogo político que foi muito bem armado e que consegue reverter a seu favor a maioria das opiniões, inflamando as pessoas e polarizando tudo de tal forma que hoje não temos diálogo. As conclusões imediatas, rápidas, foram fortemente estimuladas e deixamos de lado as verdadeiras discussões sobre os rumos do País, algo imprescindível para uma grande democracia. Ao anular essa discussão deixamos de lado algo que tanto batalhamos: ser um país democrático.

Voltando à Velho Chico, em meio ao fim das gravações, como foi para vocês ter de lidar com a perda do amigo Domingos Montagner?
Foi muito difícil. Existia a euforia de concluir um trabalho que foi muito bem realizado e essa tragédia atingiu a todos, da mesma forma que atingiu o público que acompanhava a história. O que mais me impressionou nessa experiência foi a surpresa de a vida recontar a história da ficção (na trama de Benedito Ruy Barbosa, Santo, personagem de Domingos também se afogava no rio São Francisco, depois de ter sido baleado). O que nos salvou, o que nos ajudou a superar esse momento foi a ideia de, naqueles últimos seis dias, trazê-lo de volta à cena e fazer tudo por ele. A força da retomada veio a partir daí. Fomos para o estúdio gravar as últimas cenas, mas prestamos essa homenagem ao grande artista e à pessoa do Domingos; Luiz assinalando isso com a ideia incrível da câmera subjetiva, colocando Domingos como os olhos de quem estava em casa. Quando falávamos para os olhos do Santo, na verdade estávamos falando diretamente para as pessoas que o acompanhavam e admiravam seu trabalho.

A relação de vocês foi muito intensa. Vocês contracenavam praticamente em todos os capítulos…
Chegamos ao ponto de marcar encontros na minha casa e na dele para conversar sobre o roteiro. Não convivíamos apenas nas gravações. Tive a oportunidade de conhecer a família do Domingos e pude ver que ele era um ator que não só construía a ficção da melhor maneira possível, mas, na realidade, também escreveu a história de uma família incrível. Eu tenho hoje uma grande falta, mas lido com ela da maneira mais carinhosa possível. Hoje, quando retorno ao São Francisco, tenho a sensação de que, ao entrar naquelas águas, de alguma forma, vou ser sempre acarinhado por ele. É dessa forma que vou tentar lidar com essa saudade.

Como foi interpretar Luzimar em Redemoinho?
O convite do Zé veio no meio das gravações da minissérie Amores Roubados. Ele disse: “Olhe, pretendo fazer um filme em breve e quero você como protagonista. Vou passar o roteiro para você ler. Foi inspirado em contos do Luiz Ruffato”. Quando ele disse o nome do autor, fui correndo atrás dos livros e achei maravilhosa a maneira como ele retrata seu local de origem e fiquei muito curioso de conhecer esse olhar de perto. Desde que li as obras do Ruffato quis estar em Cataguases, quis ver tudo aquilo que havia na escrita dele, ver aquele trem que ele tanto descreve, ver essas fábricas. Quando li o roteiro, percebi que Zé aumentou ainda mais essa lupa para aquilo que me chamou a atenção. Disse a ele que queria conhecer a cidade o quanto antes e ele falou: “Então, vou te mandar para lá antes das filmagens”.

Com que antecedência você foi para Cataguases?
Cheguei lá um mês antes e procurei ter contato com o mundo das fábricas de tecelagem e o universo do meu personagem. Na história, ele é aquele que opta por ficar na cidade. Partindo desse caminho, pensei: Se ele fica, o que é que ele usufrui? A produção me deu todos os instrumentos que faziam parte da rotina do personagem. Então, por exemplo, durante esse mês só me desloquei de bicicleta. Tive acesso à fábrica e foi incrível. Transitar entre as máquinas me deu as sensações físicas e emocionais daquele lugar, que tem todo um barulho específico, intenso, e não há como passar impune por ele, tanto que sugeri ao Zé Luiz que meu personagem utilizasse um aparelho auditivo, pois percebi que muitos operários são afetados pelo barulho. Ele gostou da sugestão. Foi uma forma de simbolizar como a rotina da fábrica atinge diretamente a vida daquelas pessoas. Um símbolo importante.

Aliás, chama a atenção a ausência de trilha sonora incidental e de canções no filme.
Isso foi algo que fomos batendo o martelo a cada vivência. Foi engraçado porque, por ter ido antes para Cataguases, quando a equipe chegou despejei no ouvido deles e do Zé, coitado, um monte de informações. Mas eles foram muito pacientes em ouvir e aceitar algumas das minhas sugestões. Walter (o diretor de fotografia Walter Carvalho), por exemplo, foi incrível. Lembro que logo na primeira cena que fizemos na fábrica, ele tinha a opção de usar o espaço que bem entendesse, mas perguntou para mim: “Como você já leu o roteiro e veio aqui várias vezes, imagino que tenha pensado em algum lugar para fazer a cena. O que você sugere?”. Mostrei para ele um percurso que partia de uma das máquinas que eu operava e ele topou na hora. Ensaiei aquele percurso sozinho durante as semanas que estive ali e é gratificante ser ouvido e se sentir cooperando com aquela obra. Devo também salientar a recepção calorosa das pessoas da fábrica, especialmente uma coordenadora, chamada Sueli, que esteve comigo o tempo todo e, com muita paciência, me ensinou a lidar com todas as máquinas. Eles estão agora ansiosos para ver o filme. Todos me ajudaram bastante.

O trabalho feito por você e Júlio Andrade tem sido muito elogiado. Como foi contracenar com ele?
Além de ser um ator incrível, Júlio é muito cativante. Quando dividimos o mesmo hotel, procuramos até nos isolar, para que deixássemos essa vontade de querer estar perto para quando estivéssemos em cena. Foi um acordo não acordado, um acordo sentido. Ele percebeu isso e deixamos para ter nossos encontros somente em cena. É muito bom quando você tem no colega esse tipo de sintonia. Lembro bem da cena em que eles, finalmente, falam o que queriam falar desde o começo um para o outro. O Zé chegou para a gente e deu uma novidade que mudou a cena de uma maneira muito bonita. A cena levava para uma grande briga verbal, de acusações recíprocas daqueles dois homens, mas o Zé disse algo assim: “Já que vocês vão resolver uma pendência que é do passado, acho que aqui não deve haver um embate entre dois homens, mas sim uma briga entre dois meninos”.

O que você pode antecipar sobre Piedade?
Não posso falar muito, mas como Cláudio já antecipou, esse filme vai tocar em um grande símbolo do Recife, que é o tubarão, mas, segundo as palavras dele mesmo, o filme vai falar do tubarão do mar e dos tubarões da terra, os devastadores dessa cidade. Como ele brinca, pela primeira vez na história do cinema o tubarão não aparecerá como vilão, mas como vítima. Mexeram no ecossistema desse cara e ele veio conviver no mesmo espaço que a gente. Ele é só mais uma vítima desse desequilíbrio.

Sonia Braga e Irandhir nos bastidores de Aquarius, de Kleber Mendonça Filho. O retrato intimista foi feito por Pedro Sotero, diretor de fotografia do filme. Foto: Pedro Sotero

E como tem sido contracenar com Fernanda Montenegro?
Sempre tive o enorme desejo de me encontrar com ela. A primeira vez que a vi, sem ser no teatro, porque vi muitas peças com ela, mas dentro de uma mesma sala, foi quando ela deu uma pequena palavra para o elenco da minissérie A Pedra do Reino, do Luiz Fernando. Ela foi explicar para a gente como foi, para ela, trabalhar com toda a simbologia do Luiz em Hoje é Dia de Maria. Ela defendia essa simbologia de tal forma que, no exemplo dela, acreditava que o cavalo de madeira que estava em cena era um cavalo de verdade. Falei desse encontro para ela dias atrás e ela disse: “É verdade, lembro de ter falado isso. Que maravilha! Você estava lá!”. Depois disso ela me procurou para falar do que, segundo ela, era uma necessidade. “Acho que a gente precisa, fora do set, ter encontros para que a gente sele essa aproximação de mãe e filho.” Claro, disse a ela: “Sim, vou te levar para jantar”. Foi um encontro incrível. Jogamos muita conversa fora, falamos de assuntos os mais diversos, mas também do próprio filme, de nossos personagens. Acho que minha maior dificuldade foi desconstruir o mito e enxergar o ser humano, essa mãe que eu devo enxergar no filme. Um jogo difícil, mas ela, com sua generosidade, tem me ajudado muito a encarar esse desafio.

Pelo volume de projetos em que você está envolvido a impressão que dá é que trabalha demais. Isso procede?
É engraçado, porque, como a maioria dos filmes no Brasil tem baixo orçamento, e consequentemente os lançamentos demoram para acontecer, e como às vezes faço filmes com um bom espaçamento de tempo de um para o outro, mas eles são lançados simultaneamente, isso leva ao público a sensação equivocada de que não paro de trabalhar (risos). Mas, claro, é importante para mim ter um período de descanso, de zerar um processo para começar o outro. Nunca emendo dois filmes sem esse respiro. Admiro quem consegue, mas não consigo fazer dois filmes ao mesmo tempo. No mais, viver a vida é o que há de mais importante, e me preocupo muito de respeitar essa intensidade natural que é preciso ter dos dois lados: no trabalho e na vida. Gosto muito de ficar em casa, gosto muito de estar com minha família. É neles que percebo o sentido de fazer tudo o que faço na minha arte.

Que balanço você faz de sua trajetória até aqui, e o que gostaria de fazer no futuro?
Sou um privilegiado, pelas experiências que tive e todos os personagens que interpretei. Até agora tive também a felicidade de trabalhar com pessoas que admiro muito. Digo que sou um privilegiado porque enxergar a vida por meio dos olhos dos personagens é algo transformador. Quando saio de um projeto acabo com o olhar mais distendido, de certa forma, compreendendo melhor a mim mesmo e compreendendo o mundo ao redor. No futuro, tenho o grande desejo de retornar ao teatro. Tem mais de dez anos que não piso num palco e sinto muita falta. O cinema é uma paixão que – aliás, como é comum às paixões – te consome completamente, mas o amor, que, para mim, é o teatro, cada vez mais me chama. Então é isso: futuramente quero retomar esse amor.

O acerto de contas de Arthur Verocai

O compositor e maestro Arthur Verocai. Foto: Divulgação / Mochilla

Que a memória cultural brasileira tem lacunas imperdoáveis estamos cansados de saber. Músicos como Luiz Bonfá, Eumir Deodato, Dom Salvador, Sergio Mendes, Raul de Souza, Astrud Gilberto, Airto Moreira e sua esposa, Flora Purim, exilaram-se artisticamente em outros países, estabeleceram carreiras de êxito comercial ou de grande respeito, mas por aqui seguem anônimos. Se o País tem esse débito com seus próprios artistas, destino pior tiveram aqueles que não assinavam obras, mas foram determinantes para elevar a qualidade delas. Grandes arranjadores e produtores, como Lyrio Panicali, Rogério Duprat e Waltel Branco, que desde o final dos anos 1950 foram disputados por compositores e intérpretes, e o carioca Arthur Verocai que, quase 40 anos depois, teve seu álbum autoral – uma pequena pérola, lançada sem a menor repercussão, em 1972 -, apresentado pela primeira vez no País em dois concertos, ocorridos em abril, no SESC Pinheiros, em São Paulo.

Como um valioso segredo, o álbum homônimo de Verocai transitou em rodas globais de pesquisadores de música brasileira, até ser reeditado no mercado americano, em 2003. O crescente culto em torno dele fez com que, em 2009, o maestro se apresentasse para uma plateia de 1.200 pessoas no Los Angeles Theatre Center, acompanhado de um grupo de quase 40 músicos que reproduziram, com máxima fidelidade, os arranjos originais do álbum. O espetáculo foi filmado e lançado em DVD no mercado americano, como um dos títulos da série Timeless, da produtora Mochilla, dedicada à memória de grandes arranjadores esquecidos ao redor do mundo, como o etíope Mulatu Astatke que, recentemente, também fez duas apresentações memoráveis em São Paulo.

Para aqueles, hoje, com mais de 35 anos, é praticamente impossível afirmar que nunca ouviu o trabalho de Verocai. Sua grande arte está na memória afetiva de muitos brasileiros. Basta dizer que Ivan Lins, Jorge Ben Jor, Elizeth Cardoso, Luiz Melodia, Gal Costa, Tim Maia, Erasmo Carlos, Quarteto em Cy, MPB-4, Nelson Gonçalves e Marcos Valle tiveram arranjos assinados por ele. Horas antes da primeira das duas emocionantes apresentações, com sabor de acerto de contas, no Teatro Paulo Autran, nos reunimos com Verocai para um bate-papo sereno e bem-humorado sobre sua formação, a indústria fonográfica nos anos 1960 e 1970, o talento inato de Luiz Melodia e uma aguda percepção da importância de acreditar em seus ideais e não abrir concessões.

Brasileiros – Arthur, conte um pouco sobre suas origens. Você teve influências musicais dentro de casa?
Arthur Verocai –
Sou filho de mineiros, mas meu avô paterno, Florentino Verocai, nasceu no Rio de Janeiro. Ele era filho de italianos e, como os meus pais, os dele também migraram de Minas para o Rio. Meu avô cresceu no Rio e encarnou o carioca malandrão e boêmio, gostava de tocar violão e, por influência dele, meu pai sempre gostou muito de música. Cresci em um ambiente onde ouvíamos discos de orquestras e música americana. Ficávamos o tempo todo ligados na Rádio Nacional. Com quatro anos, eu mesmo colocava os discos que queria ouvir na vitrola.

Brasileiros – Sua irmã também teve grande influência em seu aprendizado…
Sim, no final da década de 1950, quando estava surgindo a bossa nova, minha irmã estudava violão. Morávamos na Urca, e eu tinha por volta de 8, 9 anos. Ela fazia aula com essas professorinhas que, ao fim do curso, davam um recital. Aquele violãozinho pobre, uma batidinha “tchacundum”, meio folclórica, quase um boi. Quando fui parar no colégio interno, aos 10 anos, ganhei uma gaitinha que tocava de ouvido e não me esqueço de que havia um órgão de tubo na capela. A gente ia para a missa e o órgão inundava o ambiente com aquele som poderoso. Algo muito extasiante para mim.

Brasileiros – Depois disso, sua irmã foi estudar com o Carlos Lyra…
Sim, anos mais tarde, ela começou a estudar violão com o Carlinhos Lyra. Daí, eu filava o caderninho e o violão dela e tentava aprender a tocar sozinho. Ficava horas escutando discos do Baden Powell, do Paulinho Nogueira e do Luiz Bonfá, tentando tirar músicas de ouvido, pois sempre tive um ouvido muito bom. Em 1962, comecei a ter umas aulas com o Roberto Menescal e ele me apresentou os grandes compositores da bossa nova. Fui tomando gosto pela obra de Johnny Alf, Tom Jobim e outros. Comecei a estudar muita bossa e, em 1963, passei a dar aulas na academia do Menescal.

Brasileiros Em paralelo a esse interesse pela música, veio a formação em engenharia civil. Você tinha mesmo a pretensão de seguir carreira nessa área?
Não, não mesmo. A gente vem de um ambiente burguês, e ser músico é algo sempre associado a um futuro muito incerto. Uma perspectiva fantasmagórica para alguns pais e os meus, apesar de amarem a música, não pensavam diferente.

BrasileirosUma profissão formal era inevitável…
Sim, era algo que inevitavelmente teria de fazer. Me formei, e a cerimônia aconteceu no Copacabana Palace. Quem entregou o diploma foi o general Arthur da Costa e Silva – então presidente, e meu xará. Fui o primeiro a receber. Ele me entregou o canudo, desci as escadas do Golden Hall do Copacabana e o entreguei à minha mãe – que conseguia a façanha de gostar de Chico Buarque e Costa e Silva ao mesmo tempo!

BrasileirosE você chegou a exercer a profissão de engenheiro?
Trabalhei somente dois meses. Vi que realmente não era aquilo que eu queria da vida. Não iria aguentar sair de casa todos os dias às oito da manhã e só voltar às oito da noite. Ter de trabalhar sábado, domingo e, diga-se de passagem, um trabalho chato pra caramba.

BrasileirosE, a essa altura, como é que você dava vazão ao Arthur músico?
Nessa época, surgiram muitos grupinhos de música na minha turma. Eu, o Paulinho Tapajós, o Antônio Adolfo, o Danilo Caymmi. A gente se reunia todo sábado para tocar e, cada vez mais, eu percebia que era isso que eu queria. Formei um conjuntinho de bossa nova em 1963 – um quarteto que sequer tinha nome – e quando chegava o domingo, fazíamos algumas jam sessions na happy hour do Little Club, onde, à noite, tocavam os grandes nomes. Raul de Souza, Sergio Mendes, Maestro Cipó, Ed Maciel.

BrasileirosE o que te deu segurança para jogar tudo para o alto e virar a mesa?
A Elis defendeu uma música minha (Um Novo Rumo) no Festival Universitário do Rio de Janeiro, de 1968, e eu estava em outro astral. Mergulhei de cabeça na música e comecei a fazer um curso de harmonia funcional, o que me deu muita prática para escrever arranjos. Pesquisei alguns livros e tentei ter aula com o maestro Erlon Chaves, que me saiu com essa: “Arthur, não posso te dar aula, pois sou autodidata”. Daí concluí: “Ok, se ele é autodidata, eu também posso ser. Vamos nessa!”. Fui escrevendo e treinando meus arranjos com alguns conjuntos de Além Paraíba, a terra de minha mãe. Na época, eles só tocavam iê-iê-iê, e eu escrevi arranjos de Wave, Corcovado, as coisas mais populares do Tom, para sax, trompete e trombone.

BrasileirosE como é que você, que vinha dessa experiência empírica, foi parar em um ambiente tão formal quanto a indústria fonográfica?
Rolavam muitos festivais e comecei a inscrever algumas músicas minhas e fazer arranjos para elas. Pude mostrar meu trabalho para outros compositores. Conheci o Ivan Lins, nessa época, e o levei para a Polygram, pois o Paulinho Tapajós, que era meu grande amigo trabalhava lá como diretor artístico.

BrasileirosE também foi ele que te levou para a Polygram?
Um pouco depois disso. Meu primeiro arranjo gravado foi uma música cantada pelos Golden Boys, A Menina e a Fonte, composição minha e do Arnoldo Medeiros. Fiz esse trabalho para a Odeon e acabei indo parar na Polygram, que tinha o selo Forma, onde fui convidado a fazer o primeiro disco do Ivan Lins. O disco vendeu muito e, do nada, virei um cara meio da moda. Todo mundo queria ter arranjo meu. Acabei fazendo muitos outros discos, programas musicais na TV, trilhas de novelas. A carreira deslanchou a partir daí.

BrasileirosVocê fez muitos trabalhos para TV Globo nesse período…
Fiz vários musicais para a Globo, e fui maestro do programa Som Livre Exportação, que era apresentado pela Elis Regina e pelo Ivan. Tive a oportunidade de fazer arranjos para muita gente boa, até para o Nelson Gonçalves, que foi convocado para cantar Insensatez e Corcovado. Aqueles “gênios” achavam que tinham de colocar o Nelson para cantar bossa nova. Justo ele, com aquele tremendo vozeirão! Um baita contrassenso, a bossa sempre foi intimista, sussurrada.

BrasileirosFalando em grandes intérpretes, como foi trabalhar com o Luiz Melodia?
Sou grande fã do Melodia. Estava escrevendo os arranjos de Presente Cotidiano, aquela que diz assim: “Tá tudo solto na plataforma do ar/tá tudo aí…“. Essa música é uma marchinha em compassos de três tempos, mas ele cantava um compasso em três e outro em quatro: “Quem vai querer comprar banana…”. Daí, eu me perguntava: “Essa música é em três ou em quatro? Se eu fizer assim, da maneira que está, nego vai dizer que eu sou doido!”. Mas ele não estava nem aí se eram três, quatro ou sete. Fazia isso sem pensar. Não tinha essa de dizer: “Vou fazer uma música em três por quatro!”. Simplesmente acontecia, pela força intuitiva do cara.

BrasileirosE todo esse respeito que você conquistou te deu a liberdade de, em pouco tempo, fazer seu disco da maneira que bem entendesse…
A Continental sugeriu fazer o disco. Topei, prontamente, mas exigi: “Vamos fazer, mas vamos fazer do meu jeito e da forma que eu quiser”. Eles abriram as portas para tudo. Usei 12 violinos, quatro violas, quatro celos. Gravei onde bem quis, e com os melhores músicos que eu pude reunir. Uma grande realização pessoal, pois quem eram meus ídolos? Caras como Wes Montgomery, Tom Jobim e Eumir Deodato. Caras extremamente musicais, mas que não necessariamente eram grandes vendedores. Pouco me lixei para o fracasso do disco. Estava a fim de fazer música, não de vender disco. Eu era um idealista.

Ouça, na íntegra, o álbum de 1972 de Arthur Verocai

 

BrasileirosE como foi o trabalho de composição das letras com o Vitor Martins?
Eu gostava muito das letras do Vitor, ele era um cara muito de esquerda. Como a censura estava no auge e a barra pesadíssima, ele escreveu letras bem metafóricas como Pelas Sombras, que dizia “Quem viaja nas sombras/por trás dos seus ombros/por trás dessa blusa de lã“, ou Presente Grego, que era exatamente o que significava a ditadura para o povo brasileiro, um presente de grego “… Debruçado na Grécia antiga/nas ruínas de homens ou tribos/ouço um grito de dois mil anos… por trás das barbas de molho/o olho por olho/pedra por pedra/conta por conta…”. Ninguém entendia nada do que ele queria dizer – nem a censura, que liberou tudo! E um troço desse, que ninguém entendia, não podia mesmo vender. Mas era o que ele queria dizer, concordava com tudo e, para mim, estava ótimo.

BrasileirosO que você ouvia nesse período?
Ouvia de tudo e tinha a mente muito aberta. Gostava de Frank Zappa, Stan Kenton. Ouvia folk, country, gostava muito do Crosby, Stills, Nash & Young – adorava as vocalizações dos quatro e ouvi muito o álbum Dejavú. Meu disco tem também algumas texturas mineiras, afinal de contas, filho de mineiro, mineiro é! Eu tinha muita afinidade com o Toninho Horta e com o Milton. Misturei essa mineirice com o funk, com o soul, com o jazz, um pouco de bossa nova e fiz um trabalho livre. Do primeiro ao último minuto, o disco foi feito exatamente do jeito que eu quis.

BrasileirosEm seguida, você migra para a publicidade. Essa decisão teve a ver somente com o fracasso do disco?
Comecei a fazer jingles em 1973, e tinha muitos clientes bons no Rio. Negociava preços muito altos e, muitas vezes, recebia com antecipação. Ganhava em um jingle o que eu ganhava para arranjar um álbum inteiro, em um, dois meses de trabalho. Quando gravei o segundo disco do Ivan para a Polygram, eles estavam começando me tachar de maluco. Depois que fiz meu primeiro disco, chegaram à conclusão de que eu estava mesmo maluco! Minhas ideias cabiam cada vez menos no mercado, e se fosse para fazer as coisas do jeito que eles queriam, preferia nem fazer. Cansei de recusar arranjos. Não vou dizer nomes aqui, mas já ouvi de grandes estrelas coisas do tipo: “Olha, Arthur, não complica muito, não, viu?!”. Fui obrigado a responder, na lata: “Então chame outro. Prefiro não fazer!”.

BrasileirosFoi resistente a imposições e concessões?
Tinha essa postura porque estava na bronca do disco não ter acontecido. Fiquei bastante frustrado. Dias e noites me perguntando: “Será que estou fazendo tudo errado? Será que estou por fora e eles é que estão por dentro? Estou mesmo ficando maluco?”. Cheguei à sábia conclusão de que música não era bem aquilo. Música era uma outra coisa, muito mais elevada e importante que o mercado. Se o negócio era comércio, fui fazer jingles. Pelo menos sustentava meus filhos numa boa. O mercado e suas imposições que ficassem para lá.

BrasileirosE como é que surgiu esse oba-oba recente em torno do disco?
O Kassin (o produtor carioca Alexandre Kassin), muito amigo do meu filho Ricardo, aparecia às vezes no estúdio: “Poxa, Arthur, o teu disco está superfalado na Europa. A imprensa de lá tem falado dele”. E o disco engavetado por décadas, em casa. Isso começou a acontecer no final dos anos 1990, e eu pensava: “Bobagem, é um publicozinho minúsculo”. Em 2002, decidi abrir um site e, por intermédio dele, a Ubiquity, uma gravadora independente americana, passou a me procurar, e relançou o álbum no ano seguinte. Aos poucos, ele foi sendo difundido na cena do hip hop, que é movida pelos DJs, os caras que fazem os beats, as bases das músicas.

Brasileiros E como foi apresentar esse repertório pela primeira vez fora de seu País e 37 anos depois?
Foi inacreditável. Por uma noite fui “O Cara” em Los Angeles. Quando olhei aquele mar de cadeiras vazias, pensei comigo: “Ninguém aqui me conhece. Como é que isso vai encher?”. Estava na coxia, quando ouvi meu nome ser anunciado e um tremendo estardalhaço tomou conta do lugar. Uma ovação absurda e a casa lotada! Um público bem diverso. Muitos jovens. Gente que foi de Nova York a Los Angeles, outros que rodaram mais de 500 km, vindos do interior dos Estados Unidos, só para ver o show. Foi emocionante e, ao mesmo tempo, foi como pisar em um território desconhecido, pois sempre trabalhei por trás dos bastidores. Os músicos da orquestra eram ótimos. Vinham falar comigo do enorme prazer que tiveram em tocar minhas músicas. Curtiram à beça, pois por mais que aquilo fosse um prato raro para a maioria, eles reconheciam matrizes americanas, como o soul e o funk. Meu amigo Airto Moreira, que vive lá, deu canja na percussão. Voltei com o ego na estratosfera e pensando: “Naquela época em que todos pensavam que eu estava maluco, eu estava certo, muito certo!”.

Gilberto Gil, cidadão do mundo

Durante show em Osasco, na Grande São Paulo, Gil empunha uma guitarra Fender Stratocaster vermelha, sua predileta, comprada em Los Angeles, em 1989. Foto: Luiza Sigulem

*Da coleção de excelentes entrevistas e reportagens do Marcelo Pinheiro

No saguão do Santos Dumont, o generoso trago da primeira xícara de café do dia é interrompido pela abordagem de um velhinho. Mãos enrugadas em riste, repletas de bilhetes da Loteria Federal, ele anuncia os bichos quentes do dia: “Olha o macaco! Vai zebra, aí, vai?” Irritado com a indiferença de seus potenciais clientes o homem parte, sorrateiro, bradando que deveria estar no metro quadrado com maior concentração de sovinas e avarentos do Rio de Janeiro.

Horas antes, abandonamos São Paulo mais uma vez engarrafada – uma briga entre corintianos e vascaínos, em plena Marginal Pinheiros – e chegamos ao Rio para também enfrentar a incerteza do trânsito que, volta e meia, para por motivos pífios ou graves como um fogo cruzado. Diante de tais contingências dos grandes centros urbanos e do acaso que, para o bem e para o mal, estará sempre a invadir nosso cotidiano, não nos deixamos abalar; afinal de contas, estamos indo ao encontro do homem que provocava e instigava um Brasil domesticado por fuzis, que embalava com exuberante musicalidade mensagens que recomendavam coragem pra suportar, pois a ordem do dia cobrava estar atento e forte, não temer a morte e ainda se permitir sonhar que tudo poderia ser divino e maravilhoso.

Em 1969, Gilberto Gil incomodava muito e dividia a opinião pública. Teve de sair, às pressas, do Brasil, deixando aquele abraço à família, amigos, carreira e País, para desembarcar em uma swinging’ London que já começava a sentir os sintomas da ressaca de seus dias festivos e hedonistas. Gil cruzou o oceano para mergulhar de cabeça no desbunde final dos anos 1960 e contemplar possíveis saídas para aquele gigantesco ponto de interrogação deixado pelo sonho que chegava ao fim, segundo decreto de John Lennon, que ele mesmo reiterou e cantou em Expresso 2222, álbum impregnado de um sabor agreste e saudoso, que teve suas gravações iniciadas nos dias finais do exílio em Londres e foi concluído na sua volta ao País, em 1972.

Partindo de experiências como essa – como bem definiu Caetano -, Gil entrou em quase todas as estruturas e conseguiu sair de todas elas. A partir dos anos 1980, trocou as ambições da utopia coletiva fracassada de sua geração por sólidas ferramentas de poder, atuando como secretário municipal e vereador em Salvador e, mais tarde, como ministro da Cultura, ocupações que lhe renderam divergências e confrontos com severos críticos e oponentes. Gil faz balanço positivo de todas estas aventuras e diz não temer os riscos de tais exposições. Admite não ter pudor de assumir compromissos sérios motivado por impulsos espontâneos e defende o conceito de alto risco de que sua obra e vida são indissociáveis.

Com pontualidade notável, ele nos recebeu em sua produtora para uma conversa, de iniciais duas horas, que acabaram se estendendo por mais seis, quando invadimos a intimidade da pequena e descontraída família que ali se reúne para encarar horas de trabalho árduo, meticuloso e democrático, sob o comando de um sereno “professor” – como, carinhosamente, o baixista Arthur Maia se refere a ele – e os olhos curiosos da gigante Andrucha, uma simpática São Bernardo, de cauda amputada, criada ali, desde a infância. Com a palavra, Gilberto Gil.

SEM MEDO E COM PEDRO, EM LONDRES Gil, Caetano e suas mulheres, as irmãs Sandra e Dedé, o filho de Gil, Pedro, nascido em Londres, no colo da avó, Wangry
SEM MEDO E COM PEDRO, EM LONDRES Gil, Caetano e suas mulheres, as irmãs Sandra e Dedé, o filho de Gil, Pedro, nascido em Londres, no colo da avó, Wangry

Brasileiros – Em 1965, aos 23 anos, você chegou recém-casado a São Paulo com a intenção de se estabelecer como executivo. Ao mesmo tempo aliou-se a Augusto Boal, no espetáculo Arena Canta Bahia, embrenhando-se cada vez mais na carreira artística. Havia em suas escolhas um comprometimento com uma vontade maior da família ou você se enxergava mesmo exercendo o papel de um cidadão comum? Você se sentia dividido nessa fase da juventude?
Gilberto Gil – Eu tinha sido muito naturalmente preparado pra me encaixar em um modelo de êxito pessoal, que estava ligado a um êxito familiar, também. Um projeto de família de classe média baiana, negra, mestiça, que era alguma coisa bem estabelecida como modelo e como eleição pela sociedade toda. Um jeito consagrado. Tinha sido preparado pra isso, sem muito questionamento. Tudo aquilo era complementação de um conjunto amplo de elementos da educação, da formação. Fui seguindo os passos e, evidentemente, a vida, a minha vida, entrou na questão. Passei a trabalhar com música. Passei a encontrar pessoas. Encontrei Caetano, Bethânia, Gal; gente de teatro, na Bahia, gente de interesses diversos – por cinema, artes e variedades, pela questão existencial. Tudo isso passou a constituir uma outra vida, minha, própria, que, como você pergunta, tudo isto estava em conflito? Estabelecia um conflito? Eu não percebia como tal. Percebia como partes da minha vida e, de alguma forma, tinha de atender a todas elas. Naturalmente, uma escolha iria sobrepor-se a outra, muito fortemente, depois de minha chegada a São Paulo.

Nos dias que precedem sua prisão, um dos mais ferozes críticos do tropicalismo foi o próprio dramaturgo Augusto Boal, que classificou o movimento de neorromântico, homeopático, inarticulado, tímido, gentil, importado e desprovido de lucidez, chegando à ironia de intitulá-los Conjunto de Havaianos e de classificar um depoimento de Caetano Veloso de cafajeste e reacionário. Você é tido por muitos como um sujeito conciliador. De que maneira interpretou essa postura de Boal? Concorda que seja, de fato, um conciliador?
Boal era um teatrólogo e dramaturgo muito engajado. Dedicava partes importantes de sua ação, seu trabalho intelectual e sua capacidade de reflexão a essa coisa do movimento revolucionário. Tinha todo o direito de discordar de qualquer coisa, com quem quer que fosse. Aliás, ele compartilhava este sentimento com muita gente, em relação ao tropicalismo, de que nós éramos alienados, entreguistas, deslumbrados. Tudo isso é maneira de ver e de interpretar. Não concordo com ele com relação à cafajestice de Caetano. Não sei se ele entendia as atitudes e os gestos de Caetano como movidos por cafajestice.

Ele defende esse ponto de vista numa réplica a um comentário de Caetano, publicado no jornal O Estado de S. Paulo, de que “…tudo é tropicalista: o corpo de Che Guevara e uma barata voando para trás de uma geladeira suja”. No calor da situação, deve ter, de fato, soado ofensivo pra muita gente.
Não acho que nenhum de nós tenha atribuído a Guevara ou a quem quer que seja que tivesse tido envolvimento com a luta revolucionária essa semelhança literal com uma barata. Pelo contrário, a música “Soy loco por ti America”, por exemplo, é uma canção de louvor a Che e de reconhecimento da grandeza e da importância de uma vida como aquela, de uma atitude como aquela. No mais, as opiniões de Boal eram as opiniões dele e correspondiam à visão que ele tinha do que deveria ser “estar no mundo” e, certamente, discordando daquilo que não estaria de acordo com este “estar no mundo”, segundo Boal. Mas algumas coisas são exageradas e fora de propósito como considerar cafajestice o conjunto mais exuberante do gestual de Caetano.

Em seus trabalhos mais inventivos você esteve, muitas vezes, ao lado do maestro Rogério Duprat. Muitos chegam a tributar aos arranjos dele uma importância superior à força das canções. Como você mensura a participação de Duprat no movimento tropicalista?
A presença de Duprat naqueles trabalhos foi fundamental para conceituação, propriamente, da coisa musical. O que é que a gente queria com aquelas composições, como elas poderiam ser “embrulhadas”, “empacotadas”, para que tivessem o apelo que queríamos, que precisavam ter. Foi fundamental no contato com os músicos, os Beat Boys, os Mutantes. Foi ele que nos apresentou a esse pessoal todo e me aconselhou a fazer “Domingo no Parque” com os Mutantes e não com o Quarteto Novo, como eu queria. Ele achava que com os Mutantes a gente ousaria mais, integraria os elementos contemporâneos que a própria composição almejava. Foi fundamental, pois não era simplesmente maestro no sentido da decupagem, da tradição para o campo musical, era também um filósofo da questão jovem, tinha tido, no campo da música erudita, intervenções importantes, arrojadas e tão ousadas como o tropicalismo, ele já era tropicalista neste sentido. Ajudou muito, não só a estabelecer o padrão musical do tropicalismo, como também a própria questão conceitual, filosófica e política. Em tudo isso ele teve uma contribuição muito forte. Não sou daqueles que pensa que sem o Rogério resultaria na mesma coisa. Ele foi fundamental. Foi tão importante quanto eu, Caetano, Torquato, Capinam. Esta é uma das características importantes do tropicalismo: foi uma ação coletiva. O todo dependeu das partes e cada parte teve uma função muito importante. Duprat, sem dúvida alguma, é um grande exemplo disso.

ANDAR COM FÉ Nas ruas de Manhattan, em 1971. Gil estreia em Nova York no mesmo palco em que Bob Dylan fez sua primeira apresentação
ANDAR COM FÉ
Nas ruas de Manhattan,
em 1971. Gil estreia
em Nova York no
mesmo palco em que
Bob Dylan fez sua
primeira apresentação

Sua partida para o exílio coincide com o dia da morte de Brian Jones, fundador dos Rolling Stones. Meses depois, um negro seria covardemente assassinado diante do palco em que tocavam os mesmos Stones e John Lennon decretaria que o sonho havia acabado. Como foi a chegada em Londres nesses idos de 1969 e o confronto com essa nova realidade? Havia mesmo vestígios de que um ciclo se fechava?
Minha chegada a Londres coincide com este momento de ápice do movimento hippie, da cultura psicodélica, de todas aquelas grandes mutações sociais, comportamentais. Cheguei, exatamente, no momento de dissolução dos Beatles e da morte de Brian. Logo em seguida, o discurso de Lennon: o sonho acabou! Havia mesmo uma espécie de fastio, de cansaço, que era uma coisa natural. Tudo aquilo nascia de impulsos muito impetuosos da condição juvenil e, à medida que as pessoas iam amadurecendo, quatro, cinco, seis anos depois, começava a surgir um fastio natural em relação a aquilo tudo. O cansaço e a vitimização, muitas vezes. Pessoas que iam tombando no meio do caminho. A própria percepção da dimensão utópica daquilo tudo. A resposta da realidade não era propriamente na medida do investimento que se fazia com a intenção de mudá-la; mudava-se muita coisa, mas não era aquela resposta forte. A verdade era refratária, difícil. Mesmo aqui, todos nós experimentávamos muito disso. O tropicalismo também havia sido golpeado, fortemente, aqui, com a interdição final, a prisão, a expulsão do País. Tudo isso fornecia elementos suficientes pra gente sentir estas dificuldades e traduzí-las como o final de um sonho. Acho que a expressão tem muito a ver com isso: uma fadiga daquele movimento todo, daquela hiperatividade que a juventude teve naquele momento. Eu compartilhava bastante desta percepção.

Em seu livro Verdes Vales do Fim do Mundo (Editora L&PM Pocket), Antônio Bivar narra a fantástica aparição de você e de um grupo de mais de 20 pessoas no palco do Festival da Ilha de Wight, espécie de sucessor britânico do Woodstock. Ele conta que, depois da apresentação, os executivos da CBS queriam contratar todo o grupo. Como foi essa experiência?
A comunidade brasileira era numerosa, muito expressiva, em Londres. Muito unida, quase todos nós saindo do Brasil em busca de novas experiências. Muitos, como eu e Caetano, relativamente vitimizados pela questão da ditadura. Fomos todos pra Ilha de Wight. Acampamos, ocupamos uma ribanceira inteira, em cima de uma daquelas colinas, ficamos lá com nossas barracas, três quatro dias antes das apresentações começarem.Muita música, ácido lisérgico, mescalina, toda aquela coisa. Cláudio Prado, cineasta e produtor cultural, andava pelo acampamento e conversava com todo mundo. Ficou sabendo que da manhã pra tarde do dia da abertura estavam convocando músicos e artistas amadores pra fazer uma programação paralela com as coisas que surgissem por ali. Cláudio falou: “Vamos lá, o pessoal tá chamando a gente pra se apresentar!” Caetano estava lá, Gustavo e Pedrinho, da Bolha, os meninos músicos que estavam por lá e outros artistas brasileiros. Martine, uma artista plástica belga, amiga do grupo, tinha feito uma enorme centopeia de plástico vermelho. Juntamos tudo isso, os violões que estavam por ali, fomos umas 20 pessoas para o palco, vários deles nus, vestindo a centopeia. Houve uma performance em que, de repente, as pessoas saíam todas nuas de dentro da centopeia, improvisamos e cantamos algumas músicas. Era por volta de uma da tarde e o público todo vibrou muito com aquilo tudo. Era muito ao estilo das coisas que toda aquela multidão gostava e queria. Lembro que, na reportagem geral sobre o festival, a revista Rolling Stone deu um destaque muito grande à nossa apresentação, mas não me lembro de nenhum executivo de gravadora querendo assinar conosco, não.

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Interessante que toda essa repercussão positiva tenha se dado em um festival em que grandes nomes como Jimi Hendrix e The Who fizeram apresentações medianas, não é? A propósito, dias depois, acontece a morte de Jimi Hendrix, como recebeu a notícia?
Uma das coisas mágicas desta estada na Ilha de Wight foi justamente ter conhecido Hendrix. Eu lembro que estávamos assistindo ao show de Miles Davis, grupo do qual participava o Airto Moreira, percussionista brasileiro, e estávamos muito perto do palco. Eu, Caetano, Dedé, Sandra, Cláudio Prado, toda essa turma. O Airto acabou nos vendo e sinalizou pra que fôssemos ao camarim, no backstage, depois do show. Fomos, e lá encontramos, entre outras pessoas, Jimi Hendrix, que o Airto, muito gentilmente, se prontificou a nos apresentar. Conversamos uns dez minutos ali, ele já pronto, vestido com a roupa pra fazer o show. Uma semana depois ele foi à Alemanha, fez ainda uma apresentação, voltou pra Londres e ficou hospedado em um hotel na Kensington Park Road, a uns cem metros da minha casa, que era em um bequinho desta mesma avenida, e nós tivemos a notícia. Uma amiga nossa, americana, que tinha vivido no Brasil na época do tropicalismo e estava vivendo em Londres, tinha estado com Hendrix em um jantar três ou quatro dias antes da morte dele e, no dia seguinte, esteve conosco, relatando seu estado de extrema paranoia. Ele estava falando em perseguição; da máfia, que queria obrigá-lo a cumprir agendas do interesse dela, que queriam, eventualmente, tomar o estúdio Electric Ladyland e coisas desse tipo. Ela ficou muito assustada e passou este susto pra nós. Quando soubemos da morte dele estávamos ainda vivendo o impacto desta informação.

Meses antes de voltar para o Brasil, você se apresentou em Nova York, no Folk City, com uma ambientação de Hélio Oiticica. O local é célebre por ter sido palco do primeiro show de Bob Dylan. Qual foi sua impressão do público americano? Por esses dias, outubro de 1971, você estava se apresentando pela primeira vez nos Estados Unidos, fazendo shows em Paris, e já planejava voltar ao Brasil? O momento era oportuno?
Não me lembro se já tínhamos uma perspectiva de volta. Quando saímos do País, a recomendação dos militares era de que ficássemos por lá e deixássemos de lado qualquer ideia de voltar. Não me recordo se, em 1971, as negociações que alguns dos nossos parentes e pessoas próximas começaram a fazer com os militares, para que a gente pudesse voltar, já tinham começado. Tenho impressão que se deram no início de 1972, quando Caetano volta, um pouco antes de mim. De todo modo, a ida para Nova York estava muito mais dentro da perspectiva de exploração do campo geral das novas possibilidades de fora. A recepção foi muito boa. O público era basicamente americano; o convite e a promoção partiram de americanos. Evidentemente, me lembro que um deles era ligado ao Brasil, tinha envolvimento com o Arena, o Boal, e me convidou. Hélio morava em Nova York nessa época e já veio praticamente dentro do pacote. Quando me convidaram, anunciaram que a ambientação toda ia ser feita por ele, que usou pedras, água. Era uma alusão direta à Tropicália, à própria obra dele. Reconstituía um pouco aqueles elementos – tinha uma televisão também. Foi uma semana muito interessante na off Broadway, um dos eventos que consolidaram em mim o sentimento de que era possível fazer uma carreira internacional, coisa que veio a se efetivar mesmo, anos depois, em 1978, depois do Festival de Jazz de Montreux.

Às vésperas de sua partida para o exílio, você passou a se aproximar do músico suíço Walter Smetak que, durante o período em que lecionou na Universidade Federal da Bahia, tornou-se uma espécie de guru de Tom Zé e Caetano Veloso. Quando voltou, esta amizade extrapolou a questão musical e enveredou por interesses místicos. Como se deu o envolvimento de vocês?
Quanto a Smetak, quando voltei de Londres, o encontrei, ativamente, convocando músicos, jovens artistas, pra se juntarem ao trabalho dele, pra se juntarem à divulgação e à expansão do campo de pesquisa que ele vinha fazendo e me encantei com aquilo tudo. Era também uma das características do trabalho dele esse desejo de deslocamento da realidade musical, cultural e política a outro patamar e fomos eu, o cineasta André Luíz de Oliveira e o artista gráfico Rogério Duarte, trabalhar com ele, fazer a orquestra de microtons, ajudar na questão das plásticas sonoras, classificação, utilização e conservação dos instrumentos. Fizemos dois discos com ele, promovemos concertos na Bahia, em São Paulo, foi um trabalho importantíssimo. O Smetak era uma espécie de mago das sonoridades e tinha um sentimento profundo de ruptura com o classicismo, com a ditadura pitagórica. Era um experimentalista aberto, fantástico, e me identifiquei muito com ele.

Jorge Benjor e você são notórios pela força rítmica de seus violões. Foi empunhando um par deles, que lançaram, em 1975, Gil & Jorge, Ogum/Xangô, um álbum completamente anárquico, indiferente a qualquer padrão comercialmente viável da época. Diante da liberdade de improviso e da extensão das faixas, a impressão que se tem é que vocês tinham passe livre da gravadora. Como foram as sessões? De quem partiu a ideia do álbum conjunto?
Tivemos passe livre, sim. O Jorge é muito audacioso, embora possa não parecer, pelo conjunto das coisas, do comportamento dele, do modo como ele reage ao mundo, as coisas que ele diz, enfim, não parece, mas, na coisa artística, na realização musical, ele é muito arrojado, muito solto, muito livre. Ele é um bluesman, como se fosse um daqueles americanos libertários, fortes e tal. Quem conduziu o disco para aquela situação foi Jorge. Lembro muito bem de um momento em que tínhamos preparado uma canção dele pra gravar, e nós ali: “…vamos ensaiar a tonalidade“. Começamos: “…tá gravando!” Ele ordenou a introdução e entrou em uma outra música. Entrou em “Morre o burro fica o homem”, que não era aquela que a gente iria gravar e fui seguindo, fomos todos seguindo, e ficou assim mesmo. Pra você perceber o grau de liberdade, de improvisação, de descontração das sessões. É um disco muito celebrado e igualmente querido por nós. Um disco que nos marcou muito, a ponto de, vez em quando, falarmos em reeditá-lo para fazermos um reencontro. Tenho muita vontade e ele também. É possível que ainda aconteça.

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Ainda no biênio 1975/1976, neste curto período, você lançou este álbum com Jorge, lançou Refazenda, estava em plena atividade com os Doces Bárbaros, quando aconteceu o episódio da prisão por porte de maconha em Florianópolis. Todos cobrando uma postura ética de sua parte. Hoje, apesar da maior tolerância à maconha e ao consumo de drogas sintéticas muito mais nocivas, o tabu com a maconha ainda permanece bastante velado. Basta lembrar que o ministro Carlos Minc teve de explicar sua adesão à marcha que defende a droga. Baseado nesta experiência pessoal, qual cenário considera pior, Gil?
Olha, eu venho, há muito tempo, junto com muita gente, advogando a liberação. Eu acho que a transformação do problema das drogas em um caso de saúde pública, um problema médico, é vantajoso em relação ao que existe hoje, que é a questão da clandestinidade, do tráfico. Não é uma questão de polícia, só. Hoje são as duas questões. A de saúde pública, com o crack, é alarmante, destruindo vidas jovens no mundo inteiro. É um problema gravíssimo, potencializado pela dimensão da criminalidade. Eu tenho a impressão que se a gente passasse a ter só o problema de saúde pública, seria uma vantagem. Ainda que, no início, talvez, a liberação provocasse ondas mais intensas de abuso, acho que, em um médio prazo, nós controlaríamos com políticas de desestímulo e com a queda do fetiche, que é um dos principais apelos. Eu continuo advogando isso muito claramente. Não tem nenhuma justificativa pra proibição que seja, para mim, mais convincente, mais interessante do que a ideia da liberação.

A partir dos anos 1980 você passa a se envolver com o exercício da política, em uma jornada que começou na Secretaria da Cultura da prefeitura de Salvador, passou pela Câmara dos Vereadores, uma frustrada pré-candidatura à prefeitura soteropolitana e culminou nos cinco anos à frente do Ministério da Cultura. Como vê criticamente esta trajetória? Acha que os longos hiatos entre o exercício das funções tiveram algum impacto em seu desempenho? É plausível esperar uma continuidade desta sua faceta de homem público?
Eu acho que os hiatos são a prova muito clara de que eu nunca tive interesse em dar uma sequência na carreira política. São fatos espasmódicos, surgem de estímulos repentinos. No caso, por exemplo, da Bahia, foi o Gorbachev, a Perestroika e a Glasnost. Toda aquela quebra daquele monstro soviético, aquilo foi muito entusiasmante pra mim, de modo a me provocar o interesse em contribuir pela coisa da vida política e pedi a Mario Kertesz, que era prefeito de Salvador, se me daria oportunidade de trabalhar com ele, na Secretaria de Cultura. Ele me deu e eu fui. Dali, como consequência, a tentativa de uma candidatura a prefeito, frustrada e, a pedido do grupo político, a candidatura a vereador, que resultou em mais quatro anos de vida política, ali em Salvador. Saí dali e só vim a ter um outro engajamento, agora, com o Ministério da Cultura, por conta do convite do presidente Lula, que eu achei irrecusável, por causa do significado do Lula, da eleição dele, tendo a história que tem, sendo quem é, o significado que tem pra trajetória e toda a saga emancipatória da sociedade brasileira. Eu achei que podia, que isso não seria, propriamente, um problema para mim. O problema seria enfrentar a gestão real de um ministério e as relações com o governo, as relações com a sociedade, os problemas políticos decorrentes disso, as lutas, as batalhas tipo Ancinav (Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual), entre outras, mas por causa do presidente Lula e o significado da Presidência dele, eu resolvi topar essas paradas todas e agora já estou livre. Estou em situação de hiato, novamente.

Você, que testemunhou todos os percalços do presidente Lula até a chegada ao poder, que balanço faz desse ciclo que se fechará em 2010. Acha que o presidente conseguirá uma transferência de votos capaz de frustrar as expectativas tucanas?
A tradição da alternância é muito forte. As sociedades gostam de operar com a alternância como elemento de variação, de fertilização, de enriquecimento da vida política, de balanços e contrapesos. É possível que haja mesmo uma tendência, até inconsciente, na sociedade brasileira, no sentido de eleger alguém que não seja do Lula. Ao mesmo tempo, a força dele é muito grande. Ele vai ter uma capacidade de transferência de votos muito grande. Tudo vai depender das várias candidaturas que estão aí, enquadradas. A candidatura da ministra Dilma, posta em evidência, e as candidaturas das outras legendas, os tucanos e os outros que virão por aí. Agora, o que significa o governo do presidente Lula pro Brasil, isso eu não preciso falar. Os fatos recentes aqui, internamente, e no mundo, falam muito bem. O trânsito que ele tem, hoje, o prestígio que ele adquiriu no mundo inteiro e junto à população brasileira, não são à toa. Essa insistência que ele teve em investir, muito fortemente, na questão social, que era uma coisa que a sociedade brasileira vinha pedindo, há muito tempo. Acho que tudo isso faz do governo dele um governo muito importante, muito interessante pra história do Brasil.

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Voltando à música, você vem de um período onde até a embalagem tinha vínculo conceitual com a obra. Hoje, com as novas tecnologias colocando de pernas pro ar a propriedade intelectual, o conceito de obra fechada morrendo e as pessoas consumindo música de forma aleatória – vão às suas fontes de download e baixam uma ou outra faixa -, como você vê estes tempos? É um desafio maior encontrar inspiração em um cenário tão indiferente aos esforços do artista?
Eu acho que os esforços do artista têm que ser revistos. O próprio artista está sendo obrigado a rever o que significa esforço e o que significam as possíveis direções para orientação deste esforço. São fatos: o impacto das tecnologias – e tem sido assim em vários campos – acaba impondo visões e encaminhamentos pra vida humana. São tecnologias irrecusáveis. Elas ferem modelos clássicos, portanto, os esforços de nós todos têm que ser revistos. Ao mesmo tempo, é possível admitir formas de resistência. O disco de Caetano Zii e Zie é um belo exemplo desta capacidade de resistência. Eu tinha a impressão – e é uma impressão que eu continuo tendo em relação ao geral da produção musical – de que discos, tal como eram concebidos e feitos, vão se tornando coisas cada vez mais difíceis de existir, mas Zii e Zie é um defensor desta posição. Recupera essa capacidade de você gostar de um disco inteiro, fechado; canções e significados que se sucedem, adensam, de canção para canção, e acabam fechando um conceito de uma determinada obra. Isso se confirma neste disco de Caetano, mas, ao mesmo tempo, é um disco que já se beneficia desta desconstrução da obra fechada. Ele começou com o Obra em Progresso e se beneficiou deste site em que dialogou, amplamente, com setores variados da sociedade brasileira e de outras partes do mundo, sob seu processo de criação. Eu acho que este é um bom exemplo. Esta capacidade de, ao mesmo tempo, resistir e reexistir, seria um exemplo de saída.

Em seu último show em Osasco, São Paulo, você abriu a sequência Rock do Segurança, Luar e Punk da Periferia, dizendo que se deixou influenciar pelo rock feito pela geração de bandas que despontava no início dos anos 1980. Ora, não seria muito melhor se ocorresse o contrário, se eles se inspirassem no rock que você fazia 15 anos antes, de forma muito mais eficaz e bem resolvida como produto sincrético?
Eu não sei se essa avaliação dos aspectos interessantes do que eu fiz, anteriormente, e o valor que isso tem, não sei se posso concordar com relação a esse valor todo. O que eu fiz com o rock foi sempre usar uma espécie de aragem, de fragrância que o rock espalhava por aí. Aquele perfume, aquele ar. Com aquilo eu construía minhas peças. Você pega, por exemplo, uma peça como Back in Bahia, pra ir em um momento bem rock: aquilo ali é uma embolada! O pretexto é rock, mas a essência, mesmo, do desempenho musical, na composição, no momento em que eu escrevi e cantei aqueles versos, eu cantei à moda de uma embolada. Aquilo é, portanto, híbrido. Uma coisa brasileira elencada com elementos do rock.

Mas é, exatamente, esta diferença de propósitos que distancia sua produção desse período de muito do que era feito por essa geração, que muitas vezes dedicava-se a copiar estereótipos e matrizes estrangeiras.
Esses meninos, muitos deles, em suas devidas proporções, tiveram também atitude parecida. Misturaram. O caso do Cazuza, que tinha elementos muito claros do samba-canção, da balada brasileira, do bolero, da canção da fossa; o caso dos Paralamas, onde o elemento rítmico brasileiro e o caribenho se encontram. Muitos deles também fizeram o contrário: foram, ortodoxamente, buscar uma reprodução no Brasil de um rock inglês, de um rock americano. Em ambos os casos, com graus interessantes de êxito. Até hoje, acho sensacional muito do trabalho que Lulu Santos fez. Os discos de Raul Seixas são antológicos, extraordinários. O trabalho pós-Mutantes da Rita é maravilhoso. Me vejo muito bem como seguidor deles e não o contrário.

DE GERAÇÃO PARA GERAÇÃO Gil e o filho Bem, também guitarrista
Gil e o filho Bem, também guitarrista

Um momento bonito de sua apresentação em Osasco, em maio último, foi quando seu neto Bento invadiu o palco, pedindo ao pai, Bem, para participar do show, e saiu a “tocar” um bandolim, por mais de duas músicas. Como se dá o aprendizado musical no clã dos Gil? É uma escolha natural dos filhos ou você admitiria algum excesso de influência?
Todos eles tiveram este tipo de acesso: aos instrumentos, aos palcos, às festas, às longas sessões de audições de discos que eram feitas na minha casa, na casa de Caetano, na casa dos parentes, dos amigos. Todos os meus filhos, desde Nara, cresceram neste ambiente. Narinha, por exemplo – nós até fizemos uma homenagem a este fato, quando gravamos “Wait until tomorrow”, do Jimi Hendrix, no Tropicália 2 -, nós chamamos Narinha pra gravar conosco porque ela, pequenininha, com um ano e meio, na casa do Caetano, lá em São Paulo, repetia o “…think you better wait till tomorrow” do Jimi Hendrix com muito gosto. Ela tinha um ano e meio e já exposta àquilo tudo, já com aquela impregnação da música de todo tipo. Eles são criados assim e o Bento está repetindo isto. Ele vem aqui pro estúdio, pega, fica tocando os intrumentos, toca percussão junto com a gente, canta trechos das músicas. É cultural, uma coisa ambiental para eles e daí que, depois, vão escolhendo o que querem. Nara escolheu ser cantora, hoje ela é cantora. Depois o Pedro, que escolheu ser e foi baterista; a Preta e o Bem, que também escolheram ser artistas. Vários deles têm escolhido.

Impressiona muito sua performance de palco. A disposição e energia com que empunha violão, guitarra, canta e cativa o público, surpreende. Já consegue imaginar quando se dará sua aposentadoria artística? Faz planos para uma velhice mais calma ou a música vai continuar sendo uma terapia de longevidade?
Gosto, gosto ainda, muito, de tocar. Vejo aquilo tudo como uma ginástica, também. É ali que eu me exercito, que eu mantenho a forma. É ali que eu purgo certas coisas, que faço uma catarse com elementos de renovação de energias. Aposentadoria é uma coisa fora de perspectiva pra mim. A vida vai ter que me aposentar, não eu.

DESDE CEDO, NO PALCO Com o neto, Bento, filho de Bem: mais um defensor da paixão dos Gil pela música
Com o neto, Bento, filho de Bem: mais um defensor da paixão dos Gil pela música

Na canção Outros Viram, de seu último álbum, você cita os poetas Maiakovski e Walt Whitman, o romancista Stefan Zweig e outros célebres personagens que, em algum momento, exaltaram a vocação do Brasil em ser o país do futuro. Você, que teve a vida indissociavelmente ligada à história recente do País, que futuro prevê para o Brasil?
Eu acho que o que é novidade para o Brasil, para o brasileiro e, de uma certa forma, para o mundo, também, em relação a esta questão, é que parece que não é mais o futuro, parece que é agora. Está parecendo, pela primeira vez, com uma aceleração muito grande do mundo, da vida, que esta distância desapareceu. De repente, o presente já é o futuro. O Brasil está no futuro do mundo e o futuro do mundo está no Brasil. Essas duas coisas já estão começando a coincidir, o que estabelece a percepção mais flagrante disso, tanto pra nós brasileiros quanto para o mundo. A história recente do País tem a ver com tudo isso. A grande festa barroca tropical, o carnaval, essa capacidade extraordinária de celebração, essa vivência estoica da tragédia, essa capacidade que o País vem desenvolvendo para viver sua dimensão trágica de forma altiva e, ao mesmo tempo, conformada, de maneira a estimular as reações, as contestações, a luta pela obtenção do melhor. Eu acho que tudo isso é o que é o Brasil, hoje. O que está sendo e o que será o Brasil, daqui pra frente: um País cada vez mais parecido com o mundo, num mundo cada vez mais parecido com este País.

Há motivos para comemorar a data que marca a abolição da escravidão?

Imagem da série 'Bastidores', de Rosana Paulino, 1997. Em exposição no MAM-SP, em 'O MAM, a marquise e nós no meio'.

*Por Theo Monteiro

 

O dia 13 de maio de 1888 foi durante muito tempo tido como um divisor de águas na história do Brasil. A partir daquele momento os negros deixavam de ser escravos para se tornarem cidadãos livres, graças à Princesa Isabel, que ao longo de décadas ganhou status de libertadora dos afrodescendentes. Essa versão, com o passar do tempo, não somente se mostrou incompleta como passou a ser duramente questionada pelo movimento negro. A narrativa construída em torno da data não somente desconsiderava o processo histórico rumo à abolição como tirava qualquer protagonismo dos negros na história, lhes atribuindo um papel de passividade e conformismo ao regime escravocrata. De acordo com essa visão, os negros, seriam supostamente desprovidos de agência, precisando que uma princesa branca lhes concedesse a liberdade.

Esta história oficial tem sido revisitada e desconstruída por diversos artistas contemporâneos, que abordam a questão racial em suas práticas artísticas, como é o caso de Paulo Nazareth, Moisés Patrício, Jaime Lauriano e Rosana Paulino. Se em 1888, os negros estavam excluídos do mundo das artes e da cultura (na época profundamente elitizado), agora os mesmos vem ganhando crescente destaque especialmente depois da última edição da Bienal de Veneza, que teve o primeiro curador africano da história, Okwui Enwezor. Nesta esteira, a Pinacoteca do Estado de São Paulo apresenta a exposição Territórios: Artistas Afrodescendentes no Acervo da Pinacoteca dentro da qual são ainda produzidos uma série de debates ao redor da produção e recepção da arte produzida por afrodescendentes. Apesar do crescente reconhecimento no campo cultural, passados 128 anos da abolição da escravatura, parece que há no Brasil mais motivos para preocupação do que comemoração. A derrubada de um governo legitimamente eleito e a extinção de ministérios que são fruto de conquista histórica (Cultura, Igualdade Racial, Mulheres e Direitos Humanos), colocam novamente em risco os direitos das chamadas minorias, notadamente das minorias raciais. A ARTE!Brasileiros ouviu dois artistas negros brasileiros sobre o significado da data em 1888 e nos dias atuais.

Para Rosana Paulino, a sensação é a de ter dormido e acordado em 1888: “já começa pela retomada do lema positivista Ordem e Progresso de Marechal Deodoro. A elite governante que chega junto com Temer: branca, masculina e velha, tem uma absoluta falta de visão no que diz respeito ao projeto de País. Chega a soar como uma brincadeira de mal gosto” explica. Para ela, assistir conquistas de décadas serem destruídas em uma canetada é doloroso, mas ao mesmo tempo provocador. “O momento do luto existe e é importante, mas agora é hora de arregaçar as mangas e criar. Para mim, que sou artista, mulher e negra, criar é um ato de resistência. Meu trabalho sempre foi voltado para pensar questões que atingem a realidade brasileira, como o racismo”. A artista critica também a extinção do Ministério da Cultura, o que para ela será prejudicial a todos aqueles que trabalham na área. “É de uma falta de visão absurda. Qualquer país que se queira desenvolvido, moderno, sustentável, investe em economia criativa. É simples, lucrativo e não derruba uma árvore. Ao invés disso, essa equipe que acaba de assumir quer privilegiar a agricultura. Praticamente um retorno ao século XIX”. Ela acrescenta também que as minorias serão duramente atingidas pelas medidas que se iniciam e que isso poderá criar grande resistência “Essas pessoas vão começar já já a ir para a rua. Não estamos falando aqui da não criação de direitos, e sim da extinção de direitos criados. O Ministério da Cultura vinha criando políticas interessantes para dar visibilidade à produção de negros, mulheres, indígenas e periféricos, enquanto  o Ministério da Igualdade Racial permitiu que um altíssimo número de negros ingressassem nas universidades. A partir do momento em que essas pessoas sentirem que perderam isso, elas irão para as ruas”, conclui.

Já o artista Moisés Patrício afirmou ainda estar “digerindo” tudo o que aconteceu. “É muito difícil e violento assistir a esse retrocesso. As pessoas parecem tomadas por uma energia coletiva estranha, na qual muitas vezes sequer sabem o que estão desejando e as consequências disso”, numa referência direta ao Senador Cristovam Buarque (PPS-DF), que defendeu o Impeachment da Presidenta Dilma Roussef e acabou se surpreendendo negativamente com a equipe ministerial do Presidente interino. Para Patrício, a abolição da escravidão é um passado muito recente e ainda não cicatrizado. Ele vê os avanços ocorridos desde 1888 como poucos e insuficientes, e critica a falta de aceitação dos negros na sociedade. “Este é um tema muito presente na minha obra, a questão da aceitação”. Famoso por Aceita, uma série de fotografias que ele fez de sua própria mão, Patrício afirma que a mão negra é ainda invisível pela maior parte da sociedade brasileira. O artista, por outro lado, reconhece que mesmo vítima de apagamento e repressão, a cultura afro brasileira se readapta à condições adversas, muitas vezes ressignificando práticas que a princípio a destruiriam. Ele cita como exemplo as religiões neopentecostais, que tendem a perseguir os cultos de origem africana e criminalizá-los. Apesar disso, o fato de a maior parte dos devotos dessas igrejas serem negros e antigos adeptos das religiões de matriz africana faz com que elementos africanos persistam e se misturem à nova religião. “Algumas coisas são extremamente parecidas, o que faz com que muitos negros vejam naquilo um significado”, explica Patrício. “Ao mesmo tempo em que os avanços foram poucos e duramente conquistados, existe toda uma dimensão que é forte e insiste em sobreviver”, conclui.