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FestA!, o festival de aprender do Sesc

As 39 unidades do Sesc espalhadas por São Paulo sediaram durante os dias 2, 3 e 4 de março a segunda edição do FestA!, o Festival de Aprender. A iniciativa anual têm como objetivo difundir o acesso gratuito a atividades que desenvolvem o conhecimento em diversas esferas nas áreas de tecnologia e artes visuais.

As mais de 500 atividades oferecidas foram coordenadas por profissionais de peso em cada setor, como Djamila Ribeiro, Paulo Bruscky, Amadeu Zoe e Araquém Alcântara.

Diversas faixas etárias foram contempladas com oficinas, palestras, workshops, vivências e outras práticas na programação. Desta forma, o Sesc pôde dar uma palhinha do que oferece ao no decorrer do ano, chamando a atenção para as atividades que realiza comumente.

Para quem deseja participar, basta acessar o site do Sesc.

 

Finlandização da educação

Foto: Mídia Ninja

Antes da queda do muro era corrente o uso da expressão “finlandização” para descrever um processo de defesa depende diante de um vizinho muito poderoso e potencialmente invasivo. Durante a guerra fria a Finlândia realizou uma série de acordo amigáveis e concessões comerciais que garantiu que ela não se tornasse mais uma república satélite da União Soviética. Para uma pequena população, deste país então geograficamente estratégico e cobiçado por um inimigo potencial, este sacrifício permitiu o desenvolvimento de um plano continuado de investimentos em educação. Desta maneira trocou-se um período de suspensão calculada da soberania externa por um futuro baseado na soberania interna.

Há cinco anos a Finlândia chegou ao primeiro lugar no PISA, exame internacional que mede resultados do ensino básico. Uma recente expedição de educadores brasileiros,  observou que estes resultados podem nos ensinar o contrário do que parece. Em primeiro lugar isso não é resultado de nenhum método de ensino revolucionário ou da oferta massiva de recursos tecnológicos. Em vez de se preocupar em tornar os melhores, melhores ainda, os finlandeses apostaram na ideia de trazer os que estavam para trás, para a frente. Em vez de controlar os professores com planejamentos e relatórios infinitos eles transferiram ao professor grande autonomia, com um currículo mínimo pequeno, claro e bem definido. Sua autonomia passa, por exemplo, pela escolha diferencial do método de alfabetização, conforme a criança, pela definição do grupo de trabalho sobre cada projeto, e até mesmo pelo caminho curricular a ser percorrido. Em vez de culpar professores pela falta de formação, investiram em cursos longos e cobiçados, para que alguém se torne professor de física ou química, literatura ou artes plásticas. Não há provas ou exames seletivos, mas uma convivência continuada do professor com o aluno, que lhe confere autoridade para discutir escolhas profissionais, assuntos médicos e decisões familiares de forma individualizada. A partir desta convivência a escola torna-se apoio e recurso permanente para o projeto de vida do aluno. Ou seja, todos os problemas, bem como as soluções, que incluem, mas não se reduzem nem ao seu projeto profissional nem à sua relação de aprendizagem, passam pelo professor. Apesar disso há escolhas claras. No primeiro ano do ensino médio, eles podem escolher entre o ensino acadêmico e o início imediato de uma formação prática. Neste segundo caso ele estudará em verdadeiras oficinas, por exemplo, de conserto de automóveis, que servem a população prestando serviços gerais. Todas as agremiações partidárias tem assento garantido nos conselhos e órgãos de ensino, sendo sua reformulação independente das eleições gerais e consequentemente da alternância de interesses de quem está no poder.

Foto: Mídia Ninja
Foto: Mídia Ninja

A grande lição finlandesa não está em sua organização. Aqueles fascinados pela importação de soluções ficarão consternados com o fato de que a Finlândia tem 5.5 milhões de habitantes, 3 milhões na capital Helsinque. Há, no total 56 escolas, a maior delas com 4 mil alunos. Comparar este problema com a escala brasileira, com toda sua extensão e diversidade não é apenas desleal, mas ela nos leva ao erro tentar reproduzir condições semelhantes, tais como 25 alunos por classe, formação hiperqualificada, ensino prático (que envolve gastos imensos com a construção de oficinas) em vez de olhar para os motivos que produziram este estado de coisas. Uma vez lá percebe-se imediatamente as razões: ensino gratuito para todos, em todos os níveis; pouca desigualdade social, de forma que os mais ricos e os mais pobres não se sobrepõe aos que vão para a universidade e os que vão para o ensino prático. O resultado mágico parece emanar do seguinte fator decisivo: reconhecimento social conferido aos professores. O salário dos professores é um pouco abaixo da média nacional, mas o fato decisivo é que a diferença entre o maior e o menor salário é relativamente pequena.

Agora voltemos os olhos para o atual processo de finlandização às avessas da educação brasileira. Ela está baseada na criação de um grande inimigo interno: professores indolentes, que não cumprem o que deles se espera, universitários elitistas de esquerda e demais desqualificados sociais. Uma vez criado este poderoso inimigo interno é preciso realizar um número expressivo de concessões externas para manter nossa dependência para com interesses comerciais. Lembremos o caso da Kroton, de propriedade de um político com trânsito federal, um negócio de, o negócio que mais cresceu no Brasil da última década, chegando a valer 5 bilhões e meio de reais graças ao financiamento massivo do Estado via FIES.

Criamos uma situação de distanciamento e impessoalidade que contribuem para a recorrente violência entre alunos e professores

Controlamos pesadamente o cotidiano de nossos professores sem oferecer nenhum plano estratégico de excelência, progressão ou formação continuada. Pagamos mal e pior, entendemos que este gasto é uma despesa, um ônus para o resto da sociedade. Cortamos verbas em pesquisa destruindo investimentos mantidos a duras penas, durante décadas. Fechamos faculdades de primeiro nível, raras e difíceis de construir, como a UERJ. Saturamos nossos professores com dois ou três empregos em vez deixá-los participar mais da vida de seus alunos. Criamos uma situação de distanciamento e impessoalidade que contribuem para a recorrente violência entre alunos e professores. Estimulamos a judicialização das relações escolares, quando não sua militarização como vemos no estado de Goiás, destruindo qualquer sentido de comunidade e desincumbindo nossos professores de qualquer autonomia.   Enquanto na Finlândia a medicalização é um problema lateral por aqui a lógica contratualista e controladora faz com que os problemas de aprendizagem, adaptação e inclusão sejam remetidos para outro departamento (o médico), com o qual não mantemos nenhuma relação senão a de transferência de problemas e a limpeza de consciência. Em vez de fazer de nossos professores agentes sociais para entender e enfrentar a miséria, material e cultural, participando da vida de seus alunos, inflamos sua profissão com obrigações curriculares, esperanças messiânicas e ódio pelas famílias “mal-estruturadas”. Enquanto temos que lutar contra uma excrescência chamada escola sem partido, os finlandeses inventaram o princípio da escola para todos os partidos.

Foto: Agência Brasil

Reconhecimento é uma substância que se produz enquanto se a pratica e cujo resultado depende de como se a pratica O reconhecimento constitutivo dos professores decorre de que eles representam a “regra do jogo”. Eles são os fiéis depositários dos valores que são os nossos, notadamente na ideia de que transmitem aos alunos a promessa de que outro mundo é possível e desejável. Portanto a forma como reconhecemos nossos professores é também a maneira como eles reconhecerão seus alunos. Mas o reconhecimento regulativo dos professores decorre de como eles estão sendo atual e definitivamente reconhecidos. Isso passa por um ministro da educação que não é reconhecido por seus pares. Isso passa por um projeto de reforma do ensino médio que, independente de erros ou acertos, saiu do bolso de um burocrata nos momentos finais, depois de quase uma década sendo discutido por educadores. Falta de dinheiro não é desculpa para maus tratos e escassez de recurso não justifica falta de reconhecimento, aliás o caso africano é exemplar neste ponto. Que tal aprender alguma coisa com a Finlândia? O sacrifício de hoje deve ser em nome de um futuro melhor amanhã. Que tal seguir os princípios finlandeses de igualdade, gratuidade, autonomia, comunalidade e praticidade na educação em vez de palavras de ordem como austeridade, gastos e despesas, controle e competição? 

Ou seja, um Estado que não reconhece seus próprios processos de regulação, que quer se fazer ele mesmo “dono da bola” e “senhor da regra do jogo” está a praticar uma finlandização às avessas, ainda que sob aplauso das elites ignaras ou pela graça do novo irracionalismo à brasileira.

As poetas da guerra

Doha Almasry teve que fugir de sua cidade, Al-Hameh. Mora em Ritsóna com dois filhos dos três filhos. O mais velho e o marido conseguiram visto na Alemanha. Não se veem há três anos. "Oh, vida que passou cheia de tristeza e dor. Até quando ficaremos em tempos de repressão e traição?/ Quero viver uma vida simples e tranquila com meus filhos./ Não gosto de barulhos e gritos,/ Desejo uma vida longe do cansaço e da opressão." Foto: Olívia Seiko Tarora

A palestina Fadwa Tuqan (1917-2003) é um dos exemplos mais intensos disso. Em 1968, o ministro da Defesa israelense que comandou a Guerra dos Seis Dias, Moshe Dayan, alertou para que Fadwa não fosse convidada a recitar poemas em Israel. Para ele, cada poema dela seria “capaz de criar dez soldados” contra os israelenses e que ler seus poemas eram “equivalente a enfrentar 20 comandos inimigos”.

O ato de resistência poética de Fadwa se repetiu entre outras mulheres e, agora, diante da guerra na Síria, não é diferente. Espalhadas por campos de refugiados na Europa, muitas mulheres encontraram na escrita uma forma de lidar com as dores e com os desejos de liberdade, de se aproximar de parentes que estão longe e de restituição da pátria.

A oitenta quilômetros norte de Atenas, na Grécia, vivem aproximadamente 600 refugiados no acampamento de Ritsóna. A maioria dessas pessoas vem da Síria, somando 74%. Os outros 26% têm origem diversa, vindos de países da África, como Nigéria e Camarões, e outros países do Oriente Médio, como Irã e Iraque.

Em Ritsóna, é possível encontrar uma quantidade significante de mulheres que usam a literatura como forma de resistir. Uma dessas mulheres é Doha Almasry. Com 34 anos de idade hoje, ela apagou voluntariamente muito de seu passado da memória. Prefere esquecer o caminho doloroso feito há pouco mais de três anos, desde que deixou sua terra, onde morava com a família.

O marido e o filho mais velho, de 11 anos, conseguiram visto para a Alemanha. Foram os primeiros a deixar a Síria. “Eles foram para lá e fiquei com meus outros dois filhos em Al-Hameh. Desde então nunca mais os vi. Logo depois, deixei meu país também e vim para Ritsóna com os mais novos”, lamentou Doha.

Centenas de refugiados, maior parte vindos da Síria, vivem hoje em Ritsóna. É muito comum encontrar mulheres que escrevem poemas por lá. Foto: Olívia Seiko Tarora

Apesar de não verbalizar muito sobre isso, achou outra forma de se expressar sobre os cenários que tem avistado desde que a guerra tomou conta de seu país. Nos pequenos cadernos abarrotados de poemas, guardados em um gabinete ao lado de sua cama, ela escreve sobre suas dores e seus desejos. “Eu não consigo me expressar de outra forma sobre as coisas que não seja por meio da poesia”, admitiu. O marido e o filho distantes, a situação no acampamento, a repressão do governo de Bashar al-Assad e o desejo de se instalar com a família em um lugar onde tenha paz e silêncio são os temas mais usuais para ela hoje: “Escrevendo poemas, eu consigo falar sobre tudo e para todos”.

Não é de agora o contato de Doha com a poesia: “Eu comecei a escrever aos 16 anos, mas não me lembro ao certo quando comecei a me interessar por literatura”. Essas lembranças também são dolorosas para ela, pois Doha deixou muita coisa para trás para facilitar a fuga, o que inclui seus vários cadernos com poemas que um dia foram permeados de temáticas mais otimistas.

Apesar de achar a vida no campo de refugiados um tanto difícil, ela diz não reclamar. “Eu agradeço a Deus toda hora por tudo”, confessa. Além disso, ela afirma que o local tem uma atmosfera que a incentiva a escrever mais.

Doha confessa se inspirar em Nizar Qabbani, poeta sírio conhecido por seus poemas de crítica a governos opressores e à visão ocidental sobre o mundo árabe. Ele também o favorito de Sida Hasan, 18, vinda da província de Al-Hasakah, no nordeste da Síria. “Para nós, sírios, ele é o nosso Shakespeare”, afirma.

Cada palavra de Sida saía como um suspiro sôfrego, mas ela mantinha o sorriso no rosto enquanto era entrevistada: “A vida aqui é muito ruim. Temos inúmeros problemas e tudo o que eu mais quero é sair daqui com a minha família”. Ela também confessa que o acampamento não está entre os cenários de sua escrita, ela gosta de escrever apenas sobre a Síria: “A poesia para mim, aqui, significa não perder a esperança de um futuro melhor”.

Poema de Sida, escrito em um pedaço de papel encontrado no meio do acampamento. “Ninguém percebe suas lágrimas, ninguém se importa com sua tristeza./Só percebem seus erros. Será que a vida é difícil mesmo?/Ou quem está ao meu redor/Não tem piedade nunca?” Foto: Olivia Seiko Tarora

A relação mais forte de Sida com a poesia começou desde que saiu da Síria com a família, há quatro anos, e foi para o Iraque. “Vivíamos em um campo de refugiados. Lá conheci meu marido e nos casamos. Poucos meses depois, viemos para cá”. Por receio do marido não gostar, Sida preferiu não ser fotografada. Deixou, porém, que fosse fotografado um pedaço de papel amassado encontrado pelo acampamento, no qual tinha escrito um poema curto.

Segundo a brasileira Olívia Seiko Tarora, coordenadora de comunicação e diretora de conteúdo criativo da I AM YOU, uma das ONGs que trabalham no acampamento, é comum encontrar outras mulheres falando sobre poesia ou escrevendo algumas em Ritsóna. “Nas tentativas de conseguir me aproximar delas, aprendi mais sobre seus gostos e desgostos. Assim, descobri que muitas gostam de escrever poemas”, contou Olivia.

Procuradas pela reportagem para falar sobre seus poemas, outras refugiadas preferiram não se manifestar. Muitas dela ainda não possuem status de refugiada ou de asilo, outras preferem preservar o nome e a imagem pela religião ou por causa dos companheiros.

Art Dubai inclui residências artísticas no mapa das feiras de arte

O vídeo NAU/NOW, de Cinthia Marcelle e Tiago Mata Machado é uma das obras que a galeria Vermelho apresenta na Art Dubai. É uma obra comissionada pela Fundação Bienal de São Paulo como parte do projeto “Chão de Caça”, 2017, exibido no Pavilhão do Brasil, na 57 a Biennale di Venezia. FOTO: Cortesia Galeria Vermelho

Feiras de arte já incluíram seminários, performances e mostras com curadoria sem obras à venda em sua programação, mas a realização de residências artísticas foi a novidade que Art Dubai trouxe ao circuito, no setor denominado Residents.

“Residentes é uma plataforma pioneira e única, que reúne diferentes energias, sinergias, geografias e práticas artísticas, o que em geral não se vê no mesmo local”, disse o espanhol Pablo de Val, diretor artístico de Art Dubai.

Variando entre quatro e oito semanas, 11 artistas de distintos países, da turca Jennifer Ipekel ao espanhol radicado nos Estados Unidos José Lerma, Residents de fato apresentou temperatura bem distinta do resto da feira, sendo mais caótica e menos objetual.

Art Dubai chegou, agora em 2018, à sua 12ª edição com um total de 105 galerias de 48 países, o maior número de sua história. Apesar de ser importante vitrine para galerias do Oriente Médio, Ásia e África, galerias de peso da Europa como as italianas Franco Noero e Continua, a francesa Templon, a espanhola Elba Benítez e a inglesa Victoria Miro também estão presentes. Do Brasil, a única participante é a Vermelho.

Em seu estande, a galeria paulistana apresentou uma seleção de obras da mineira Cinthia Marcelle, incluindo o vídeo realizado em parceria com Tiago Mata Machado, NAU/NOW, que fazia parte do projeto Chão de Caça, a ocupação do pavilhão brasileiro na 57ª Bienal de Veneza, realizada no ano passado.

A feira ocorre no complexo de hotéis de luxo Madinat Jumeirah, o que combina com o estímulo ao turismo de luxo dos Emirados Árabes, que recentemente abriu o Louvre Abu Dhabi, um projeto de cerca de cerca de R$ 2,5 bilhões de reais só na construção projetada por Jean Nouvel, além de R$ 1,7 bilhão pago ao Louvre para o uso da marca.

Detalhe do estande da galeria Vermelho na Art Dubai.

Salto Febril

Além da seção contemporânea, Art Dubai também contém um segmento de galerias de arte moderna, e junto a ele uma mostra com curadoria de Sam Bardaouil and Till Fellrath, que nesta edição também fizeram parte do comitê de seleção da feira.

Em Dubai, a dupla que atualmente dirige a Fundação Cultural Montblanc apresenta a exposição That Feverish Leap into the Fierceness of Life (o salto febril na ferocidade da vida), que reúne cinco grupos de artistas de cidades árabes no decorrer de cinco décadas. O título foi extraído do Manifesto de um desses coletivos, o Grupo de Bagdá para a Arte Moderna, escrito em 1951.

Nesse sentido, aqui se revela uma importante iniciativa da feira, já que dá visibilidade ao circuito internacional uma produção local bastante desconhecida. Esse é o caso da Escola de Casa Branca, que reuniu artistas radicais, agrupados em 1966 e três anos depois expunham no espaço público como forma de não estarem vinculado a uma elite, o que só pode ser visto como ironia em Dubai.

Agenda: confira os destaques de 24 a 30 de março

Paulo Pasta, 'Sem Título', 2014

Paulo Pasta: Projeto e Destino, individual no Tomie Ohtake, em São Paulo, a partir de 24/3

Nesta individual de Paulo Pasta, o curador do Instituto Tomie Ohtake, Paulo Miyada selecionou treze pinturas produzidas nos últimos treze anos que refletem o arsenal pictórico do celebrado artista paulista. Projeto e Destino é a primeira exposição que reúne um conjunto de suas pinturas de dimensões quase arquitetônicas. No dia 24, também abre Se o paraíso fosse assim tão bom, exposição de Cecily Brown formada por um conjunto de trabalhos da última década de sua carreira.

Cecily Brown, ‘Paradise (to go)’, 2015

Thiago Rocha Pitta, ‘Marina com cianobactérias’, 2017

Thiago Rocha Pitta: O primeiro verde, individual na Galeria Millan, abertura em 24/3.

A mostra marca um novo capítulo em sua meticulosa investigação acerca do meio ambiente, à medida que ele mergulha mais profundamente na origem e na evolução do planeta a partir de um conjunto de trabalhos – em sua maioria afrescos, além de uma instalação, uma escultura, uma aquarela e um vídeo – concebidos entre 2017 e 2018. A Millan também abre uma exposição de Paulo Pasta no dia 24.


Antônio Malta Campos, Preto, 2018

Antônio Malta Campos, individual na Galeria Leme, até 12/5

Para esta exposição Antonio Malta Campos concebe suas pinturas pensando não apenas nas composições internas de cada obra mas também na relação que estas estabelecem entre si. A lógica de figura-fundo presente em cada uma das suas telas é refletida à macro-escala da exposição, onde cada uma das obras é cuidadosamente elaborada e posicionada para ser vista em relação às demais e de forma a estabelecer um profundo diálogo, compositivo e cromático. O artista expande a sua lógica compositiva para lá dos limites da tela, aplicando-a e potencializando-a na totalidade da exposição.


Abraham Palatnik, ‘Sem Título’, 2018

5 anos, coletiva na Carbono Galeria, abertura em 26/3

Comemorando cinco anos de sua existência, a Carbono abre exposição com um recorte de seu acervo, que possui mais de 200 edições exclusivas. Neste dia, também lançará uma edição comemorativa assinada por Abraham Palatnik, realizada com exclusividade para a galeria.


Mostra faz parte da programação da Feira Plana.

Germem, coletiva na Galeria Jaqueline Martins, abertura em 27/3

Germen é um cenário onde as publicações da Ediciones Popolet, editora dos artistas Ignacio e Martin, podem ser apresentadas e estendidas em projetos generativos em vez de apenas livros estáticos. Germen é apresentada como um espaço aberto de participação, interação e diálogo. É também uma plataforma de contemplação que parte do espaço da publicação para ir além e pensar como nós habitamos os livros, dentro e fora deles.


Jonas Barros, série ‘Experimentos para bovinos’, 2015

Dialetos 2, coletiva no Centro Cultural São Paulo, até 6/5

A exposição Dialetos 2 reúne 20 jovens artistas contemporâneos do cenário do Planalto Central. Nela será apresentado um recorte com visão diversificada e pluralista de artistas do estado de Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Distrito Federal e Goiás. Esta edição, assim como a primeira, realizada em 2012, não tem a intenção de apresentar uma visão totalizadora da produção emergente atual; restringiu-se, portanto, à seleção de obras de alguns jovens do Centro-Oeste que têm se destacado em mostras regionais e nacionais e em mecanismos de mapeamento, como os salões de arte de Anápolis, Jataí, Campo Grande, Cuiabá e Brasília.


Ana Luiza Dias Batista: Chão Comum, individual na Pinacoteca de São Paulo, a partir de 24/3

Em sua produção, Ana Dias Batista frequentemente explora objetos cotidianos, muitas vezes alterando a sua escala e função. A exposição desses trabalhos também enfatiza o esforço da Pinacoteca em promover o diálogo entre a arte contemporânea e a história da arte. Também no dia 24, são abertas as exposições de Rosângela Rennó e José Antonio da Silva, além da mostra Arte Colonial na Coleção da Fundação Nemirovsky.


POR AÍ…

Julio Le Parc, ‘Sphère bleue’, 2001 / 2013

Art Basel Hong Kong, feira internacional de arte, de 27 a 31/3

A feira de arte que funciona como farol no mundo asiático está fazendo muito sucesso após seu ressurgimento, há cinco anos. Neste ano, quatro galerias brasileiras estarão presentes em Hong Kong. São elas Bergamin & Gomide, Fortes D’Aloia & Gabriel, Mendes Wood DM e Nara Roesler.

Diretor do Itaú Cultural é escolhido como destaque em prêmio do governo de SP

Eduardo Saron esta à frente do Itaú Cultural desde 2002
Eduardo Saron esta à frente do Itaú Cultural desde 2002

Destaque na premiação, que acontecerá na próxima segunda-feira (26), em São Paulo, Eduardo Saron será recebido pelo Secretario de Cultura, José Luiz Penna, como Destaque Cultural do Ano e pela sua contribuição e incentivo a difusão de cultura no estado, ele receberá prêmio de R$100 mil.

Mestre em Administração e pós-graduado em Turismo Cultural, o homenageado soma experiência em Gestão Cultural. Prova disso é sua presença nos conselhos do MASP, SP Companhia de Dança e do Conselho Nacional de Políticas Culturais do Ministério da Cultura.

Em entrevista ao PáginaB!, o secretário de Cultura do estado, José Luiz Penna, afirmou ter recebido com felicidade a notícia da homenagem a Saron como Destaque Cultural. “Foi unânime a escolha dele pelo conselho do Prêmio. O conjunto de obra dele é imbatível, realmente dignificante e justo o reconhecimento da instituição [Itaú Cultural] e dele próprio”, disse.

Ao PáginaB!, Saron falou sobre a gestão cultural brasileira. Para ele, a alta rotatividade de ministros no MinC, Ministério da Cultura, é um problema considerável. “Em 32 anos, já passaram pela pasta 20 ministros, uma média de 1,6 por ano. Lembrando que, neste período, a pasta chegou a ser extinta no governo Collor e, mais recentemente, no início do governo Temer”, explicou. “Isso dificulta muito a criação de uma política cultural pública, com ações efetivas e pensamento estratégico”.

Para o diretor do Itaú Cultural, o investimento na pasta deveria ser prioridade, e o sucesso de politicas publicas culturais poderiam levar à redução de investimento de recursos em Segurança Publica e Saúde a médio prazo.

Atualmente, a Secretaria de Cultura recebe 0,27% do orçamento estadual, “isso representa cerca de R$500 milhões. Precisamos de pelo menos o dobro disso”, apontou José Luiz Penna, secretario da pasta. Questionado sobre as expectativas com as eleições para governo estadual, Penna disse apenas que espera que “o crescimento da Secretaria correspondente a expectativa da sociedade sobre a cultura sensibilize os homens públicos”.

Em 2017, Eduardo Saron completou 15 anos à frente do Itaú Cultural. Em entrevista ao portal, ele falou sobre o que, em sua avaliação funcionou ou não nas gestões do MinC e de outras instituições:

O Ministério da Cultura tem uma alta rotatividade de ministros, qual o impacto disso na criação e salvaguarda de políticas culturais?

A rotatividade no Ministério da Cultura é, de fato alta, o que não é positivo. Nos seus 32 anos de existência, passaram por lá 20 ministros, uma média de 1,6 por ano. Lembrando que, neste período, a pasta chegou a ser extinta no governo Collor e, mais recentemente, no início do governo Temer. Os dois ministros mais longevos foram o Francisco Weffort, que ficou 8 anos, durante o governo FHC, e o Gilberto Gil, que ficou 6 anos, durante o governo Lula. Isso dificulta muito a criação de uma política cultural pública, com ações efetivas e pensamento estratégico.

Qual, na sua avaliação, seria um primeiro passo para alinhar as ideias e a realidade na construção de políticas culturais solidas que sofram menos com essa rotatividade?

Ao contrário do que é recorrente no país, a cultura deveria ser encarada como uma prioridade nas políticas públicas. Na medida em que ela assume um papel de centralidade, a médio e longo prazo, precisaremos de menos recursos para a segurança pública e de menos recursos até para a saúde.

Qual o papel do Itaú Cultural na mediação entre cultura e o acesso da população a ela?

O Itaú Cultural surgiu dois anos depois do MinC sendo, muito provavelmente, uma das primeiras instituições privadas brasileiras a serem criadas com um objetivo concreto e uma agenda voltada para a valorização da cultura. Em um primeiro passo, trabalhamos firmemente pela democratização da cultura, procurando garantir o acesso por todas as populações de todos esses brasis que compõem o país. Agora, o passo é garantir a manutenção da democratização na cultura brasileira e iniciar uma construção de valores de uma democracia Cultural, em que sujeitos, indivíduos assumem o protagonismo nas políticas culturais junto com as instituições e poder público. Acredito que caminharemos muito neste sentido.

Que nomes ou instituições, hoje, trazem bons projetos culturais para o Brasil, na sua avaliação?

Não citaria apenas uma. Há quase dois anos um conjunto de mais de 150 instituições de todo o país nos unimos e formamos o Fórum Brasileiro Pelos Direitos Culturais. Este coletivo foi fundamental no retorno do MinC, na batalha pelas reformulações da Lei Rouanet e tem brigado pelos recursos que o poder público deveria e deve dedicar à cultura. Acredito muito na relevância e no trabalho de todas as instituições, coletivos e pequenos produtores que formam o Fórum.

E quem deixa a desejar e por quê?

Deixam a desejar as instituições que se agarram no que chamo de CEP – Catraca, Espetacularização e Ponte. Para algumas instituições, o importante é o número de pessoas que passam pelas suas catracas, elevando, assim, a distorção sobre o que é realmente a democratização do acesso e a constituição dos direitos culturais. Claro, que ter público é fundamental, mas não deve ser a única métrica para tudo. É preciso formar o público, oferecer formação cultural.

A espetacularização tem a ver com o boom das commodities reduzindo a cultura meramente a projetos de marketing que aposta em alocar recursos mais nos fogos e artifícios, do que no fazer artístico ou na ação cultural. Não estou falando contra o business e a indústria do entretenimento, nem ignorando a importância de alavancagem reputacional das marcas pela cultura, pois também são importantes para a indústria cultural e para as boas relações. Meu ponto se estende à artificialização dos projetos em nome da venda e do natural desespero, colocando em segundo plano o artista.

Por fim, o “p” de ponte e de prédio. As commodities geraram superávits fiscais sobre bolhas e o gestor público transferiu um cacoete dos governantes para o mundo cultural. O mais importante era construir pontes, ao invés de cuidar do saneamento básico ou de outras ações mais estruturantes, porém com pouco impacto midiático. E aí o Brasil se deparou com um número importante de novos prédios culturais, esquecendo, muitas vezes, dos já existentes ou mesmo da sustentabilidade desses novos. Infelizmente, o boom das commodities passou e a orientação do CEP se deparou com a realidade do mundo digital e da criatividade, na qual as commodities são sarcasticamente antagônicas. Portanto, a catraca, a partir da espetacularização e dos prédios, não resistiu.

Casos como o do MAM e do Queermuseum representam um risco para as liberdades de expressão e manifestação de outros museus e artistas ou deveriam ser pensados como casos isolados e específicos?

Qualquer reação extrema, de censura e impedimento à liberdade de expressão representam sérios riscos. A meu ver, a origem destas crises com as quais nos deparamos no ano passado é o comportamento gerado pelos algoritmos das redes sociais, que colocam em contato apenas aqueles que se afinam entre si. Os museus têm de dialogar com isso e usar acontecimentos como estes como aprendizado. “A classe artística tem de liderar esse debate na sociedade, tem o desafio de encontrar o ponto de equilíbrio entre a liberdade de expressão e a defesa da criança e do adolescente. A partir destes acontecimentos, começamos a trabalhar para conhecer o Estatuto do Menor, criar um manual para fazer a autoclassificação das exposições e poder informar corretamente o público sobre o conteúdo das mostras que vai ver.

Livro ‘Cildo – estudos, espaços, tempo’ concorre a Prêmio ABCA

Em evento de lançamento na galeria Luisa Strina, Cildo conversou com os organizadores Guilherme Wisnik e Diego Matos.

A pesquisa presente no livro Cildo – estudos, espaços, tempo, lançado pela Ubu Editora, é uma das concorrentes à categoria Sérgio Milliet, do Prêmio da Associação Brasileira de Críticos de Arte. Organizada por Guilherme Wisnik e Diego Matos, a edição mergulha no universo de Cildo Meireles, um dos artistas contemporâneos brasileiros mais cultuados.

Outra produção da Ubu, o livro 3nós3: Intervenções Urbana, fruto de pesquisas de Mario Ramiro, é outro que concorre na mesma categoria, além de Artes VisuaisColeção Ensaios Brasileiros Contemporâneos, organizado por Fernando Cocchiarale, André Severo e Marilia Panitz e editado pela Funarte.

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Cildo participou do lançamento do livro, na Galeria Luisa Strina, em São Paulo. À esquerda, o artista autografa o livro; à direita, a equipe da Ubu Editora e os organizadores.

 

Leia artigo sobre o livro, publicado na edição 42 da revista ARTE!Brasileiros.

A metamorfose na obra do artista

Por Tiago Mesquita

O livro Cildo – estudos, espaços, tempo, lançado pela Ubu Editora, retrata a trajetória de Cildo Meireles a partir de seus procedimentos. Os organizadores Diego Matos e Guilherme Wisnik reuniram cerca de quarenta trabalhos, realizados ao longo de cinquenta anos de carreira. As obras são apresentadas por meio de fotografias de exposição, notas do artista, desenhos e projetos. Conhecemos como os trabalhos vieram a público, mas também os passos de elaboração de Cildo Meireles e parte de sua repercussão crítica.

Os vestígios nos ajudam a reconstruir os passos da obra. Acompanhamos as metamorfoses de alguns trabalhos importantes ao longo do tempo e entender a forma que eles assumem em diferentes fases: idealização, desenho, implementação e uso. A documentação veio do arquivo do próprio artista e é arrumada em ordem cronológica.

A relação dos trabalhos no livro nos faz pensar uma relação entre as ideias do que veio antes e o que veio depois. O livro é completado por uma excelente fortuna crítica que explora a interlocução da obra com a história da arte brasileira e estrangeira, a relação com diversas formas teóricas e os sentidos que a obra ganhou quando escapou da mão do seu autor.

O livro estuda as variações de algumas ideias e o sentido que elas ganham em diferentes formas de implementação inclusive. Por isso, os trabalhos mostrados não possuem nem uma técnica definida, tampouco pedem do espectador uma forma de atenção convencional. Talvez por isso trabalhos mais objetuais, como Ouro e paus, Estojos de geometria, Árvore de dinheiro, que pedem uma forma de contemplação mais tradicional, tenham ficado de fora da narrativa do livro.

A noção de estudo organiza a obra. O estudo seria um refinamento dos enigmas que colocam as convicções ideológicas em xeque. Seria um teste dessas percepções. Assim, faz lembrar o experimento científico, o teste de hipóteses.

Guy Brett, em um texto de 2005, republicado no livro, afirma que a produção brasileira da geração imediatamente anterior a Cildo Meireles confiou nos sentidos. Essa investigação da percepção foi uma maneira de encarar os limites de uma racionalidade burocrática. A arte devia se haver com esses limites e buscar uma nova relação com a vida.

Artistas como Lygia Clark e Hélio Oiticica se distanciam da contemplação racionalista tradicional para criar relações entre sentidos que estavam aparentemente desconectados. Assim, criaram situações ou ambientes, em que essas formas sensuais de perceber funcionam em alta voltagem. Corpo e mente, razão e sensibilidade, até mesmo as formas de convívio seriam refeitas por essas relações mais diretas e comunitárias. Essa promessa escapista, romântica e sensorial, não parece estar diante de Cildo quando ele começa os seus primeiros trabalhos.

O artista vem da geração batizada por Frederico Morais de “geração AI-5”. As promessas de modernização e a construção de uma percepção utópica não estavam no horizonte. As sensações em seu trabalho, daí em diante, se tornam espaço para a dúvida. Como aprendemos com o texto de Frederico, a experiência sensorial é colocada em dúvida. Assim, a aparência das esferas na instalação de Eureka/Blindhotland (1970-1975) é desmentida pelo seu peso e os sons amplificam o que Sônia Salzstein nomeia como confusão dos sentidos.

Por isso, o espaço dos primeiros trabalhos de Cildo, os Espaços Virtuais: Cantos (1967-8), não é expansivo. Ele se parece como um beco sem saída. O colorido de Desvio para vermelho (1967 – 84) não potencializa a percepção para além dos limites da racionalidade: o vermelho torna os objetos homogêneos. As experiências são negativas, de se procurar algo pelas sensações, pelos instrumentos da razão e não encontrar. O estudo parece esgotar esses saberes, em um exercício cético permanente da dúvida.

Cildo Meireles é provavelmente um dos artistas contemporâneos que mais influenciou a arte contemporânea engajada, à sua revelia. Diferente de muitos que usam a arte como veículo de convicções, mas é crítica ideológica, a crítica da maneira como pensamos quando acreditamos não pensar. A sua força política é a radicalização da incerteza e a indefinição. Esse livro nos traz a força da dúvida radical.

 

Um novo tenentismo?

"O prestígio do Judiciário levou a uma interpretação pouco usual da lei". FOTO: Ricardo Stuckert/Instituto Lula

*Por Lincoln Secco e Fernando Sarti Ferreira

A História nos ajuda a refletir sobre o presente com o mais perigoso dos métodos: o das comparações, como dizia o historiador francês Fernand Braudel. O que há então de comum entre a crise política que desembocou no golpe de abril de 2016 e o ciclo das revoluções tenentistas entre 1922 e 1935?

Os chamados “tenentes”, filhos das camadas médias urbanas da República Velha, eram oficiais de média patente, portanto sem o comando da instituição; seus principais líderes foram expulsos e passaram anos em meio a uma atividade conspiratória com civis.

O ideário tenentista consistia em defender a reforma eleitoral e o combate à corrupção. Queriam derrubar o governo para entregá-lo a um civil honesto. Uma ideologia tão ambígua quanto o destino de muitos de seus atores: alguns ex-tenentes aderiram ao comunismo (como o principal deles: Prestes) e outros se envolveriam com o integralismo e em várias tentativas de golpe de Estado.

Como o seu discurso correspondia à antiga campanha civilista contra a fraude eleitoral e era facilmente manipulável pelas oligarquias dissidentes, estas assumiram a direção política do movimento em 1930 e os tenentes viram-se marginalizados.

Os juízes em cena

O Judiciário não tem os mesmos poderes das Forças Armadas. Depois do declínio do tenentismo, toda ação golpista de natureza militar foi invocada sob as ideias de hierarquia, disciplina e centralização de comando. Juízes não exercem diretamente a violência – apesar de sempre ratificá-las – e não têm unidade. Muitas decisões de seus membros são invalidadas por cortes superiores.

Acontece que, desde o julgamento da ação penal 470 (conhecida como mensalão), aquele poder foi marcado por um protagonismo jamais visto em nossa história. Ele se formou mediante o conluio da mídia e de uma base social de classe média militante contra o PT. Tudo sob a liderança improvável de Joaquim Barbosa.

Ele caiu como uma luva para uma direita racista se eximir de culpa no ataque cerrado ao governo que, apesar de escolhas antipopulares, dirigiu políticas de igualdade social, de gênero e racial que nunca haviam sido implantadas no País.

O prestígio do Judiciário levou a uma interpretação pouco usual da lei. A teoria do domínio do fato, invocada por Joaquim Barbosa, só foi usada daquela vez. Assim como ele mesmo. Uma vez punidos o tesoureiro e dois ex-presidentes do PT, Barbosa e sua teoria deixaram o palco. Afinal, nos bastidores ninguém pensou em mantê-la no roteiro para cancelar a anistia aos criminosos da ditadura militar ou punir presidentes de outros partidos.

A ambição justiceira vem desde o julgamento do mensalão. Contou com o conluio da mídia e os aplausos de uma classe média militante contra o PT. Para uma direita racista se eximir de culpa, caiu como uma luva a liderança de Joaquim Barbosa

Em 2013, outra inovação: a delação premiada foi ampliada para organizações criminosas. Assim foi possível coagir grandes empresários a delatar seletivamente em troca de penas alternativas. Esse foi o caso da negativa do Ministério Público Federal de aceitar a delação da Odebrecht em março de 2016, uma vez que ela extrapolava o alvo da operação: o financiamento por meio de caixa 2 do PT, e não dos outros partidos que a empresa prometeu entregar.

Essas modificações foram acolhidas por um sistema que estava previsto, mas não realizado na Constituição de 1988. O Ministério Público ganhou foros de um novo poder no Estado e a Polícia Federal deixou de ser um órgão policial do Executivo para atuar com autoridade política, embora seja provável que a hipertrofia desses poderes só tenha se exibido sob a inépcia do PT.

A disputa política de 2014, apesar de tudo, apontava a continuidade daquele partido na Presidência. Isso bastou para que se invocassem os comediantes sérios do II Ato.

A operação Lava Jato

A ambição justiceira dos membros da força-tarefa da Lava Jato, todos aprovados em disputadíssimos concursos públicos, origina-se principalmente de sua origem de classe, assim como os tenentes. Estaríamos no terreno da comparação ou da longa duração braudeliana em que certas realidades se modificam com uma lentidão mais do que secular?

A verdade é que a classe média se move como um pêndulo, oscilando entre as representações políticas das populações superexploradas do nosso País e o projeto de modernização conservadora das classes dominantes.

Ao ter seus espaços antes privilegiados – universidades federais, aeroportos e vias de trânsito – ocupados por setores palidamente beneficiados pelo tripé distributivista – programas de transferência de renda, ampliação do crédito para o consumo e elevação do salário mínimo – construído ao longo dos governos do PT, os setores urbanos novamente se aferraram à sua particular visão de mundo de quem não produz e não se apropria do que é produzido, apenas gerencia. Isso gera uma leitura mística e voluntarista do mundo, em que haveria o combate entre o bom e o mau, o corrompido e o puro.

O tenente João Cabanas, durante a Revolução de 1924, relata que alguns dias após o início do levante na cidade de São Paulo uma multidão invadiu e saqueou os moinhos das empresas Matarazzo e Gamba no bairro operário do Brás. Na frente desses estabelecimentos, Cabanas relata uma espécie de comício improvisado por trabalhadores de todos os tipos que listavam as mazelas que os afligiam. É claro que havia protestos contra a corrupção, mas também denúncias contra os senhores Matarazzo e Gamba, os “exploradores do povo”, os grileiros e grandes proprietários, “essa meia dúzia que formava uma casta onde as posições eram herdadas entre pais, filhos, sobrinhos, etc”.

João Cabanas depois vinculou-se definitivamente às lutas populares. Ao contrário de alguns magistrados atuais, os tenentes arriscaram suas vidas, viveram na clandestinidade e não auferiam privilégios, muito menos altos salários como os de alguns conhecidos juízes.

Moralismo

A operação Lava Jato tem um caráter seletivo e já mostrou que não se trata de uma cruzada contra o corrupto e violento empresariado brasileiro e seus representantes no Estado. Os justiceiros atuais não irão percorrer nem meio metro a pé contra os “senhores Matarazzo e Gamba” de hoje. Os novos tenentes se satisfazem com premiações globais, sessões de autógrafos e apartamentos em Miami.

O reino da virtude não é tolerável por tanto tempo, como a guilhotina ensinou ao incorruptível Robespierre. É claro que a força do moralismo judiciário se assentou em reais casos de corrupção. Só que juízes não podem substituir os políticos. Mesmo quando eleitos, ingressam num sistema fundado em negaças, negociações e negociatas. Não há bancadas desinteressadas no Congresso, ainda que se vote em nome de Deus, pátria e família, uma trindade na qual os nossos deputados já provaram não acreditar muito.

A nossa virtude cômica está longe de uma revolução, por isso no dia 21 de junho de 2016 o lançamento de um livro sobre o juiz Moro e os membros da Lava Jato se tornou um ato de celebração. Com seus cônjuges, foram tietados com selfies e autógrafos.

Em 30 de setembro de 1791, quando Luís XVI assinou o decreto que dissolvia a Assembleia Nacional, um grupo de populares recebeu Robespierre com gritos de “Longa vida ao incorruptível!”. Robespierre desceu da carruagem e gritou: “Cidadãos! Que atitude humilhante estão adotando? Já se esqueceram que são um povo livre?”.

* Lincoln Secco é professor livre docente de História Contemporânea na USP. Fernando Sarti Ferreira é mestre e doutorando em História Econômica na USP

Em busca da água perdida

"A água mais cara é aquela que não existe", diz Newton. FOTO: Pedro França/Agência Senado

Soa esdrúxulo afirmar, mas é possível concluir. A crise de abastecimento de água que assola o Estado de São Paulo trouxe um ponto positivo: tornou urgente a conscientização de que é preciso reinventar a gestão de nossos recursos hídricos. Quem afirma, em entrevista à Brasileiros, é Newton de Lima Azevedo do World Water Council (WWC), o Conselho Mundial da Água. A entidade não governamental defende o insumo vital em âmbito global, agrega cerca de 300 instituições de 70 países e foi criada na França, em 1996, na cidade de Marselha. No WWC, Azevedo exerce o papel de governador, como são chamados os representantes de cada uma das nações filiadas. A entidade também é presidida, desde 2013 e até 2017, por outro brasileiro, o engenheiro civil Benedito Braga, acadêmico da USP, com décadas de atuação nas questões relativas à defesa da água.

Azevedo também é vice-presidente da Associação Brasileira da Infraestrutura e Indústrias de Base (ABDIB) e está na linha de frente de um compromisso firmado pelo Brasil em fevereiro último: sediar em 2018, na capital federal, Brasília, o 8o Fórum Mundial da Água. A realização do evento no Brasil é providencial. Converge com a intenção do WWC de ampliar suas políticas globais, pois essa é a primeira ocasião em que o fórum será realizado em um país do Hemisfério Sul (a 7a edição acontecerá na Coreia do Sul, em abril de 2015), e permitirá o aprofundamento de soluções para o enorme déficit na América Latina.

Somente no que tange às demandas de saneamento básico do continente, mais de 300 milhões de cidadãos não têm esgoto tratado, sendo que um terço deles vive no Brasil. Em nosso território, além dos dejetos orgânicos e químicos, que contaminam lagos, rios e oceano, ainda há estados da Federação, como o Piauí, que desperdiçam até 60% da água potável tratada pela precariedade da rede de distribuição. Mas a questão do abastecimento para o consumidor comum, que demanda 10% da água tratada, segundo o WWC, é só a ponta do iceberg de uma gestão irresponsável intimamente ligada ao poder privado. Setenta por cento da água potável do País tem uso indiscriminado no agronegócio. Outros 20% destinam-se à indústria, que começa a ensaiar mudanças de hábitos, desde que passou a ser penalizada com multas severas. Como veremos a seguir, é possível ser otimista, mas ainda há muito a ser feito para resgatarmos a água perdida.

Brasileiros – Como se deu a escolha do Brasil para sediar o 8o Fórum Mundial da Água?
Newton de Lima Azevedo – O argumento mais forte que defendemos para trazer o fórum ao Brasil foi: “Se o conselho quer realmente ser tratado como Conselho Mundial da Água, tem que ser, de fato, mundial”, pois esse será o primeiro fórum no Hemisfério Sul. Havia nove concorrentes e, no final, sobraram dois: o Brasil, com sede em Brasília, e a Dinamarca, com sede em Copenhague. E é bem difícil comparar Copenhague com Brasília, pois são cidades com realidades totalmente diferentes. Por aqui, ainda temos cem milhões de brasileiros sem acesso a esgoto tratado. E esse chamamento de trazer o fórum para a América do Sul foi estratégico, já que em todo o continente há 300 milhões de pessoas sem saneamento básico. Cem milhões aqui e outros 200 nos outros 12 países. Com todo o respeito a Copenhague, lá se discute o terceiro derivado do crédito de carbono, mas aqui ainda temos cocô indo para os rios, os lagos e o mar. No Brasil água ainda é um “bicho” indomado. Fomos para a votação aberta e tivemos 23 dos 35 votos.

Em 2018, haverá um novo pleito presidencial. Nos próximos quatro anos, até a realização do fórum, que medidas devem ser cobradas do presidente que será eleito em 2014?
Quem está assinando esse contrato com o WWC é a cidade de Brasília, com o aval do governo federal, por meio do Ministério das Relações Exteriores e do Ministério do Meio Ambiente. Assinaremos o contrato em 15 de setembro próximo e pretendemos blindar o evento de qualquer conotação política. Para mantermos essa chama acesa, há uma ação fundamental, que também dependerá do apoio governamental: estamos fazendo um projeto que começará a ser implantado imediatamente após o próximo fórum, que acontecerá na Coreia do Sul, em 2015. Um programa que se estenderá do final do próximo ano até seis meses após o fórum do Brasil, em 2018, quando entregaremos todos os relatórios e encaminhamentos para o país sucessor. Pretendemos “irrigar” discussões em nossa sociedade e precisamos do apoio da imprensa para conscientizar a opinião pública.

Independentemente do fórum em 2018, o Brasil já exerce o papel de protagonista dessas questões na América Latina?
Sim. O Brasil tem uma legislação forte e os modelos de negócio existem. A questão das Parcerias Público-Privadas (PPPs) ainda é alvo de tabus, mas é inegável que elas também evoluíram. É importante dizer que o WWC não tem nenhuma vertente ideológica. Ele é pragmático, assim como a questão da água, que é bem objetiva. Um exemplo: para universalizar o acesso a esgoto e água potável no Brasil em 30 anos, precisamos investir R$ 20 bi por ano. Com todo o esforço que o governo federal tem feito, chegamos a R$ 9 bi. Então, das duas uma: ou universalizaremos esses serviços em 50 ou 60 anos, ou teremos de criar um ambiente jurídico-institucional que faça existir agências reguladoras e atrair aporte financeiro. A questão é que, no Brasil, para a iniciativa privada, os serviços ligados à água concorrem com outras áreas de infraestrutura. Daí o investidor pensa: “Concessão de rodovias é um puta negócio! E não é que a energia é ainda melhor?!”. Até o cara pensar que saneamento é legal, demora… Mas a questão é que não dá mais para ficar nessa. Temos de rever o que significa ser “legal”. O saneamento tem restrição da participação privada porque ainda há um discurso babaca, em minha opinião, de dizer que água é direito do cidadão e dever do Estado, mas aí o cara morre de sede ao lado da plaquinha em que isso está escrito.

E como podem ser integradas as ações do Estado com a iniciativa privada?
Nos últimos dez anos, houve evolução das PPPs, mas o setor de recursos hídricos pode e deve amadurecer ainda mais. É preciso melhorar as gestões integradas, pois temos um arcabouço jurídico de razoável para bom. É preciso que a sociedade também se conscientize e cobre essas ações. No caso de São Paulo, é terrível dizer isso, mas a crise colaborou para a penetração da discussão na sociedade. Há pesquisas que dizem que a falta de água, claro, é problema dos que mais sensibilizam o brasileiro. Já com relação ao esgoto, o cidadão não tem a menor ideia do problema que enfrentamos e não quer saber. Ele aperta a descarga e está pouco se importando se aquilo caiu no colo do vizinho da rua de trás. São esses conceitos que a gente quer bater de frente, porque temos água num nível razoável de abastecimento e qualidade. Já o esgoto é essa vergonha. Inadmissível pensar que, em um País que é a sétima potencia mundial, o cocô das pessoas vai direto para o rio ou para o mar.

E por que isso ainda é tolerado?
No Brasil, o saneamento é tratado como o primo pobre da infraestrutura. Mas se não temos esgoto, de quem é a culpa? Costumo dizer que é como no casamento, se a relação não vai bem, nunca existe culpa de um lado só. Então, há uma série de “culpas” e de “culpados”. A começar pelo problema cultural. O Brasil parece não ter mesmo a real dimensão do impacto desse descaso. Basta dizer que para cada real investido em saneamento básico podemos economizar quatro em saúde pública. Mas o problema mais sério é, sem dúvida, a atomização da responsabilidade. Veja o exemplo das telecomunicações, hoje em dia, temos mais celular do que pessoas no Brasil. Há pouco mais de 20 anos, ter uma linha telefônica por aqui era investimento. Não há dúvida de que quando você tem a concentração da regulação e do controle em âmbito federal é mais fácil ser eficaz. Agora, com relação ao saneamento, há uma confusão absurda, pois o responsável – último na hierarquia, mas o primeiro por ser o executor – é o prefeito. No Brasil, deve haver umas 300 cidades com prefeitos porretas, empenhados em levar saneamento básico à sua população, mas há também outras três mil nas quais o prefeito é o Toninho da Farmácia que tem outros mil problemas para lidar antes de querer fazer um plano municipal de saneamento. Não estou, com isso, dizendo que temos de fazer uma espécie de “Sanebras”, mas a dificuldade é não ter essa gestão integrada entre Federação, Estados e Municípios.

Hoje, qual é a realidade de nossas estatais de saneamento?

Temos, hoje, 26 empresas estatais de saneamento básico. Dessas, 20 estão quebradas e têm a despesa maior do que a receita. Ou seja, se não há dinheiro nem para sobreviver, como é que terá para investir? O pior é que existem programas do governo federal para ajudar a revitalizar essas empresas com apoio da iniciativa privada, mas elas simplesmente não se movimentam. Embora, do ponto de vista constitucional, o governo federal não tenha ingerência para falar com esses Estados, ele teria o direito moral de chamar o governador e o presidente de cada uma dessas companhias para uma conversa franca. Afinal, essas 20 empresas são responsáveis por 70% dos serviços prestados para a população brasileira. Daí, você chama o cara e diz: “Ótimo que você veio até aqui. Não tenho nenhuma ingerência sobre seu Estado, mas ofereço a você um cardápio de três ou quatro soluções para revitalizar sua companhia de saneamento. Caso contrário, não vamos atingir a meta de, até 2030, universalizar o saneamento básico e a água potável no Brasil”. Em última instância, o cara tem o direito constitucional de dizer: “Não quero nenhuma das três alternativas. Vou voltar para minha cidade e continuar naquela pindaíba”. O problema é essa diluição e atomização das responsabilidades.

Como o senhor interpreta a crise em São Paulo?
Como disse antes, não dá para falar de universalização de água e esgoto, se não falarmos de todo o resto. Setenta por cento da água vai para o agronegócio, 20% para a indústria e só 10% para o abastecimento da população. Então, não adianta eu ficar aqui dando cabeçada com o consumidor comum, se a indústria estiver gastando água loucamente e o agronegócio, com a irrigação e a contaminação dos lençóis por agrotóxicos, estiver destruindo tudo por aí. Mas começam a surgir instrumentos legais que estão fazendo repensar essas práticas. A indústria, por imposição da Agência Nacional de Águas (ANA), começa a entender o conceito do poluidor pagador. O industrial passou a pagar caro quando devolve a água poluída para o meio ambiente, e esse dinheiro é revertido em investimentos para a bacia hídrica. A Confederação Nacional da Indústria (CNI) e a Confederação Nacional da Agricultura (CNA) estão começando a ter um diálogo com o WWC.

No caso do agronegócio, além do consumo de mais de dois terços do total de água potável, ainda há a questão da intoxicação dos lençóis por agrotóxicos…
A CNA está começando a dialogar com o WWC, mas a questão é que o agronegócio é um setor gigante, que sustenta milhões de empregos no País. Além de ser um dos pilares da nossa economia, há nele quem insista no seguinte discurso: “Ou gastamos água para colocar o alimento na mesa ou não teremos alimento”. Uma visão um tanto maniqueísta. Se você for a países como Israel concluirá que há grandes avanços na questão do reúso para a irrigação agrícola – que lá é feita com o menor gasto possível de água potável. Ou seja, se a gente não se movimentar para pensar a água em todos os setores, jamais resolveremos o problema. E o maior problema de gestão hoje é a perda por ineficiência. Das 20 companhias que estão quebradas, algumas como a Agespisa, do Piauí, perdem até 60% da água tratada antes mesmo que ela chegue à população. É preciso ter gestão eficiente, mas, para tal, é preciso ter agências reguladoras que cobrem essa eficácia. A indústria começou a mudar de postura, pois a coisa passou a doer no bolso, e ela teve de rever seus processos. Os movimentos estão aí, mais velozes do que antes, mas não tão rápidos quanto necessitamos. São Paulo, hoje, não tem mesmo o que fazer, a não ser economizar água e acender algumas velas para São Pedro, porque esses projetos tomam planejamento e tempo de execução. Pesquisas de 2002 já alertavam para o que está acontecendo em São Paulo, e não dá para deixar uma metrópole dessa dimensão a mercê de São Pedro.

Até que o Brasil atinja a meta de saneamento e água potável para todos, prevista para 2030, não corremos o risco de enfrentar outras tantas crises de abastecimento?
Tem um pouco de futurologia nisso tudo, mas uma coisa é fato: quanto mais houver consciência e quanto mais veloz essa consciência for incorporada a nossa sociedade, haverá menos chance de que isso aconteça. Agora, se continuarmos do jeito que estamos, podemos nos preparar para uma crise atrás da outra. Mas sou otimista e sempre vejo o copo meio cheio. Em São Paulo, a população tem dado uma boa resposta à crise e o povo brasileiro é porreta, a hora que entende, a coisa vai. Claro, ele não entendeu ainda o problema do esgoto, mas conversas como essa são cada vez mais importantes. A sociedade precisa ter acesso a essas informações numa linguagem mais palatável para mudar seus hábitos e cobrar ações.

Ironicamente, o Brasil tem reservas subterrâneas de grande magnitude, como o Aquífero Guarani. Por que esses recursos ainda não são explorados? É possível prever quando isso acontecerá?
Existem planos para o Guarani, mas não dá para precisar quando essa água chegará até nós. O grande problema é a falta de vontade política e de consciência da real importância da água. Quando exportamos carne, também exportamos a água que foi utilizada no processo. A água transita por tudo e tem enorme valor econômico. Água é PIB. Gera e faz perder emprego. Melhora ou piora a saúde do cidadão. Há vários países pequenos em que o esgoto é tratado a ponto de torná-lo água potável. Os caras bebem a água que vem do esgoto, felizes da vida, pois ela é inclusive mais limpa do que a nossa. Há também tecnologias como a dessalinização e temos uma enorme costa litorânea. Recursos não faltam. O que falta é capacidade de empreender. Agora, se a maioria das nossas empresas de saneamento não tem dinheiro nem para trocar hidrômetros, como é que eu vou dizer a elas para fazer uma estação de reúso com membrana ultrafiltrante japonesa?

Apesar da crise em São Paulo e de todos esses problemas, sua experiência permite ao senhor sustentar uma postura otimista?
Sou otimista, assim como outras pessoas que, há mais de 20 anos, começaram a trilhar esse caminho. Em 1995, atuei em uma das primeiras concessões privadas para tratamento de esgoto, na cidade de Limeira, interior de São Paulo. Muita gente foi contra. Tomamos tiros de todos os lados. Passados 20 anos, esqueceram que havia ali uma gestão da iniciativa privada. Hoje, a cidade tem 100% de água potável e 100% de esgoto tratado. A perda é de somente 16% e há 98% de aprovação da população. Além disso, há na cidade menos de 1% de inadimplência. O cidadão paga porque está contente e satisfeito com o serviço. É preciso perceber que o pior dos mundos é: a água mais cara é aquela que não existe.

O direito humano à água e a crise no abastecimento

*Por Léo Heller

O direito humano à água e ao esgotamento sanitário foi explicitamente reconhecido por Resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas de julho de 2010 e do Conselho de Direitos Humanos da ONU em setembro de 2010, com forte apoio do governo brasileiro. A Assembleia Geral reconheceu que se trata de “um direito humano essencial para o pleno desfrute da vida”, o que pode ser compreendido em articulação com outras definições sobre os direitos humanos, como a de que todos os direitos são universais, indivisíveis e interdependentes e estão relacionados entre si. Esse reconhecimento, a par de tornar os cidadãos dos vários países portadores desse direito e aptos a reivindicarem-no judicialmente, traz obrigações aos governos e gestores públicos.

O cumprimento do Direito Humano à Água (DHA) supõe assegurar água com disponibilidade, acessibilidade física, qualidade e segurança, financeiramente acessível e que cumpra com os requisitos de aceitabilidade, dignidade e privacidade. Semelhantes atributos aplicam-se ao direito ao esgotamento sanitário.

No atual momento, em que o País vive uma dramática crise no abastecimento de água, afetando fortemente sua região mais populosa, urbanizada e industrializada, cabe analisar a situação a partir da lente do DHA.

Inicialmente, avaliando o atual desabastecimento, verifica-se que, caso os princípios do DHA tivessem sido observados pelos responsáveis pela prestação dos serviços, as oscilações climáticas que vivemos não teriam se convertido em escassez de água para consumo humano.

Entre os princípios do DHA, espera-se dos Estados-membros das Nações Unidas que empreguem o “máximo recurso disponível” para assegurar o acesso. Violações a esse direito são consideradas situações de retrocesso. Obviamente, caso o planejamento do abastecimento de água nas localidades afetadas tivesse se dado de forma adequada, levando em conta as variações climáticas, mesmo as mais extremas, o problema não estaria ocorrendo com a atual magnitude.

As tendências científicas mais contemporâneas indicam que os sistemas de abastecimento de água têm de ser planejados de forma estratégica, criativa, adaptativa e capaz de aprender com as mudanças da realidade. Quando incorporarmos esses princípios efetivamente no Brasil, nossas cidades ganharão resiliência para enfrentar situações de estresse hídrico.

Outro aspecto que merece um olhar a partir do DHA são as medidas adotadas ou planejadas para enfrentar a crise. Aí reside a maior preocupação atual, pois sabe-se que, em situações de restrição de consumo, são justamente as populações mais vulneráveis as que mais sofrem seus efeitos. Justamente essa população mais indefesa, com menos capacidade econômica, tem de lançar mão de alternativas ao desabastecimento. Isso porque ela é a mais impactada, inclusive quanto à saúde. Refiro-me não apenas ao segmento da população visivelmente mais pobre, a exemplo da que vive nas vilas e favelas, mas também aos moradores de rua, aos idosos, às crianças e à população carcerária.

O atual momento requer colocar os princípios do DHA no centro da atenção dos decisores públicos. A gestão da crise, por meio de medidas para a restrição de consumo, sejam elas quais forem – redução de pressão nas redes, instrumentos econômicos punitivos, campanhas contra o desperdício, rodízio e racionamento – não deve assumir que todos os usuários sofrerão impactos equivalentes. Ao contrário de medidas de caráter universal, essas devem ser tomadas focalizando afirmativamente as parcelas mais vulneráveis da população, que devem ser protegidas, a bem do cumprimento do DHA.

Além disso, outros princípios do DHA também devem ser evocados neste momento: a transparência e a participação. Medidas para restrição do consumo não se restringem a um processo técnico de tomada de decisão. É um processo que tem implicações sociais diretas nas populações das cidades. Portanto, o processo decisório não deve ser uma exclusividade de gestores públicos e de especialistas. Deve ser um processo democrático, que conte com a participação dos representantes dos afetados, seja nos próprios fóruns constituídos para gerir a situação de crise, seja envolvendo os conselhos de participação social já instituídos.

*Pesquisador da Fiocruz-Minas, relator especial das Nações Unidas para o Direito Humano à Água Segura e ao Esgotamento Sanitário e membro da Plataforma Política Social