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Artigo: Lugares do Pensamento

Solón Robeiro, o arquiteto do sonho, 2016. Take do Vídeo desenvolvido em residência artística no museu Bispo do Rosário, arte Contemporânea

Por Tania Rivera*

Quando Paulo Herkenhoff, então diretor do MAR, me convidou para a curadoria da exposição que se chamaria Lugares da Loucura, preocupou-me o risco de este título reforçar a ideia de “loucura” como doença, como condição deficitária restrita a determinadas pessoas. Para relançar a questão com a arte, em um gesto político de suspensão de classificações excludentes e de reconhecimento do campo da “loucura” como uma complexa construção social, propus substituirmos o termo por delírio.

A curadoria levava-me, por esta via, a retomar algumas articulações teóricas fundamentais em minha trajetória. Foi a questão da psicose que me encaminhou de um doutorado em psicanálise para o estudo da arte, muitos anos atrás, em busca da caracterização de modos desviantes de construção do sujeito e da realidade. A noção de delírio foi muito importante nessa articulação, através da proposta de Freud de entendê-lo não como pensamento errôneo ou sintoma a ser eliminado, mas sim como reconstrução ativa da realidade por parte de alguém que a teria perdido devido a uma vivência de desestruturação grave. Delirar seria, neste sentido, um trabalho psíquico muito importante, que corresponde a uma tentativa de cura – e deve ser considerado, em minha opinião, como potência de criação de caminhos singulares na cultura.

Tal trabalho do delírio encontra portanto o campo da arte, que também propõe operações diversas de construção e transformação da realidade, convidando-nos a compartilhar novas configurações de sociedade, como explicita agudamente a produção artística mais recente. A intersecção entre “loucura” e arte deve hoje, portanto, ser tomada em chave política, afastando-nos das vias históricas de encontro entre elas no século XX pela idealização da primeira como “expressão” pura de um sujeito apartado da cultura (na ideia de “arte bruta” ou “outsider”) e na valorização da segunda como “terapêutica” nela mesma.

Mas como transmitir em uma exposição tais complexas elaborações conceituais? Como transformar tais ideias em uma proposta de experiência em dado espaço, com determinadas obras de arte? Esse era o desafio maior que Lugares do Delírio me colocava. Ele foi o guia, o ponto sensível, o problema que conduziu cada uma das ações curatoriais e levou-me a algumas elaborações que vou aqui rapidamente comentar.

A obra de Arthur Bispo do Rosário é, sem dúvida, aquela que mais diretamente evidencia a potência do delírio como reconstrução da realidade pela arte, e portanto, deveria ter lugar privilegiado na mostra. Mas como recortar sua obra infinita? De que forma se poderia ressaltar sua força de desvio e deriva, a presença movente do sujeito a refazer o mundo que nela se encarna? A resposta apresentou-se para mim de forma intuitiva, que só mais tarde desdobrou-se conceitualmente: diante de alguns trabalhos, no acervo do Museu Bispo do Rosário, decidi ter seus barcos como um dos eixos centrais da exposição, em torno do qual obras de outros artistas variados se espalhariam.

A escolha era um tanto delirante, talvez. Na seleção das demais obras de artistas variados, foram se apresentando muitos barcos, de forma surpreendente para mim, e eu os fui acolhendo. Inicialmente, como já disse, não havia justificativa teórica clara para a escolha das embarcações e durante a preparação da primeira versão da exposição, quando algum membro da equipe do Museu de Arte do Rio (MAR) me perguntava a razão de tantos barcos, eu respondia jocosamente que “no MAR… precisamos de barcos para não afundar”. Assim, eu tomava as palavras como coisas, como faz muitas vezes o delírio psicótico (e também a arte e a poesia). Apenas mais tarde, já na montagem da exposição, ficou patente a ligação dos barcos com a “nau dos loucos” na qual algumas cidades abandonavam seus loucos na Idade Média (como conta Foucault), assim como com a ideia de deriva (de Deleuze e Guattari) nos caminhos efêmeros e infinitos que o barco desenha na água, ou ainda a figura da jangada como frágil porém potente construção para aqueles que estão fora da linguagem, em Fernand Deligny.

O próprio conceito de delírio foi, assim, enriquecendo-se com esses objetos, recebendo novos predicados, outras articulações ao longo do trabalho curatorial concreto, do encontro com obras, artistas e o espaço expositivo. Em vez de consistir na aplicação de determinado conceito, a prática foi me levando a outras elaborações teóricas, em uma espécie de navegação sem trajeto predefinido, na qual o ponto de partida transforma-se a cada nova paragem.

O modo de disposição das obras no espaço foi o problema no qual o vai e vem entre prática e pensamento se desenvolveu mais fortemente. O desafio era claro e talvez fadado ao fracasso: como constituir uma “cena” delirante? Como fazer uma exposição que não fosse um discurso sobre o delírio, mas convidasse o público a experimentá-lo ativamente e de forma singular?

Preta com verde (da série Open House), 2007. Oxidação de emulsão ferrosa e óleo sobre madeira. Coleção do artista

A primeira ideia que me ocorreu foi que os diferentes objetos e esculturas deveriam se mesclar e contaminar, recusando a diferença entre artistas famosos e pouco conhecidos, entre obras inseridas no circuito convencional e trabalhos oriundos de instituições psiquiátricas. A aceitação da diversidade que a exposição tenta defender se concretizaria, assim, materialmente. Além disso, o contato entre diferentes trabalhos poderia eventualmente incitar novos olhares sobre eles – e assim expor Bispo ao lado de Cildo Meireles poderia reforçar a força conceitual do primeiro, por exemplo.

Radicalizando essa proposta, decidi recusar os suportes que habitualmente isolam cada obra e a expõem como fora do mundo à sua volta: a parede ou painel cenográfico no qual se fixa um quadro, o pedestal no qual se posiciona uma escultura. Decidi dispor as obras penduradas no ar por finos cabos de aço, a flutuar na arquitetura circundante, ou posicioná-las, em geral em grupo, sobre bases frágeis – mesas de pernas tão finas quanto possível e de alturas variáveis, dispostas de forma ramificada e complexa, de tal maneira que não há trajeto preferencial predefinido e cada um deve errar entre elas, traçando seu próprio caminho.

Só depois de ter tomado tal decisão percebi que ela punha em ato uma hipótese muito interessante sobre o delírio: a ideia de que ele recusa a superfície neutra de representação sobre a qual se inscreve cada objeto, isolado dos demais, em sua relação com determinada palavra. Uma vez rechaçada tal base da representação, cujo modelo seria o da folha de papel em branco na qual se inscreve algo, o mundo apresenta-se como palimpsesto, como contaminação de objetos e escritas múltiplas a se combinarem segundo o olhar – a leitura – de cada um de nós. Surpreendeu-me, então, atentar para o fato de que também a história da arte é marcada por estratégias diversas de construção de tal superfície e, pelo menos desde o início do século XX, de sua destruição, na tentativa de levar a arte para fora da representação e fazê-la reencontrar a vida (pulsante) e o mundo (sempre problemático).

Aos poucos, me dei conta de outra faceta, ainda, implicada no projeto expográfico: tratava-se da tentativa de pôr as obras em instabilidade, ou mesmo em movimento, à maneira do que se dava nas celas-ateliê de Bispo do Rosário enquanto ele estava vivo: as diferentes peças eram reposicionadas e às vezes modificadas por ele em um jogo complexo que Frederico Morais qualificou de “barafunda”. Sua dinâmica interna torna arbitrária a própria delimitação de cada elemento como “obra”, problematizando radicalmente as condições tradicionais de exposição. Buscando ativar tal dimensão – que passei a considerar como uma das características fundamentais do delírio –, minha tentativa foi de pôr virtualmente em movimento as obras, na sucessão de pontos de
vista de cada espectador
a passear entre elas.

O convite do Sesc Pompeia para acolher uma nova versão de Lugares do Delírio permitiu que tal proposta expográfica se expandisse e radicalizasse graças a sua singular arquitetura, diametralmente oposta à estrutura do “cubo branco”. Nesse espaço de convivência amplo e aberto no qual nenhuma superfície é neutra, em suas paredes de tijolinhos, seu lago serpenteante (como à espera de barcos que viessem habitá-lo) e sua continuidade com a área onde brincam as crianças, Lugares do Delírio parece mover-se em várias direções, no desdobramento de cenas múltiplas – de perto ou de longe, em suas panorâmicas e em seus cantos –, redesenhando-se em cada trajeto de cada espectador, no exato instante em que seu olhar transforma algumas obras e, para além delas – quem sabe? – talvez venha a mudar algo no mundo.


*Tania Rivera psicanalista, pesquisadora e curadora


Quando produzir nudes era um ofício profissional

Arquivo Fantasia, 2017. as folhas de contato p&b de hovland foram recriadas em animações de vídeo digital

Desde 1993, o brasileiro Maurício Dias e o suíço Walter Riedweg formam uma dupla artística, para a qual a ideia de parceria não se concretiza apenas no trabalho conjunto, mas, especialmente, em um tipo de trabalho que envolve também outras pessoas, coletivos ou comunidades.

É como se o método de trabalhar Dias & Riedweg se expandisse como uma necessidade vital e viral, incorporando sempre outros além deles próprios, uma abordagem praticamente única no cenário nacional das artes visuais, de egos tão inflados. Foi assim, só para citar um caso, com Os Raimundos, os Severinos, os Franciscos (1998), exibido na 24ª. Bienal de São Paulo, que envolveu porteiros e zeladores nordestinos da capital paulista.

Nunca são obras “participativas”, tampouco ilustrativas sobre o tema escolhido, mas uma espécie de aproximação afetiva, que seleciona momentos desses encontros e se formaliza de maneira muitas vezes encenada, próxima da ideia de uma obra de arte total, que acolhe o espectador em vários sentidos.

Em sua mais recente exposição, CameraContato, que esteve em cartaz na galeria Vermelho em abril e maio passados, pela primeira vez a obra de Dias & Riedweg se aproxima de outro artista, o fotógrafo norte-americano Charles Hovland (1954).

A obra de Hovland é surpreendente em si. Em um anúncio no tablóide novayorquino The Village Voice ele ofereceu seus serviços para fotografar as fantasias sexuais de interessados, nos anos 1980. Durante mais de 20 anos, Hovland retratou todos os tipos e representações de sexualidade de jovens e idosos, gordos e magros, ilustres e desconhecidos em seu estúdio em Manhattan, reunindo um arquivo de três mil rolos de filme PB, com as respectivas provas de contato.

Ainda nesse período, ele produziu mais de 450.000 cromos fotografando nus masculinos para revistas como Mandate e Honcho, sob o pseudônimo Chuck, trabalho que teve início a partir do convite de um de seus clientes. Além de fotógrafo, ele ainda é ativista de movimentos e organizações não governamentais na luta contra a AIDS, como ACT UP, ou seja, uma figura impar, mas protagonista hoje esquecido.

Foi a partir do imenso arquivo de imagens eróticas de Hovland, testemunha de um tempo de fantasia e desejo anterior às facilidades das câmeras digitais e dos nudes distribuídos em aplicativos de encontros, que Dias & Riedweg criaram CameraContato.

Em um momento quando instituições de arte são perseguidas por abordarem temáticas queer e museus se autocensuram para evitar ataques, a exposição foi um suspiro necessário frente à onda conservadora que ocorre no país.

A mostra foi composta por duas grandes instalações, Arquivo fantasia e Arquivo romance e subprodutos objetuais – fotos emolduras criadas a partir delas.

Em Arquivo fantasia (2017) as folhas de contato PB de Hovland foram recriadas em animações de vídeo digital, apresentadas em cinco vídeos verticais, com áudio das anotações do fotógrafo sobre seus modelos, lidas em voz alta por ele mesmo.

Arquivo romance (2018) projeta fragmentos de corpos nus retratados por Hovland mas vistos por um caleidoscópio, fragmentando assim as imagens eróticas, tornando-as às vezes visíveis, às vezes abstratas. Na mostra também foi exibido o filme Esperando um modelo, um documentário bastante subjetivo sobre Hovland em seu estúdio, um lugar bastante surreal cheio de pequenas coleções, de objetos religiosos a bonecas.

Assim, em CameraContato, a dupla apresenta pistas de uma história complexa, sobre um fotógrafo que retratava as fantasias sexuais de outros quando sexo se tornou sinônimo de morte com a Aids. Por isso, é uma mostra que, afinal, também fala de parcerias, cumplicidade e empatia, a estratégia central dos trabalhos das dupla.

Encontro garantido para os amantes da arte moderna e contemporânea latino-americana

A galeria SUR, de Montevideo, que costuma frequentar a sp-arte em São Paulo, detém um dos maiores acervos do artista argentino Antonio Berni (1905-1981). Nesta ocasião, exibiu um de seus trabalhos fundamentais, Incendio en el barrio de Juanito, de 1961. A pintura com chapas da série de Juanito Laguna (personagem criado pelo pintor para retratar a historia cotidiana de uma criança da favela) e participou, inclusive, da Bienal de Veneza de 1962, onde obteve o Gran Premio de Grabado y Dibujo.

Na Argentina, vários programas de capital público e privado colaboram com os projetos de aquisição dos museus. No caso, através do mAtcHinG Funds ArtebA – bAnco ciudAd,  el Museo Municipal de Bellas Artes de Tandil comprou a obra Rizoma (2017), Carolina Antoniadis, na Galeria Diego Obligado de Rosario. O Museo de Arte Contemporáneo de Salta adquiriu duas obras: La Plata de Agustín Sirai, na galeria Miranda Bosch, e I Fiori, da serie Kabuki, de Chiachio & Giannone. Esta última é um bordado à mão sobre lenço, de 2005, e foi adquirida na galeria Ruth Benzacar. Finalmente, o Museo de Arte Contemporáneo del Sur de Lanús ficou com Niña Argentina (2017), de Nora Iniesta, da Galería del In nito, e Soñar el Sueño, do artista Juan Andrés Videla, da Galería Jorge Mara.

O Programa Federal de Museos permitiu a aquisição de obras ao Museu Provincial de Bellas Artes Franklin Rawson, de San Juan. O museu escolheu uma obra de Elba Bairon, Sem Título, de 2017, feita de pasta de papel e pô de mármore. A Universidad Nacional de Tres de Febrero (UNTREF) comprou uma série de 8 óleos sobre tela, de 32 x 26 cm cada um, com retratos de livros realizados pelo artista Carlos Huffman, na galeria Ruth Benzacar.

O Museo de Arte Contemporáneo de Buenos Aires (Fundación Aldo Rubino) escolheu, na galería Maman Fine Arts, a obra Tony Donald (1965) de Luis Wells. Na galería Revolver, obra de 2018 de Martina Quesada, Letting the light back in, e a obra de Pablo Accinelli, Relación concreta, na galeria Luisa Strina.

O Museo Lucy Mattos, de San Isidro, participou pela primeira vez do  Programa Federal de Museos e levou para sua coleção Arbol Natural (2018), de Abel Rodríguez, um acrílico sobre papel. Instituto de Visión y Dama de Cao (2017), S/T da artista Silvana Pestana da galería Ginsberg de Lima, realizada em cerâmica e metal com medidas variáveis.

O Museo Castagnino+macro, de Rosario, se soma ao Programa Federal de Museos e adquire duas obras: uma instalação de Nina Kovensky, Realidad disminuida, da galeria El Gran Vidrio, de Córdoba, e a obra E lucevan le stelle (1988), de Juan Pablo Renzi, uma obra guache e acrílico sobre papel, da galeria Henrique Faria Buenos Aires & New York.

O Museo de Arte Latinoamericano de Buenos Aires (Malba) adquiriu três trabalhos do fotógrafo Leandro Katz e um de Teresa Margolles. No momento, o diretor artístico do museu, Agustiín Perez Rubio, deixa o cargo para voltar a seu país de origem, a Espanha (leia entrevista com ele clicando aqui). O Hotel Meliá Recoleta Plaza adquiriu nesta edição dois vídeos: Faces (2016), da artista brasileira Lia Chaia, na Galeria Vermelho, e Cámara (2017), de Elena Dahn,  na Maria Casado, produzida por celular como parte de exibição da artista em 2017.

Com o apoio da Agencia Argentina de Inversiones y Comercio Internacional, arteBA levou curadores e diretores de museus para que adquirissem obras de artistas argentinos para sua coleção.

Pablo León de la Barra, curador do Guggenheim Museum, de Nova York, adquiriu, na galeria Isla Flotante, obra da artista Mariela Scafatti, Ppink (2015). A artista foi revelação em Miami Art Basel 2017, ganhando, aos 44 anos, o BMW Art Journey por sua instalação Handcuff SecretsSecretos de esposas.

José Luis Blondet, curador de projetos especiais do Los Angeles County Museum of Art (LACMA), escolheu a obra Letters to Earth do artista argentino Eduardo Navarro, na galeria brasileira Nara Roesler, de São Paulo. A obra se compõe de 100 nozes de bronze que contêm partes de noz real em seu interior. Essas “cápsulas” permitirão que o fruto se conserve intacto por 3000 anos. Faz parte do contrato de aquisição “se comprometer a enterrar as nozes após 100 anos” em distintos pontos do planeta.

A curadora do Dallas Art Museum, do Texas (EUA), Katherine Brodbeck, escolheu duas obra do León Ferrari para a coleção do museu.

Lourdes Ramos, Presidente do Museum of Latin American Art (MOLAA), de Long Beach (EUA), levou obra de Matías Duville, In nito Red Sunset, sanguina sobre papel, da galeria Barro Arte Contemporâneo.

O MALI (Museo de Arte de Lima) selecionou uma obra s/t, de acrílico sobre tela, da Serie Erótica, de Marta Minujín, na Henrique Faria Buenos Aires & New York.

O diretor do Museo de Arte Contemporáneo de Barcelona (MACBA), Ferran Barenblit, somou à coleção do museu três obras de Magdalena Jitrik, da galeria Luisa Strina: The end, the end, the beginning, Letter Building, e Temple.

Patrick Charpenel, atual diretor do Museo del Barrio e integrante do Comité de Seleção de Cabinet IRSA, levou vários números e selos da publicação Ovum e Ovum 10, do artista uruguaio Clemente Padín, na galeria Walden. As edições possuem obras originais, arte de selos e colagens com contribuições de nomes como Michael Gibbs, Tim Ulrichs, Robin Crozier, Raúl Marroquín e Horacio Zabala. Outros dez números de Ovum 10 contêm artigos de poesia concreta e visual.

Mariela Scafatti, também foi escolhida por Jo Fernandes, subdiretor do Museo Nacional Centro de Arte Reina Sofía, de Madrid, com a obra Caballetes (2015). O Reina Sofía comprou, ainda, uma obra do Instituto de Visión de Bogotá, Joy in Paperwork, Al papeleo, alegría, da artista, também argentina, Amalia Pica (2016).

O imaginário de Jennifer Tee

Jennifer Tee, performance Let it Come Down, 2017. Em parceria com a coreógrafa Miri Lee

Nadja é um dos romances ícones de André Breton, datado de 1962. A personagem é sua suposta amante e prostituta, que empresta o nome ao livro. De acordo com Jennifer Tee o lema de sua arte é “alma no limbo”. A protagonista do romance também afirmava: “Eu sou a alma no limbo”. Quem sabe o que é uma alma? Esta questão amarra uma das últimas exposições de Jennifer Tee, holandesa, que estará na 33ª Bienal de São Paulo, em setembro próximo, com trabalho ainda não definido. A artista trabalha com esculturas, tapeçarias, performances, objetos espalhados pelo chão, suspensos no ar, leituras, performances, mas mantendo espaço para que o público circule e viva seu estado de limbo.

Ao se apropriar da literatura ocidental, Jennifer, mais uma vez, reforça seu processo criativo destacando um território multicultural híbrido, construído a partir de necessidades, o que pode até ser The Soul in Limbo, um tema recorrente. O conceito de limbo não é interpretado apenas por uma porção espacial, mas por uma relação complexa e pode ter diferentes interpretações. Jennifer Tee também usa esse conceito em suas colagens de pétalas de tulipas secas, que são símbolos de sua própria origem de diáspora. Nascida em 1973, em Arnhem, Holanda, com mãe de ascendência inglesa e holandesa, avô e bisavô ex-plantadores de tulipas. Seu pai, indonésio, foi para a Holanda de navio e toda essa história reflete fortemente em seu imaginário. Jennifer Tee pode ser aparentemente frágil, mas seu trabalho deixa transcender com muita força e energia sua personalidade, especialmente nas leituras e performances coreografadas que costumam atrair jovens, artistas ou não.

Jennifer faz uma negociação contínua entre ideias esotéricas e a materialidade dos objetos, trabalhando muitas vezes com artefatos e símbolos culturais. “Gosto de trabalhar com materiais que sempre tenham uma presença e que também contenham um significado cultural”. Seu pensamento se move entre as filosofias orientais e a cultura ocidental e, ao se deslocar de uma margem a outra, nesse navegar contínuo, muitas vezes, mergulha em textos literários com influência da teosofista Helena Blavatsky e os artistas Wassily Kandinsky e Hilma af Klint.

Jennifer Tee não é somente uma intérprete, ela pesquisa o artesanato, escultura, performance e colagem, para chegar a conceitos de patrimônio cultural. Seu universo se divide em uma parte mais pessoal em que se dedica às pétalas de tulipas e às instalações de palco que examinam uma fusão de conceitos sobrenaturais orientais e ocidentais, incluindo ocultismo e taoísmo. “Eu descobri que se eu fizesse colagem com essas pétalas, elas pareceriam uma tecelagem. Cheguei a um padrão que pode ser reconhecido em outras culturas, há similaridades”.

Ao reunir narrativas díspares, propõe união dos artistas e se coloca contra as noções de individualismo e separação defendidas pela modernidade ocidental, que enfatiza a autonomia do artista e a suposta falta de propósito das obras de arte. Ao contrário, ela prioriza, especialmente, a experiência coletiva e a superação ou destruição das fronteiras.

Suas instalações estão mergulhadas em espiritualidade esotérica, celebrando todas as conotações que vêm do artesanal, criando objetos talismânicos que sugerem a presença humana ao seu redor. Suas peças de parede de cerâmica, algumas com nomes como Tao Magic, têm formas e superfícies que lembram algo entre o astrológico e o geológico.

Em sua exposição no Camden Arts Centre, Let it Down, título retirado de um livro de Shakespeare, ela criou uma performance com dançarinos contemporâneos que atuam sobre as esculturas executadas em cristal, colocadas no chão. “ Usei peças sobre o piso como plataformas para explorar a alma no limbo e para ter coreografias e então os objetos no espaço se tornem ativados”, explica Jennifer Tee. A artista usa o cristal porque é uma superfície que pode se multiplicar.

Trienalle di Milano de 2017 recebeu mostra sobre migrações que vão além da arte

"Hope", Adel Abdessemed. Foto: Gianluca Di Ioia

Enquanto a 57a. edição da Bienal de Veneza evita questões atuais, não muito distante de lá, um dos ex-curadores da mostra, o italiano Massimiliano Gioni, apresenta, em Milão, La Terra Inquieta, uma ampla investigação sobre artistas e trabalhos que abordam a problemática dos refugiados, um dos pontos nevrálgicos dos países europeus e dos Estados Unidos há décadas.

A exposição, em cartaz no edifício da Triennale di Milano, reúne 70 participantes, em sua maioria artistas, mas também trabalhos afins, como dos quatro fotógrafos que receberam o prêmio Pulitzer em 2016 por imagens feitas para o The New York Times, caso de Daniel Etter, Tyler Hicks, Sergey Ponomarev e do brasileiro Mauricio Lima.

A presença de fotojornalistas aumenta a temperatura da exposição, já que seus autores retratam cenas atuais, como na imagem de centenas de imigrantes acompanhados pela polícia para o registro em um acampamento na Eslovênia, em 2015, realizada pelo russo Ponomarev. Naquele ano, 764 mil migrantes da Síria, Iraque e Afeganistão atravessaram a chama rota dos Balcãs Ocidentais, um recorde até então, acompanhado de perto por Ponomarev e Lima, em um projeto conjunto.

No alto, “Mapa Mundial” de Alighiero Boetti, abaixo “Mar Morto” , de Kader Attia. Foto: Gianluca Di Ioia

Por outro lado, Gioni selecionou também fotógrafos hoje vistos como “históricos”, caso dos norte-americanos Augustus Sherman (1865 – 1925), Lewis Wickes Hine (1874 – 1940) e Dorothea Lange (1895 – 1965), todos trabalhando no registro documental. Sherman retratava imigrantes que chegavam aos Estados Unidos, Hine destacou-se por denunciar o trabalho infantil e Lange por abordar migrantes durante a Grande Depressão, nos anos 1930.

Com isso, o curador dá um caráter perspectivo à crise dos refugiados, relembrando que fluxos migratórios são constantes na história humana, como se vê também na série de capas do jornal italiano La Domenica del Corrieri que, em 1901, retratava em ilustração a migração italiana rumo aos EUA, tema constante da edição de domingo do diário.

La Terra Inquieta chega ainda a ganhar um tom dramático quando se vê o acervo reunido pelo Comitato 3 Ottobre, uma associação sem fins lucrativos de Lampedusa, a ilha italiana ao sul da Sicília. Foi lá que, em outubro de 2013, uma embarcação com 520 imigrantes afundou, provocando a morte de 368 pessoas.

Criado para dar suporte legal e humanitário aos imigrantes que buscam entrar na Europa, o Comitato exibe em Milão objetos dos refugiados mortos no naufrágio, assim como os pertencentes a outras 52 vítimas de sufocamento em um barco que saiu do Egito, em 2015. Dispostas em vitrines como peças de arte, contudo, esses objetos – celulares, bolsas, documentos – tornam-se por demais museificados, sendo evidente que outro dispositivo expositivo poderia ser menos fetichizante.

Mas o display não compromete a mostra, que reúne muitas obras de arte que abordam a questão das migrações e fronteiras tanto em trabalhos recentes, como em peças já emblemáticas, caso do Mapa Mundial de Alighiero Boetti (1940 – 1994), realizado por tecelões afegãos a seu pedido, com o seguinte texto bordado na margem: “Paquistão no outono de 1992 este novo mundo instável e ainda mais racionado e pulverizado”.

A obra histórica torna-se mais eloquente com a instalação Mar Morto (2015), de Kader Attia, exibida à sua frente e composta por dezenas de roupas dispostas, como a lembrar os corpos mortos no Mediterrâneo nas últimas décadas.Assim sucedem-se os trabalhos de arte, alguns mais explícitos em relação à temática da mostra, outros mais poéticos, como Static (2009), de Steve McQueen, um curta realizado em torno da Estátua da Liberdade, o local onde milhares de migrantes chegaram aos Estados Unidos, ou então Western Union: Small Boats (2007), uma videoinstalação de Isaac Julien que já há dez anos atrás abordava a Sicília como porto de imigração.

Outro dos trabalhos mais sensíveis da mostra é a instalação de Francis Alys, Don’t cross the Bridge Before You Get to the River (2008), uma colaboração com crianças dos dois lados do estreito de Gibraltar, o canal que separa África e Europa por apenas 13 quilômetros em seu ponto mais curto. Na obra, crianças de Tanger, no Marrocos, e Tarifa, na Espanha, criam barcos de sandália de plástico com o objetivo de criar uma ponte humana entre os dois continentes, uma ação que trata mais de esperança do que realidade.

Enquanto tragédias como as mortes do naufrágio em Lampedusa se sucedem, ao menos obras de arte são capazes de permitir algum tipo de otimismo no meio do caos do começo do século 21.

Junho de 2013 – Reflexões sobre a multidão

Foto: Camila Picolo

Por Fernanda Cirenza

Orecado veio das ruas e deixou todo mundo atônito diante da torrente de insatisfações que tomaram conta do País. O momento era inesperado, ao se considerar a expectativa da Copa das Confederações e os indicadores sociais e econômicos. A taxa de desemprego é de 5,8%, a menor desde 2002. A distribuição de renda melhorou significativamente nos últimos 15 anos. Os investimentos em educação aumentaram, assim como os de saúde. A expectativa de vida do brasileiro também subiu, enquanto houve queda nos índices de mortalidade infantil. Em março, pesquisa CNI/Ibope apontou 63% de aprovação do governo da presidenta Dilma Rousseff. No entanto, não foi apenas o futebol que ocupou o interesse popular. O Brasil queria, pediu e continua pedindo mais, motivado pelo desgosto com problemas crônicos que não amenizam com a boa condição do País.

Confira a nossa página sobre as manifestações de 2013 

Luiz Eduardo Soares (antropólogo, cientista político, escritor e professor da UERJ) escreveu em seu blog (http://www.luizeduardosoares.com/hora-zero-no-relogio-popular/): “A massa rompeu expectativas e a tradição de apatia, e inventou um movimento que será, por suas lições e seus efeitos, o verdadeiro legado às gerações futuras. A narrativa passou a ser escrita, nas ruas e nas redes virtuais, por milhões de mãos e vozes, desejos e protestos, inscrevendo seus autores na cena global, em diálogo com outras praças, outras multidões, outras lutas. A sociedade virou o jogo.”   

De fato, a pressão popular fez algumas conquistas pontuais, a começar pela revogação do aumento das tarifas dos transportes públicos em diversas cidades – aliás, a reivindicação inicial promovida pelo Movimento Passe Livre (MPL) em São Paulo, que, segundo o próprio, é social e apartidário. Na sequência, o governo do Estado de São Paulo brecou o aumento do preço dos pedágios. No Planalto Central, questões complexas começaram a ser discutidas. Primeiro, derrubou-se a polêmica PEC-37, que, a grosso modo, limitava os poderes do Ministério Público de investigação criminal.

Depois, o Senado ratificou, em caráter emergencial, o projeto que poderá tornar a corrupção crime hediondo. O Judiciário também trouxe resposta ágil, determinando a prisão de Natan Donadon, o primeiro deputado federal a ser detido em pleno exercício do cargo desde a Constituição de 1988 – ele foi condenado a mais de 13 anos pelos crimes de formação de quadrilha e peculato.

A presidenta Dilma Rousseff abriu-se para o diálogo e propôs um pacto nacional com cinco itens – responsabilidade fiscal nas três esferas de poder, pacto pela saúde, transporte público e educação, e reforma política por meio de um plebiscito. Em encontro inédito e histórico, Dilma convocou 27 governadores e os prefeitos das 26 capitais para debater os temas, a maioria deles ainda em discussão e, provavelmente, assuntos que estarão na pauta política dos próximos meses. Os partidos de oposição ao governo reagiram, classificaram como “manobra diversionista” a proposta do plebiscito. Na avaliação do PSDB, do DEM e do PPS, o governo está “criando subterfúgio para deslocar a discussão dos problemas reais do País”.

Em meio a tanta informação, houve vozes de alerta. No blog Mídiafazmal (http://midiafazmal.wordpress.com/), de Marilene Felinto (escritora, tradutora e ex-colunista da Folha de S. Paulo), a filósofa Marilena Chauí escreveu: “Convém lembrar aos manifestantes que se situam à esquerda que, se não tiverem autonomia política e se não a defenderem com garra, poderão, no Brasil, colocar água no moinho dos mesmos poderes econômicos e políticos que organizaram grandes manifestações de direita na Venezuela, na Bolívia, no Chile, no Peru, no Uruguai e na Argentina. E a mídia, penhorada, agradecerá pelos altos índices de audiência”.

Enquanto isso, a presidenta Dilma insistiu no diálogo como forma de gestão e convocou reuniões também com movimentos populares. O sociólogo Manuel Castells, em entrevista à revista IstoÉ (que, posteriormente foi amplamente compartilhada nas redes sociais), cravou: “Dilma é a primeira líder mundial a ouvir as ruas”. Castells falou mais: “Ela mostrou que é uma verdadeira democrata, mas está sendo esfaqueada pelas costas por políticos tradicionais”. Não é pouca coisa, ao se observar como reagiram recentemente governos que passaram por pressões semelhantes.

Foto: Luiza Sigulem

Na Etiópia, em encontro com lideranças mundiais que discutiam o combate à fome, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva também falou sobre os protestos que se espalharam pelo Brasil e disse que as manifestações, em parte, são resultado do que foi feito no Brasil nos últimos dez anos: “Feliz é o povo que tem liberdade de se manifestar. E mais feliz ainda é o país que tem um povo que se manifesta e vai para as ruas querendo mais”.

Em entrevista exclusiva a Hélio Campos Mello e Luiza Villaméa, respectivamente diretor de redação e repórter especial da Brasileiros, publicada a seguir, Lula reafirmou que não se lançará candidato à Presidência em 2014. “Dilma é uma excelente presidenta da República. Conheço muita gente neste País. Conheço muito político neste País. E conheço pouquíssimas pessoas com a competência da Dilma. Portanto, ela será a minha candidata em 2014. E eu serei seu cabo eleitoral. É isso que vai acontecer.” 

As manifestações também vivenciaram a reação truculenta da polícia e de atos de vandalismo. Dezenas de pessoas foram presas. Confrontos foram registrados em vários pontos do País, resultando em mortes. Um saldo lamentável e trágico da discussão democrática. Ainda há um longo caminho a ser percorrido. O debate agora não tem a menor possibilidade de recuo. Ainda bem.

Nas próximas páginas, além da entrevista exclusiva de Lula à Brasileiros, você vai ler a opinião de Nina Cappello e Vitor dos Santos Quintiliano, representantes do MPL, diante dos acontecimentos. Especialistas, estudiosos e formadores de opinião também analisam os episódios de junho. Os artigos estão publicados em ordem alfabética, considerando-se o nome dos autores. O momento pede reflexão.

Revolta solidária

A Revolta do Buzu Protesto de 2003 na Bahia inspirou movimento
A Revolta do Buzu Protesto de 2003 na Bahia inspirou movimento. Foto: Marcelo de Troi

Por Antonio Risério*

primeira coisa que digo às pessoas da minha geração (por volta dos 60 anos de idade), com relação às manifestações pela tarifa zero no sistema público de transporte, é: parem de ser nostálgicos e de idealizar seu próprio passado. Porque as pessoas usam 1968 como critério. É uma tolice. Naquela época, embora nos achássemos “marxistas”, alimentávamos socialismos utópicos. Hoje, a conversa é outra. A luta não é explicitamente contra a “ditadura dos patrões”, como a POLOP gritava na década de 1960.

Se meus amigos de esquerda, teleológicos ou escatológicos, não entendem o que está acontecendo, menos ainda nossos governantes, independentemente de suas posições no tabuleiro ideológico de nossos dias. Claro que eu jamais esperaria qualquer coisa de Geraldo Alckmin. Aquilo é um direitista incorrigível. Direitista, provinciano e incapaz até dos voos mais rasteiros do pensamento. Mas Fernando Haddad parecia pássaro de outra plumagem. Pelo visto, não é. Ele não tinha de ficar “monitorando” as coisas desde Paris. Tinha de ter tomado um avião e ido para as ruas encontrar a garotada. Longe disso, Haddad se revelou um hesitante, quase um banana. Ficou mais parecido com Alckmin do que com o estudante que ele foi, nos tempos do Largo de São Francisco.

Deitado no sofá da sala à meia-noite, em busca de um improvável sono, zapeando canais de televisão, vejo um primeiro horizonte. Um documentário sobre o que está acontecendo na Turquia. É engraçado. Há mais ou menos um ano, eu tinha uma boa dose de admiração pelo primeiro-ministro turco, com aquele nome que mais parece marca de remédio: Erdogan. Achava que Erdogan conduzia o país no caminho da democracia, seguindo o velho Kemal Atatürk. Mas me enganei. Arrogante e autoritário, ele começou a promover uma islamização da Turquia. A peça mais reacionária possível.

Em Ancara e Istambul, a população se revoltou. Não é um movimento que tenha se espraiado pelo país. É um lance essencialmente urbano, centrado nas duas principais cidades turcas. E o que vejo no documentário: pessoas de várias idades – mas, sobretudo, jovens – que, em vez de gritar palavras de ordem contra a islamização, dizem que a cidade é deles e não de Erdogan, do Islã ou de qualquer ditadura: “Istambul é nossa!”. Esta é a coisa mais profunda que um cidadão pode dizer: a cidade é minha, a cidade é nossa. E logo em Istambul, um dos lugares mais lindos do mundo.

E é justamente isso o que sinto que moradores de São Paulo estão dizendo: “São Paulo não é dos empresários de ônibus e dos políticos que eles bancam (juntamente com o setor imobiliário) – São Paulo é nossa”. O que essa garotada quer, com o apoio de muitos mais velhos, é o direito constitucional de ir e vir. O direito de se deslocar, de se mover. Em suma: o direito à cidade. Se cada cidade do planeta se manifestar assim (Barcelona é nossa! Berlim é nossa! São Paulo é nossa!), o mundo muda.

Pouco importa que o ponto de partida seja a passagem de ônibus? Não. É significativo. É por onde a população se move. Claro que a barra ainda é mais pesada do que se pensa: segundo o IBGE, 37,3% dos habitantes do Brasil andam a pé, por não terem dinheiro para andar de ônibus, trem ou metrô. É um índice altíssimo. Anda mais gente a pé, no Brasil, do que em transporte coletivo (29,1%) ou carro individual (30,4%). Querem maior atestado de exclusão? E essa luta é antiga. Há quase uma tradição, no País, da população protestando contra aumentos no preço das passagens. É que isso aqui é um país de gente muito pobre, ao contrário do que dizem tantas propagandas públicas e privadas.

Houve um quebra-quebra baiano em inícios da década de 1980, quando centenas de ônibus foram incendiados, em 1981, por causa do aumento abusivo na passagem. E o jornalista Gonçalo Junior me lembra de que o Movimento Passe Livre, que hoje toma as ruas de São Paulo, nasceu na Bahia. Lê-se na internet: “A revolta popular que originou o Movimento Passe Livre aconteceu em Salvador, capital da Bahia. Em 2003, milhares de jovens, estudantes, trabalhadores e trabalhadoras fecharam as vias públicas protestando contra o aumento da tarifa. Durante dez dias, a cidade ficou paralisada. O evento foi tão significativo que se tornou um documentário, chamado A Revolta do Buzu. As mobilizações tiveram fim quando entidades estudantis tradicionais (como a UNE e a UJS) se colocaram como lideranças da revolta que não haviam iniciado e foram negociar com a Prefeitura em sala fechada”. Fala-se, então, de uma espécie de traição feita por “entidades estudantis tradicionais”, coisa que também ajuda a entender a movimentação de agora, em sua recusa de velhas normas e canais.

Acho apenas ridículo quando me dizem que a garotada que luta contra o aumento da tarifa não precisa pegar ônibus ou metrô. É uma garotada classe mediana, motorizada. Se isso é verdade, melhor ainda. Significa que a juventude brasileira de classe média está recuperando, enfim, sua noção de solidariedade, que parecia irremediavelmente perdida. Lembro então aos saudosistas que, na década de 1960, lutávamos até por reforma agrária. E nenhum de nós tinha sequer um palmo de terra fora dos muros da cidade. Eu costumava dar esse exemplo para falar de uma solidariedade que julgava não mais existir. E agora me vejo na feliz obrigação de retirar o que dizia. É simplesmente maravilhoso que jovens privilegiados lutem pelo direito de todos se moverem gratuitamente em nossos espaços urbanos.

Acho ridículo quando dizem que a garotada classe média que luta contra o aumento da tarifa não precisa pegar ônibus ou metrô.

Se é verdade, melhor ainda

Agora, que ninguém pense, também, que a grande questão nacional é o preço da passagem em nossos sistemas supostamente públicos de transporte. Não é. A insatisfação é bem mais generalizada. Talvez a gente possa falar de uma espécie de insatisfação difusa, disseminando-se pelo conjunto da sociedade. Uma insatisfação geral com o País depois das celebrações narcísicas do “take of” anunciado pela Economist, em 2010. É na pauta dessa insatisfação, de resto, que ouço a vaia em Dilma Rousseff no estádio Mané Garrinha, em Brasília, na abertura da Copa das Confederações. Claro que nós, brasileiros, sempre gostamos de vaiar autoridades. Há um desrecalque sociologizável nisso. Mas não foi só. A vaia em Dilma expressou uma reação de alta classe média contra a situação atual do País. Situação atual que também mobiliza o protesto de estudantes e trabalhadores, com apoio de donas de casa.

Continuamos com desigualdades sociais escandalosas. O fantasma da inflação ronda feiras e “supermercados”. O dinheiro é pouco. Mas há a enxurrada de milhões de reais na corrupção dos políticos. A gastança do governo. E o esbanjamento em função de uma Copa das Confederações que será seguida por uma Copa do Mundo. Em Belo Horizonte, no dia de um jogo medíocre (Nigéria e Taiti), milhares de manifestantes tentam se aproximar do Mineirão, com balões amarelos, cartazes e faixas. Querem dinheiro para a saúde, por exemplo. Querem dinheiro para atender às necessidades básicas e reais da população.

Mas há mais. O Brasil parece querer uma nova hora e um novo senso do fazer político. José Dirceu percebeu isso, publicando artigo sobre o assunto. Diz ele que é hora de os governos do PT mudarem sua forma de se comunicar e se abrirem para novos projetos políticos. Mas se há uma coisa que essas manifestações deixam para trás são a ronda de fantasmas como Dirceu. E se os governos se abrirem para as novas formas da política, que agora se esboçam nas ruas, vão ser subvertidos em todas as direções e até mesmo desde dentro. Haddad, por exemplo, vai ter de ser outro cara em São Paulo e não o prefeito canônico e tradicional que tem sido até aqui.

Mas vamos ampliar o foco. O Brasil, hoje, parece um país triplamente acomodado. Acomodado no âmbito governamental. Acomodado no terreno de sua oposição política. Acomodado no conjunto da sociedade. “Acomodado” no sentido da carência de uma nova visão estratégica e de projetos correspondentes. É preciso reencontrar o rumo da transformação. E quem sabe essa meninada nas ruas nos ajude a fazer isso: recuperar a ambição nacional, no sentido mesmo do clichê de ser um país menos injusto e que possa se ver como nação plena.


Mestre em Antropologia pela UFBA, poeta, compositor e autor dos livros Avant-Garde na Bahia e A Cidade no Brasil

Em defesa da política

momento histórico Em 17 de junho, os protestos contra o aumento das tarifas de ônibus aconteceram em várias cidades do País. Foto: Camila Picolo

Por Maria Victoria Benevides*

“Foi bonita a festa, pá!” Para os jovens que não a viveram e para os “coroas” esquecidos – e hoje temerosos ou entusiasmados com a mobilização iniciada pelo Passe Livre –, vale a pena lembrar a luta política contra o regime civil-militar instalado com o golpe de 1964. Boa parte da oposição se organizava através de movimentos sociais, organizações de base, sindicatos, igrejas, imprensa, associações profissionais e culturais, universidades, meio artístico, entidades de direitos humanos, partidos, abrangendo um amplo arco das esquerdas aos liberais, ambos de vários matizes. Pela primeira vez em nossa história, tivemos uma efetiva participação popular no processo constituinte (plenários, comitês locais, audiências públicas, milhões de emendas populares, manifestações), que desembocou na Constituição vigente. E essa Carta acolheu instrumentos de democracia direta, agora legitimamente evocados.

Quero chamar a atenção dos atuais manifestantes, dos quais muitos expressam certo “nojo” pela política (sobretudo devido aos partidos), para o fato de que, embora aquela árdua luta pela democratização, principalmente depois da Anistia, tenha se dado em um momento de transição da ditadura para o Estado de Direito, em vias de uma ruptura institucional, não se renegou o caminho necessário da política, com clareza dos objetivos e dos meios. No caso específico da Constituinte, o objetivo era participar do processo decisório, de forma organizada e com instrumentos adequados e eficazes, para não dar uma carta branca para os legisladores. E isso foi feito, haja vista, entre outros, o capítulo avançado sobre direitos sociais. É evidente que as garantias desses direitos ainda são precárias, mas o passo decisivo foi dado e a luta continua. Democracia é processo, é conflito, é direito da maioria com respeito às minorias e à diversidade, é participação, é soberania popular no contexto das leis legitimamente elaboradas.

A mobilização de hoje quer, com toda a razão, tudo a que tem direito: transporte, saúde, educação, moradia, segurança… E é contra tudo que identifica como a política dos partidos, dos poderes constituídos, da corrupção “generalizada”. Mas é claro que esse povo nas ruas está fazendo política – o que é bom –, mas está perdendo o rumo e repudiando mediações políticas – o que é perigoso. Daí a necessidade imperiosa de refletirmos sobre aquilo com que nós, cientistas sociais e juristas, podemos contribuir.

Depois de dias de perplexidade, a presidenta Dilma saiu da defensiva e retomou a liderança política – o que é bom – e vem a público prometer reforma no sistema de representação e apresentar outras propostas ousadas e polêmicas – o que exige ampla discussão. A proposta inicial, de debater com a sociedade uma Assembleia Constituinte para um tema específico, é um contrassenso. O poder constituinte originário é soberano: pode tudo, a começar por revogar a Constituição vigente. A convocação de um plebiscito para aprovar tal “constituinte temática” fica, pois, comprometida. Perante as dificuldades jurídicas, o próprio governo logo indicou que esse não era um bom caminho. A reforma política é necessária e pode ser feita por mudanças na lei partidária e eleitoral. É saudável consultar a vontade do povo. Mas não é preciso mexer daquela forma na Constituição.  No entanto, não há dúvidas de que a presidenta abriu um caminho promissor para enfrentar duas questões cruciais neste momento de crise: a reforma política, sempre chamada de “a mãe das reformas” e nunca decidida; e o recurso aos instrumentos constitucionais para a participação direta do povo, a começar pelas consultas populares. 

Quanto a isso, não será preciso inventar a roda. Já existe um considerável debate, na academia, no meio jurídico e parlamentar, sobre o tema. Já tivemos referendos nacionais e consultas locais. Vários projetos podem ser desengavetados no Congresso.   

Desde a Campanha Nacional em Defesa da República e da Democracia, iniciada pela OAB, em 2004, com apoio de várias entidades, estão atualmente em tramitação propostas que versam sobre mecanismos de democracia direta, não como “usurpação” do poder Legislativo, mas como aperfeiçoamento da democracia representativa. Entre essas destaco: 1. Emenda constitucional sobre referendo revocatório de mandatos eletivos ou recall (recentemente defendido pelo ex-ministro Rubens Ricupero) no Senado, no 73/2005; 2. Projeto de Lei sobre plebiscito, referendo e iniciativa popular, também no Senado, no 01/2006; 3. Proposta de emenda constitucional sobre revisão da Constituição, atualmente em deliberação no Conselho Federal da OAB. Aliás, o caminho mais útil para acelerar a decisão seria levar a voto o projeto de lei no 4.718 que está na Câmara por iniciativa da Comissão de Legislação Participativa, com o constante estímulo da deputada Luiza Erundina. Tal projeto, como o que está no Senado há menos tempo, objetiva tornar viável o recurso a consultas populares e à iniciativa legislativa, a fim de corrigir o enfoque extremamente rígido da regulamentação de 1997, que mais bloqueia do que incentiva a participação popular.    

O povo não se acomodou deitado no “berço esplêndido” e se levantou, como em vários outros momentos de nossa história. Aos 70 anos – idade da “juventude acumulada” – participei de quase todos. Estou convencida de que essa mobilização de hoje, por mais heterogênea que seja, pode favorecer o exercício da cidadania ativa democrática, assim como alcançar respostas positivas dos governantes. Mas pode também abrir caminho para saídas autoritárias e elitistas.

Fora da política não há salvação. Só a violência.


*Socióloga e professora titular da USP

Mais um manifesto anarquista

Cena Cavalaria da PM ocupa parte da Avenida Paulista, São Paulo, no dia 11 de junho
Cena Cavalaria da PM ocupa parte da Avenida Paulista, São Paulo, no dia 11 de junho. Foto: Camila Picolo

Por Antonio Bivar*

Já que aqui se importa tudo, sou a favor da importação de médicos. O convívio com colegas de profissão locais será produtivo. Sou também a favor de importar políticos que deram certo lá fora para exercerem cargos de escol em Brasília. Tipo “senador honorário”. Importaria Tony Blair (agora que virou católico) e Bill Clinton, que curte uma pelada. No País do Futebol, não seria uma boa jogada?

É que sou anarquista por natureza desde antes do punk. Só sei que não dá mais para ficar em cima do muro – corre-se o risco de levar bala e bomba. Qualquer descuido pode ser fatal. E já que está na ordem do dia mudar tudo, que as mudanças comecem de baixo e não de cima. Eu, no meu direito de cidadão, e já que moro num subúrbio e faço uso do transporte coletivo, reivindico melhoria radical no asfalto e corredores para ônibus. Tenho levado mais de duas horas para ir ao centro e outro tanto ou mais, na volta pra casa. Os ônibus são verdadeiras máquinas de tortura nazista. E para que tanta catraca, se depois de subir os íngremes degraus o usuário já quica o passe?! Estou falando dos ônibus em São Paulo, já que os do Rio são mais racionais – não têm degraus, são planos e com ar condicionado. Não sei quem bolou os ônibus paulistanos. São mal ajambrados, assentos apertados, desconfortabilíssimos. O metrô, por outro lado, ainda que superlotado, é muito bom. Mesmo o usuário viajando feito sardinha enlatada, a viagem flui bem, é rápida e logo você pode suspirar aliviado ao descer na sua estação.

Como também sou pedestre, outra coisa que incomoda é constatar a crescente demografia de moradores de rua, os sem-teto. Além de ser uma coisa muito triste, é anti-higiênica. Não existem WCs para tanta gente. Conversei com uma miserável, até muito bem informada, e ela me mostrou a pele toda carcomida por ácaros e outras bactérias que atacam os moradores das ruas do Centro e, por tabela, os transeuntes que passam perto. Disso parece que as autoridades nem tomam conhecimento. Por mais que uns e outros da brigada pão & circo promovam novos locais de arte e lazer bonitinhos, no geral o que se vê é uma concentração de gente mal protegida por caixotes de papelão. O Centro da capital é a coisa mais abandonada da baixa América. Por isso, viva aos manifestantes.

É preciso mudar tudo e começar de baixo, desde o preço das passagens. Governador, prefeito e políticos em geral já viajaram nos coletivos. Sim, uma vez e outra, durante a campanha, para dar a impressão de que são gente como a gente, mas garanto que nessas viagens de marketing fizeram vista grossa e bunda leve para o desconforto do povo em geral.

 


*Escritor e dramaturgo

A primeira greve selvagem metropolitana no Brasil maior

açao e reação Polícia paulista reprimiu os primeiros quatro atos, usando spray de pimenta, bombas de efeito moral e balas de borracha
açao e reação Polícia paulista reprimiu os primeiros quatro atos, usando spray de pimenta, bombas de efeito moral e balas de borracha. Foto: Luzia Sigulem

Por Giussepe Cocco*

Na edição de maio do Le Monde Diplomatique(1), escrevemos que “não existe amor no Brasil Maior” e explicitamos: “O ‘amor’ só existe na prática das lutas e da democracia, ou seja, na organização autônoma do conflito (e não da harmonia). Somente homens livres constituem a paz, e a ‘causa mais livre é aquela interna’, imanente às lutas por uma cidadania total”. Falamos também que “na crise da representação e da política, o único horizonte que interessa é o da mobilização radicalmente democrática, por difícil e enigmática que seja hoje essa equação”. Em maio, quando foi publicado, o artigo parecia conter posições totalmente destoantes do consenso que vigorava em torno do projeto de construir um Brasil Maior, ou seja, um país rico e sem pobres, povoado por uma “nova” e gigantesca classe média consumidora de carros.

Em São Paulo, o “amor” tinha sido decretado e um jovem prefeito encarnava o “novo”. A política de patrocínio cultural já tinha seus circuitos e os jovens nas “viradas”. De repente, tudo veio a baixo. Passadas as eleições municipais, os prefeitos de direita e de esquerda do todo o País aplicavam os aumentos de tarifas. Em Natal, o protesto foi massivo e violento. As passeatas em São Paulo e no Rio pareciam destinadas a marcar ritualmente as mobilizações que o Movimento pelo Passe Livre promovia – com justa determinação – há anos.

A polícia paulista reprimiu com a truculência costumeira. O resultado foi um incêndio generalizado, que ainda continua e se propaga. O protesto contra os 20 centavos se constituiu em um Kayrós formidável da primeira grande greve selvagem das metrópoles brasileiras. A questão da mobilidade urbana agregou a multiplicidade de lutas que resistiam ao rolo compressor do Brasil Maior.

Depois da crise do capitalismo global e do aprofundamento da crise da representação, o PT e o governo Lula/Dilma passaram a acreditar de maneira cada vez mais autorreferencial em suas propagandas eleitorais e nas pesquisas de opinião. A grande novidade no Brasil era a “nova classe média” e para ela é preciso subsidiar os Global Players nacionais (aquela que seria a grande indústria nacional) e multiplicar megaobras (barragens, centrais e submarinos nucleares) e megaeventos: o Brasil Maior teria, assim, não apenas uma base social (a classe média), mas também a reciclagem de um modelo, o nacional-desenvolvimentismo, rebatizado de “neo”. Enfim, para os jovens inquietos, o circuito do “amor” e para os outros, o cassetete das PMs: é o que foi reservado para os favelados removidos, os camelôs reprimidos, os índios do Xingu, os quilombolas e para todos aqueles que ousassem contestar o processo de gentrificação das cidades.

O que o movimento hoje afirma, de maneira que ninguém pode evitar de ver, é que no capitalismo contemporâneo, além de não haver capital nacional (a não ser o falido Império Eike Batista, que hoje se constitui na maior bomba a efeito retardado da crise), não há classe média coisa nenhuma. A mobilidade social proporcionada pelo governo Lula/Dilma diz respeito à mobilização de outro tipo de trabalho, um trabalho que acontece nas metrópoles e para o qual a “cidade”, os serviços e suas qualidades são não apenas fundamentais, mas seu terreno de luta e organização.

Lula organizava as greves selvagens dos metalúrgicos e hoje as greves selvagens do trabalho imaterial acontecem nas metrópoles. Com a diferença que, na era do novo sindicalismo, havia uma relação entre composição técnica da classe (o operariado massificado das grandes plantas de produção fordista) e suas formas de recomposição política. Embora o PT – inicialmente – tenha sido uma inovação da forma de partido, no sentido de conter uma dose muito maior de pluralismo do que os tradicionais partidos socialistas e/ou comunistas, ele foi se organizando em torno de uma organicidade e de uma liderança bem definidas (o próprio Lula).

Não significa o “fim” dos partidos. A crise diz que a verticalidade e as instituições só fazem sentido quando têm relação viva com a fonte horizontal

Hoje, a greve metropolitana se auto-organiza e deve sua potência à ausência de organicidade e liderança. O que não significa que não tenha linha, muito pelo contrário. O PT, e a esquerda de governo que lhe está atrelada, não entenderam essa transformação não somente porque puxaram o pragmatismo até o oportunismo do aparelho, mas porque o que sobra de “esquerda” (sobretudo com a Dilma) é uma visão teleológica do progresso e a crença que a política se faz a partir do Estado: não produzir outros valores, mas gerir mais rapidamente e mais racionalmente (de olho nas planilhas dos custos) a mesmíssima linha de progresso, as mesmas barragens, os mesmos consumos, os mesmos valores da direita.

Quem se opõe é um obstáculo, eventualmente arcaico, eventualmente a ser cooptado ou, cada vez mais, a ser reprimido. A esquerda de oposição errou (e o episódio das bandeiras lhe mostrou que ela não está fora da crise da representação) porque pensa que a oposição a esse desenho, a esse pragmatismo oportunista viria de fora, da manutenção de um ideal e, pois, de uma crítica negativa e fundamentalmente moralista desse modo de governar.

O levante da multidão metropolitana nos mostra de maneira generalizada o que os índios, os operários das barragens, os professores e estudantes do Reuni já tinham antecipado: a luta e a revolta vêm de dentro desses deslocamentos. Dentro e contra o Brasil Maior, havia um sem-número de brasis menores (indígenas, favelados, negros, estudantes, mulheres, queers, LBGT) e hoje eles estão aí: um MundoBraz(2), um devir-mundo do Brasil e um devir-Brasil do mundo que explicitam na potência das redes e ruas a transmutação de todos os valores.

É nesse horizonte potente dos possíveis que é preciso ver que a crise da representação não apenas chegou ao Brasil, mas atravessa as esquerdas. Essa crise não significa o “fim” dos partidos e tampouco a extinção de todo o tipo de verticalidade e instituição. Ela apenas diz – e isso já é muito – que a verticalidade e as instituições só fazem sentido quando elas têm uma relação viva com sua fonte horizontal, constituintes.

 


(1) http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1413
(2) Giuseppe Cocco, Mundobraz, Record, 2009

*Professor da UFRJ e autor de MundoBraz (Record, 2009) e coautor de GlobAL (Record, 2005), com Antonio Negri