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Angeli – confissões de um cartunista

Angeli
O cartunista Angeli no ateliê de seu apartamento, em São Paulo. Foto: Luiza Sigulem

Em longa conversa com a Brasileiros (e sem papas na língua, como era de se esperar), Arnaldo Angeli Filho, o pai de personagens símbolos dos anos 1980, como Rê Bordosa, Os Skrotinhos, Meiaoito e Nanico, Walter Ego, Mara Tara e Osgarmo, relembrou sua trajetória errante, lamentou, de olhos marejados, a perda do amigo Glauco, falou da transformação recente do amigo Laerte, e deu nomes àqueles que considera como “ratos sujos” da política.

Em tempos de aparente retração conservadora, Angeli continua a defender a liberdade de ser politicamente incorreto, como o punk Bob Cuspe, e reitera, como os hippies Wood e Stock, a deliciosa tese de que “só o Grande Orgasmo Universal salvará a humanidade!”.

Com 40 anos de carreira e mais de 30 mil trabalhos publicados, o cartunista paulistano terá um expressivo recorte de sua produção exposto na Ocupação Angeli do Itaú Cultural, instituto sediado em São Paulo.

A mostra, que reproduzirá o ambiente do estúdio do artista, exibirá mais de 800 obras. Será aberta em 15 de março e permanecerá no Itaú Cultural até 29 de abril de 2012.

Enfrentando uma rotina de trabalho intenso e apenas quatro horas diárias de sono, em meio a copiosas baforadas de seus cigarros – Angeli comemora ao dizer que partiu de 4 para 2 maços diários –, o cartunista afirma querer envelhecer com dignidade, e que cada vez mais abrirá mão de novos personagens, deixando o caminho livre para as futuras gerações de cartunistas do País – sucessores que certamente têm e terão nele a figura de um herói.

Funileiro, bandido, cartunista

Filho de um modesto casal de imigrantes italianos, o pai funileiro, a mãe costureira, Angeli veio ao mundo em 31 de agosto de 1956. Quatorze anos mais tarde, como office-boy, descobriu os encantos e as contradições de sua cidade e também deu os primeiros passos da carreira de cartunista nas páginas da extinta revista Senhor.

Nossa conversa tem início com a recordação da alienação de suburbano que o fazia acreditar que São Paulo se limitava a seu bairro: “Por um bom tempo, achei que minha vida e São Paulo eram só aquele mundinho da Casa Verde. Até que aos 14 anos atravessei o Tietê (as margens do rio), conheci o Centro e descobri que a cidade e as experiências que ela podia me proporcionar eram algo que ia muito além. O mesmo aconteceu com quase todos os meus amigos de infância, um deles, o Toninho Mendes, que tempos depois foi o editor da Chiclete com Banana, pelo mesmo motivo: o primeiro emprego de office-boy”, defende.

O cartunista aos 15 anos, em retrato de 1971. Foto: arquivo pessoal.

Vizinho de um bar frequentado por traficantes, Angeli enfrentou um turbulento rito de passagem para a adolescência, anestesiado pelo consumo de maconha. Admirava o ofício do avô, um humilde ferreiro, que potencializou sua paixão pelo desenho, mas temia a oficina de funilaria do pai, possível reduto profissional de um garoto que pouco ou nada se importava com sua formação, por conta da recorrente sensação de deslocamento em sala de aula.

“Meu avô era ferreiro, um trabalho que aparentemente não tem nada a ver com arte, mas ele desenhava aqueles portões art noveau e pesquisava muito. Fazia esboços, era um tremendo desenhista, e eu apreciava esse universo dele. Por outro lado, meu pai era funileiro, e eu tinha quase certeza de que também iria acabar me tornando um, o que já era uma boa perspectiva, porque eu vivia em um ambiente muito propício para transformar alguém em bandido. Cheguei a tomar conta de uma banca de jornal de um vizinho em troca de parangas de fumo. Havia um bar frequentado por traficantes ao lado da minha casa. Eu descia a escadinha do sobrado dos meus pais e dava de cara com esse ambiente todos os dias.”

Enfatizando o que classifica como uma “vocação para a delinquência”, Angeli revela os motivos que o levaram ao precoce fim de sua carreira estudantil, depois de repetir por três vezes a 5a série do primário e ser expulso: “Minha família obviamente dava importância à educação dos filhos, mas acabou desistindo de mim. Pudera! Fui, várias vezes, expulso da escola por questões idiotas: brigava com um menino e era advertido; batia em outro e acabava expulso. Minha mãe ficava puta comigo, mas eu não conseguia me dedicar. Às vésperas de completar 14 anos e ainda na 5a série, estava fadado a ficar ao lado de uma turma três, quatro anos mais nova do que eu. Sabia que se eu ficasse ali, cedo ou tarde ia querer bater em todos e aterrorizar a pivetada”, recorda.

Nem funileiro nem bandido, Angeli teve a vida transformada da noite para o dia quando, em 1975, foi um dos premiados no 2o Salão de Humor de Piracicaba, encerrado no dia em que ele completou 18 anos. A premiação o aproximou da chargista Hilde Weber, alemã, radicada no Brasil. Hilde trabalhava para o jornal O Estado de S. Paulo e era ex-mulher do jornalista Cláudio Abramo, então editor da Folha de S. Paulo. Por recomendação de Hilde ao ex-marido, Angeli foi parar na Folha, onde reina, como chargista e cartunista, há quase 40 anos: “Foi lá que me tornei homem e gente”, admite.

Em 1972, aos 16 anos, no Jardim São Bento, bairro nobre do distrito da Casa Verde. Foto: Arquivo pessoal

Com o abandono dos estudos, a descoberta do rock e da cultura underground, Angeli passou a apostar cada vez mais em uma formação empírica, baseada em experiências cotidianas e uma rede de intensa troca de informações que o livrou da sensação de deslocamento que engessava sua desenvoltura na educação formal.

Um caminho de transformações, pavimentado com o desbunde de excessos e amizades valiosas, como a do poeta Roberto Piva: “A paixão pelo rock envolvia muito mais do que música, era uma questão comportamental e também uma forma de aproximar pessoas com interesses parecidos. Um dos pontos de encontro dessa turma era o vão livre do Masp. Foi lá que conheci Roberto Piva e nos tornamos amigos. Piva foi o mentor dessa turma. Ele organizava shows e uma série de saraus de literatura beat, e só aí é que fui encontrar a minha escola. Mas esse era também um período difícil, em que roqueiro brasileiro ainda tinha cara de bandido e veado. Lembro que no auge do glitter rock, eu tinha uma calça de cetim coral e andava com ela em plena Casa Verde. Me chamavam de veado, mas eu não comprava briga. Encarava essas provocações como algo legal, me sentia desafiador. Hoje, jamais vestiria aquela calça”, sorri.

Riviera, Rê Bordosa, Meiaoito

A consolidação da carreira de Angeli na virada dos anos 1970 para os 80 coincidiu com uma transição geracional no País. Saíam de cena emepebistas esquerdistas e hippies anacrônicos para dar lugar a punks e pós-punks reunidos em históricos inferninhos de São Paulo, como os clubes Madame Satã, Ácido Plástico, Carbono 14 e Radar Tantã, e bares como o Riviera, antros de uma fauna transgressora que, às vésperas da paranoia da AIDS, dispensava pudores e mergulhava de cabeça em comportamentos libertinos e progressistas, ignorando antigos tabus, como o sexo sem paranoias e o uso de drogas sem o ônus da autopenitência.

O próprio Angeli, cocainômano por uma década e adepto de um comportamento sexual poligâmico, soube debochar como ninguém desses anos loucos e, assim, pode retratar a década de 1980 como um cronista. Aventura que teve como laboratório um dos mais tradicionais bares da boemia paulistana.

“No Riviera, conheci outros cartunistas, escritores, poetas, jornalistas, todo tipo de gente. Foi uma escola. Antes da minha geração, ele era frequentado pela turma do Caetano, Gil, Chico. Aprendi muito, briguei, quebrei o bar, roubei vinho, criei personagens inspirados em frequentadores, casei e me separei lá dentro. Lamentei muito o fim do Riviera. Ele deveria ter sido tombado pelo patrimônio histórico dos malucos de São Paulo. Foi lá que me formei e aprendi muito daquilo que não consegui aprender na escola. Ficava de orelha em pé, pegando as conversas e tentando entender tudo o que ouvia.”

 

Angeli, Salão do Humor de Piracicaba, 1975
O trabalho premiado, em 1975, no Salão do Humor de Piracicaba. Foto: arquivo pessoal

Esse apreço pela observação, a insolência e a urgência em compreender o mundo a sua volta, eram atitudes típicas de alguém tão carente de rumos, mas também hábitos críticos deflagrados por sua enorme paixão pelo cartunista Robert Crumb, ídolo que, desde os anos 1960, quando impôs à contracultura impagáveis personagens como Fritz, The Cat e Mr. Natural, tornou-se guru de sucessivas gerações de cartunistas espalhados ao redor do mundo.

No documentário Crumb, de Terry Zwigoff, o cartunista norte-americano confessa que a paixão pelos quadrinhos o redimiu de uma possível condição de loucura. Não seria exagero dizer que, no caso de Angeli, desenhar foi a redenção urgente para uma vida ordinária ou até mesmo uma vida de crimes.

Em 1992, no Festival Treviso Comics, em Treviso, na Itália, Angeli teve a honra de expor seu trabalho no mesmo espaço em que Crumb e outro de seus mentores, o pai dos Freak Brothers, Gilbert Shelton, foram homenageados.

“Eu tinha verdadeira adoração pelo Crumb, e ele foi decisivo para me convencer de que eu teria de fazer algo autoral, falar da minha vida, das coisas que eu gostava, das raivas que eu tinha, do meu desprezo à burguesia, mas eu estava fazendo charge política na Folha, em uma época em que não se podia apontar o dedo ou desenhar generais. Foi então que falei que queria sair da charge e comecei a produzir tiras. Só havia tiras americanas na Folha, e os embriões da Chiclete com Banana surgiram nesse novo espaço que defendi. A observação crítica é o que me levou aos personagens. O Laerte foi do partidão (o Partido Comunista Brasileiro) e chegou a me levar a algumas reuniões comunistas, mas me incomodava essa coisa da militância. Tive a ideia de fazer o Meiaoito, um guerrilheiro de merda, de balcão de bar, e foi então que percebi que poderia criar outros personagens com a mesma visão. A resposta do público veio rapidamente.”

Muito além de ser tão somente o fundador de uma revista “porralouca”, Angeli fez por sua geração o que fez Carlos Zéfiro anteriormente com seus Catecismos – uma série de quadrinhos pornográficos, em preto e branco, disputados a tapas nos anos 1970. Mas ao sexo de Zéfiro, Angeli acrescentou doses cavalares de drogas, rock’n’roll e cultura subversiva, como quando decidiu convidar o poeta Claudio Willer, tradutor da primeira versão brasileira do clássico poema Uivo, de Allen Ginsberg, para colaborar com a revista e deixar bem claro de onde vinha o hippie que derivou no punk e descambou no heavy metal, que tanto fazia alguns leitores estreitos da Chiclete com Banana literalmente baterem cabeça sem o pré-requisito dos decibéis das guitarras metaleiras.

Rê Bordosa, a Porralouca, em meio à fauna noturna inspirada na boêmia do Riviera. Foto: Arquivo pessoal

“Desde aquela época, eu já defendia que a saída para o homem é o sexo, que só o ‘Grande Orgasmo Universal’ pode salvar a humanidade. Falava de sexo, de drogas, e depois que fiz todos esses personagens, enfim pude reconhecer que eu era um verdadeiro autor. Em pouco tempo, alcançamos marcas históricas de vendagem, e chegamos a colocar 110 mil exemplares na rua. Em meio a tantos leitores, a seção de cartas da Chiclete só tinha metaleiro, uns headbangers estreitos, e eu comecei a pensar: ‘Porra, vamos tentar abrir um pouco mais a cabeça desses moleques, colocar um pouco mais de postura na revista’. Encomendei para o Cláudio Willer uma série em capítulos sobre a geração beat (movimento literário norte-americano surgido no final dos anos 1950, que reuniu autores como Jack Kerouac, William S. Burroughs e Allen Ginsberg). Todo mundo falava dos hippies, dos punks, mas ninguém aqui sabia de onde esses caras tinham vindo. O embrião de tudo isso estava no comportamento libertário dos beats.”

Ao longo dos cinco anos em que foi publicada pela Circo, a Chiclete com Banana experimentou um sucesso comercial que possibilitou à editora lançar outras duas publicações, as revistas Geraldão, do impagável e inútil personagem de Glauco, e a Piratas do Tietê, que libertou do espaço limitado das tirinhas da Folha de S. Paulo o traço inconfundível de Laerte. Uma história de ascensão meteórica e queda vertiginosa, antecipada com a traumática chegada de Fernando Collor ao Planalto.

“Vendíamos 80 mil exemplares, e, no mês seguinte ao plano da Zélia, despencamos para sete mil. Nunca tivemos anunciantes, a receita era feita nas bancas. Mas eu já achava que devíamos parar por ali. Se virasse uma revista muito profissional, perderia o encanto. Ficou para a história.”

Ratos sujos e redemocratização

Inimigo número um de certas aves de rapina que sobrevoam a capital do Brasil, Angeli desenvolveu, em paralelo aos cartuns, uma brilhante carreira de chargista político. Acompanhou de perto as transformações que o País experimentou desde os anos 1970, e mensura com propriedade erros e acertos de todos os presidentes que conduziram o Brasil depois da morte de Tancredo Neves.

Capa da “Chiclete Com Banana” com a personagem Rê Bordosa. Foto: Reprodução / Circus

Demonstra antipatia pela postura “mauricinha” e soberba dos tucanos, mas também rechaça o que considera convenções antiéticas que levaram Lula ao poder e que mantiveram o presidente sindicalista como um personagem inabalável ao longo de oito anos.

“Tirando o Sarney, o Collor, e a sucessão de erros dos dois, acho que até o Itamar, de alguma forma, colaborou com o País. O FHC também fez coisas importantes, mas eu não suporto essa escolinha do PSDB. Eles têm o nariz muito empinado: ‘Oh, eu fiz Sorbonne’. ‘Participei de palestras com o Sartre!’. O FHC fez esse filme propondo debates sobre a maconha, aplaudo, mas essas questões têm de ser levadas à esfera política quando se está no poder, para que elas realmente sejam transformadas. Não adianta ter essa postura agora que ele está fora do governo. O Brasil avançou com o Lula, mas ele também tolerou um monte de coisas graves, negociou com vários lados e, algumas vezes, seguiu o caminho errado. A Dilma está tendo pulso mais firme do que ele com relação a corrupção. O Lula fez coisas bem importantes, mas fez também outras bem negativas, como se aliar à corja do PMDB, um partido de ratos sujos, que vivem à sombra do MDB da ditadura, e que vende, até hoje, a ideia de que reformularam o Brasil. Temos uma oposição de ratos, e não são aqueles ratinhos branquinhos, fofinhos, são ratões gordos e sujos procriando filhotes. Estão aí o neto do ACM, o filho do Cesar Maia e tantos outros…”

Crise, perdas e mutações

Aos 55 anos, três casamentos e dois filhos da segunda relação – o sonoplasta e artista gráfico Pedro, 30, e a professora de educação física Sofia, 26 –, Angeli é casado com a arquiteta e designer gráfica Carolina Guaycuru, 35. Braço direito do cartunista, Carolina assina a curadoria da retrospectiva Ocupação Angeli, no Itaú Cultural.

A exposição é oportuna para um balanço da carreira do cartunista. Angeli é sereno e justo ao mensurar a importância de seus personagens, no entanto, ainda mais generoso ao admitir que o momento é de tirar o pé do acelerador e dar passagem para os novos artistas que vêm por aí.

“Estou em um momento de baixa criatividade, não sei exatamente o que desenhar e não me agrada mais a ideia de criar personagens, pois acho que os meus já cumpriram seu papel. Há algum tempo vem surgindo uma nova geração de cartunistas, bastante influenciada por mim, pelo Laerte e pelo Glauco. Olho o trabalho dessa molecada e, francamente, me pergunto ‘Por que é que eu vou continuar fazendo isso? Eu já fiz isso! Por que é que eu vou concorrer com um moleque que está começando a descobrir o caminho dele agora?’. Para mim, é fundamental envelhecer com dignidade.”

Meiaoito e nanico
Tirinha da antológica dupla Meiaoito e Nanico. Foto: arquivo pessoal

A propósito do seu comentário, questionado sobre o que acha dos esforços empenhados por jovens cartunistas para regulamentar a profissão, Angeli defende que envelhecer com dignidade também passa por condições dignas de vida profissional, mas se diz alheio a assembleias reivindicatórias de sua categoria.

“Acho válido, mas, sendo bem sincero, prefiro não frequentar. Acho um puta saco ficar em um ambiente desses, onde só se fala de cartum. Regulamentar a profissão e dar garantias mínimas é fundamental, mas também acho que uma profissionalização excessiva tirar parte essencial do encanto do ofício.”

Los Três Amigos
Los Três Amigos: Laerte, Angeli e Glauco, em foto, de 1987, de Leonardo Crescenti.

Encerramos a entrevista com dois assuntos polêmicos e inevitáveis: a trágica perda do amigo Glauco e, o mais ameno deles, a recente mutação de Laerte: “Me divirto com isso, porque o Laerte já tinha essa coisa, vivia falando ‘acho que sou bi, sou gay’, mas acho que só agora ele encontrou uma saída. E eu também estou precisando achar alguma, que não sei qual é, mas com certeza não será me travestir de mulher. Já o Glauco foi o cara que mais fez jus ao predicado hippie. Éramos meio carrancudos, veio o Glauco com aquelas tirinhas, e eu, mesmo na minha fase mais riponga, não conseguia fazer essa piada por piada que ele sempre fez. Eu tinha a pretensão de ter algum viés político, só que a piada pela piada do Glauco era algo brilhante. A amizade que tivemos trouxe muito frescor a nossos trabalhos. A perda do Glauco é uma ausência profunda. Ele cumpria um papel importante e ficou esse vazio”.

Nossa conversa foi registrada em São Paulo, no bairro nobre de Higienópolis. Angeli, como Artacho Jurado (que projetou o cultuado prédio onde vive o cartunista e era odiado por seus pares por não ter formação em arquitetura), também driblou convenções para impor, a fórceps, seu grande talento. Reduto simbólico, convenhamos.

* Perfil originalmente publicado em maio de 2012, capa da edição 56 da revista Brasileiros

Segue o baile

Na Patuá Discos, no bairro da Vila Madalena, em SP, com discos de Airto Moreira e Flora Purim, Jorge Ben e Sambalanço Trio, os DJs MZK, Ramiro Z e Paulão - os dois últimos, sócios da loja. Foto: Luiza Sigulem

Segregados nos bairros periféricos de São Paulo nos anos 1970, os bailes black foram redescobertos na segunda metade dos anos 1990 por um novo público. Essa movimentação, dispersa em clubes da região central da cidade e na boemia da Vila Madalena, foi testemunhada – e protagonizada – por personagens como os DJs Paulão e MZK, pontas de lança de pesquisas que reafirmaram a herança da música negra em nosso País.

Paulo Sakae Tahira, o DJ Paulão, saiu da zona norte de São Paulo, aos 17 anos, em 1991, para viver em Campinas, onde estudou Ciências Sociais, na Unicamp. Mesmo determinado a concluir a formação de cientista político, ao começar a atuar em programas da Rádio Muda, braço de comunicação interna da universidade, logo descobriu que a música falaria mais alto. “Antes de chegar no segundo ano eu já sabia que não era aquilo que queria para minha vida, mas que devia aproveitar ao máximo tudo que a faculdade tinha a oferecer”, diz.

Paulão fez mesmo bom proveito da Rádio Muda. Com o intercâmbio entre alunos, propiciado pela ex­­periência de produtor, pro­gramador e locutor da emis­sora, construiu uma rede de contatos com alunos, radicados na Unicamp, de todas as regiões do País e da América Latina, que expandiu suas pesquisas musicais. O acesso a trabalhos de artistas, álbuns e compactos obscuros, assemelhados pela força rítmica, levou Paulão a desenvolver a faceta de DJ. Nas pistas conduzidas por ele, em noites como a Festa Black, improvisada no campus e em espaços alternativos, de centenas a 1,5 mil jovens, se entregaram ao embalo irresistível da música negra no biênio 1995/1996.

Quatro anos mais tarde, em 1999, Maurício Zuffo Kulmann, o DJ MZK, também artista gráfico, iniciou, em quatro noites avulsas no Hotel Cambridge, a festa Jive. Na pista regida por ele e os amigos Magrão e Don KB, um misto quente de sonoridades de matriz afro, que ia do funk ao samba-rock, do jazz latino aos grooves globais, da música lounge às trilhas sonoras de cinema e de novelas. Com o sucesso da empreitada, eles migraram o baile para uma sala comercial no térreo de um edifício da rua Caio Prado, no centro de São Paulo. O espaço, dos irmãos Márcio e Alex Ceccin, o Don KB, foi batizado de Jive e logo atraiu uma seleta fauna noturna.

“O público era de artistas, músicos, jornalistas. Uma rede de frequentadores que influenciou o crescimento da festa. Algo bom, porque a gente também tinha a liberdade de ou­sar e tocar o set que quisesse”, diz MZK. A incursão na Caio Prado, no entanto, teve vida efêmera. Corria o sexto mês de bailes semanais quando, depois de impasses com a fiscalização da Prefeitura e pressão da vizinhança, a aventura teve fim. “O dia em que o primeiro Jive foi fechado, o Luiz Melodia estava lá, um baita clima legal, mas a polícia chegou e acabou com tudo”, recorda. Em outros endereços, fixos e itinerantes, no entanto, a festa Jive durou dez anos.

Filho de um caminhoneiro de ascendência japonesa, Eizo Tahira, e de uma dona de casa, Maria Salomé Vaz Santos, Paulão cresceu na zona norte da cidade e teve pouca influência dos pais em sua formação musical – segundo ele, a trilha sonora de casa era um misto de música sertaneja e oriental. A vocação para a discotecagem, no entanto, deu vestígios desde a mais tenra idade. “Com 7 anos, em 1980, eu pegava minha vitrolinha Sonata, uns discos de trilhas de novela e ficava tocando no quintal de casa.”

Trinta e três anos depois, em 2013, o predicado de garimpador de relíquias levou Paulão a lançar, em LP, a coletânea Brazuca!, pela gravadora holandesa Kindred Spirits. Com mais de três mil cópias circulando pelo mundo, o álbum, que está sendo reeditado e terá um segundo volume, foi recomendado pelo jornal francês Libération como essencial para conhecer o melhor da música brasileira no ano da Copa do Mundo de Futebol de 2014. Com 12 faixas, o álbum reúne composições lançadas entre 1966 e 1978, por artistas como Evinha, Toni Tornado, Arnaud Rodrigues, Di Melo, Elza Soares, Silvio Cesar e Noriel Vilela.

Nascido na Vila Universitária, vizinha da USP, na zona oeste de São Paulo, MZK teve na adolescência uma grande influência para se tornar DJ: os bailes black organizados por uma modesta equipe local municiada apenas de luz negra e estrobo. Com recursos ainda mais precários, ele decidiu fazer com amigos seus primeiros bailinhos de garagem. “Descolamos uns soquetes de luz, lâmpadas coloridas e gravamos as músicas em fitas K-7. Eu já tinha a influência do funk e da disco music, mas não era um conhecedor desses sons. Não cheguei a participar daquela parada da São Bento (a cena de hip-hop surgida na estação de metrô que, nos anos 1980, foi embrionária do rap brasileiro), mas acompanhava tudo de perto. Ouvia os primeiros discos do Thaíde e DJ Hum, os Beastie Boys, Malcoln McLaren, Kool Moe Dee, Kurtis Blow e RUN-DMC.”

Depois de um período em que morou em Santos, predominado pelo interesse em rock, MZK voltou a São Paulo e integrou uma banda de surf-music com o sugestivo nome de Los Sea Dux, tocando maracas. Com a expansão das influências musicais do grupo, que incorporou grooves de diversos gêneros, veio o desejo de discotecar novamente. Ao lado de Magrão, contrabaixista do trio e futuro parceiro nas noites do Jive, MZK começou a fazer a trilha sonora que antecedia as apresentações do combo. Experiência embrionária da Jive, uma das festas que impulsionaram um culto jamais visto ao samba-rock. De mero estilo de dança, os sons que embalavam a negritude dos anos 1970 foram elevados ao status de gênero musical, por meio de bandas como Clube do Balanço, Os Opalas, Farufyno, Sandália de Prata e Sambasonics.

A banda Sambasonics, criada pelo guitarrista Marcelo Munhoz, em registro de 2001, ano de sua fundação. Foto: Dimitri Lee

Descobertas semelhantes surgiram nas pesquisas das DJs Ju Salty e Prila Paiva, criadoras, em 2010, da festa Chica Chica Bum. Como Ramiro e Pinhel, elas também se conheceram por meio de sites de compartilhamento. Em 1990, Ju também foi cooptada pelo rap. “Ailton, um grande amigo, me presenteou com uma fitinha K-7 do álbum Hip- Hop Na Veia, do Thaíde e DJ Hum, e amei o que ouvi. No mesmo período, comecei a sair na noite paulistana e passei a frequentar a Der Tempel, uma casa de rock, mas que, na pista, misturava tudo. Claro, não rolava música negra na essência, mas tocavam muito hip-hop. Tanto que a primeira vez que ouvi Racionais MCs foi lá. Lembro que fui correndo perguntar para o DJ o que estava tocando. A música era Hey Boy”. De ouvinte compulsiva a DJ, Ju iniciou a carreira em 2006, em clubes como Tríade e CB, onde fez as noites Versão Brasileira, com o cantor e compositor Rômulo Fróes, e Tiki, ao lado de João Gordo.

Em festas amadoras na faculdade, Prila experimentou situações divisoras para sua formação de DJ. “Em 2000, eu ingressei na Unesp para estudar Artes Visuais e comecei a discotecar nas festas organizadas pela turma. Eram eventos grandes com 500 pessoas. Veio daí o meu entendimento sobre o que é ser DJ. Foi também nessa época que mergulhei nos ritmos de matriz africana e latino-americanos, mesclados à psicodelia. Marva Whitney, Gal Costa, Elza Soares, Trio Ternura, Wilson das Neves, Djalma Corrêa, Geovana, James Brown, Kool and The Gang, Sly and The Family Stone, Jimi Hendrix, Mongo Santa Maria, entre outros, costuram até hoje minhas sessões. Busco a maestria da história da música que é contada com a alma”, diz.

As DJs Ju Salty e Prila Paiva, da festa Chica Chica Bum. Foto: Arquivo Pessoal

Ju e Prila fazem parte de movimentação ascendente. Antes restrito a iniciativas isoladas, como as festas da pioneira DJ Sonia Abreu, iniciadas, em 1977, em 1977, na Papagaio Disco Club, a presença feminina atrás dos toca-discos é fenômeno visível na noite paulistana, em bailes como os do coletivo Mulheril, que reúne dezenas de colaboradoras; Veraneio, das DJs Laylah Arruda, Laura Mercy e Raffa Jazz; Pitangueira, das DJs Dé Schw, Mariana Boaventura e Gabriela Ubaldo; Macumbia, também de Gabriela; e Viva o Vinil, da paraibana DJ Kylt, radicada em São Paulo.

Ju, no entanto, considera que essa evolução ainda é tímida. “Acho legal que exista hoje um número crescente de mulheres DJs, mas essa movimentação ainda é pequena, se comparada com a hegemonia masculina. Infelizmente, esse é um reflexo das dificuldades que a gente vive em uma sociedade machista e misógina. Somos minoria, mas sigo fazendo o que gosto, porque sei que a música tem a força de aglutinar as pessoas. A partir do momento que descobri que eu tinha o poder de uni-las através do som, essa paixão sempre me moveu”, diz.

Prila reitera a opinião da parceira de Chica Chica Bum. “Das instituições públicas às domésticas, vivemos em um Estado masculino. Vejo pouco intercâmbio entre produtores e DJs que incluam as mulheres pela perspectiva criativa. Muitas vezes, elas são incluídas nas redes culturais para atender protocolos de consciência de quem se diz não machista. Ao mesmo tempo, é incrível como coletivos de mulheres têm transformado as coisas por insistência e resistência. Mas esse trânsito precisa fluir mais. Concluo, deixando um salve à DJ Sônia Abreu, desbra­vadora do universo dos bailes, mulher sonhadora, que saltou o muro do preconceito com sua Kombi mágica e sua coleção de discos, levando suas Ondas Tropicais para o espaço público na década de 1980.”

Com esses oito personagens, encerramos aqui as duas reportagens dedicadas à história dos bailes black e sua herança para a noite de São Paulo. Vale lembrar, como afirmamos na primeira matéria, que centenas de anônimos também construíram essa narrativa. Um salve a todos eles!

MAIS
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Mostra no MAC-USP revela sobrevivência pálida e burocrática

Daniel de Paula. 'Testemunho', 2015. Testemunhos de rocha resultantes de sondagens geotécnicas executadas para obras públicas de mobilidade urbana do estado de São Paulo, dispostos em ordem cronológica segundo períodos geológicos

Curadorias com temas genéricos são modelos preguiçosos, mas recorrentes no atual sistema da arte. É uma receita fácil: escolhe-se um tema abrangente, selecionam-se obras de vários períodos com artistas de várias gerações, nacionais e internacionais, e reúne-se tudo com um texto cheio de citações. “Matriz do tempo real”, que esteve em cartaz no Museu de Arte Contemporânea da USP é um ótimo exemplo dessa prática.

Organizada por Jacopo Crivelli Visconti, a exposição não só revela esse tipo de exercício curatorial de nível básico, como também toda a perversão dos mecanismos de lei de incentivo e da precariedade dos museus públicos brasileiros.

A começar pelo conceito: O texto que introduz “Matriz do tempo real” é pretensioso ao afirmar que ela é “concebida na interação entre reflexões e inspirações diversas, que vão dos conceitualismos dos anos 1960 e suas reverberações a produção artística das décadas seguintes”. Espera-se, portanto, uma pesquisa de fôlego sobre o tema e, novamente citando o texto curatorial, como o tempo “se faz presente de uma maneira quase física”.

Entre projeto e execução, é normal que existam adaptações, mas se há algo que de fato a mostra não entrega é uma presença física que se traduza em algum tipo de experiência do tempo efetiva. O que se vê, nesse sentido, é uma série de ilustrações do tema, com um percurso que banaliza cada obra a apenas uma camada – o tempo –, reduzindo toda sua complexidade. É o caso, por exemplo, de On Kawara, visto em apenas uma pintura da série “Today”, realizada diariamente de 4 de janeiro de 1966 a 12 de janeiro de 2013, meses antes de sua morte.

A obra tinha oito tamanhos possíveis, três cores estabelecidas pelo artista e se não fosse terminada no mesmo dia, tinha que ser destruída. A língua utilizada também dependia do local onde o artista se encontrava e teve início em uma época do questionamento dos suportes tradicionais, sendo que Kawara conseguiu pintar mesmo que de forma conceitual. A simplificação de uma obra com tantas leituras possíveis, reduzindo-a uma data é lamentável, assim como falar do tempo sem uma experiência de duração é ainda contraditório.

Mas os problemas não param aí. A primeira obra que se vê na mostra, “Certificado de autenticidade de Time Spoken”, de Ian Wilson, pertence e está identificada como “coleção moraes-barbosa”, sendo que Visconti é curador da coleção. Foi por algo semelhante que uma das curadoras mais renomadas na Europa, Beatrix Ruf, renunciou ao cargo de diretora do museu Stedelijk, em Amsterdã, quando veio a público que ela misturava atividades privadas com o museu. É o tipo caso de conflito de interesses, afinal Visconti está dando visibilidade, portanto valor, a uma obra particular com a qual ele tem relação.

Com isso, novamente, o Museu de Arte Contemporânea da USP terceiriza seu espaço para projetos externos, com contornos problemáticos, como ocorreu com “Os desígnios da arte contemporânea no Brasil”, em abril do ano passado, quando seu curador expunha suas próprias obras  – dando visibilidade e valor a elas – além de outras identificadas como do patrocinador.

É compreensível que um museu público sem recursos suficientes para um programa adequado busque parceiros. Contudo, terceirizar seu espaço, permitindo que mostras sejam ali montadas sem qualquer tipo de controle e ainda bancada por dinheiro de lei de incentivo – no caso “Matriz do tempo real” tem R$ 750 mil de apoio do Itaú – revela a incapacidade do museu em exercer sua função pública.

Para um museu com caráter universitário, que nos anos 1960 e 1970, sob a direção de Walter Zanini, mesmo sem dinheiro, foi o centro da produção experimental da cidade, é como ter perdido o sentido de sua função e se rendido a uma sobrevivência pálida e burocrática.

Instituto Goethe realiza “Conferência Ecos do Atlântico Sul” em Salvador

Ana Hupe: 'Texto Vivo' é a colagem de todos os escritos, incluindo troca de mensagens eletrônicas, realizados em 3 semanas de residência no La Ene, Buenos Aires, Argentina em 2013

Em 2015, o Instituto Goethe lançou o projeto Episódios do Sul, que promoveu durante três anos uma serie de debates, pesquisas, programas de intercâmbio, produções artísticas e encontros internacionais, cujo principal foco foi a descolonização do pensamento.

Artistas, curadores, acadêmicos e diversos agentes culturais, principalmente da América Latina da Ásia e África, debateram o “inconformismo” com a historia colonial, a necessidade de discutir a existência ou não de uma historia da arte global e quais poderiam ser os caminhos de aquisição e mediação do conhecimento.

Foram vários encontros. O Episódio Museal, por exemplo, permitiu em 2016 e 2017, que diretores de Museus de diferentes continentes trocassem ideias sobre o futuro global dos museus, reunindo-se em Salvador, no Brasil, Santa Cruz e La Paz na Bolivia e Johanesburgo na África do Sul.

Todos os eventos, embora partindo de questões diferentes, foram permeados pela intenção de pensar o sul, a “partir dele mesmo”.

Como diria o antropólogo indiano Arjun Appadurai, “em vez de pensar uma teoria do sul que gera formas de pensar tradicionais do norte, um ‘ao sul da teoria’ que dará origem a uma outra arquitetura da cultura global”. (ARTE!36)

Agora, a partir de abril de 2018, o Goethe dá sequência ao seu investimento cultural e promove a “CONFERÊNCIA ECOS DO ATLÂNTICO SUL, sobre o futuro das relações transatlânticas do Sul”, – https://www.goethe.de/ins/br/pt/kul/sup/echoes.html –

A conferência vai abordar desde diferentes perspectivas, multidisciplinares, multiespaciais e multitemporais, o futuro das relações transatlânticas do Sul, partindo da base do papel da Europa no passado, presente e futuro.

Na definição do Instituto, até o século 15, o Atlântico representava uma fronteira perceptível entre a África e a Europa de um lado e a América do outro. Com o descobrimento se rompe essa fronteira e se da inicio a uma história de colonização, escravização, exploração, migração e enriquecimento da Europa. Isto criou um vínculo indissolúvel entre os três continentes. A medida que as relações de poder e as relações politicas mudam, os interesses de intercambio entre os três continentes vem aumentando.

Qual a importância do Triângulo Transatlântico no século 21? Que tipo de posição a Europa vai assumir frente à África e à América do Sul, depois de ter feito o papel de hegemonia colonial – em diferentes nuances – durante os últimos 500 anos? Como lidar com conhecimentos e descobertas do passado em relação às futuras trajetórias?

Como determinar os desenvolvimentos sociais, econômicos, políticos e culturais nas respectivas regiões do mundo? Que histórias abrem caminho para o futuro e que estratégias culturais e inovações podem melhorar a vida na Terra de maneira substancial e sustentável?

Para apresentar seus trabalhos e dialogar entre sí sobre “Novas historiografias”, “Migração e desalojamento”, “Sociedades civis do futuro”, “Democracia”,“Arte e ciência como formas híbridas de produção de conhecimento”, estarão presentes mais de 50 artistas, acadêmicos e intelectuais de diferentes países do mundo.

Dentre eles, Lilia Moritz Schwarcz, professora de antropologia na Universidade de São Paulo e bolsista global de Princeton. Lilia foi bolsista da Fundação Guggenheim (2006/2007) e professor visitante em Oxford, Leiden, Brown, École des Hautes Études en Sciences Sociales e Universidade de Columbia.  Publicou vários livros sobre os temas em discussão, como Retrato em Branco e Negro (1987), O sol do Brasil (2008); Lima Barreto. Triste visionário (2017); entre eles três em inglês: Espetáculo de raças (1999);  A barba dos imperadores: D. Pedro II um rei tropical, (Farrar Strauss e Giroux, 2004), e Brasil: uma biografia-com Heloisa Starling (Companhia, 2016/Penguin, Espanha 2016; Farrar Strauss e Giroux e Penguin UK, a ser publicada em 2018). Ela foi curadora de algumas exposições como: Nicolas-Antoine Taunay: uma tradução francesa dos trópicos (2008).

Bonaventure Ndikung, PhD, biotecnólogo e curador independente. É fundador e director do SAVVY Contemporary Berlin um espécie de Laboratório cujo objetivo é promover o diálogo entre “arte ocidental“ e “arte não-ocidental“. Bonaventure é editor-chefe no SAVVY Journal para textos críticos sobre arte contemporânea Africana. Ele já foi curador da dOCUMENTA 14 e é curador convidado da Dak’Art Bienal 2018 em Senegal.

Elisa Larkin Nascimento, PhD em psicologia na universidade de São Paulo, assim como Mestre em artes na Universidade de Buffalo, (USA). Diretora do IPEAFRO – Instituto de Pesquisas e Estudos Afro Brasileiros, se dedica à guarda, preservação e difusão do acervo documental e museológico de Abdias Nascimento, como base para atividades educativas e culturais em relação à herança africana na diáspora. No seminário, pretende apresentar aos colegas um pouco do conteúdo desse acervo e trocar ideias sobre a gravidade do quadro de genocídio do negro brasileiro, que Abdias denunciou há 40 anos no livro que teve uma nova edição, bem como sobre como potencializar o uso do acervo em ações culturais e educativas que podem contribuir para o combate ao racismo e a intolerância religiosa.

O Professor emérito e catedrático de Inglês e Estudos Americanos no centro de graduação da Universidade de Nova Iorque. Robert Fitzgerald Reid-Pharr, PhD em Estudos Americanos, Mestre em Estudos Afro-americanos pela Universidade de Yale e um Bacharel em Ciências Políticas pela Universidade da Carolina do Norte, em Chapel Hill. Um especialista em cultura afro-americana e um proeminente estudioso no campo de estudos de raça e sexualidade, ele é autor de quatro livros: Conjugal Union: The Body, the House, and the Black American, Oxford University Press, 1999; Black, Gay, Man: Essays, NYU Press, 2001, for which he won the 2002 Randy Shilts Publishing Triangle Award for Gay Non-Fiction; Once You Go Black: Choice, Desire, and the Black American Intellectual, NYU Press, 2007; and Archives of Flesh: African America, Spain, and Post Humanist Critique, NYU Press.

Ana Hupe, brasileira, uma das artistas presentes se dedica a pesquisar e construir projetos de memoria e contra-memoria da migração. Ela é PHd em Artes visuais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e atualmente mora em Berlim onde cursa um ano de doutorado como aluna convidada na Udk, Universitat der Kunste com orientação da artista Hito Steyerl. Como artista residente convidada, no período da Conferência Echos do Atlântico Sul, ela vai participar com uma exposição na Vila Sul, do Goethe em Salvador. Seu trabalho deverá abordar uma pesquisa sobre os ”retornados” que são os brasileiros ou africanos que resolveram ou foram obrigados a voltar para África no fim do século XIX inicio do século XX. Para Hupe interessam historias de “não pertencimento”, os inmigrantes no Brasil idealizavam o outro lado do Atlântico e ao chegar na África eram Brasileiros. Mas lá formaram comunidades brasileiras potentes como Lagos, Togo, Benim e Gana. Seu mais recente trabalho foi “Muito futuro para uma só memória”, que ocupou a Galeria Massangana – Fundação Joaquim Nabuco em Recife, com curadoria de Moacir dos Anjos.

ARTE!Brasileiros vai acompanhar o evento e trazer para o público a essência do debate.


Katharina Von Ruckteschell, diretora do Goethe Institut São Paulo e também diretora regional da instituição na América do Sul.

Conversamos com Katharina Von Ruckteschell, diretora do Goethe Institut São Paulo e também diretora regional da instituição na América do Sul quem persegue, no seu trabalho, o que entende por vocação do Instituto, a troca de conhecimento.

ARTE! Existe por parte do Goethe Institut um trabalho enorme já desde Episódios do Sul, um projeto extremamente complexo que envolve três continentes, América do Sul e África historicamente colonizados pela Europa. É fato que partimos de uma desigualdade. Como é possível compensar essa disparidade em um evento como este.

A ideia do projeto “Ecos do Atlântico Sul” é lançar um olhar para a relação triangular entre Europa, África e América do Sul/Caribe a partir de várias perspectivas. É claro que há uma relação histórica. Desde o início, foi a Europa que impôs a desigualdade e dependência nas relações entre os continentes no Norte e no Sul, através da colonização. A escravidão e as outras explorações econômicas aprofundaram a desiguladade e as dependências. Mesmo as independências políticas alcançadas em ambos os continentes não puderam até agora muda-las – até agora. O mundo e sua ordem mudam significativamente. O “Sul” começa a se emancipar do “Norte”, fronteiras que se formaram consistentemente pela escravidão agora começam a diminuir devido às raízes culturais comuns, mas também por visões mútuas do futuro. A desigualdade pode existir ainda. Mas por quanto tempo será assim e em que medida uma Europa ainda ignorante, será capaz de tomar parte nesta relação triangular? Convidar acadêmicos, intelectuais cientistas e artistas vindos dos três continentes, que abordam essas questões, para se reunir e trocar perspectivas numa base comum, pode ser um ponto de partida para enxergar possibilidades futuras.

O projeto anterior, Episodio Museal, tinha um objetivo claro: reunir diretores de museus e curadores para pensar novas práticas no mesmo eixo geográfico. Quais são os principais agentes que vão tomar parte do projeto agora? E com que objetivo. Qual o campo que se pretende emular dessa vez?

A “conferência” como a chamamos, tenta estimular e apoiar projetos de pesquisa, arte ou literatura que abordam a questão do “Atlântico Sul”. “Atlântico Sul” representa uma relação entre continentes que no passado foi opressiva e violenta, hoje é tensa e problemática e amanhã poderia ser pior que no passado ou presente. Mas pode também ser muito melhor. O projeto “Episódios do Sul”, incluindo o “Episódio Museal” tiveram base na tese de que olhar as coisas a partir de diferentes perspectivas pode torna-las mais claras e ajuda a encontrar novos caminhos para o futuro. A “conferência” irá reunir essas diferentes perspectivas e disciplinas e formatos a fim de discutir a questão de como e em quais formatos avançaremos de forma mais concreta. Uma discussão sobre diferentes narrativas da história da escravidão, por exemplo, pode evoluir para um projeto concreto sobre reconciliação das vítimas. Eu espero que, após a conferência, surjam diferentes ideias que possam vir a se tornar projetos.

Espera-se alguma atividade prática a partir desse projeto, seja a publicação de um livro ou alguma parceria entre universidades?

Estou certa de que somente o encontro de participantes vindos de diferentes contextos, países, culturas e disciplinas, trabalhando sobre um mesmo tema irá criar uma rede que irá colaborar e encontrar apoiadores. Além disso, eu espero que projetos concretos, que já existem ou que estão sendo desenvolvidos recentemente, possam ser realizados nos próximos anos. “Ecos do Atlântico Sul” está planejado para durar três anos e tenho esperança de que vá crescer em visibilidade e em participantes.

 

*Colaborou Fabio Cypriano

Insidiosa, desigualdade de gênero se repete no mundo da arte

Maria Auxiliadora da Silva, 'A preparação das meninas', 1972.

Com o mês de março, ressurge uma questão antiga e premente: a menor representatividade das mulheres na cena artística brasileira. Ao olhar para a programação das principais instituições e galerias é possível notar uma ênfase na presença de artistas mulheres. A lista é ampla e inclui importantes nomes da arte brasileira, de diferentes gerações. Dentre as atrações destacam-se a mostra de Anna Bella Geiger, na Caixa Cultural SP, a de Jeanete Musatti, na Galeria Bolsa de Arte e a de Laura Vinci, na Galeria Nara Roesler. Os museus também reservam boas surpresas: Mira Schendel no MAM; Maria Auxiliadora, no Masp; Josely Carvalho no MAC; e Hilma af Klint (1862-1944) na Pinacoteca do Estado (ver pág. 32). Tal densidade, no entanto, não encobre a estrutura desigual, que se perpetua ano após ano.

Sendo a maioria dos alunos nos cursos de artes visuais, as mulheres são pior representadas em todas as instâncias. Ainda faltam estudos aprofundados, mas algumas informações quantitativas evidenciam as distorções. Segundo a pesquisadora Bruna Fetter, não há registro de instituição nacional que tenha em seus acervos mais do que 30% de obras de artistas mulheres em suas coleções. O exame da lista de artistas representados pelas principais galerias do País também mostra um peso muito maior de artistas homens. E uma pesquisa recente, divulgada pela página #arteparaquem, do Instagram, revela que dentre as principais instituições culturais paulistanas, apenas o Vídeobrasil tem uma maioria de mulheres tomando decisões. Em segundo lugar estaria a Bienal, onde 73% dos postos de decisão são ocupados por homens. Nas outras, o desequilíbrio é ainda maior.

Mas nem sempre a teia da invisibilidade é tão evidente. Muitas vezes as barreiras são mais insidiosas, mascaradas. E usualmente estão associadas a outras formas de exclusão, relacionadas não apenas ao gênero, mas também a questões raciais e geopolíticas. A celebrada chegada de Tarsila do Amaral ao Museu de Arte Moderna (MoMA), em Nova York, é um exemplo desse lento processo de absorção das minorias pelo mainstream. A situação é ainda mais difícil quando problemas agudos como a discriminação de gênero e raça constituem o cerne do trabalho. É o caso, por exemplo, de Maria Auxiliadora (1935-1974), relembrada agora pelo Masp dentro do eixo curatorial “Histórias Transatlânticas”, escolhido pelo museu para nortear sua programação de 2018 (em 2019 será a vez da instituição se debruçar sobre a arte das mulheres). Associada de forma simplista ao rótulo de “primitiva”, a pintora autodidata desenvolveu uma obra bastante combativa, dando visibilidade à cultura negra e popular. Descoberta pela grande crítica (Mario Schenberg e Pietro Maria Bardi) ela teve um momento de expressivo sucesso nas décadas de 1970 e 1980, para depois cair novamente no ostracismo, para só agora ter esse resgate tardio e necessário.

Lenora de Barros, ‘Homenagem a George Segal (Homage to George Segal)’, 1984

A mesma instabilidade, que deixou Maria do Rosário à mercê das marés do mercado, afeta a maioria das artistas contemporâneas. Com uma exposição em cartaz em Nova York e uma retrospectiva agendada para o mês de dezembro também na Pinacoteca (instituição que de longe realiza a programação mais feminista de 2018), Rosana Paulino lembra que durante anos teve seu trabalho – baseado em experiências vividas por ela e por grupos próximos, como as mulheres negras – mais reconhecido no exterior do que no País. Ela conta ter recebido vários convites para estabelecer residência fora e que só ficou por teimosia. “Resolvi ficar porque achei que a cena brasileira necessitava de discussões como a que eu propunha. E confesso que não me arrependo desta escolha. É muito bom, surpreendente até, ver a produção que está vindo por aí. Achei que não veria isto em vida. E é claro que isto reflete em minha produção, quando opto por discutir temas que a sociedade brasileira sempre varreu para debaixo do tapete, como as marcas deixadas pela escravidão no país”, afirma.

A artista considera que essa maior abertura decorre do caráter urgente das questões com que trabalha e de uma maior liberdade de escolha do caminho a ser seguido. “Vivemos uma abertura maior para outras formas de pensar e produzir arte”, diz ela. Essa mudança decorre de múltiplos fatores, como uma maior consciência política e social, o arrefecimento do formalismo como caminho único e a internacionalização da produção. “Não dá mais para ignorar esta nova postura mundial, fingir que isto não existe, com o risco de ficar preso no século XX quando o resto do mundo já entrou no XXI”, constata.

Esse descompasso histórico, a necessidade de dar continuidade a mobilizações iniciadas décadas atrás, é algo também levantado por Josely Carvalho, cuja exposição “Diário de Cheiros – Teto de Vidro” é um dos destaques da temporada no MAC. A artista, que muda para os EUA após o golpe militar e vive em Nova York desde a década de 1970, onde se engaja no movimento feminista de arte contemporânea, se diz “assombrada por estarmos falando a mesma coisa do que nos anos 1980”. Incomodada com o fato de ter sido longamente rotulada de “feminista” no Brasil, ela acredita que vivemos um momento propício para desestabilizar o comodismo. E existem várias armas para isso. “Hoje estou no cheiro, mas é o cheiro da sensibilidade feminina, é algo que não se retém. Assim espero conseguir diminuir essa briga por espaço, por poder”, afirma ela ao falar sobre as instalações olfativas que criou para o projeto do MAC. A exposição “Radical Women”, que a Pinacoteca exibe no segundo semestre (depois de uma temporada no Museu do Brooklin) é, segundo ela, uma inciativa que promete trazer a tona com intensidade a necessidade de lutar por um espaço mais igualitário, as estratégias coletivas e artísticas adotadas pelas artistas pioneiras dos anos 1960 e 1970 e suas semelhanças com as políticas atuais de luta.

Outro caminho que vem ganhando força, e não apenas no circuito das artes, é a união das mulheres em torno de bandeiras comuns, criando mecanismos de denúncia e também políticas efetivas de ocupação de espaço. A CODEM.RED – Cooperação de Mulheres em rede é uma dessas ações, que vem congregando artistas de todo o Brasil e inclusive do exterior. Dentre suas propostas estão o fomento do suporte mútuo e solidário, a criação de um grande banco de dados com o perfil das associadas e a oferta de assistência jurídica às associadas. “Em menos de duas semanas já temos a aderência de quase 110 mulheres por todo país: PE, SP, PR, RS, RJ e DF”, conta Ana Luísa Lima, uma das responsáveis pela iniciativa.

A presença do mistério em São Bernardo

Lula São Bernardo
O ex-presidente Lula durante a missa campal em homenagem a ex-primeira dama Marisa Letícia, realizada no último sábado (7), em São Bernardo do Campo (SP). Foto: Paulo Pinto / Fotos Públicas

Ele se atomizou e implodiu a todos. Repito, a ele e a todos. A energia foi gigantesca. Imanência e emanência nuclear. E tudo vibrava mesmo, de tocar e dar choque. Energia nuclear. Eu não sou místico, mas alguma coisa muito mística, muito além do Lula, aconteceu em São Bernardo do Campo no último sábado (7).

Atravessou um trem no meio da cidade, que atravessou a cada um ali. Um pau-de-arara vindo do sertão, que virou uma locomotiva carregada de minério, pra depois ser aço e carro no corpo de todos os presentes. Metalúrgica. E foi de verdade. Foi uma mistura de sentimentos, um bololô em ondas fortes, peitos batendo e vozes que não saiam das gargantas. Simplesmente não saiam. Era assim, foi assim.

Daí berros, berros cortantes e vigorosos como de recém nascidos. E, no fim, era ele quem estava, desde o inicio, ao mesmo tempo acalmando a turba e chamando pra luta, pra briga. Dali, daquele palco, iria pra cadeia, coisa de minutos. Um preso falando. Passei a entender porque algumas vozes não saiam mais, estavam presas já. Desceria a escada do caminhão, e, pêi, xilindró.

Era morte e era vida. E era ali. Não tinha texto grego. Não tinha Homero, Shakespeare, Marlowe. Até pensei no Leon Hirszman e no Gianfrancesco Guarnieri encenando o drama das greves do ABC nos palcos e no cinema. Nada dava conta. Afora a política toda e suas inconfessáveis negociações, algo muito maior estava sem qualquer máscara ou era encenação. Estava acontecendo uma verdade. Era a esposa sendo chorada pelo Padre operário, a homilia pensada pelo irmão Gilberto Carvalho e ele, Lula, querendo uma musica apenas, Asa Branca, canção do casal.

Do casal??? Um hino do Brasil dos Lulas. “Quando o verde dos teus olhos / Se espalhar na plantação”. Lembrei de meu pai, que acha essa estrofe uma das mais lindas e pensei na minha avó, mãe do meu pai, baiana de Santa Rita de Cássia, que nos deixou há 2 anos. Lembrei também que tivemos um dia um Ministro da Cultura que dizem que é um orixá, o Gilberto Gil. Quis cerveja nessa hora. Achei.

Era ele indo pra cadeia. Eram os medíocres, eram os fascistas fazendo isso. Era a mentira operando. Estávamos todos lá associados à escória. Eu, que nem batizado quando nasci fui, via a Cruz na batina do Padre operário e na pregação da Pastora, e escutava os berros de recém-nascido das pessoas pedindo pra ele resistir, com olhar temente à Deus. Olhava pro Suplicy sendo atendido por médicos, olhava pro Haddad e para o cenário paradoxal do apocalipse que fazia morrer e, ao mesmo tempo, nascer algo.

Acho que todos viraram Lula mesmo em São Bernardo naquele sábado. Estamos todos indo pra cadeia, todos estamos nos sentindo muito mal, injustiçados. Empatia, entender o sofrimento do outro, simpatia, sofrer junto do outro. Missa-Culto-Comunhão. Mãos dadas.

Não existe parto sem dor, nem vida sem parto. Era dramático como é um trabalho de parto. Sangue, placenta, berros e dor. Havia risco. Foi à fórceps!

Olhava pra sede, antes barracão. O útero-sindicato estava lá. Dali nasceu algo. Dali nasceu muita coisa que foi inscrita na Constituição. Dali nasceu o EU do homem mais potente que este Brasil produziu. E ele, frágil e forte, correu pro ninho, pra debaixo da asa dos amigos, pro boteco onde bebia com eles. Somente da fonte sairia pra escuridão. E a polícia, os algozes carcomidos, os Pôncio-Moro, lá, babando, no cio.

Começo a olhar pro céu. Começo a achar que o Épico está lá mesmo. Questiono minha psicose. Questiono minha individualidade. Pergunto se estou dissociando. Deixo me ir? É possível mesmo isso estar acontecendo assim? Não seria um palco grego? Uma tourada? Quem escreveu esse enredo? Se eu pego, vai ter que apanhar! Juro vingança. Blasfemo. Retiro. Peço perdão. Começo a entender o processo de morte e vida ali. Começo a ver algum tempo e alguma transitoriedade neste lugar.

Corte: Domingo, São Paulo.

Sigo descerebrado. Drummond, “domingo descobri que Deus é triste. É infinita a solidão de Deus sentado ao lado de….si”. Um pai totêmico que se vai, deixando o trono vazio, solitário como um elevador quebrado em um dia de domingo. São vários cantores de lamento e a Mercedes Sosa cantando Balderrama desde cedo. E o Gonzaga, Assum Preto – pássaro na gaiola.

Uma cela em Curitiba e fogos por Sao Paulo. Foguetório do desprezo.

A saudade antes trazia fogos, uma canção antiga lembra. Era assim que se comemorava quando alguém voltava em muitos lugares Brasil afora. “A barulheira que a saudade tinha”. Maria Bethânia cantando ao lado da mãe. Agora é a barulheira do desamor. Foguetório do desprezo.

Corte: voltamos ao sábado, São Bernardo

Mas sim, sim, houve transe naquele sábado… Muitos desmaios. Após falar, dizer que viraria ideia, Lula vai carregado pelos recém-nascidos até o sindicato-útero, fazendo-se carne para o banquete dos filhos. Se faz alimento e deixa vago o trono. Tragédia absoluta! Luz e terror! Eu tremia, não conseguia foco para as fotos que tentei deste deleite antropofágico. Me preocupei em me alimentar, vejo. Ainda bem.

Findo o banquete, um berro vem de dentro ao fecharem as portas do sindicato! – MÉDICO! MÉDICO para o Presidente! Era um pico de pressão. Era o Mercadante desesperado. E foi um pico de pressão. Minhas pernas não seguraram. Ajoelhei sem querer, minhas pernas bambearam mesmo. Uma mulher me ajudou a levantar. Ela estava fraca de lagrimas. Nos abraçamos muito órfãos. Somos Lula. Ele se deixou devorar.

Aldo Zaiden é psicanalista e integra o coletivo Precisamos Falar Sobre o Fascismo. Siga a página do grupo no Facebook.

 

Tom Zé nu & cru

Tom Zé abre
O cantor e compositor Tom Zé em seu apartamento em Perdizes, na zona oeste de São Paulo. Foto: Luiza Sigulem

O mês de agosto, aquele do desgosto no imaginário popular, abriu a temporada 2009, em São Paulo, desafiando o poder desta bobagem supersticiosa. Nos palcos do Teatro Fecap, o baiano Tom Zé, com sua irreverência e a incrível capacidade de estimular a plateia, de armar jogos, de instigar e dar asas à imaginação, passou a limpo quase cinco décadas de carreira. O balanço final de tal empreitada jamais combinaria com algo amargo como o desgosto. Foram quatro shows, dirigidos por Charles Gavin e Oscar Rodrigues Alves, que ganharão registro em novo CD a ser lançado pela Biscoito Fino e um DVD, que será veiculado como especial pelo Canal Brasil, ambos intitulados Retrospectiva – Espinha Dorsal da Carreira e com lançamento e estreia na grade do canal previstos para novembro. Gavin, que tem feito o papel de um verdadeiro titã na defesa da memória da música brasileira ao resgatar do total ostracismo a obra de gente da estatura de Tom Zé, como Sérgio Sampaio, Gerson King Combo, Os Cobras, União Black, Quinteto Ternura e um sem-número de outros grandes artistas, reiterou, em nota à imprensa, a importância do projeto: “Tom Zé fará uma retrospectiva de sua obra, algo que raramente fez em sua carreira. Tocará, com sua banda, canções de álbuns importantíssimos como Grande liquidação (1968), Se o Caso é Chorar (1972), Todos os Olhos (1973), o superclássico Estudando o Samba (1975) e canções de seu trabalho mais recente, Estudando a Bossa (2008)”. A efeméride, de fato, merece celebrações, e, a despeito de algumas complicações de agenda, porque a notícia chega nos tumultuados dias de retorno de férias, encontramos Tom para uma deliciosa manhã de boas conversas e situações imprevistas.

1° Ato – O Juca Chaves dos pobres 

Tom Zé é um desses raros sujeitos que, ao longo da vida, desenvolveram uma apurada capacidade de criar raízes e estabelecer vínculos com as coisas que o cerca. Mora na mesma rua do bairro de Perdizes, em São Paulo, há mais de três décadas, tempo em que sempre esteve ao lado de sua valente e serena companheira, Neusa, que, talvez, rendida pela impossibilidade de se envolver com o jogo lúdico e instigante do marido, sempre o apoiou, incondicionalmente, e foi determinante em ajudar a construir essa figura mítica que é Tom, Antônio José. Ele nos recebe ofertando cadeiras, pede para ficarmos à vontade, vai até a janela, observa o dia e aponta para a enorme fachada do prédio em frente, onde voluntariamente cuida de um belo jardim que surge pleno, a coisa de 15 m abaixo de nossos olhos. Tom comenta que chegou ao bairro quando viveu naquele mesmo prédio em frente, a partir de em 1973 e depois de alguns anos de convívio com Neusa em uma avenida Angélica, que, segundo cantou em Augusta, Angélica e Consolação, cheirava a consultório médico.

O frio desta manhã é bastante rigoroso e ele recorda que, no começo dos anos 1950, o prédio fora construído de frente para a rota diária do sol justamente para aproveitá-lo ao máximo, porque São Paulo, regularmente, era metade do ano muito fria. Tom observa que as condições climáticas da cidade mudaram consideravelmente e lembra que lidar com um sol que já ardia intenso na janela, às seis da manhã, e que partia só às oito da noite, passou a ser algo insuportável. Foi a deixa para atravessar para o outro lado da rua.

É evidente que a São Paulo cantada por ele mudou em muitos outros aspectos, mas é possível suspeitar que Tom aprendeu a amá-la com todas suas grandes contradições, dilemas e complexidades, porque, desde sempre, ele atentou-se em interpretá-la e redimir-se de sua aridez de concreto em canções inusitadas, como a hilária A briga do Edifício Itália e do Hilton Hotel. Mesmo a duras penas, como quando viveu quase duas décadas de completo ostracismo, ele não hesitou em inserir-se profundamente na metrópole que o recebeu, plena de possibilidades, e que o ajudou a moldar sua incrível personagem artística. Tom é um sujeito que, por exemplo, defende a rua Santa Ifigênia, zona comercial popular de componentes eletrônicos, informática e instrumentos musicais, no coração de São Paulo, como um lugar sagrado. Símbolo da capacidade do brasileiro de driblar adversidades, e ponto fundamental para viabilizar a criação de seus instrumentos, como o enceroscópio, feito à base de escovas mecânicas de enceradeiras, e as frequentes compras de componentes, muitas vezes, solicitados com surpresa nos balcões das lojas: “Mas para que o senhor quer isso? Isso é peça de torre de transmissão de televisão!”, recorda sorrindo.

Sobre a vivência na metrópole, resgato assunto que é comentado por ele em um texto intitulado Aniversário de São Paulo. Tom recorda o episódio, vivido com Gal Costa, em 1965, ocasião em que ele veio à cidade para integrar o espetáculo Arena Canta Bahia, de Augusto Boal, acompanhado dos amigos Gal, Bethânia, Gil e Caetano: “Gal e eu, a gente tinha um namoro meio atrapalhado. O dia em que ela me chamava pra sair era uma festa, porque eu nem tinha direito de chamá-la pra sair. Ela disse: ‘Tom, vamos fazer umas compras na cidade?’. Vestia uma calça comprida de casimira, daquelas calças de filme de Hollywood dos anos 1940, e eu estou com Gal, na rua, e todo mundo bolindo com ela, daí eu falei: ‘Pô, sou um homem de merda, mesmo, não é? Já sou acanhado pra diabo, aí tô aqui  com a moça e todo mundo bole com ela?!’. Gal não era conhecida, não era nem Gal Costa, ainda, era Gracinha. Depois de muito sofrimento, uma senhora teve a caridade de chamar a gente no fundo de uma loja e falar: ‘Minha filha, moça direita não sai de calça comprida em São Paulo. Quem sai de calça comprida em São Paulo é prostituta!’. Foi aí que a gente compreendeu tudo.”

A história descontrai, e o lado satírico de Tom, aos poucos, vai se aquecendo e começando a soltar faíscas. Já em 1958, em sua primeira aparição na televisão, ele deu amostras de sua deliciosa irreverência. No programa Escada Para o Sucesso, horário nobre da TV Itapoã, em Salvador, ele entra e defende uma de suas primeiras canções, debochadamente intitulada Rampa para o Fracasso. Ao lado do amigo Capinam, Tom compunha pequenos temas de protesto para o CPC (Centro Popular de Cultura), em Salvador, e, por esse mesmo deboche, era chamado de “Juca Chaves dos Pobres” nas páginas do jornal Diário de Notícias. Polêmico e sagaz, foi importante colaborador e teórico da Tropicália, movimento liderado pelos amigos Caetano Veloso e Gilberto Gil, que, por um breve período, pôs de pernas pro ar as convenções musicais, políticas e comportamentais de um País que vivia a grande contradição de estar de portas abertas para um novo mundo, de apelos urgentes, sob a vigília ostensiva de militares no poder e a barra pesadíssima do Ato Inconstitucional número 5.

Apesar de exercer no grupo papel dos mais influentes no campo da teoria musical, graças aos sete anos que estudou com os maestros H.J. Koellreutter e Ernst Widmer, ícones da revolução radical proposta pelo reitor Edgar Santos na Universidade Federal da Bahia, naqueles primeiros dias da década de 1960, Tom, ao recordar o período, diz não ver muita afinidade nas coisas que ele fazia com as coisas produzidas por Caetano e Gil. Valia-se, diz, de ferramentas que aprendeu a manipular desde a infância, em Irará, quando lidou com preconceitos e total ausência de empatia com sua música, desafio que o fez criar saídas para a inviabilidade imposta pelos outros: “Deixe-me ver se lhe dou uma ideia do que aconteceu no começo. Eu procurava alguma coisa pra me segurar no mundo, esse é o motor primeiro, é o ponto de partida, e música não era assim uma coisa que estava muito evidente, não tinha nada daquilo de dizer: ‘Aos oito anos de idade mostrou logo sua vocação!’. Era o caso de dizer: ‘Aos oito anos de idade mostrou que não tinha a menor vocação para a música’. Eu fazia um tipo de música em Irará que era o seguinte, eu ia falar do seu trabalho, da roupa que você está vestindo, da maneira que você se pinta, dos objetos que você usa, de como você se sentia, imediatamente identificado como um personagem dentro da música e incapaz de ver que eu não era cantor, como se eu enganasse você. Minhas músicas eram feitas para impedir o ouvinte de descobrir que eu não era cantor. Comecei a fazer música que você, imediatamente, começava a pensar, por exemplo, que quando eu falava ‘Guilherme se requebra’, você já era personagem da canção”.

Éverton, o pai de Tom, parece ter carregado nos genes a mesma sorte do filho em ter a vida transformada pela força do acaso. Corria a década de 1920 e Éverton detinha o espólio de seu pai, que, seguindo a tradição do sertão baiano, havia sido enterrado dentro de um pote que continha as libras esterlinas que somavam toda a herança do patriarca. Caçula de uma família vitimada por vários problemas de saúde, sem nenhum irmão, os primeiros a pleitearem a divisão foram primos de segundo e terceiro graus. Cansado de lidar com tanta aqueles que apareciam para defender parentesco e direito às libras, Éverton decidiu convocar todos os pretendentes em um local neutro, para por um ponto final à questão da partilha. Saiu de lá com uma quantia ridícula, mas já na rua encontrou um vendedor de bilhetes da loteria federal que insistiu na venda da centena 459 e, batata, centena 459 na cabeça. Da noite para o dia, da condição de grandes privações, tornou-se renomado comerciante e emergente na sociedade de Irará, ingressando na família Santana, das mais tradicionais e com vários membros simpatizantes do comunismo.

Sobrinho de Fernando Santana, líder da UNE e futuro secretário geral do Partido Comunista em Salvador, Tom vivia cercado de informações e visões conflitantes de mundo. Observando os processos cultos dos tios e a linguagem do povo que circulava pela loja de tecidos do pai, em Irará, foi se tornando um poliglota da vida. Chegou até mesmo a enfrentar o preconceito de pessoas que diziam que “filho de rico” – onde ele bem ressalta: “Em Irará não tinha rico, tinha pobre remediado” – não podia estudar música, que isso era coisa de pobre. Sem nunca aderir ao Partido Comunista, mas influenciado pelo tio, ele foi estudar em Salvador e integrou o CPC, de forte apelo jovem, ao lado do amigo e poeta José Carlos Capinam, diretor do núcleo musical do CPC. Em paralelo, Tom dedicou-se aos estudos na UFB, fato que resulta em seu ingresso, anos mais tarde, no corpo docente da universidade: “Quando a gente era mais novo não tinha como não ser esquerdista, mas eu nunca fui do partido, não porque achava que o partido era indigno. Não fui do partido porque não tive vontade de ir, mas devo dizer que quando fui diretor de música do CPC, estive lá graças a Nemésio Salles, que tinha sido secretário geral do partido, e que, quando tive um desentendimento na casa de meu tio e ia voltar para Irará, me convenceu a ficar em Salvador. Devo o fato de estar aqui, hoje, graças a Nemésio Salles, que me deu condições de ficar. E foi o Partido Comunista, o velho partidão, que me pagou para ficar naqueles dias. Tenho esse débito com ele. Eu era diretor de música do CPC e com esses trinta cruzeiros por mês eu pagava minha parte no apartamento do Nemésio, dividido por ele, eu, José Alberto Bandeira, que era o então secretário-geral, e o cineasta Geraldo Fidélis Sarno. Éramos os habitantes desse apartamento, que foi o primeiro lugar invadido na hora em que estourou o golpe de 1964”.

Embora defenda uma postura apartidária, Tom é cidadão de plenas convicções políticas e se posiciona, sem ressalvas, quando defende seus pontos de vista. Ao enveredarmos por questões ideológicas que cerceavam o dia a dia de jovens com dedicado grau de participação, como ele, Tom relembra uma capa de revista do período e põe-se a discorrer sobre assunto que desemboca na crônica política dos dias de hoje: “Lembro da capa de uma edição da Revista Civilização Brasileira com um homem com um peixe sendo fisgado, uma reportagem sobre a pesca artesanal. Ora, naquela época o próprio censo dizia que a população iria dobrar e que a capacidade produtiva de alimentos também precisava dobrar pra não matar metade dessas pessoas de fome. A capacidade da pesca artesanal nunca iria chegar perto do que seria necessário, seria preciso desenvolver a pesca industrial, a reportagem explicava, e como é que nós vamos defender esse tipo de Brasil bucólico que a esquerda quer, esse tipo de Brasil que não abre as fronteiras para a modernidade e que mata gente de fome. Tinha argumentos como esse, que também explicam muito porque o Brasil bucólico que a esquerda queria não podia se conformar com o Brasil que, na verdade, Caetano e Gil introduziram na cabeça das pessoas, um pensamento que, mesmo sob a égide de uma ditadura, ia levar o Brasil a um salto imediato para a segunda revolução industrial. Nós, toda vida, fomos povo inventor. Na hora em que o avião ia subir, tivemos uma pessoa lá. Outro dia tava no jornal ‘morreu o pai da guitarra!’ (o guitarrista Les Paul, criador do célebre modelo homônimo de guitarra). Morreu o pai da guitarra uma porra! Pai da guitarra é Osmar e Dodô, que a fizeram muito antes, na Bahia. E é bom dizer que Santos Dumont só tem o nome dele citado porque a França tem grana, ele era Dumont e estava em Paris naquele momento. Se não, os irmãos Wright seriam os únicos donos da aviação. Era com isso que Caetano e Gil, conscientemente, estavam lidando. Ao mesmo tempo houve a atitude repressiva da ditadura? Sim! E o que a ditadura queria? Que nossos cérebros se diminuíssem, ora! Eu era namorado de uma professora e o salário dela foi instituído por João Goulart, três mil cruzeiros! Olhe o que significava isso: que as pessoas de capacidade estavam convidadas a ser professores, professoras, e salário nenhum pagava aquilo. Jango estava privilegiando o pensamento, o desenvolvimento das crianças. E o que foi que a ditadura fez? O contrário! Degradou completamente os professores. Veja como eles estão até hoje… Servindo ao capitalismo, nessa degradação do ensino. Isso é uma das coisas mais terríveis. Por que falta educação? Porque o governo não quer, claro! O próprio governo de esquerda que está instaurado no Brasil precisa, por exemplo, que o Nordeste seja miserável para poder lhe dar o Bolsa Família. Se o Nordeste deixar de ser miserável, eles não vão ter aqueles votos todos. É uma maravilha para o governo que o Nordeste seja a miséria que é, porque eles estão dispostos a todas as providências pra que, por exemplo, o Nordeste não possa melhorar e eles se eternizem no poder. É isso que está em jogo, na hora em que alguém mexe com a cultura da nação. E foi isso que Caetano e Gil fizeram com consciência, sabendo o que estavam fazendo”.

2° Ato – Saudades perfumadas

A prisão e exílio de Caetano e Gil no final de 1968, e o consequente desmanche do grupo tropicalista, foi um difícil período inicial de transição, em que cada um iria seguir seu rumo. Gil, Caetano, Gal e Bethânia tiveram carreiras de grande apelo popular, enquanto Tom seguiu renitente em suas crenças, rumando o caminho que gente como Jards Macalé, o guitarrista Lanny Gordin e outros coadjuvantes da aventura tropicalista iriam, amargamente, experimentar, um ostracismo vergonhoso. Pergunto se essa ruptura, de alguma forma, também estabeleceu um rompimento dos velhos laços de amizade que havia entre eles, se ele ainda se relaciona com esses amigos e se Tom acha que, no campo artístico, ainda hoje, há convergência entre o grupo. Ele silencia brevemente e, depois, constrói um argumento conciso sobre o que considera suas escolhas e as escolhas dos outros: “Olha, vou dizer uma coisa, acho que não tínhamos nenhuma afinidade. Quando nos juntamos e conhecemos as músicas uns dos outros, eles decidiram que eu ia ficar junto deles e fizemos juntos o primeiro show, o segundo, viemos juntos pra cá fazer o tropicalismo e, na volta da Europa, após o exílio, eles decidiram que cada um deveria ir pro seu lado. Na hora em que eu entrei no lance todo não sabia que seria uma coisa tão grande, ou que eu estava me aproximando de gênios que, na verdade, eles são. Na hora da saída, e eu já sabia disso, fiquei muito triste, até porque era uma perda muito grande de amizade”.

Tom Zé, show Fecap
O músico durante show dirigido por Charles Gavin, realizado no Teatro Fecap, em agosto de 2009, em São Paulo. Foto: Divulgação

Os loucos e tortuosos anos de 1968 a 1973 constituem o período de vida e morte de Tom Zé, na Tropicália. A despeito da perda de ideais e projetos coletivos, a dissolução do grupo, no entanto, abre seus horizontes. Quando ele propõe caminhos novos e radicais a partir do álbum Todos os Olhos, de 1973, por exemplo, adota procedimentos e escolhas que resultam em um intrincado mundo novo de sua capacidade autoral. Momento em que ele descobre veias abertas para canalizar toda sua prolificidade e capacidade de criação, fluxo que corre natural até hoje, com ele vivenciando 72 anos de experiências acumuladas.

Em 1979, Celso Favaretto publicou o livro Tropicália Alegoria Alegria. Nem sequer mencionou álbuns de Tom Zé na discografia do movimento, nem mesmo Liquidação Total, considerado experimento embrionário do movimento antropofágico. Pergunto se nestes idos de 1973 ele já desconfiava que estaria fadado a tal esquecimento. Tom se cala. Minutos antes, sobre a questão do rompimento de amizades, me intimou a ir “direto ao assunto”. Ele, então, organiza as palavras e coloca ponto final na questão: “No quinto aniversário do tropicalismo eu era tropicalista; era parte do grupo, da imprensa, da festa e de tudo. No décimo, como eu estava fora de circulação, comecei a ficar, assim, lembrado, apenas. No décimo quinto, eu estava quase fora. No vigésimo, eu já tinha desaparecido completamente. A RCA tem uma compilação de compactos do início de carreira do grupo todo (Eu vim da Bahia), e, ali você já vê que eu faço algo completamente diferente. Eles eram ‘bossanovistas’. Então, já estávamos separados há muito tempo. Mas eu, ao contrário, fiz um pouco de esforço a partir do momento que comecei a cantar com eles, nos shows na Bahia, no Teatro Vila Velha, em meu primeiro, segundo e terceiro discos. Fiz um esforço muito grande, pra conseguir botar o que eu produzia, que não se chamava de ‘música’, no apelo da música popular. Fui no Jornal da Bahia entregar minha última matéria e, por acaso, quando subi na redação, me disseram: ‘Caetano está aí, no terceiro andar’. Cheguei pra ele e falei: ‘Caetano, que saudades!’. Éramos realmente companheiros e amigos. E ele disse: ‘Poxa, Tom, cadê você? Eu já te disse que aqui na Bahia você só vai se aborrecer, bicho. Em São Paulo você pode se aborrecer também, mas pode ser que aconteça alguma coisa’. Eu, como tinha dinheiro, peguei o avião e vim pra cá. Neste mesmo dia de minha chegada, ele me apresentou o Sgt. Pepper’s dos Beatles, traduzindo música por música, porque sabia que eu não entendia porra nenhuma de inglês. Na noite do mesmo dia, ele me levou pra ver o Rei da Vela e fiquei convencido de que devia vir mesmo pra cá. As pessoas me diziam: ‘Como é que você pode estar envolvido com eles? Eles são artistas, você é um troglodita!’. Aquele tempo foi dos melhores em minha vida”.

3° Ato – Complexo de épico / Rampa para o fracasso

Os anos 1970 confirmam a eleição de certos mitos e meandros massivamente consolidados no estatuto firmado pela MPB e, à medida que seus pares de tropicalismo iam se tornando semideuses deste novo olimpo, herdando muito precocemente o status que o herói de todos, João Gilberto, levou quase uma década para experimentar, Tom foi trilhando o caminho inverso. Investiu cada vez mais em experiências de linguagem e na produção de instrumentos alternativos, criados a partir de lixo industrial, como engrenagens de enceradeiras, mecanismos de batedeiras de bolo, de máquinas de lavar e de buzinas de automóveis, sucatas que, graças a sua inventividade, ganharam resolução musical e tiveram sua funcionalidade dilatada em álbuns históricos em sua discografia, como, por exemplo, Correio Estação do Brás, de 1978.

Em entrevista ao programa Roda Viva da TV Cultura, em 1993, Tom relembra que chegou a vender um imóvel na praia para investir na construção desses instrumentos que ele inventava e, assim, se definiu, na mesma entrevista, como incapaz de estrategiar procedimentos. Apesar de trilhar um caminho anticomercial que o levaria à obscuridade, Tom defende com veemência que não houve resistência de mercado, incompreensão ou nada que pudesse ser interpretado como motivo para seu fracasso, nada que não estivesse dentro dele mesmo.

Capa dos álbuns “Grande Liquidação” (1968) e “Todos os Olhos” (1973), dois clássicos da discografia de Tom. Foto: Divulgação

“Quando você não é tocado, no Brasil, tem uma coisa de dizer que você é vítima da cultura de massas, mas, como eu não tenho vocação pra vítima, fui trabalhar em casa. Eu não era chamado pra trabalhar na rua, não era chamado pra entrevista, não era chamado pra porra nenhuma. Então, ia pra casa trabalhar. Talvez o que mais me fez trabalhar durante esse tempo de ostracismo foi o fato de eu defender que a queixa não era meu lema. Não gosto de fazer queixa. Prefiro culpar a mim mesmo. Fiz esses instrumentos em 1978 e, dez anos depois, o Instituto Goethe chamou a imprensa brasileira, revistas, como a Veja, para ir ver umas bandas americanas que estavam produzindo músicas com instrumentos eletrodomésticos, e era a mesma manchete na Folha de São Paulo, no Estado de São Paulo. Mas daí, um redator da Veja escreveu, de cunho próprio: ‘O Instituto Goethe chamou a gente pra ver umas bandas americanas que usam instrumentos de trabalho ou instrumentos de cozinha e tal. Olha, não tem novidade nenhuma nisso, principalmente, fazendo o que fazia Tom Zé, em 1978, e que já era muito melhor. Eu tinha 15 anos, na época em que ele apresentou os instrumentos dele na GV’, disse o repórter. João Araújo, pai do Cazuza, por exemplo, queria me ajudar pessoalmente, era diretor da Som Livre. Ele já tinha sido meu produtor, e eu sabia que ele tinha uma possibilidade de diálogo. Fui a ele mostrar os instrumentos, e ele deixou rolar tudo do jeito que eu queria fazer. Quis lançar pela Som Livre, quis botar no festival da Esso, mas aí eu não sabia que a gravadora era quem escolhia os artistas para o festival. Eu ia ser ‘o artista da Som Livre’, mas meti as mãos pelas pernas. Quando fui ver não estava mais no esquema. Fui convidado pra um festival do Canal 4 e achei que não era para eu participar, que era bobagem, e também não fui. Então, ninguém tem culpa de nada. Você mesmo se mata, você mesmo é seu próprio algoz”.

Dessa condição declarada de autossabotagem, Tom mergulhou em um período sombrio, de extrema reclusão e improdutividade, agravado por problemas de saúde. Ele começa a pautar esses temas, mas, num salto temporal, subitamente passa a narrar a fantástica história de sua ressurreição para o mercado fonográfico e para a própria vida, por meio da descoberta ocasional de seu disco Estudando o Samba, de 1975, pelo americano David Byrne, líder dos Talking Heads, um dos pilares do movimento New Wave, surgido na efervescente vanguarda da Nova Iorque do primeiro quinquênio dos anos 1970. Sim, a transição do total anonimato para esta figura celebrada em Paris, Nova Iorque, Londres e Berlim, sugere um conto de fadas moderno e, convenhamos, já foi deveras explorada.

Tento, então, extrair de Tom algo que não tenha sido tão excessivamente narrado sobre esse período e ele retoma o raciocínio para falar dos dias amargos que precederam sua tardia redenção. “Eu estive muito doente, meu estômago era um órgão de choque, naquele tempo. Só fiquei bom quando comecei a fazer Tai Chi Chuan. Uma coisa milagrosa. Ia lá tomar massagem e tal, uma hora de meia dúzia de movimentos fantásticos pra cabeça, pro corpo, mas eu tinha vergonha de ir pra aula de Tai Chi Chuan. Sempre tendo vergonha… Pois bem, o oriente me salvou aqui. Em 1985, eu estava morto. Enganava Neusa. Levantava pra enganar ela, pra dizer que tava vivo. Eu tava morto. Não tinha energia nenhuma. Neusa, um dia, falou assim: ‘Por que não vamos na macrobiótica?’. Pra quem tá morto, aqui ou na macrobiótica, tanto faz. Chegando lá, o doutor me receitou uma semana de arroz, e como eu não podia comer nada antes, porque ficava mal do estômago, o arroz, feito benfeito, como a Neusa sabia e sabe fazer, era minha vitamina C. Depois de uns quatro dias meu intestino voltou a funcionar como não funcionava há muitos anos. Eu não sabia que meu problema era aquele. Eu já estava todo desgraçado. A mão não podia nem pegar em livro porque estava despelando, por excesso de ácido úrico. Tudo problema emocional. E, comendo errado, foi piorando. Daí, quando comecei a macrobiótica, passados os dez dias de arroz, eu era outra pessoa. Inclusive, teve um negócio engraçado: pude ter a experiência do que é uma droga pesada. Porque arroz depois do sexto dia, rapaz… Você pode imaginar, se seu cérebro era de um jeito e você passou 40 anos absorvendo toxicidades maiores, produtos e produtos que começam a circular no sangue e modificam o cérebro, aí você começa a voltar à mesma toxicidade que você tinha quando tinha seis meses… Rapaz! Aquilo refaz, novamente, conexões neurais que você não sabia mais, que o cérebro não sabia mais e é aí, então, que você sabe realmente o que é uma droga pesada”.

4° ato – Zénial

O título deste quarto ato é uma alusão à resenha de Com Defeito de Fabricação (1998) publicada na cultuada revista francesa Les Inrockuptibles. Tom separa diversas matérias, organizadas em um clipping, e exibe, sorridente, páginas do New York Times, Village Voice, das revistas Vibrations e Time Out, onde são celebrados, com entusiasmo, novos lançamentos e reedições de sua discografia, seus frequentes shows e a parceria com o grupo Tortoise. Cinco ou seis páginas de jornais e revistas que podem atestar a redenção de um homem, de tantas provações, que precisou confundir muito para esclarecer sua importância aos incautos e poder trilhar os mesmos degraus que o levaram ao mesmo porto seguro onde, comodamente, outros estão há décadas. Filho atento da tradição oral do Nordeste, Tom é verborrágico e persuasivo. Começa a falar em tom baixo, pausado, e vai envolvendo o ouvinte em uma teia de argumentos que se amarra e se estende com uma desenvoltura fascinante. No começo da entrevista ele próprio avisa que Neusa procura sempre regrá-lo, impõe horários fechados, mas que, no entanto, ele sempre extrapola o cronômetro de sua mulher. Diz que fala compulsivamente e desnorteia os pobres jornalistas que vão conversar com ele, gente que, na sua visão, deve passar horas polindo e tentando extrair algo objetivamente jornalístico do que colhe durante esses encontros. Discordo de Tom, e embora me preocupe em concluir o roteiro que havia elaborado, óbvio que eu sabia desde o princípio que estava lidando com um sujeito imprevisível. Sabia que a qualquer momento podia ter meu roteiro sabotado pela compulsão de Tom, o que não deixa de ser uma tremenda boa expectativa e uma sorte rara, visto que vivemos em um tempo onde tudo é cada vez mais previsível, asséptico e inofensivo.

Voltamos a falar da situação atual, dos dilemas e desencontros entre a indústria e o mercado consumidor de música, e concordamos que, se provocados os estímulos, o grande público e aqueles que produzem música com o propósito popular vão querer, sim, a informação e a experiência do novo. Alguns eventos culturais patrocinados pelos governos de diversas esferas estão aí, precariamente, a validar essa tese. Enveredo pelo assunto à procura de algum comentário de Tom sobre o lamentável episódio ocorrido na Virada Cultural 2009, no Teatro Municipal, no show em que ele revisitou seu álbum de estreia Liquidação Total, quando ocorreu o episódio da menina que, furiosa com a (des)organização caótica do evento, esbravejou, o xingou e saiu de costas para o público, de dedos médios em riste, logo na abertura de seu show. Pouco foi falado sobre tal episódio, na imprensa, nos dias que o sucederam. Lembro que, por alguns segundos, Tom e sua banda mergulharam em um silêncio constrangedor e se saíram com uma execução tensa e enérgica de São São Paulo, como que a sugerir que tudo aquilo fazia parte de nossas grandes contradições. Peço a ele uma leitura do episódio: “Que bom que você se lembrou disso. O normal seria eu dizer: ‘Agora não posso falar disso porque o público está aqui, estamos respeitando os horários, estamos atrasados e temos que fazer’. Os shows anteriores atrasaram e, consequentemente, o nosso também. Eu estava preocupado com isso e, ao mesmo tempo, tendo de administrar a situação de abandonar uma pessoa aflita, parecendo que eu estava desprezando da queixa dela. Como é que eu iria parar pra tomar providências com o que estava acontecendo lá fora? Pois foi por isso que eu fiquei parado, pensativo. A moça, depois, veio comentar o episódio. Disse que a polícia estava maltratando as pessoas, que pessoas credenciadas não conseguiam entrar”.

A bela imagem da atriz francesa Brigitte Bardot foi a fonte de inspiração para o retrato que foi capa da edição 26 da Brasileiros, feita pela fotógrafa da revista, Luiza Sigulem

Dois colegas cinegrafistas nos acompanham na entrevista. Um deles não hesita em nos interromper para ilustrar que, dois anos antes, houve o quebra-quebra na praça da Sé com o incidente do show dos Racionais MCs, episódio que fez com que, nos anos seguintes, segregassem o rap no parque Dom Pedro II. Tom retoma rápido o raciocínio: “É por isso que eu falo que é importante essas festas irem para as periferias, não ficar só aqui no centro. Eu fiz minha primeira Virada Cultural no Anhangabaú. Na segunda, me mandaram para um CEU na Zona Leste”. E a aceitação, questiono?: “Veja bem, você tem de fazer um certo cálculo. Em qualquer lugar que você for tocar as coisas serão sempre diferentes. Você vai ao Municipal e sabe que não vai encontrar em um show desses aquele mesmo ambiente. É diferente, mas, claro, é preciso tomar o curso das coisas com a plateia, receber um feedback da capacidade de interesse que a coisa provoca. Fiz até um número improvisado, que a gente faz raramente, e foi uma felicidade, como se as portas se abrissem e eles estivessem livres da televisão, da escravatura da televisão, por uma única noite. Não tem um patrão que quer desenvolver nas pessoas a violência, não tem esse patrão no comando”.

Reitero o argumento de Tom comentando que naquele mesmo dia, horas antes, vi um Teatro Municipal lotado assistir, extasiado, Arrigo Barnabé executar Clara Crocodilo em seus arranjos originais. Convenhamos que não se trata de música gastronômica, de fácil digestão, como definiu Umberto Eco. Tom, que já teorizou sobre o pagode e o funk carioca, tidos por muitos como sinônimos de decadência de nossa música, discorda de minha observação em defesa da liberdade de manifestação cultural: “Barnabé é há tempos um orgulho de São Paulo, mas quando uma coisa acontece aqui e agora é muito perigoso a gente querer julgar. O povo tem de ter toda liberdade do mundo pra fazer o que pensa e o que gosta, qualquer coisa que ele queira ou que ele possa. Augusto de Campos, desde a hora em que Caetano, em 1965, defende na Revista Civilização Brasileira a retomada da linha evolutiva da música popular brasileira a partir de João Gilberto, Augusto e os concretos, disseram: ‘É esse o homem da gente! Este rapaz tá dizendo alguma coisa’. Você vê como esses concretos eram espertos e ativos? Augusto, por exemplo, já valorizava e defendia até mesmo Roberto Carlos, que era o grande vilão da época, não é? O João Gilberto fala que, em 1969 ou 1970, quando tinha os famosos shows do teatro Paramount (Bossa no Paramount), que eram celebrados como ‘a verdadeira música popular brasileira’, ele estava na porta, um dia, na saída, e foi ver, como quem não quer nada o que acontecia ali. As pessoas nem se lembravam dele, fazia quase dez anos que ele não aparecia na televisão, ele entrou por um canto, alguém perguntou se ele havia gostado e ele disse: ‘Olha eu prefiro iê-iê-iê do que jazz retardado’. E é verdade. Quando Roberto fez seus primeiros discos de iê-iê-iê, aquele álbum da estrada de Santos (Roberto Carlos em Ritmo de Aventura), eram coisas que você, quando ouvia, inevitavelmente se arrepiava. ‘Quero que tudo mais vá pro inferno’ é tão bom, que Roberto Carlos agora proibiu. Não deixa tocar, não canta e não deixa ninguém cantar!”

No episódio do show da Virada Cultural, em 2009, em São Paulo, outro inusitado fato foi destaque, e ele diz muito sobre Tom Zé e sua inquietação em questionar papéis, estatutos e protocolos. Dezenas de fotógrafos espreitavam-se, à beira do palco, quando ele decidiu interromper o show para propor uma divertida inversão de papeis e convidou todos os fotógrafos a subirem no palco. Da primeira fila ele tomou uma das câmeras emprestada e pôs-se a retratar os fotógrafos. A despeito do descuido que teve com ele, em meados dos anos 1970 e ao longo de toda a década de 1980, Tom tem uma relação de generosidade e colaboração com a imprensa, que passou a demonstrar tamanho interesse tardio por ele e sua obra como se movida por certo sentimento de culpa e necessidade de justiça. Coisa rara, neste mundo de celebridades instantâneas inatingíveis, é justo destacar que Tom também dá total abertura a seus fãs, que travam contato quase diário e dialogam com ele, por meio do blog tomze.blog.uol.com.br.

O cantor e compositor durante o Festival Internacional da Canção, vencido por ele com a composição “São São Paulo”. Foto: Divulgação / Record

Tom começa a se preocupar com o horário, pois está envolvido na pós-produção do novo álbum. Atrasado para alguns compromissos vespertinos, precisa que o deixemos cumprir sua agenda. Minutos antes, nossa fotógrafa, Luiza Sigulem, sugere um flagrante, apenas de cueca, sentado, de pernas cruzadas em um banquinho, empunhando seu violão, uma alusão à célebre foto de Brigitte Bardot. Ele concorda, de imediato. Quando encerramos, Gregório, um dos amigos que filmou a entrevista, pede a Tom uma foto conosco. Ele consente, mas quando estacionamos a seu lado, ele faz um breve suspense e emenda, sorrateiro: “Aliás, pode tirar foto comigo, sim, mas só se for de cueca também!”. Sim, meus amigos. Foi assim, de calças arriadas, cantando Brigitte Bardot e com a sensação de roteiro desprezado e tarefa cumprida que nos despedimos de Tom Zé nesta manhã gélida de quarta-feira, em que o homem que escreveu Imprensa cantada ousou deixar a pobre imprensa quase nua.

Kirk Douglas, segundo Denilson Monteiro

O ator Kirk Douglas em cena de Spartacus (1960), de Stanley Kubrick. Foto: Universal Pictures

Todo mês convidamos uma personalidade do universo cultural para escolher algum artista ou obra que tenha sido especialmente marcante em sua vida. Nesta edição, perguntamos para o escritor e roteirista Denilson Monteiro quem ele colocaria em seu “altar”. A escolha do autor de Dez, Nota Dez! Eu Sou Carlos ImperialA Bossa do Lobo: Ronaldo Bôscoli, Chacrinha, a Biografia e Divino Cartola foi um gigante do cinema, que, no último dia 9*, completou um século de vida.

Foi no dia 3 de julho de 1976 que assisti pela primeira vez a um filme estrelado por Kirk Douglas.  Era um sábado, e a TV exibiu O Invencível (Champion, filme de Mark Robson, de 1949), a história de um pugilista em luta dentro e fora do ringue. Eu, um garoto de 9 anos, fiquei fascinado pelo ator dono de toda aquela fúria prestes a explodir, bem parecido com os personagens sobre os quais, muitos anos depois, eu escreveria. Após estrelar filmes como Assim Estava Escrito, A Montanha dos Sete Abutres, Ulisses e Chaga de Fogo, Issur Danielovitch Demsky, o verdadeiro nome do astro de covinha no queixo, decidiu tornar-se produtor. O trabalho mais famoso da Bryna, companhia que batizou com o nome da mãe, é Spartacus. Como seu personagem, o gladiador que desafiou a Roma escravocrata, Douglas travou suas batalhas: insistiu no jovem Stanley Kubrick como diretor; fez valer suas decisões diante do impetuoso Stanley e derrotou o macartismo ao fazer constar nos créditos do filme o nome do roteirista Dalton Trumbo, até aquele momento trabalhando na clandestinidade. Kirk foi indicado três vezes ao Oscar, obteve somente um pelos 50 anos de carreira, em 1996. Sua única frustração foi não ter interpretado R.P. McMurphy em Um Estranho no Ninho, seu papel no teatro, mas que ficou com Jack Nicholson no filme produzido por seu filho, o também ator Michael Douglas, e dirigido por Milos Forman, que o considerou além da idade para o personagem. No dia 9 de dezembro, Kirk Douglas completou 100 anos. Sua memória o trai, fazendo com que recorra a Anne, sua esposa há 62 anos, para lembrar-lhe que Sua Última Façanha (Lonely Are the Brave, outro roteiro de Trumbo) é seu filme favorito; a fala está comprometida por um AVC e a coluna ficou ruim após um acidente de helicóptero. Porém, ele jamais deixará de ser Spartacus.

*Originalmente publicado na edição de dezembro de 2016 da revista CULTURA!Brasileiros

MAIS

Veja o trailer oficial de Spartacus

 

O desbunde tropicalista de Chico Anysio e Arnaud Rodrigues

Arnaud Rodrigues, como Paulinho Cabeça de Poeta, e Chico Anysio, como Baiano. Foto: Reprodução / CID

“Faço do meu canto a neura existencial / O conteúdo do cotidiano, o dia a dia da vida / A eletrônica está substituindo o coração / A inspiração passou a depender do transistor / O poeta de aço, de poesia programada, é demais para os meus sentimentos, tá sabendo?”.

O papo cabeça supracitado – para defini-lo com uma gíria bem anos 1970 – é proferido pelo personagem Baiano, no decorrer do registro de Nêga, segunda faixa do LP Sangue no Cacto (título não estampado na capa, mas no encarte). Lançado pela gravadora CID, o álbum fez grande sucesso e consagrou a feliz parceria entre os humoristas Chico Anysio e Arnaud Rodrigues. Estivessem inseridos em um LP de Caetano Veloso ou de Chico Buarque, os versos tornar-se-iam máximas replicadas pela juventude intelectualizada e politizada que combateu o regime militar no Brasil dos anos 1970.

Lançado em 1974, depois do enorme sucesso do quadro criado por Chico para o programa semanal Chico City, Sangue no Cacto chegou a outros destinatários e atingiu um espectro diverso. Daí seu enorme valor, porque, por mais cifradas que fossem as mensagens contidas no álbum, pequenos recados, como o que abre este texto, instigavam o ouvinte a suspeitar que as coisas não andavam nada bem no seu amado Patropi.

Com a visibilidade de nosso maior humorista, questões urgentes do cotidiano do País caíram nos ouvidos e na boca do povo e deixaram em alguns a amarga percepção de que era melhor rir para não chorar. Se o clima sombrio da repressão pairava no ar, na tentativa de amortizar o terror daqueles dias, os generais vendiam as delícias do  Milagre Econômico – espetáculo econômico financiado com empréstimos infindáveis, que legaram ao País décadas de endividamento com o FMI e outros credores internacionais.

Com AI-5, general Médici e o recrudescimento da violência do Estado, o primeiro quinquênio dos anos 1970 foi marcado pela quase extinção dos grupos de resistência ao regime militar. Aos remanescentes não restaram muitas escolhas, além de partir para a guerrilha ou fugir do País e viver clandestinamente em algum canto seguro e bem distante daqui. E a crônica desse momento está implícita, com muita astúcia, até mesmo para driblar os censores, em Sangue no Cacto, assim como em todas as escolhas futuras de Baiano e Paulinho, pseudônimo adotado por Arnaud.

A dupla Baiano e Paulinho Cabeça de Poeta foi formada no início de 1973, quando Chico criou seu personagem e Arnaud também decidiu prestar homenagem aos emergentes Novos Baianos sugerindo o nome composto. Sarcástica e ao mesmo tempo reverente, a dupla provocava as idiossincrasias de Caetano e Gil que, um ano antes, haviam voltado do exílio em Londres. em texto memorial, onde relembra os dias de parceria com Arnaud, Chico esclarece: “O personagem baiano nasceu na época do exílio do Caetano, um período em que ele quase não podia falar, por isso o tipo Baiano era monossilábico”.

Apesar do aparente tom de deboche com os ícones máximos da MPB basta uma audição para concluir que a brincadeira era para lá de séria. Vô Batê Pa Tu, principal sucesso de Sangue no Cacto, é exemplar para a defesa dessa teoria. Escrita a quatro mãos por Arnaud e o Rei do Sambalanço, Orlandivo, a canção trata de tema dos mais pesados: a delação sob tortura e o clima de silêncio imposto pela censura. “O caso é esse: dizem que falam, que não sei o quê / Tá pra pintar ou tá pra acontecer / É papo de altas transações / Deduração, de um cara louco que dançou com tudo / Entregação com dedo de veludo / Com quem não tenho grandes ligações”, diz a letra.

Em Aldeia, o alvo é o Milagre Econômico: “Em cada rosto uma expressão / Em cada bucho a digestão / Um novo carro / Nova capa / Enquanto o velho me pede pão / O pão nosso de cada dia dão-nos hoje / Creditai nossas dívidas / Assim como não nos perdoam nossos credores”. No hilário baião Urubu tá Com Raiva do Boi (a ave necrófaga indigna-se com o bovino que não morre e, assim, a impossibilita de saciar a fome), única canção que não é de autoria de Chico e Arnaud (foi composta por Geraldo Nunes e Venâncio) a veia tragicômica do LP chega ao ápice no discurso de Baiano que, primeiro, divaga em tom apocalíptico “o medo, a angústia, o sufoco, a neurose, a poluição, os juros, o fim… / nada de novo / a gente de novo só tem os sete pecados industriais”, para, ao fim da terceira estrofe, com fina ironia, prosseguir “ai a gente encontra um cabra na rua e pergunta: ‘Tudo bem?’ / e ele diz pra gente, ‘tudo bem!’ / não é um barato, Paulinho? / é um barato!”. Impiedoso, no final da canção, Baiano retorna para concluir: “Nada a dizer… Nada ou quase nada / O que tem é a fazer: tudo / Na rua, a obra do homem, o cheiro de gás, o asfalto fervendo, o suor batendo… o suor batendo”. Como sugere a aparência “riponga” de Baiano e de Paulinho, o disco também versa sobre o desbunde e os estatutos da geração flower Power. Em Dendalei (corruptela de “dentro da lei”) a estrofe que sucede o primeiro refrão celebra o desprendimento e o hedonismo dos hippies: “Sou fã da viração do vento / Sou fã do livre pensamento / Sou fã da luz do nascimento / Sou fã aqui do melhor momento!”.

Letras a parte, a qualidade musical de de Sangue no Cacto é inquestionável. O álbum promove a fusão de ritmos brasileiros e estrangeiros com resultados distintos, e inscreve Chico e Arnaud como defensores do tal “som universal” tão perseguido pelos tropicalistas. Multifacetado, o LP reúne doses generosas de rock, samba, baião, xaxado, maracatu, bossa, choro, ciranda e soul. Infelizmente, a ficha técnica não foi creditada pela gravadora CID, mas a direção artística dessa pequena obra-prima ficou a cargo de um craque de nossa música, o compositor e instrumentista Durval Ferreira. Egresso da primeira geração da Bossa Nova, “Gato”, como Durval era tratado pelos amigos por conta de seus olhos azuis, liderou, ao lado de Eumir Deodato, o lendário combo de samba jazz Os Gatos, que lançou dois álbuns, hoje, raros e disputados por colecionadores, Os Gatos (1964) e Aquele Som dos Gatos (1965).

A parceria entre Chico e Arnaud ainda renderia mais três álbuns de Baiano, Paulinho e os Novos Caetanos (Baiano e Os Novos Caetanos, de 1975, A Volta, de 1982, e Sudamérica, de 1985). Além deles, ao lado de Arnaud Chico produziu, em 1975, outra pérola: o álbum Azambuja & Cia, que conta com o auxílio luxuoso do trio Azymuth. No hiato entre o álbum de 1975 e o de 1982, Chico lançou também, com a cantora baiana, Baiano e Amaralina, uma homenagem a Elba Ramalho. Título raro e obrigatório é Murituri, de 1974, álbum solo de Arnaud, dos mais primorosos, com a participação do guitar-hero tropicalista Lanny Gordin. Em 1976, colhendo os frutos da enorme projeção de seu personagem, Arnaud lançou também outra joia, o álbum O Som do Paulinho.

A propósito do sucessos de LP, no mesmo texto em que Chico explica a gênese do fenômeno Baiano e Os Novos Caetanos, o humorista dá boas pistas do quão grandiosa foi a dupla formada por ele e Arnaud: “Com o sucesso de vendas do LP, o senhor Harry Rozemblit, dono da companhia de discos CID, comprou três coberturas na avenida Delfim Moreira (localizada no Leblon, um dos mais caros endereços da zona sul carioca). O Eddie Barclay (dono do selo francês Barclay), na época, nos convidou para ir à Europa para participar do Miden, em Cannes, e eu não fui. Disse a ele que tinha que fazer um show em Curitiba. Que loucura a minha! Ele ficou sem entender. Como é que dois artistas esnobavam um dos maiores encontros da música internacional do planeta?!”. Para não deixar dúvidas sobre a projeção internacional de do álbum, Vô Batê Pá Tu ganhou, inclusive, uma deliciosa releitura da cantora sueca Sylvia Vretmar.

Como bem sabemos, infelizmente Chico e Arnaud já partiram: o Rei do Humor em março de 2012, em consequência das complicações de uma grave infecção pulmonar que o levou à falência múltipla de orgãos; e o saudoso Paulinho no carnaval de 2010, em um trágico acidente de barco no Tocantins. Mas o legado de alegria e reflexão deixado por essa dupla da pesada, para fechar com mais uma gíria setentona, é atemporal e atravessará décadas.

Boas audições e até a próxima Quintessência!

Originalmente publicado no site da revista Brasileiros em 23.1.2014

MAIS

Relativamente raros no Brasil, o primeiro LP da dupla e o álbum Azambuja & Cia serão relançados pela gravadora britânica Far Out Recordings. Recentemente, com o anúncio das reedições, o baterista Mamão revelou no Facebook que o registro teve a participação do Azymuth.

 

A pluralidade urbana na escrita de Cristhiano Aguiar

Cristhiano autografa exemplares do livro no lançamento na Banca Tatuí. Foto: Levi Fanan/Divulgação

*Por Rafael Mastrocinque

 

Doze anos depois do seu último livro ficcional, Cristhiano Aguiar, 37, volta o fluxo criativo às suas narrativas novamente. Os tempos de experiência acadêmica, curadoria de revistas literárias e outras ações culturais, levaram ao amadurecimento do escritor campinense até a sua mais engenhosa obra, Na Outra Margem, O Leviatã. Natanael, Faustine e Estevão representam a melancolia da capital paulista, que os forçam aos devaneios, até se chocarem com a brutalidade urbana que assola as suas vidas. Cristhiano trás em um fluxo refinado, contos entrelaçados que interpretam o mal dos trópicos modernos; a melancolia.

Na Outra Margem, O Leviatã se divide em sete contos, boa parte deles compostos pelos mesmos personagens, com histórias simultâneas caminhando lado a lado a catarse do protagonista de cada capítulo. Cristhiano Aguiar passou seis anos a procura do tom ideal para traduzir em sua narrativa, o mau estar existencial de cada indivíduo em meio a um cenário de hostilidade policial, que se prolonga pelas memórias de cada personagem. Os contos, em especial Teresa, trabalham as identidades de cada um a partir de suas cicatrizes familiares, com elementos mágicos que trazem belezas sublimes à narrativa. Artifício que só os grandes contistas possuem.

“Trancada no quarto, jogou toda a sua roupa no chão e observou, com desgosto, o próprio corpo. Considerou-se horrivelmente branca. Deitada na cama, manteve-se quieta e observou a caminhada da noite através do seu corpo sem manchas.”

Cristhiano ressalta as suas referências na poesia de Murilo Mendes, os contos de Alice Munro, Hilda Hilst e Borges como as raízes para o surgimento de Na Outra Margem, O Leviatã.

Formado em letras pela Universidade Federal de Pernambuco, Cristhiano conta o desafio de conciliar a sua vida acadêmica com a sua produção literária, hoje professor doutor na Universidade Presbiteriana Mackenzie. Depois do lançamento de seu primeiro livro de contos Ao Lado do Muro, do qual não se orgulha tanto, Cristhiano participou fielmente a projetos literários de pernambuco. Foi um dos editores da Revista VacaTussa, participou da Antologia Granta: Os melhores jovens escritores brasileiros em 2012, ano que começou os seus “tropeços e barrancos” nas palavras do autor, ao caminho de produzir o livro e outras obras paralelas, conforme foi equilibrando a tumultuosa vida acadêmica.

“Levantado, veio a pancada na cara, o cassetete nos rins. Nos desenhos animados, quando caímos, surgem uns passarinhos ou uma órbita de estrelas ao redor de nossa face, não é mesmo? Ali, só houve tempo para o chão” do capítulo Desaparecido, Cristhiano narra a repressão do morador de rua Caetano, perdido no meio de uma manifestação.

Autoritarismo

As personagens Faustine e Caetano são figuras antagônicas. Assombradas pela violência da polícia militar em posições sociais distintas. Na Outra Margem, O Leviatã apresenta um diálogo sobre as fissuras do autoritarismo a partir de Faustine, neta de um militar envolvido no Golpe de 64. A partir das memórias de infância, na fazenda de seu avô, Faustine trás em trechos as raízes mais profundas pela sua aversão ao autoritarismo.

Privilegiada, e protegida por um homem de confiança, a personagem se divide entre a ternura e horror aos últimos momentos que passou com o avô. “O ponto desse conto, ‘Os recém-nascidos’, e da trajetória de Faustine em especial, é o fato de que nosso país tem em suas instituições a marca do autoritarismo como um elemento articulador. Infelizmente, o nosso aparato jurídico, policial e político não escapa desse autoritarismo.”, explica Cristhiano.

Melancolia

Cristhiano Aguiar trás em sua nova obra o impacto dos contistas renomados. Suas personagens se deparam com o absurdo durante o cotidiano banal da cidade, deixando suas memórias e fraquezas translúcidas a partir de encontros. Uma desocupação no interior da Paraíba, a custódia de um boliviano pela polícia até o constrangimento de Lina e Estevão presos por horas no elevador de São Paulo. Sobre o lugar dos contistas brasileiros, Cristhiano inspira-se nos clássicos e entende a tarefa a ser cumprida pelos escritores atuais. “Cada tempo, cada cultura, exige de seus escritores e escritoras o desempenho de diferentes papéis. Em pleno 2018, voltamos ao olho do furacão de uma crise política aguda e cujas consequências são ainda imprevisíveis. Assim, sinto uma demanda por narrativas e posicionamentos públicos, por parte da autoria contemporânea, que possam dar conta de todo esse turbilhão.”

Depois de seu grande lançamento na Banca Tatuí, pelo selo independente Lote 42, Cristhiano guarda alguns novos títulos que foi trabalhando em paralelo ao Na Outra Margem, O Leviatã. Ele estará presente no dia 13 de abril, na SP-Arte para o seu próximo lançamento.

Assista ao vídeo em que Cristhiano narra um trecho do livro, cedido com exclusividade pela Lote 42: