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O surrealismo de Roger Ballen em Fortaleza

'Memento Mori', produzida por Ballen em 2012.

Nova-iorquino radicado, desde a década de 1970, em Johannesburgo, na África do Sul, Roger Ballen é reconhecido por suas imagens um tanto sombrias, um tanto surrealistas. Recentemente, ganhou uma ala própria no Zeitz Museum of Contemporary African Art, na Cidade do Cabo. Agora, uma exposição do fotógrafo chega ao Brasil e se torna a primeira mostra internacional do Museu de Fotografia, em Fortaleza. Graduado em psicologia pela Universidade da Califórnia, Berkeley, gosta de rotular seu trabalho como uma investigação do “lado das sombras” nas pessoas.

A abertura da mostra está marcada para dia 8 de setembro e se estenderá até janeiro de 2019. De acordo com a coordenadora do museu, Fernanda Oliveira, dentre as atividades que integram a exposição está uma conversa com o artista. Ela define Ballen como um artista de “identidade muito única” e revela a admiração do conselho administrativo do museu por por ele.

Fotografia ‘Take off’, também de 2012

Criador do estilo “ballenesco”, Roger fez questão de acompanhar todo o processo de concepção, tendo ele mesmo feito as impressões das 55 obras que estarão em exibição: “Ele é extremamente participativo, gosta de acompanhar de perto cada detalhe”, destaca Fernanda. Além da palestra, ele fará uma visita guiada para o público no dia da abertura.

Maio de 1968 e a fotografia na América Latina

Marcelo Brodsky, RJ, passeata dos cem mil, da série 1968 el fuego de las ideas, 2014-16. Cortesia Galeria Superficie

C

omo bem se sabe, seria um equívoco reduzir o que se conhece por Maio de 1968, que completa agora 50 anos, aos protestos, greves e embates ocorridos na França durante aquele mês. O que teve início com atos estudantis em Paris – na verdade em março, na universidade de Nanterre – se expandiu pelo mundo em um conjunto de eventos espaçados no tempo e com desdobramentos na política, no comportamento e na cultura.

Como simboliza um famoso cartaz da época – “corram camaradas, o velho mundo está atrás de vocês” – Maio de 1968 representou um embate entre gerações, entre visões de mundo conservadoras e progressistas. Influenciou não só movimentos e ativistas das mais variadas correntes de esquerda, mas também intelectuais e artistas de diversos cantos do mundo.

É por conta de tamanha reverberação que o que poderia parecer um assunto bastante específico, os reflexos de Maio de 1968 na fotografia de arte latino-americana, se revelou um vasto universo de investigação para o curador e historiador de arte Rodrigo Orrantia, 41. O colombiano radicado em Londres veio ao Brasil para participar do ciclo de debates Talks da SP-Arte/Foto, em mesa ao lado do célebre fotógrafo brasileiro Evandro Teixeira, e antes conversou com a ARTE!Brasileiros.

Segundo Orrantia, “a história política e cultural dos diferentes países do continente está fortemente interligada e foi influenciada desde o início por fenômenos globais como o verão de 1968”. Citando o reconhecimento internacional de artistas como a brasileira Rosangela Rennó, a chilena Paz Errázuriz e o argentino Marcelo Brodsky, além da realização de mostras como a retrospectiva “América Latina 1960/2013” na Fundação Cartier de Paris, Orrantia diz ver um aumento significativo na difusão da “fotografia histórica” do continente mundo afora. Leia abaixo a entrevista.

ARTE!BrasileirosDe que modo você percebe os impactos dos eventos de 1968 na produção artística latino-americana?

Rodrigo Orrantia – Penso que Maio de 1968 foi um dos primeiros “despertares” de uma geração excepcional. Sua influência é evidente na produção artística, mas também na cultura popular, principalmente na música. Na América Latina foi especialmente importante porque vários países eram governados por ditaduras, governos militares e de extrema direita. E Maio de 1968 se tornou sinônimo de resistência, dando força a uma geração que sofreu anos de censura e repressão, por vezes com tortura, prisões e desaparecimentos.

Mario Fonseca, Habeas Corpus 7b 1981. Cortesia Chantal
Fabres Latin American Art e Austin Desmond Fine Art

Mais especificamente no campo da fotografia, que artistas você destacaria quando pensa na produção desta época?

Cada vez que descubro um artista desta geração é um novo mundo que se abre. E é importante mencionar que só agora muitos deles estão tendo o reconhecimento que merecem. Muitos passaram despercebidos ou mesmo pararam de produzir em algum momento. Durante os anos 1960 e 1970, ou mesmo no início dos 1980, a fotografia não era considerada arte como a pintura, o desenho ou a escultura. Então é muito estimulante ver como os artistas adotaram, em um momento tão controverso, a fotografia como meio de criação artística. Existem vários nomes que são muito importantes, como Luis Camnitzer no Uruguai, Felipe Ehrenberg no México, Brodsky na Argentina e muitos outros. Minha preocupação é que artistas desta geração estejam começando a morrer, como aconteceu recentemente com Ehrenberg e Graciela Sacco, e é urgente reconhecer e salvaguardar seus legados.

Estamos falando de artistas de vários países diferentes…

Em cada país o movimento de 1968 foi vivenciado de maneira distinta. E é interessante ver como muitos artistas, escritores, poetas e músicos da América Latina se dirigiram para Paris. Alguns deles exilados de seus países, outros buscando conectar-se com as vanguardas e os novos movimentos artísticos, especialmente a arte conceitual e a performance – com as quais dialogavam a fotografia, o cinema e as primeiras experiências com som e vídeo.

Maio de 1968 se refere a uma grande diversidade de ideologias, movimentos políticos e artísticos que atuaram em diferentes lugares do mundo. Ainda assim, você consegue perceber características comuns na produção dos artistas dos diferentes países?

É muito importante não cair na armadilha das generalizações. Pois 1968 não foi um movimento, como o entendemos na arte, foi mais a união de várias dissidências. Mas, ao mesmo tempo, existem certas características que lhe conferem uma personalidade. Originalmente era um grupo de estudantes, muito jovens, que acreditavam firmemente que poderiam construir um mundo melhor e, especialmente no caso da América Latina, socialmente mais justo.

E de que modo você diria que este contexto de governos autoritários no continente influenciou os trabalhos dos artistas? É possível perceber uma urgência maior em tratar de temas políticos na América Latina?

Penso que sim. E talvez seja isso que torna a produção na América Latina tão importante. Estamos falando de uma geração que arriscou tudo pelo seu trabalho. Os criadores visuais, artistas e fotógrafos tiveram que desenvolver uma linguagem muito sofisticada para passar pelos filtros da censura, para poder falar sobre suas próprias realidades e sobre o mundo por trás da cortina dos regimes. Em certo sentido, acho que a situação não mudou. No ano passado trabalhei com uma artista venezuelana em um projeto com vários fotógrafos do país, sob o regime de Nicolás Maduro. A urgência por questões políticas no contexto americano ainda está em vigor, e espero que a geração de 1968 seja um exemplo e uma influência positiva para os artistas e fotógrafos contemporâneos.

Graciela Sacco, Adelante ll 2015, série Cuerpo a cuerpo

Podemos olhar, naquele período, para produções fotográficas mais documentais ou mais artísticas, por vezes mais preocupadas com a forma ou com o conteúdo. Mas essas fronteiras nem sempre são tão nítidas… Como você percebe essa questão?

Nestas décadas a tradição fotográfica de documentar se encontrou com novas manifestações artísticas, como a performance, por exemplo. Mas também, e isso é fundamental para entender a fotografia na América Latina da época, muitos entenderam que a documentação poderia ser um exercício artístico e também político. Um bom exemplo é o trabalho de Paz Errázuriz no Chile, documentando as realidades escondidas ou perseguidas pela ditadura. O meio fotográfico abrange um amplo espectro de imagens, desde práticas muito preocupadas com o conteúdo até experimentos com as possibilidades expressivas do meio, onde a forma e especialmente o comportamento da luz foram muito importantes. Para mim o interessante é ver que nas décadas de 1960 e 1970 obras feitas com fotografia começaram a aparecer e ganhar prêmios em Salões Nacionais, de mãos dadas com a revolução gráfica da arte Pop. Os artistas libertaram o meio fotográfico, retiraram-no do quarto escuro e o levaram para as oficinas gráficas. Penso que isso permitiu novos diálogos entre conteúdo e forma. Foi o começo de um uma etapa de experimentação fabulosa. Isso se vê, por exemplo, nas primeiras instalações de Miguel Angel Rojas, na Colômbia, e nas obras de Graciela Sacco, na Argentina. Uma verdadeira libertação para a fotografia.

E olhando agora, décadas depois, como você vê a relevância destes trabalhos produzidos naquela época?

Para mim, estas obras só ganharam mais força ao longo do tempo. É somente agora, 50 anos depois, que podemos entendê-las em contexto. Você precisa dessa distância no tempo para vê-las mais claramente. É por isso que sinto essa necessidade urgente de registrar conversas com os artistas daquela geração que ainda estão vivos, para garantir seus legados e aprender com suas experiências.

Você disse certa vez que quando olha para fotografias históricas pensa em como aquelas pessoas registradas no passado olhariam para nós, para o mundo de hoje. Isso acontece no caso destas imagens latino-americanas?

Sim, penso muito sobre isso. Não apenas com a América Latina hoje, mas também a que verá essas imagens em 50 ou 100 anos, quando nós não estivermos mais aqui. As realidades ainda estão muito próximas, às vezes para o nosso pesar. Quando vejo muitas dessas imagens, sinto uma grande responsabilidade. Com os artistas, por um lado, mas acima de tudo com as histórias e as pessoas nessas fotografias. A responsabilidade de não permitir que caiam no esquecimento. Estas são as imagens que nos permitem e permitirão que as gerações futuras vejam em primeira mão a realidade de um continente. Elas são o começo de uma nova história ou da possibilidade de reescrever a história existente. E esse sempre foi o papel da arte.

SP-Arte/Foto 2018 soma 34 expositores

Edu Simões, Série 59, 2015–18 (Galeria Marcelo Guarnieri)

Chegando a sua 12ª edição, a feira SP-Arte Foto, que acontece no Shopping JK Iguatemi desde 2007, vem ainda mais forte. Isso porque mais sete galerias se juntam ao corpo de expositores. São elas Emmathomas, Fortes D’Aloia & Gabriel, Gabriel Wickbold, Mapa, OMA Galeria, Silvia Cintra + Box4 e VilaNova. Além disso, a volta da galeria Nara Roesler ao conjunto também é um ponto forte. O evento acontece entre os dias 22 e 26 de agosto, tendo também o ciclo de palestras Talks.

Uma novidade da feira é a realização de homenagem a um artista. O eleito para o tributo deste ano é o paulistano German Lorca, que completou 96 anos em 2018. Lorca apresenta trabalhos inéditos, feitos para a revista do evento. O fotógrafo ganhará, em breve, retrospectiva no Itaú Cultural.

Apontada como destaque pela organização está a exibição do artista Luiz Roque, pela estreante Fortes D’Aloia e Gabriel. Alexandre Gabriel, um dos diretores da galeria, afirma que a seleção de artistas, que conta também com Ivens Machado e Erika Verzutti, dentre outros, foi pensada de forma que a galeria estreie mostrando um trabalho de muita qualidade.

Completando um ano com a gestão de Marcos Amaro, a galeria Emmathomas decidiu que não poderia ficar de fora desta edição. De acordo com o diretor artístico, Ricardo Resende, a galeria tem buscado cada vez mais se firmar no mercado da fotografia. Dentre os artistas que serão apresentados na feira estão Armando Prado, Fabiano Rodrigues e o Atelier do Centro, coletivo recentemente integrado ao painel de artistas da Emmathomas.

A veterana Dan Galeria aposta na seleção de dois artistas nacionais e dois internacionais: Christian Cravo, Cristiano Mascaro, José Manuel Ballester (Espanha) e Yuri Dojc (Eslováquia).  Flavio Cohn, diretor do Departamento de Arte Contemporânea da galeria, confirma que o estande terá uma rotatividade das obras dos artistas.

A galeria Lume, com intensa atividade no ramo fotográfico, leva três artistas presentes em exposições atuais: Ana Vitória Mussi, que está em Mulheres Radicais, na Pinacoteca de SP; Alberto Ferreira, em exposição na galeria até 29 de agosto; e Denise Millan, na galeria a partir de 4 de setembro. Estarão presentes também obras de Martin Parr, Julio Bittencourt e Claudio Edinger. De acordo com Paulo Kassab Jr, a galeria começou com a fotografia e preza muito por ela ainda hoje, estando em constante pesquisa tanto com o que foi produzido no passado quanto com o que é produzido no contemporâneo.

Na programação paralela às exibições na feira, acontecem os Talks. Os destaques ficam por conta dos painéis do dia 23, com o curador e historiador da arte colombiano Rodrigo Orrantia e o fotojornalista Evandro Teixeira falando sobre registros históricos de Maio de 68 no Brasil e no mundo; e do dia 24, entre o curador de fotografia do Museu de Belas Artes de Houston, Malcolm Daniel, e a fotógrafa brasileira Fabiana Bruno, discorrendo sobre a manipulação de imagens e a pós-fotografia. Além disso, o fotógrafo Bob Wolfenson, em exposição no Espaço Cultural Porto Seguro, participa de bate-papo com o público no dia 25.

A manipulação fotográfica no passado e no presente

Manipulações de cor e contraste não modificaram a essência da informação ou resultado que o fotógrafo pretendeu. Robinson Crusoe, de William Lake Price.

Em uma época com tantos softwares de edição de imagens, alguns que podem ser carregados nos celulares dentro do bolso, fica difícil não falar de manipulação quando se propõe a falar sobre fotografia. Porém, alguns não consideram que antes mesmo das ferramentas digitais já se manipulava imagens. Esta é a proposta do curador e pesquisador estadunidense Malcolm Daniel, que vem à feira SP-Arte/FOTO para integrar a programação do ciclo de conversas TALKS, falando sobre seu estudo acerca disso. Junto a ele, participa do painel a pesquisadora brasileira Fabiana Bruno, tendo seus estudos e sua fala apoiados na ideia de pós-fotografia. Ou seja, tudo aquilo que acontece logo após que o clique é feito com a câmera.

Malcolm é curador de fotografia do Museu de Belas Artes de Houston e ex-diretor curatorial do Metropolitan Museum of Art, de Nova Iorque. Ele conta à ARTE!Brasileiros que aqueles que o conhecem brincam sobre como ele fica empolgado sobre “todas aquelas pequenas fotografias pardas do século XIX sendo que há coisa tanto acontecendo de interessante na fotografia contemporânea”. Ele está sempre buscando formas de converter pessoas para que gostem das fotografias antigas, essas que fazem o seu coração bater tão rápido.

Manipulações de cor e
contraste não modificaram
a essência da informação
ou resultado que o fotógrafo
pretendeu. Robinson Crusoe, de William
Lake Price.

Em sua fala em São Paulo, Malcolm não se propõe, porém, a dizer que “não há nada de novo sob o Sol” a respeito das técnicas de manipulação ou autenticar fotógrafos mais recentes colocando-os em uma linhagem histórica. A verdadeira intenção do curador é fazer o oposto, incentivando as pessoas a conhecerem e apreciarem grandes fotógrafos antigos sabendo que foram precursores de nomes como Andreas Gursky, Sally Mann, Mickalene Thomas, Vik Muniz e John Chiara, por exemplo, pois empregaram técnicas e estratégias que, de acordo com ele, as pessoas acham interessantes na fotografia recente: “Não apenas no que diz respeito à manipulação, mas também em cenas simuladas para as câmeras, uma disposição em aceitar uma oportunidade ou um acidente, uma fascinação com o processo da materialidade, uma investigação tipológica da palavra”, explica.

Sobre a manipulação de imagens ser algo bom ou ruim para a fotografia como arte em geral, ele prefere dizer que não acredita nesse dualismo –mesmo que ferramentas como o Photoshop sejam, segundo ele, uma facilidade que muitas vezes foram “uma armadilha que os fotógrafos caíram”. Apesar disso, confessa que acredita que a melhor manipulação é aquela que passa despercebida pelos olhos do público e que não acha atraente quando “a manipulação se torna o conteúdo da imagem em vez de ajudar o conteúdo”.

Manipulações de cor e
contraste não modificaram
a essência da informação
ou resultado que o fotógrafo
pretendeu. Lovely Six
Foota, de Mickalene Thomas.

O curador defende que aquilo que é feito hoje com a facilidade e rapidez do softwares “não é diferente do que era feito manualmente por antecessores no quarto escuro”. Lá atrás, eles já usavam métodos para cortar ou ajustar a exposição ou o tempo, por exemplo. Alguns dos fotógrafos do século XIX que Malcolm leva em consideração nesse aspecto são William Lake Price e Gustave Le Gray.

Price é, de acordo com pesquisadores como Maria Inez Turazzi, quem publicou o primeiro manual de fotografia que se propunha a abordar e debater questões estéticas e conceituais. A publicação dataria do ano de 1985. Talvez o trabalho mais conhecido de Gustave Le Gray, por confirmar a capacidade da fotografia de captar o instante, “A Grande Onda” (1857) precisou ter dois negativos diferentes impressos no mesmo suporte para que o artista chegasse ao resultado pretendido. Esse procedimento, segundo Marcelo Ribeiro, professor de comunicação da UFBA, teria sido aplicado a todas as fotografias que compõem a série Le Gray em Sète.

Para Malcolm, o mais interessante de poder apresentar sua fala no evento é poder fazer com que as pessoas entrem em um território que, muitas vezes, é desconhecido. “É uma chance de introduzir as pessoas a algo novo, instigar o sentido da descoberta, abrir os caminhos para a exploração e para o prazer”, comenta. Ele também aponta isso como a parte mais legal de poder ser curador de mostras para o museu onde trabalha atualmente. “Sabe que o velho ditado ‘eu não sei muito sobre arte, mas sei do que gosto’? Ele é mais um ‘Eu não sei muito sobre arte, mas gosto do que sei”, destaca. E finaliza: “Estou convencido de que essas ‘pequenas fotografias pardas do século XIX’ podem fazer os corações de outras pessoas baterem rápido também”.

Agenda: confira os destaques da semana 18 a 24/8

Josely Carvalho, díptico O Parto, 1981

Aberturas

Instituições

Josely Carvalho, díptico O Parto, 1981
Mulheres radicais: arte latino-americana, 1960-1985, coletiva na Pinacoteca de São Paulo, abertura em 18/8
A mostra tem curadoria da historiadora venezuelana Cecilia Fajardo-Hill e da pesquisadora argentina Andrea Giunta e é a primeira na história a levar ao público um significativo mapeamento das práticas artísticas experimentais realizadas por artistas latinas e a sua influência na produção internacional. Quinze países estarão representados por 120 artistas, reunindo mais de 280 trabalhos em fotografia, vídeo, pintura e outros suportes.  A apresentação na capital paulista conta com a colaboração de Valéria Piccoli, curadora-chefe da Pinacoteca.

Paulo Ito, ‘Fake News’, 2017
Histórias (não) contadas, coletiva no Sesc Santana, abertura em 23/8
Os trabalhos questionam a veracidade dos discursos tidos como imparciais em tempos em que se discute lugar de fala, notícias falsas e pós-verdade. A exposição é composta por quatro módulos: Ao norte do rio, instalação de Jaime Lauriano; Art Book, com obras originais da publicação homônima de Bruno Moreschi; Ocupações – Cultura e Luta, com fotografias de Miguel Salvatore, Ana Luisa Seco, Marcio Ramos e Mildo Ferreira; e Fake News, com grafites de Enivo, Paulo Ito e Quinho.

Bob Wolfenson, ‘Rita Lee’, 1976
Bob Wolfenson: Retratos, individual no Espaço Cultural Porto Seguro, abertura em 23/8
Uma das referências nacionais como retratista, fotógrafo de nus e de moda, Bob Wolfenson transita com a mesma destreza entre a publicidade e a arte. Ao longo de seus quase 50 anos de carreira, é responsável por alguns dos retratos mais marcantes da iconografia brasileira recente.

Irving Penn, ‘Pablo Picasso em La Californie’, 1957
Irving Penn: centenário, individual no Instituto Moreira Salles, abertura em 21/8

A retrospectiva em homenagem aos 100 anos de nascimento do fotógrafo norte-americano Irving Penn apresentará, nas galerias 2 e 3 do IMS Paulista, mais de 230 fotografias concebidas ao longo de quase 70 anos de carreira, além de cerca de 20 periódicos. Serão exibidas suas fotografias de alta-costura, trabalhos iniciais em Nova York, América do Sul e México, retratos de povos indígenas de Cuzco, no Peru, e retratos de figuras como Truman Capote, Picasso e Joan Didion.


Alisson Louback, ‘Sumô’
DŌ: a caminho da virtude, coletiva na Japan House, abertura em 21/8
Por meio da filosofia Budô, termo que se refere às artes marciais e tem origem na tradição antiga do Bushidô – ou ‘o caminho do guerreiro’ -, serão apresentadas as histórias e curiosidades desses seis esportes, ressaltando características comuns a todas, como a disciplina e o crescimento pessoal e espiritual.

Bienais

Alex dos Santos, “A Violência Contra a Mulher”, 2018

Bienal Naïfs do Brasil – Daquilo que escapa, bienal no Sesc Piracicaba, até 25/11

Com curadoria de Armando Queiroz, Juliana Okuda Campaneli e Ricardo Resende a exposição apresenta bordados, desenhos, esculturas, gravuras, pinturas, vídeos, entre outras técnicas, produzidas por 120 artistas entre selecionados e convidados, de 21 estados do país, mais Distrito Federal. Dentre os 107 selecionados, 4 artistas recebem o prêmio “Destaque-Aquisição” e seus trabalhos passam a integrar o Acervo Sesc de Arte Brasileira, 5 são premiados na categoria “Incentivo”, além de 4 “Menções Especiais”, sendo o júri de Premiação composto por Armando Queiroz, Fabiana Delboni e Moacir dos Anjos.


Galerias

Milton Dacosta, Cliclistas, 1941
Milton Dacosta: A cor do silêncio, individual na Galeria Almeida e Dale, abertura em 18/8
Com curadoria de Denise Mattar, a mostra reúne 54 obras do artista plástico, realizadas da década de 1930 até o fim de sua vida, nos anos 1980. Ao longo desse percurso, Dacosta não se deixou limitar por nenhuma escola, assumindo influências diversas. “Sem dar importância a elogios ou críticas o artista sempre seguiu o caminho que lhe interessava, da figuração impressionista à metafísica, do cubismo à simetria da luz e da forma concreta à sensualidade da curva”, pontua a curadora.

Santídio Pereira, Sem título
Santídio Pereira: Um olhar da memória, individual na Galeria Estação, abertura em 23/8
Sob curadoria de Luisa Duarte, (…) o artista exibe 14 xilogravuras inéditas, realizadas entre 2017 e 2018. Como aponta Duarte, o conjunto de trabalhos reunido apresenta, em sua maior parte, imagens de pássaros da caatinga piauiense, região na qual o artista viveu até os 8 anos de idade. “São impressões de grande escala, nas quais sobreposições de cores e formas nos dão a ver caburés, garrinchas, lambus, juritis – diferentes espécies de aves que povoam sua terra natal. Em meio a essa fauna, outras gravuras, de caráter menos figurativo, aludem, sutilmente, a plantas da paisagem local”. 

Wesley Duke Lee, Jean Harlow, 3 da série “Jean Harlow – A Zona: A Vida e a Morte” (1967)

Wesley Duke Lee: Jean Harlow – A Zona: A Vida e a Morte, individual na Galeria Luisa Strina, abertura 21/8

Impressionado com uma revista encontrada em Los Angeles com inúmeras fotos de Jean Harlow – mito hollywoodiano e símbolo sexual dos anos 30 – Wesley toma conhecimento da vida dupla da atriz, que frequentava incógnita as zonas de meretrício de San Diego. Essa história de erotismo e morte sensibiliza Duke Lee, sobretudo pelo paradoxo de prostituta da Babilônia em contraposição ao de deusa do amor projetada por seus filmes.


Claudio Tobinaga, Máquina, 2018

Claudio Tobinaga: Colapsos, individual na galeria Simone Cardinelli, até 3/10

Com curadoria de Cezar Bartholomeu, a exposição reúne cerca de 30 pinturas em pequenos e grandes formatos, inspiradas em fotografias coletadas da internet e pautadas no subúrbio carioca. Neste cenário, as fotos se transformam em uma mise-en-scène, explorando uma narrativa quase cinematográfica. A atmosfera do ordinário toma contornos de um existencialismo barato, com uma superfície que seduz e ao mesmo tempo engana. As imagens ganham um novo significado aberto a diversas interpretações, com uma roupagem bastante pop.


Feira 

Fabiano Rodrigues, ‘Sem título’, série Jamaica, 2015/2018. No estande da galeria Emmathomas.
SP-Arte/FOTO/2018, feira de fotografia no Shopping JK Iguatemi, de 22 a 26 de agosto
Além de reunir importantes galerias e fotógrafos do Brasil e do mundo, a Feira proporciona ao público uma imersão no universo da fotografia. Com o objetivo de estreitar os laços entre as obras expostas e os visitantes, assim como facilitar o percurso pelo espaço, a SPArte/Foto/2018 contará com uma programação que inclui visitas guiadas, lançamentos de livros e um ciclo de palestras, o Talks.

Pelo fim da guerra, Carl Hart e jovens se unem para debater drogas no Brasil

Autor do livro “High price”, pelo qual ganhou o prêmio PEN de Escrita Científica Literária, ao lado de jovens brasileiros (Foto: Portal Aprendiz)

Centenas de pessoas se reuniram na Aparelha Luzia, no centro de São Paulo, no dia 13 de setembro, para a apresentação do Movimentos, coletivo criado por jovens das periferias e favelas do Brasil para discutir política de drogas. No evento, o grupo lançou uma cartilha de diretrizes sobre o assunto e promoveu um debate com com o neurocientista norte-americano Carl Hart, professor da Universidade de Columbia e autor do livro premiado “High Price” e Thiago Vinícius, da Agência Solano Trindade, iniciativa do Campo Limpo, na zona sul de São Paulo. A mediação ficou por conta de Nathália Oliveira, coordenadora da Iniciativa Negra por uma Nova Política de Drogas e colunista do páginaB!.

“No Brasil nós nos tornamos realmente sofisticados em não lidar com os problemas das pessoas pobres. Em um país onde a maioria da população não tem educação escolar, estamos falando sobre drogas e política de drogas. Algo está muito errado com esta sociedade, porque devíamos estar falando sobre educação”, avalia Hart, primeiro professor negro da área na tradicional universidade em que leciona.

No que diz respeito à falta de acesso à educação, o País de fato desponta. Em 2014, foi classificado como o 8º do mundo com mais analfabetos adultos, segundo relatório da Unesco. Estudo do Instituto Paulo Montenegro com a ONG Ação Educativa aponta também que apenas 8% dos brasileiros tem completa habilidade de se comunicar pela escrita/leitura.

Debate em São Paulo aconteceu no centro cultural Aparelha Luzia (Foto: Divulgação)

Durante a discussão, o especialista enfatizou que um dos pontos mais importantes sobre o tema é que as pessoas não têm conhecimento sobre as substâncias e seus efeitos, têm acesso apenas a desinformações. Por exemplo: apesar de legalizado, o álcool é a droga mais perigosa, como prova pesquisa do psicofarmacologista britânico David Nutt, autor do livro “Drugs Without the Hot Air” e professor da Imperial College London. Além disso, no Brasil, onde a droga mais consumida é justamente o álcool, entre 2006 e 2008, 8 mil pessoas morrem por ano em decorrência do uso de drogas e 96% delas foram causadas pelas legalizadas, como álcool e o tabaco.s informações são do Levantamento Nacional de Álcool e Drogas e da Confederação Nacional dos Municípios e estão impressas na cartilha de política de drogas porduzida pelo Movimentos.

A partir da provocação sobre a questão da educação, Hart usou como exemplo a Cracolândia para explicar como a política de drogas é apenas mais uma ferramenta de exclusão social utilizada pelo Estado.

“O que acontece quando falamos em Cracolândia é que damos a entender que usar crack é a única coisa que as pessoas estão fazendo naquele lugar. Nós estamos na contramão. Não são todos naquele espaço que são também usuários de crack ou outras drogas. Mas sabemos que nesses espaços todos estão na pobreza. O que também sabemos é que muitas pessoas naquele lugar têm problemas psiquiátricos que precisam ser cuidados – não problemas com drogas, mas problemas psiquiátricos”, reflete.

O pesquisador sugere que é necessário regular o mercado se estamos preocupados com a saúde dos usuários de drogas. Por serem proibidas, muitas vezes as substâncias são adulteradas e vêm com impurezas, que podem ser mais nocivas à saúde que os próprios entorpecentes.

Carl Hart é professor em Columbia, em Nova York, nos EUA

Além disso, Hart realizou um experimento em Nova York com usuários de crack no qual oferecia doses da substância ou dinheiro e comprovou que os usuários tomam decisões racionais, ao contrário do que se imagina a partir da visão estigmatizada que se tem sobre “viciados”. Para ele, portanto, a violenta guerra às drogas é um recurso utilizado para manter a população pobre e negra marginalizada.

“O termo nos permite não lidar com as pessoas e os problemas reais que elas enfrentam. Assim, os políticos usam o termo Cracolândia, e isso quer dizer que eles não têm responsabilidade pelas pessoas ali. Eles não têm que se preocupar com a educação daquelas pessoas, não tem que se preocupar se essas pessoas estão doentes psicologicamente. Não têm que se preocupar com a discriminação racial”, pontua.

Dessa forma, o especialista trouxe à tona como a guerra às drogas é forçada, seletivamente, para assegurar que encarceremos alguns segmentos sociais: “Nessa sociedade, assim como na norte-americana, nossas políticas de drogas são usadas para prender seletivamente nossos cidadãos pretos”. Os dados não o desmentem: a cada 23 minutos um jovem negro é assassinado no país e 67% da população carcerária é preta – no entanto, são os jovens da classe A os maiores consumidores nacionais de drogas (negros representam apenas 17% da classe mais rica do país, apesar de serem 53% da população brasileira).

As histórias contadas durante a noite na Aparelha Luzia também confirmam o que diz: Thiago Vinícius, morador do Campo Limpo e um dos fundadores da Agência Solano Trindade falou sobre o assassinato de seu irmão, que se envolveu com a criminalidade. “A nossa luta é muito maior que Marcha da Maconha, a nossa luta é de irmãos e famílias nossas, porque nossa família que está morrendo, então é disso que temos que se ligar”. Para o jovem, o debate de guerra às drogas deve se voltar para o plano econômico, pois foi um impulso econômico que motivou seu irmão a ir para o crime.

Foi também esse fator que levou Thiago Vinícius a criar uma moeda social na sua região: “Falaram que não tínhamos dinheiro. Fomos lá e fizemos o nosso: o Solano, uma moeda própria que é aceita em mais de 100 comércios lá no Campo Limpo. A gente tá fazendo a economia girar entre nós. É o black money acontecendo. Entendeu, parceiro?”

O Solano surgiu dentro da Agência Solano Trindade, um empreendimento cultural próximo ao Terminal Campo Limpo criado por jovens que trabalham em ações culturais na Zona Sul de São Paulo. Seu objetivo é fomentar a cultura nas periferias, por meio da economia criativa.

“Só assim que a gente vai conseguir reverter esse quadro, pra que esse preço não possa ser alto. Queremos financiar as nossas próprias campanhas, não depender de partido nenhum. Eu faço parte de uma geração que tirou a minha comunidade das páginas policiais para ocupar as páginas culturais. Eu tenho orgulho de fazer parte dessa geração, uma geração que ocupou a Bienal, levou para lá o funk, os Guarani da Tenondé Porã…”, conta Vinícius.

Jovens do “Movimentos” em atividade realizada no Rio de Janeiro (Foto: Reprodução/Facebook)

Todo esse debate só foi possível por conta da apresentação do Movimentos, criado há mais de um ano por jovens das periferias e favelas do Brasil que querem descentralizar o debate em torno da política de drogas e trazer a perspectiva de quem mais é afetado por ela.

“Chamamos de Movimentos porque entendemos que há uma pluralidade de movimentos que acontecem na favela, não é só aquele termo preconceituoso de que o movimento é o tráfico e tudo o mais, a gente entende que aquilo ali é um espaço vivo onde os corpos circulam”, explica Aristênio Gomes, que cresceu na Maré, é estudante de História na UERJ e um dos participantes do coletivo.

Sua fala remete à introdução da cartilha criada pelo grupo, na qual afirmam que ainda que uma nova política esteja sendo elaborada, por conta da guerra às drogas, “temos perdido a potência de uma geração de jovens – em sua maioria negros – que, assassinados ou presos, acabam virando estatística. Só que, nesse debate, a voz da favela continua sendo excluída”.

Nas palavras de Gomes: “Esse grupo nasce da necessidade de se fazer ouvir. Também queremos que tudo que a gente fala sobre drogas até hoje chegue na favela. Nesse debate a proposição tem que vir dali, tem que vir do favelado, quem sofre por isso, tem que vir do preto, quem morre por isso, quem tá sendo preso por isso… É essa galera que tem que falar!”

Para conhecer as políticas públicas propostas pelo Movimentos, baixe aqui a cartilha de drogas que lançaram ou acesse a fanpage no Facebook.

QUER SABER MAIS SOBRE O TEMA? CONHEÇA OS LIVROS

“O fim da guerra: a maconha e a criação de um novo sistema para lidar com as drogas”, de Denis Russo Burgierman. Editora Leya Casa da Palavra. 1ª edição, 2011.

“Drogas: as histórias que não te contaram”, de Isabel Clemente. Editora Zahar. 1ª edição, 2017.

A descolonização do pensamento na obra de Grada Kilomba

Performance “Trilogy of Illusions: Geography/ Mathematics/ Biology”, 2016, de Grada Kilomba

*Por Suely Rolnik

Esta conversa aconteceu por Skype num domingo de final de julho. A imagem do rosto de Grada, seu sorriso, seus gestos, o timbre de sua voz não aparecem no texto escrito. No entanto, são essenciais para acessar o lugar em que esta artista se coloca diante dos problemas que movem seu pensamento. Peço ao leitor que faça um esforço de imaginação para impregnar as palavras de Grada com a atmosfera de sua presença.

Suely Rolnik – Pelo pouco que vi de seu trabalho, e que me deixou encantada, sei que é um trabalho xamânico-psicanalítico. O que você está preparando para a Bienal?

Grada Kilomba – Estou a preparar dois projetos para a Bienal. Um chama-se O Projeto Desejo, que é uma instalação de vídeo, e o outro é Ilusões, que é uma performance, uma lecture-performance. São dois formatos diferentes, e isso eu já gosto. Gosto dessa ideia de estar ocupada com um tema, e não ter uma disciplina concreta, e depois o tema aparece em diferentes formatos e em diferentes disciplinas. É totalmente transdisciplinar. E isso para mim é muito importante: essa liberdade, essa flexibilidade de não estar agarrada a uma disciplina, mas focada em um tema, apaixonada e envolvida por ele, e depois, enquanto nós vamos trabalhando nele, é que aparece o formato, a visualização. Para mim, isso faz parte da descolonização do conhecimento. O Projeto Desejo é uma instalação de vídeo que cria três momentos: o público entra num espaço e vai percorrer uma pequena trajetória para ver três filmes diferentes e três estórias diferentes, mas que tem o mesmo som; e o som é uma bateria ritmada, um tambor que faz lembrar um pouco os ritmos africanos. Com o mesmo som eu recebo informações diferentes e vejo coisas diferentes. E o que eu trabalhei aqui foi que nesses três vídeos não há imagens, é o texto que se torna a própria imagem. Trabalho só com o texto, palavras, ritmos e vozes. São narrativas silenciadas a chegarem à voz, a se fazerem escutar, a contarem a sua estória. Essa é a trajetória: os três momentos exploram essa ideia de alguém que quer chegar à voz. É isso O Projeto Desejo: o que eu quero, o que eu desejo, o que é preciso, como eu quero contar a minha estória.

S.R. – É então um ensaio, no sentido da experimentação, sobre como encarnar o desejo, como não abrir mão do desejo, como não sucumbir ao silenciamento. E que estórias você vai contar?

G.K. – Eu comecei com o projeto que mostrei em São Paulo, quando nós nos conhecemos, que era um pequeno vídeo que se chamava While I Write (Enquanto eu escrevo),  apenas com palavras. Esse foi o início do projeto, e eu o continuei: Enquanto eu Falo, Enquanto eu Caminho. Há três momentos nessa trajetória. Ela fala exatamente sobre as narrativas que foram silenciadas e como nós conseguimos chegar à voz, e como conseguimos dar voz à nossa história, ou recolher a nossa história, que está fragmentada. São três momentos diferentes que falam sobre isso, e em cada momento o público vai se sentar, ver o vídeo, passar para o próximo vídeo, ver de novo, e depois passar para o terceiro vídeo, ver de novo. Para mim, essa é uma trajetória espiritual e refletiva, porque quero trabalhar com o ritmo, as vozes, a música e o texto e é uma coisa que se sente no nível corporal também, no nível emocional.

S.R. – Os próprios tambores marcam territórios sonoros, os ritmos marcam território e, com isso, já somos levados para esse outro lugar que você chama de espiritual.

G.K. –  Exatamente. Trabalhei com a ideia de que as narrativas são silenciadas porque outras vozes falam mais alto; não é que nós não estamos a falar, mas sim que nossa voz não é escutada. Então não é que a gente não tenha estado a produzir conhecimento e narração.  A gente sempre fala, a gente sempre entrega conhecimento, mas não escutam nossa narração, não escutam nossa história. Então, eu fiz uma série de gravações em lugares públicos e uso no início do filme essas vozes de fundo que são mais altas do que nossa própria voz, para brincar com essa dialética de que não é que a gente não fala, é a voz que não é escutada. E eu só posso me tornar sujeito falante se a minha voz também for ouvida. Esse é o jogo no início. Essas vozes depois desaparecem enquanto o ritmo e a bateria aparecem cada vez mais altos. E cruzam-se assim. Mas eu queria trazer toda essa teoria que está por trás de falar e silenciar num só projeto, quase simultâneo, pois falar e silenciar vão juntos: eu só posso falar se a minha voz de fato for escutada, e os que são escutados são aqueles que pertencem. Os que não pertencem são aqueles que ninguém escuta. Eu quis trabalhar esse jogo só através do som, e é dessa maneira que ele aparece nesse Projeto Desejo, através da metáfora da bateria e da música. É essa brincadeira entre o escutar, o falar e o silenciar.

S.R. – Esse plano sonoro é uma bela solução: o plano do vozerio de fundo, o plano da voz junto com a palavra, o plano do ritmo dos tambores. Então se a pessoa não estiver totalmente neurotizada, ou seja, se sua subjetividade não estiver totalmente submetida ao antropo-falo-ego-logocentrismo da cultura moderna ocidental, quando ela se deparar com o trabalho, ela dificilmente ficará só no conteúdo das palavras. Ela vai ser afetada pelo ritmo, pela textura das vozes emergindo do vozerio e se fazendo mais audíveis. Com isso você traz uma dimensão muito importante do modo de presença dos negros em toda as ex-colônias da América Latina que tiveram escravos. É que, embora eles tenham sido e continuem sendo totalmente silenciados, como se não existissem, eles ocuparam o espaço sonoro e o continuam ocupando integralmente. A gente não se dá conta, mas ele está lá.

G.K. – É exatamente esse espaço sonoro de que tu falas. É lindo. Como é que se fala dessa dialética do falar e do silenciar, sem falar, sem explicar, mas através do espaço sonoro? Como se transporta esse conhecimento através do espaço sonoro? Essa é a experiência desse projeto. Então eu pensei: vou trabalhar só com os ritmos, só com a percussão, só com as vozes. E, depois, em vez de termos o visual com imagens, como nós estamos habituados, eu vou trazer a palavra que nós imprimimos no papel e que se torna visual. É uma troca de formatos e de lugar das coisas, é isso O Projeto Desejo. Faz sentido para ti?

S.R. – Faz total sentido; a ideia é linda. Isso me remete ao que você disse antes sobre a necessidade do transdisciplinar em seu trabalho. Isso que você chama de tema, algo já tem uma forma e um significado, eu chamaria de um estado que está em nosso corpo, que é real, mas indizível e invisível; um estado que resuta dos efeitos das forças do mundo, de toda memória do mundo em nosso corpo, desde o atual golpe de estado no Brasil ou o perigo de Donald Trump tornar-se presidente dos Estados Unidos até toda a história da escravidão, passando pela Inquisição na Península Ibérica, indo lá para trás… É essa experiência que nos leva a criar algo que a torne sensível e, para fazê-lo, o desejo nos conectará com distintas coisas até começar a se compor algo que traga à luz aquele estado do mundo que nos habita. No teu caso, este estado resulta dos efeitos da violência colonial no teu corpo, especialmente em tua negritude, que te leva a conectar-se com os tambores, o timbre das vozes, te leva a tirar a imagem e a colocar texto em seu lugar, etc. Atraídos por essa experiência que você quer trazer à existência, todos esses elementos entram na composição de seu trabalho. Então, como esse processo pode encaixar-se numa disciplina ou partir dela, se o ponto de partida é uma experiência que não tem palavra, nem som, nem imagem, nem gesto e inventá-los é precisamente o trabalho a ser feito?

G.K. – É exatamente isso. É o que possibilita depois trabalhar com outros artistas que buscam criar sentido para uma experiência que tem ressonância com a nossa e, por isso, nossos caminhos se cruzam.

S.R. – E como é o outro trabalho que você está preparando para a Bienal?

G.K. – O outro trabalho chama-se Ilusões. Era um sonho que eu tinha; eu queria fazer uma performance, ou uma lecture-performance, não sei como chamá-lo. Eu queria trabalhar com a tradição oral, eu sou muito encantada pelos contos de estórias africanas, aquela tradição de contar, trazer o conhecimento através da oralidade, contar estórias. Pensei que é mesmo o que eu quero fazer, contar estórias, trazer essa tradição africana num espaço contemporâneo e muito minimalista, com texto, narração e projeção de vídeo que traz memórias, às vezes imagens do imaginário; é assim simples, bem simples. O que me fez escrever essas estórias é que às vezes sinto que já não há mais nada para contar. Por exemplo, em relação à história colonial, nós queremos desmontá-la, mas estamos sempre a contar a mesma estória. Vivemos numa quádrupla ignorância em relação a essa história: a gente não sabe, não precisa saber, não deve saber e não quer saber. Então em Ilusões decidi contar uma outra história. São duas estórias ligadas a dois mitos: o mito do Narciso, a estória de amor de Narciso com Eco, que eu recapitulo em um contexto colonial, um Narciso que está virado para si próprio e que só representa sua própria imagem, só vê sua própria imagem refletida no lago.

S.R. – É aquele que fala mais alto e não ouve.

G.K. – Exatamente. E Narciso, que só olhava a si próprio, também foi condenado porque não amava ninguém, e foi condenado com a sentença de que ele iria se apaixonar por alguém que não corresponderia ao seu amor. Ele chega ao lago, olha para a imagem e apaixona-se por ela, não sabendo que é ele próprio refletido na água. Portanto, ele nunca recebe o amor recíproco, e ele continua a pedir por esse amor olhando petrificado aquela imagem do lago, pensando que é uma outra pessoa que não lhe responde. E depois vem Eco, que confirma as palavras dele porque ela também foi condenada a não poder dizer mais palavras do que as últimas que ela ouve, porque ela falava demais. Ela só pode repetir as últimas palavras que lhe são ditas. Enquanto Narciso fala consigo próprio dizendo “eu amo-te, volta para mim”, Eco responde “volta para mim, volta para mim, eu amo-te, amo-te”. Ela só repete as últimas palavras de Narciso. Em Ilusões eu brinco um pouco com essa mitologia, com essas histórias como metáforas da tragédia colonial. É uma repetição infinita e uma representação infinita de si próprio que não representa a realidade, mas só aquela imagem colonial, branca, patriarcal que se repete constantemente e que está apaixonada por si própria e se idealiza a si própria, e condenada porque não vê mais nada a não ser sua própria representação. É uma representação, um tipo de enunciado em que as outras pessoas não existem. E ao mesmo tempo também tem a confirmação e o consenso de Eco, que está tão fixada no Narciso que sempre repete e confirma aquilo que ele diz. Neste narcisismo colonial e patriarcal em que nós vivemos, como vamos recuperar outras narrações e outras histórias? O trabalho é uma performance em que conto estas estórias tradicionais.

S.R. – É um dispositivo incrível para trazer à tona a relação colonial em sua pulsação viva, e não em sua representação ideológica. É a experiência da presença viva do outro no corpo, que na subjetividade branca ocidental está totalmente anestesiada e, com isso, o outro é uma mera representação, ele não existe. Para mim, é isso o que define fundamentalmente o que chamo de inconsciente colonial-capitalístico. É como um feitiço, que atravessa todas as relações em nossas sociedades e não só entre colonizador e colonizado. Quebrar esse feitiço é a questão e penso que é isso o que você busca em seu trabalho.

G.K. – É isso mesmo. E é tão difícil quebrar esse feitiço, sair desses lugares. É engraçado como a psicanálise está presente em nosso trabalho; eu vejo essa conexão em todas as dimensões de que estamos a falar. E neste Ilusões tem uma outra dimensão importante para a qual eu trago o conto de Édipo. É a dimensão da lealdade. A quem nós somos leais? Por que é tão difícil transformar? E isso aliado a outra pergunta: o que é que estamos a defender? A quem é que nós temos que defender? Então eu estou a fazer uma passagem para falar dos temas pós-coloniais através de várias estórias, de vários contos, e tento fazer uma ligação entre um e outro.

S.R. – E como Édipo entra nesse trabalho?

G.K. – Tem uma parte de que eu gosto muito, porque me fez pensar na violência, especialmente contra a população negra. De onde vem essa violência? Por que o corpo negro é o recipiente de tanta agressividade, de tanta violência? E depois eu consegui ligar com a estória do Édipo, a estória da lealdade, do rival, do verdadeiro rival, as fantasias da agressão contra a figura paterna, contra a figura materna. Fantasias que não se pode exercer porque senão se perde o acesso ao poder, e por isso elas vão ser performadas, executadas no corpo que eu construo como outro. Nesse outro corpo eu posso então exercitar toda a violência e toda a agressividade e assim mantenho a família e a estrutura colonial saudáveis, em segurança e em seus lugares, civilizadas. E toda essa agressividade é uma performance que é feita fora de casa, e é para isso  que são criados os outros. É nesse momento que fiz a ligação com o Édipo. De onde vem esta violência? O que nós estamos a defender? Ah, claro, se eu me revoltar, se eu executar essa agressividade dentro do espaço da casa, serei expulsa…

S.R. – E aí que entra a lealdade, mas como submissão e obediência; conservação do status quo.

G.K. – Exatamente. Por que eu não posso ter uma outra narrativa, um outro vocabulário diferente de minha casa paterna? Por que eu não posso falar diferente de meu pai ou de minha mãe? A quem sou leal? Por que essa lealdade? E aí eu acho que faz muito sentido contar as estórias e fazer a ligação com o Édipo. É também uma forma bonita de entrar nessa temática. Achas que faz sentido para ti?

S.R. – Faz total sentido. Quando a subjetividade está reduzida à sua experiência enquanto sujeito e desconectada daquela outra experiência, a dos efeitos das forças do mundo no corpo, como é o caso em nossa cultura, o sujeito interpreta aquela desestabilização que decorre destes efeitos como uma ameaça de fim do mundo, quando, na verdade, é aquele mundo que está chegando ao fim porque um outro mundo está germinando. E para essa subjetividade que ignora o saber-do-corpo, a ameaça da desagregação daquele mundo é também ameaça da desagregação de si mesmo, pois é naquele mundo que Narciso se espelha. Então, para conservar aquele mundo e a si mesmo, a subjetividade tem que projetar a causa de seu mal-estar em um outro, tem que criar um outro como tela para essa projeção e os atores que protagonizam este personagem do outro vão variando ao longo da história. Mas faz tempo demais que o negro está nesse papel…

G.K. – Isso nos leva de volta à ignorância de que nós falávamos. Eu não sei, não preciso saber, não devo saber e não quero saber. E aí estamos sempre no mesmo sítio, não nos desenrolamos dessa história colonial, patriarcal, racista, homofóbica, etc., exatamente por causa desse narcisismo e dessa lealdade. É esse narcisismo e essa lealdade que eu quero explorar nessas Ilusões, mas no formato de contar estórias, de trazer o conhecimento através da tradição oral. Estou a trabalhar com vídeo e imagens e queria recolher também algumas imagens de arquivo. Ainda estou a trabalhar nessas ilusões, nessa performance, mas eu queria fazer uma coisa bem minimalista, bem simples. Eu gosto de focar no contar estórias como no outro projeto, sem muito barulho e muito espetáculo, e acho que isso também é um outro formato, uma outra forma de usar a performance. Eu ainda estou a recolher as imagens.

S.R. – Que imagens você já recolheu?

G.K. – Eu encontrei, por exemplo, uma carta do meu bisavô português, uma carta que ele escreveu quando ele chegou a Angola, para a minha bisavó e para minha avó, que já estava nascida. Ele foi a Luanda como cozinheiro e ele vinha de uma aldeia. Ele descreve na carta a viagem e o que ele vê em Luanda, descreve as pessoas com todo aquele vocabulário colonial, racista. É bem complicado. E eu tenho outra carta, mais recente, de meu pai quando chegou a Angola, e esta tem outra narrativa. E tenho também um documento da minha avó em São Tomé e Príncipe quando seu nome lhe foi retirado. Eu estou a tentar criar uma narrativa, e acho muito bonita essa parte do documento, Suely, porque é do tempo em que a colonização portuguesa usava a assimilação como estratégia: tornar-se o mais similar possível ao colonizador. Por isso, nós temos todos o mesmo nome e uma das formas de assimilação foi a proibição do uso dos nomes africanos. Meu nome Quilomba é o nome da minha avó. Quilomba, como quilombo também, vem do quimbundo, que é uma das línguas mais importantes em Angola.

S.R. – E o que quer dizer quilombo? Porque aqui, como você deve saber, esta palavra tem um sentido político de comunidades de negros que conseguiam fugir da escravidão. E houve centenas de quilombos durante o período colonial, alguns inclusive se juntaram e formaram verdadeiras cidades.

G.K. –Quilombo em quimbundo quer dizer aldeia, ajuntamento, mas depois foi transformado em um termo político, mas guardando o mesmo sentido .

S.R. – E Quilomba era o sobrenome ou o nome dela?

G.K. – Era sobrenome. Nós tínhamos dois nomes, Buzie e Quilomba. Buzie era do meu avô e Quilomba era da minha avó, e Grada era o prenome da minha outra avó. Mas os nomes africanos foram todos anulados durante o tempo colonial. Eu fui ao arquivo em São Tomé e Príncipe procurar os documentos, porque minha avó e minha mãe me contaram como o nome delas foi proibido e desapareceu. E eu encontrei os documentos em que a mãe da minha avó ainda tinha o nome Quilomba e foi retirado, porque ela como muitas outras pessoas foram tiradas do continente à força para São Tomé e Príncipe para trabalhar nas plantações de cacau e de café. Elas vinham de Angola, de Moçambique, de Cabo Verde, e foram levadas para São Tomé e Príncipe, isoladas em plantações diferentes, com línguas diferentes e os nomes foram anulados. É por isso que temos quase todos o mesmo nome, no Brasil, em Portugal, em Angola, Moçambique, Cabo Verde, GuinéBissau, São Tomé e Príncipe, Goa, Timor-Leste. Viramos todos os Fernandes, da Silva, Ferreira, etc., e não se sabe de onde cada um vem.

S.R. – E qual é seu nome de nascimento?

G.K. – Eu tenho uma série de nomes civis. Tentei colocar oficialmente o nome anterior de minha família, Buzie Quilomba, mas a Constituição não está preparada para a história colonial, só é permitido mudar o nome por casamento, divórcio ou adoção. A história colonial não faz parte da Constituição, ela não tem solução para isso, não há sequer um parágrafo sobre como se lida com isso, que, no entanto, diz respeito a uma população inteira. Não se pode recuperar um nome que foi anulado. Então, uns bons anos atrás, eu decidi recuperar meus nomes originais, mas como nomes artísticos, porque, apesar de serem meus nomes, não posso tê-los no passaporte.

S.R. – E qual seu nome no passaporte?

G.K. – Tenho todos os nomes portugueses no passaporte, tenho Ferreira, Pereira… E Grada é o meu prenome que é, como disse, o de uma de minhas avós. Todos os outros nomes eu escolhi. Por exemplo, Quilomba, o nome de minha outra avó. Então eu tenho dois nomes de mulheres no meu nome. Mas o que é bonito nessa história do nome é que, como no Brasil, ela faz parte da nossa história colonial.

S.R. – Você já fez algum trabalho sobre isso?

G.K. – Eu já escrevi uma estória que agora queria incluir no livro que estou preparando, Performing Knowledge (Performando Conhecimento), e essa estória do nome é uma das que aparecem lá.

S.R. – É incrível ter a memória do nome anulada; uma anulação que resulta da violência ao trauma e que continua a se perpetuar na impossibilidade de resgatá-lo.

G.K. – É isso mesmo e não é só o trauma. Tem também a alienação: eu só posso ser eu, ter o meu nome registrado, oficial, civil, sendo o nome do colonizador, ou seja, eu só posso ter uma existência civil oficial através da identidade do colonizador, através de seu nome. Nós não podemos esquecer que durante muito tempo, até os anos 60, eu não consigo me lembrar agora exatamente até quando, a população negra não tinha direito a uma identidade, a uma nacionalidade. Agora eu estou a fazer esse trabalho de arquivo para buscar com que imagens trabalhar para contar essa estória da Ilusões, o que é e o que não é, e quem é que eu posso ser, quem é que eu tenho que ser, para eu me tornar visível. Então tem essa brincadeira com as Ilusões. Como eu recupero essa história?

S.R. – E qual é a origem de seu pai?

G.K. – O meu pai é português e vem de uma zona, Coimbra, em que são todos judeus; havia perseguição em toda aquela região e toda a comunidade judia foi obrigada a mudar de nome. É o caso da família de meu pai. Todos os nomes portugueses que acabam em eira, Macieira, Pereira, Ferreira, são judeus.

S.R. – Então você também tem um pedaço judaico, via seu pai cristão-novo. Assim como tenho um pedaço de negritude, via Brasil. Compartilhamos o trabalho com esses dois traumas.

G.K. – Acho mesmo muito bonito conseguir, em nosso trabalho, fazer essa ponte com o passado, com o corpo e o conhecimento, através do corpo e de sua memória, com essa dimensão espiritual e com tantas outras dimensões.

S.R. – Para mim, a volta ao passado não é a volta às formas de viver, aos sistemas de comportamento e suas representações, aos sistemas morais, a uma certa filosofia. É muito mais a volta a essa conexão com o saber-do-corpo, e, quanto mais se vai para à memória do passado no corpo, mais você se sente autorizada e estimulada a ativar essa conexão. É o que nós fazemos cada uma à sua maneira em nossos trabalhos. É uma espécie de amor pela vida e pelas pessoas, grupos e comunidades que se mantiveram e se mantêm em contato com a vida e a tomaram nas mãos movidas pelo desejo de cuidá-la.

G.K. – É amor mesmo, é por isso talvez que a gente fala de coisas sérias e com uma calma e um sorriso.

S.R. – Esse sorriso vem daí. Mas a gente teve que lutar bastante por esse sorriso. Esse sorriso estava lá desde sempre, mas não parava de levar porrada, de ficar na dúvida, de sumir, até que ele foi se impondo.

G. K – Trago esse sorriso na cara porque já chorei demais.

S.R. – Então chega, não é?

G.K. – É mesmo. Já falamos sobre tanta coisa. Foi tão lindo falar contigo, muito obrigada.

S.R. – Eu é que te agradeço, Foi tão bom te escutar.

*Suely Rolnik é professora na PUC-SPpsicanalista, curadora e crítica de arte e de cultura

Histórias Afro-atlânticas: uma arte plural, diversa e militante

Emma Ammos, Models, 1995

Neste ano comemorou-se os 130 anos da Abolição no Brasil, assinada pela Princesa Isabel em 13 de maio de 1888. E, no entanto, são vivas e profundas as marcas da escravidão no País. Diariamente somos confrontados com as provas concretas da desigualdade racial, seja por meio de aterradores dados estatísticos ou através de dramas reais, como o assassinato de Marielle Franco, que relembram quão profundo e arraigado é o racismo no país. Apesar da sensação de que pouco avançamos para combater tal situação, a denúncia dessa segregação persistente parece pouco a pouco esgarçar o manto da invisibilidade que recobre a questão.

Nesse processo de denúncia, reflexão e combate, a arte desempenha um papel fundamental e amplificador, apesar de insuficiente para reverter um quadro de exploração que se perpetua há séculos. Se até há pouco eram raras as exposições de artistas afro-brasileiros e africanos, ou em torno de questões vinculadas ao passado escravista e ao presente racista – e o Museu Afro Brasil (ver ao lado) parecia ser um foco essencial, mas isolado, de resistência –, vimos nos últimos tempos um florescimento de manifestações neste sentido. Somam-se a mostras históricas realizadas nos últimos anos, como Histórias Mestiças, no Instituto Tomie Ohtake (2014); Territórios: Artistas Afrodescendentes no Acervo da Pinacoteca (2015/2016); Diálogos Ausentes, no Itaú Cultural, e SomxsTodxsNegrxs, no Videobrasil (ambas em 2017), uma quantidade considerável de exposições, eventos e reflexões poéticas sobre a situação do negro no Brasil e do mundo.

Dalton Paula, Paratudo. Garrafa, corda, planta guiné, cachaça e cortiça, 60 x 60 x 180 cm, Sé Galeria, SP

No momento, estiveram em cartaz simultaneamente na cidade de São Paulo as exposições Ex-África (CCBB), com a obra de 18 artistas contemporâneos africanos e de dois brasileiros, e a mostra de longa duração É Coisa de Preto, organizada pelo Museu Afro Brasil, com um amplo número de núcleos expositivos.

No dia 29 de junho, teve início uma grande exposição, intitulada Histórias Afro-atlânticas, concebida por uma parceria entre o Masp e o Instituto Tomie Ohtake. Reunindo aproximadamente 400 obras realizadas por mais de 200 artistas da África, do Caribe e das Américas que ocupa todos os espaços expositivos temporários do museu. Além disso, o Masp tem dedicado toda sua programação de 2018 à discussão de questões relativas à arte africana e afro-brasileira. Além de um conjunto alentado de mostras de autores negros, como as atuais exposições de Aleijadinho, Emanoel Araújo e Ayrson Heráclito, uma pequena, mas significativa mudança foi feita em sua exposição permanente, colocando nessa coleção fortemente eurocêntrica uma nova tônica e dando destaque – a partir do segmento dedicado à arte moderna – à representação dos negros e à produção de artistas afro-brasileiros.

Histórias Afro-atlânticas terá oito diferentes núcleos. O primeiro deles, Mapas e Margens já sinaliza, segundo a curadora Lilia Schwartz, a perspectiva múltipla, plural, adotada pela equipe curatorial. “Nesse rio chamado Atlântico circularam símbolos, religiões, formas de produzir e sobretudo pessoas”, destaca ela, relembrando a importância de autores como Pierre Verger e Alberto da Costa e Silva (autor da metáfora do Atlântico como um rio) para o desenvolvimento deste projeto, que envolveu três anos de pesquisa e dois seminários internacionais.

A mostra trouxe em seus diferentes núcleos abordagens históricas e contemporâneas, antropológicas e estéticas, aspectos que foram aprofundados tanto no catálogo como no livro de ensaios que lançados simultaneamente. Em termos internacionais, a produção africana, muito pouco conhecida por aqui, ganhou destaque, bem como uma ampla produção de afrodescendentes do lado de cá do Atlântico (com uma forte presença da atual produção norte-americana). A seleção brasileira – ou produzida no Brasil – também é ampla, indo desde marcos históricos como as telas Negro Woman with Child e Negro Man, de Albert Eckhout, a uma série de trabalhos comissionados especialmente para a exposição.

Desde o final da década de 1980, com as celebrações em torno do centenário da abolição e a promulgação da Constituição cidadã, nota-se um crescente interesse por parte dos artistas brasileiros afrodescendentes de refletir sobre um passado que não acabou, substituindo pouco a pouco o modelo anterior que associava a arte brasileira de matriz africana essencialmente a um universo vinculado aos motivos religiosos e a arte popular.

Histórias Afro-atlânticas não apenas dá espaço para os artistas responsáveis por essa virada, dentre os quais se destacam nomes incontornáveis como os de Rosana Paulino, Eustáquio Neves, Sidney Amaral e Dalton Paula, que estiveram presentes em praticamente todas as mostras anteriores já citadas. A mostra procurou também abrir espaço para identificar novos atores neste segmento. Apesar do lastro histórico importante, há também uma aposta em novos nomes dessa produção, tanto no Brasil (No Martins, Rafael RG…) como no exterior (TitusKaphar, Nina Chanel Abney…), afirma Hélio Menezes, um dos curadores da exposição ao lado de Lilia Schwartz, Tomás Toledo, Adriano Pedrosa e Ayrson Heráclito.

Estudioso da produção afro-brasileira contemporânea, Menezes diz não se iludir com o atual interesse que o mercado de arte vem dedicando a essa produção, que durante anos ficou ignorada. Mas, segundo ele, não há dúvida de que esses artistas vieram para ficar: “Estão se tornando incontornáveis ao debate”. Outro aspecto interessante que ele destaca na pesquisa é a diversidade. Apesar da ênfase em poéticas mais vinculadas à luta política, é preciso contemplar a ampla gama de linguagens e temas trabalhados por esses artistas. O curador exemplifica que o núcleo Modernismos Afro-atlânticos concentra-se na produção de artistas negros da África e da diáspora africana, cujos trabalhos são mais voltados para diálogos internos da história da arte.

Como diz Menezes, “cada exposição é um mundo”. O interessante é que, tanto pela dimensão grandiosa como pela fricção que promove entre a produção internacional e a cena nacional, Histórias Afro-atlânticas promete ampliar o conhecimento e o debate em torno da produção africana num país contraditório como o Brasil que, apesar – ou talvez por isso – de ter sido o primeiro país a trazer escravos, ter recebido a larga maioria da população africana escravizada ao longo de mais três séculos (calcula-se que 40% dos negros vendidos como escravos tenham aportado por aqui) e de ter sido a última nação ocidental a abolir tal prática, ainda desconhece enormemente sua história e os laços que o une à cultura negra.

Leia também entrevista com Emanoel Araújo e Moisés Patrício, dois dos artistas que compõem a mostra Histórias Afro-atlânticas.

Arte, fotografia e política

Fotos do Freddy Alborta, fotógrafo de La Paz, encontrado e entrevistado pelo artista e pesquisador Leandro Katz, autor da exposição

PROA 21 é um novo espaço dedicado à arte emergente em Buenos Aires. Fica no bairro da Boca, perto do Caminito e da Bombonera, às margens do Riachuelo e a poucos passos da sede da tradicional Fundación PROA.

Construido onde antes funcionava o ateliê de três pintores e um escultor argentinos, Benito Quintela Martín, Miguel Victorica, Fortunato Lacámera e Julio Vergottini, o PROA 21 foi inaugurado em abril com a mostra Proyecto para El dia que me quieras.

A obra, do artista argentino Leandro Katz, reúne pela primeira vez as instalações cumulativas feitas entre 1993 e 2007, que abordam com profundidade, a derrota de Guevara no final dos anos 60, na Bolivia. As nove instalações, agora acompanhadas por dois filmes, tem como foco a importância das imagens, das fotografias, na vida dos personagens da guerrilha. Na sua derrota e nas suas mortes.

Hoje com 80 anos, Leandro Katz iniciou este trabalho em 1987 ao examinar a famosa foto de seu compatriota Ernesto Guevara, morto e exibido a um punhado de jornalistas, em outubro de 1967, na lavanderia do hospital da pequena cidade de Vallegrande, para onde havia sido levado depois de executado em La Higuera, ao final de sua derrotada experiência boliviana.

“Lá, no chão, havia alguma coisa vulnerável, mole; eu podia vê-la através da jaqueta de um fotógrafo e da bota de um soldado, ali no chão: era a parte de baixo de um braço? E de quem era o braço? “, refere-se Leandro Katz a algo longe do foco principal da foto.

Para o curador Cuauhtémoc Medina, Katz é um produtor de imagens visuais e escritas e sua inquietude perante a foto, levou-o a mergulhar em uma investigação que foi muito além da moldura daquela fotografia.

As primeiras pesquisas o fizeram chegar até Freddy Alborta, o autor da foto, até então atribuida ao editor da UPI/Reuter que a distribuira via radiofoto. A entrevista que Leandro Katz fez com Alborta está em El dia que me quieras (1997) um dos dois filmes que fazem parte da exposição.

As fotos, antes creditadas a UPI/Reuters, eram de Freddy Alborta, fotógrafo de La Paz, encontrado e entrevistado por Leandro Katz, o autor da exposição do PROA 21.

No filme, Alborta descreve a viagem de La Paz a Vallegrande  dos cerca de 22 jornalistas  – dois fotógrafos entre eles – e da surpresa que teve, tanto com o corpo de Guevara morto, com os olhos abertos e com o meio sorriso na face, quanto com os dois corpos jogados no chão, dos guerrilheiros Willi e Chino. E era à um deles que pertencia o braço que intrigara Leandro Katz.

No outro filme que faz parte da exposição, Exhumación (2007), está a entrevista com o perito forense argentino Alejandro Incháurregui que foi à Bolivia, 30 anos depois, em 1997, e identificou os restos de Che Guevara. Incháurregui é o mesmo perito que participou dos trabalhos de identificação do nazista Josef Mengele, no Brasil em 1992 e mais tarde, de Santiago Maldonado, na Argentina, no final do ano passado.

Também estão nas paredes do PROA 21, as provas de contato e as ampliações dos negativos produzidos naquele dia10 de outubro de 1967, no Hospital Nuestro Señor de Malta, em Vallegrande, por Alborta. Imagens que serviram de inspiração para o ensaio do crítico e escritor britânico John Berger, que delas fez as analogias com as obras de Mantegna, O Cristo Morto (1480) e Lição de anatomia do Dr. Tulp (1632), de Rembrandt.

as fotos, antes creditadas a UPI/Reuters, eram de Freddy Alborta, fotógrafo de La Paz, encontrado e entrevistado por Leandro Katz, o autor da exposição do PROA 21.
E, a partir das fotos, são do ensaísta britânico John Berger as analogias com A Lição de Anatomia do Dr.Tulp, 1632, de Rembrandt, e o Cristo Morto, 1480, de Mantegna

Em outra das instalações há uma cronologia baseada em pesquisa que confronta mais de dez fontes –  dentre elas o Diário Boliviano, do próprio Guevara e Como capturé al Che, do General Gary Prado Salmón –  e descreve os eventos de 13 de maio de 1963 até 17 de outubro de 1997, ou seja, os antecedentes, os fatos e algumas das consequências da guerra de guerrilhas na Bolivia.

A seguir reproduzimos quatro pequenos trechos:

7 de outubro de 1967 – Se cumplieron los 11 meses de nuestra inauguracion guerrillera sin complicaciones, bucólicamente; hasta las 12.30 hora en que una vieja, pastoreando sus chivas, entró en el cañon en que habiamos acampado y hubo que apresarla. La mujer no ha dado ninguna noticia fidedigna sobre los soldados, contestando a todo que no sabe, que hace tiempo que no va por allí…

El Ejército dio una rara informacion sobre la presencia de 250 hombres en Serrano para impedir el paso de los cercados en número de 37 dando la zona de nuestro refugio entre el rio Acero y el Oro. La noticia parece diversionista – Diario Boliviano, de Ernesto Che Guevara.

8 de outubro de 1967 – Se informa que el enemigo estea en el Churo donde se juntam las Quebradas Racetillo y Jaguey. A las 11:30 hrs. es atacado por las Comps. A y B , caen 3 muertos y 2 heridos entre estos últimos está Che Guevara y 2 soldados muertos y 4 heridos, todos los cuales son llevados a La Higuera-   

No Disparen, Soy El Che,  do General Arnaldo Saucedo Parada.

9 de outubro de 1967 – Comunicado de las Fuerzas Armadas:”…a) Ernesto Che Guevara cayó en poder de nuestras tropas gravemente herido y en pleno uso de sus facultades mentales. – Después de haber cesado el combate, fue trasladado a la población de La Higuera más o menos a las 20:00 horas del dia domingo 8 de octubre, donde falleció a consecuencia de sus heridas.”

Como Capturé Al Che, do General  Gary Prado Salmón.

9 de outubro de 1967 – “A la una de la tarde salí de la escuelita y afuera esperaban el Sgto. Mario Terán y el Tnte. Pérez quienes parecían estar embriagados. Les ordené que no disparen a la cara sino del cuello para abajo. Diez minutos más tarde escuché los tiros.”-

“ Shadow Warrior, The CIA Hero of a Hundred Unknown Battles “ – Félix I. Rodriguez

Duas mulheres aparecem na obra de Katz. Uma delas é Monica Ertl, que faz parte da fase pós-guerrilha e foi quem matou com três tiros Roberto Quintanilla Pereira, em 1971, então consul boliviano em Hamburgo. Ele é o militar que aparece na célebre foto com a mão nos cabelos do cadáver de Guevara.

Ainda nas palavras de Cuauhtémoc, a obra de Katz aborda o modo que a fotografia de meados do século XX permeava o conjunto da experiência social. Guevara foi um produtor de imagens e não só para a confecção de disfarces como o que usou para entrar na Bolivia, via Madri e São Paulo com a cabeça raspada e a identidade do dr. Adolfo Mena González, funcionário da OEA.  Guevara levava consigo sua câmera, como instrumento ideológico. Essa “lente guerrilheira” é o tema da instalação que tem Tania, a outra das duas mulheres como foco.

Haydeé Tamara Bunke Bider – Tania era seu nome na guerrilha – morreu antes de Guevara nos confrontos com o exército boliviano, no dia 31 de agosto de 1967. Assim como Guevara, Haydeé/Tania também fotografava muito. Registravam o dia a dia dos guerrilheiros e pretendiam usar o material para fins de propaganda mais tarde como aconteceu em Sierra Maestra, em Cuba, no final dos anos 50. Na Bolivia produziram rolos e rolos de fotos. Muitos nem foram revelados. Foram encontrados nos acampamentos, na mochila de Guevara, nos pertences de Tania e acabaram funcionando como faca de dois gumes. Mais que tudo, as  fotos serviram para identificar os guerrilheiros e, mais tarde, suprema humilhação, foram usadas para ilustrar os livros publicados pelos militares bolivianos, como o do general Gary Prado, acima citado.

Entenda como cobrança de taxas de aeroportos podem afetar a arte no Brasil

Francis Bacon, Figura sentada, 1961, óleo sobre tela, 165,1 x 142,2 cm, doado por J. Sainsbury Ltd, 1961, coleção: Tate, London. 2018. FOTO: The Estate of Francis Bacon. All rights reserved. DACS, London/ AUTVIS, Brasil, 2018. Reprodução/MASP

“Hoje a nossa arte está judicializada”, é como resume o advogado Danilo Andrade Maia, que representou instituições como o MASP e o Instituto Moreira Salles, a enorme barreira para a realização de exposições que instituições têm enfrentado no País. Ocorre que aeroportos como Guarulhos, Viracopos e Galeão têm cobrado um valor abusivo de tarifas quando obras de arte chegam ao País. A primeira vez que isso aconteceu foi em meados da SP-Arte, quando obras que vinham para a feira ficaram presas na alfândega. Na sequência, várias entidades enfrentaram o mesmo problema, que segue sem previsão de ser resolvido.

ARTE!Brasileiros conversou com Fábio Frayha, novo Diretor de Operações e Finanças do MASP; Jochen Volz, Diretor-Geral da Pinacoteca de São Paulo, e com Danilo para entender quais são essas tarifas e como isso representa um escândalo na arte no Brasil.

Danilo de Andrade Maia ressalta, primeiramente, que não se trata de uma questão relativa a impostos, mas sim de uma discussão em torno de serviços de armazenagem e capatazia. A primeira refere-se à taxa para que as obras fiquem guardadas, enquanto a segunda diz respeito à movimentação interna dessas cargas. “Esses são os dois únicos serviços que os aeroportos, como concessão de serviços públicos, têm a obrigação legal de prestar”, aponta o advogado. O aeroporto recebe e guarda as obras (armazenagem) até que sejam retiradas. Nesse processo, consequentemente, as movimenta dentro do aeroporto (capatazia).

Sempre foi cobrada uma taxa baseada no peso de cada obra por esses serviços, conforme explica Danilo: “Isto não é uma invenção brasileira. Isto é um critério internacional sempre adotado. Independentemente, portanto, do valor [da obra]. O que vale para efeitos de armazenagem e movimentação, e tem toda toda lógica e sentido, é o peso dessa mercadoria”. Os aeroportos passaram, neste ano, a interpretar essa regra de armazenagem e capatazia de outra forma.

Danilo explica que eles têm validado a regra perante a uma expressão da lei que fala sobre obras que ingressam no Brasil para efeitos temporários, “desde que elas se destinem a eventos cívico-culturais”. Os aeroportos passaram, então, a questionar o ‘cívico’ da expressão de forma nacionalista, como se valesse apenas para obras que louvem a produção brasileira. “Estão entendendo a expressão dentro de uma concepção patriótico-ufanista”, explica. Desta forma, a medida parece protecionista.

Portanto, as concessionárias deixam de cobrar as tarifas por peso, já que não consideram as obras no escopo cívico-cultural, e passam a requerer uma tarifa sobre o valor comercial de cada obra. “Nesse momento, as concessionárias, entenda-se os aeroportos, estão interpretando unilateralmente, a seu favor, esse dispositivo”, comenta Maia. O advogado aponta, ainda, para o real sentido da expressão: “Este conceito de cívico, ligado ao cultural, tem raiz e diz respeito à civilização, ao caráter universal, à universalidade dos eventos culturais”. Com isso, como exemplificado por ele, uma mostra que pagaria cinco mil reais por armazenagem e capatazia passa a pagar três milhões de reais.

O advogado conta que outros argumentos surgiram por parte dos aeroportos. Estes, segundo ele, não amparados por lei: “Dizem eles, por exemplo, que existem entidades, museus, que cobram ingresso. Ora, a cobrança de ingresso, ainda que em determinados dias e horários, é simplesmente uma forma muito acanhada de tentar viabilizar essas exposições. E a lei não estabelece isso como requisito”. Para ele, alegações como essa não têm fundamento e os motivos, no fundo, são financeiros: “É a tentativa desesperada de encontrar uma outra fonte de receita. Vamos lembrar que uma das concessões, a concessão do aeroporto de Viracopos, há pouco tempo foi objeto de uma tentativa até mesmo de devolução, pois a concessionária alegava que a conta não fechava”, rememora Danilo.

O escritório de Danilo tem sedes em quatro capitais (São Paulo, Salvador, Brasília e Porto Alegre) e já atendeu, além do Masp e o Instituto Moreira Salles, o Instituto Tomie Ohtake e a SP-Arte para tratar dessas questões, onde foram necessários mandados de segurança para a liberação de obras, sem as cobranças abusivas, por aeroportos: “Temos conhecimento que inúmeras outras entidades no País estão com o mesmo problema e nem todas com, digamos, a condição de ter um escritório de advocacia de porte nacional como o nosso, cobrindo todas as áreas, inclusive do direito tributário”. Ele ressalta que o escritório se dispôs a auxiliar nesse tema sem nenhum interesse comercial, mas por paixão à cultura, pois considera o episódio um escândalo, tendo em vista que isso tem feito com que entidades internacionais fiquem “preocupadas e desalentadas com a reação institucional contrária à cultura”: “E quando eu digo institucional é porque, vale lembrar, esses aeroportos são agentes do poder público. Eles têm uma concessão pública”. Segundo ele, a ANAC, que é quem deveria fazer algo em torno do problema, alega que isso não compete à agência. Por outro lado, as concessionárias dizem que estão seguindo a lei, ainda que com uma interpretação peculiar, e que quem poderia modificar isso seria a ANAC.

O Ministério da Cultura se posicionou contra a nova forma de cobrança feita pelos aeroportos. Para Maia, o apoio é “cinza”, pois “não consegue interagir e dialogar com seus entes do mesmo plano”, referindo-se à ANAC. Ainda que o diálogo esteja sendo possível e que tenham obtido sucesso com os mandados de segurança, a burocracia necessária para a comprovação da finalidade do embarque das obras também tem sido um empecilho. Ele vê a movimentação “absurda” da justiça federal nesses casos como algo sem motivo. Isso porque muitas dessas exposições são planejadas com muita antecedência e tem divulgação prévia. Segundo ele, são “pilhas e pilhas” de documentos requisitados. É o caso, por exemplo, de Histórias Afro-atlânticas: “Há um paradoxo de que, nas Histórias Afro-atlânticas (…), se tivesse que se pagar o que o aeroporto pedia, seria muito mais do que tudo aquilo que foi gasto e investido na própria mostra, preparada com dois anos de antecedência”, comenta.

Sobre o impacto disso para a arte no País, Danilo não tem dúvidas: “É uma situação considerada patética fora do Brasil e que ninguém acredita em um critério tão absurdo”. O diretor de Operações e Finanças do MASP, Fábio Frayha, também atenta para esse fato. Ele diz que é muito difícil explicar o que tem acontecido para instituições de fora com as quais o museu negocia para a realização de mostras: “Isso gera uma total insegurança nossa, se vamos conseguir viabilizar essas exposições. Então, a nossa agenda curatorial fica absolutamente comprometida pros próximos anos”.

Apesar de terem tido êxito com os mandados de segurança para liberar obras pela tabela de tarifas anterior, Fábio confessa receio: “Você não sabe exatamente os prazos que você vai ter e como que você vai conseguir coordenar esses processos”. Segundo ele, que considera o que tem acontecido como um retrocesso, isso coloca o Brasil em uma “posição muito marginalizada” tanto no cenário internacional quanto no cenário nacional, tendo em vista que dificulta os intercâmbios entre instituições.

Para o Diretor-Geral da Pinacoteca de SP, Jochen Volz, a situação pode decretar o fim das mostras internacionais e o isolamento do País se não forem tomadas providências. Ele vê as alterações como arbitrariedades e considera as interpretações como “enviesadas”. Obras que integram a exposição Mulheres Radicais, com abertura na Pinacoteca em 18 de agosto, se encontram armazenadas nos aeroportos de Viracopos e Guarulhos, conta Jochen. A instituição já entrou com mandado de segurança para pagar o valor da tabela 9, ou seja, a anterior.

Ele destaca que parte da missão do museu é “mostrar as Artes Visuais brasileiras em diálogo com as culturas do mundo (…) para promover a experiência do público com a arte, estimular a criatividade e a construção de conhecimento”: “A Pinacoteca intensificou o intercâmbio cultural com instituições europeias, americanas, asiáticas e latino-americanas, tendo trazido exposições como Rodin, Eckhout, Henri Moore, Ron Mueck (com visitação de quase ½ milhão de pessoas), nesse ano Hilma af Klint (180 mil pessoas) e agora Mulheres Radicais”.

Além do impacto financeiro, de acordo com ele, o que tem acontecido pode causar o fim do acesso da sociedade à arte internacional: “aproximadamente 90% de nossos visitantes não teriam acesso a essas experiências se não fosse por meio dessas exposições trazidas pela Pinacoteca, simplesmente porque não possuem condições econômicas para viajarem até os países de origem dessas coleções e museus internacionais”. Jochen também acha importante enfatizar que “aeroporto não é local adequado para armazenagem de obras de arte, então, elas deveriam simplesmente passar pelo aeroporto, por meio de postos de despacho alfandegário avançados”.