Frame de Não é difícil para um investigador da natureza simular seus fenômenos (16mm, HD, 8 min), parte do projeto História universal dos terremotos
Por Marcos Grinspum Ferraz e Patricia Rousseaux
Ao se observar a vasta produção contemporânea, é evidente o enfoque dado pela maioria dos artistas às grandes questões que estão em debate no mundo e que afligem seu entorno. Há aqueles que se debruçam sobre as desigualdades e questões sociais, raciais ou de gênero; há os que tratam da crise climática ou das questões migratórias; existem os que dialogam mais diretamente com a psicanálise, tratando dos impactos da realidade nas profundezas da mente humana; alguns focam mais diretamente em questões formais, preocupados com as linguagens e suportes utilizados, com os avanços tecnológicos e das mídias digitais ou, por vezes, com pesquisas sobre universos geométricos e cromáticos; e assim por diante. Esta lista certamente poderia seguir longamente, sempre tendo em mente que os campos de investigação não são estanques e fechados e que, cada vez mais, o hibridismo é uma marca forte na arte de nosso tempo.
Mas ainda assim é raro encontrar uma artista que afirma de modo bastante direto, que seu campo principal de pesquisa é a ciência. E é este o caso da gaúcha radicada em São Paulo Leticia Ramos: “Eu sou uma artista, cientista”, diz ela, que realiza há quase duas décadas obras em formatos como fotografia, fotograma, filme, instalação, desenho e publicações impressas. “A ciência para mim faz parte do trabalho em sua forma analítica, nos temas tratados e métodos usados, mas sempre o ponto de partida são os fenômenos naturais, a natureza. E tendo em conta, também, o homem como parte disso, mesmo que raramente surjam figuras humanas representadas nas obras.”
Não à toa seu ateliê, no centro da capital paulista, possui não apenas uma sala de projeto, uma marcenaria e um espaço de projeções audiovisuais, mas também um laboratório com equipamentos e materiais associados aos métodos de pesquisa científicos. “É como se ali dentro, meio perdida, estivesse sendo feita uma pesquisa sobre um lugar que não existe ainda”, conta. Na mesma direção, suas viagens e residências artísticas costumam acontecer em lugares pouco usuais para o meio artístico: “Já fui para o Ártico para fotografar os ventos; já fui com um submarino para um lago sub-glacial da Antártica; já simulei quimicamente um vulcão; já fiz aparecer uma esfera misteriosa”, conta em depoimento.
Vários dos temas contemporâneos que surgem na obra de Leticia – como os impactos da ação humana no globo, a crise climática, o aquecimento global e o conceito de Antropoceno – não são tão incomuns ao mundo artístico. Mas, se normalmente são tratados sob um ponto de vista realista, de registro, representação ou denúncia, aparecem em sua produção a partir de experimentações e métodos focados nos aspectos naturais, geológicos, químicos e físicos, nem sempre ligados a casos específicos de nossa realidade, mas em ficções e mundos imaginados e atemporais. Assim, a artista trata de temas que nos são atuais sem focar neles diretamente, mas a partir do que ela chama de uma “ciência da ficção”.
Paleolítico III, impressão sobre papel de algodão a partir de polaroid, parte do projeto Bitácora. Foto: Leticia Ramos Studio.
“É uma espécie de mistura entre esses dois termos para criar uma outra paisagem, um outro lugar possível. Um lugar, inclusive, de crítica, de análise, através de um deslocamento poético do tempo natural presente”. A ficção de Leticia, é preciso ressaltar, não parte do nada, ou de uma espécie de “criação livre” de sua mente, mas de histórias e, especialmente, lugares e fenômenos do universo em que vivemos e de seus tempos passados, presentes, e, possivelmente, futuros. Mais do que focar diretamente em qualquer narrativa histórica – seja política, social ou econômica, por exemplo –, portanto, os trabalhos “partem, como argumento, de uma história da ciência”, explica ela.
A mesma ciência que vem sendo negada por grupos reacionários mundo afora – basta lembrar dos movimentos antivacina ou daqueles que afirmam que a terra é plana – é, para Leticia, um caminho não só para a compreensão de fenômenos naturais e para o desenvolvimento de soluções em diferentes campos da vida, mas é também matéria e método para a produção artística, poética, de sonhos e imaginação.
Da Lisboa antiga ao imaginário sobre Marte
Um bom exemplo para compreender a peculiaridade de seus métodos é o projeto História universal dos terremotos (2017), concebido a partir da história do terremoto que devastou a capital portuguesa, Lisboa, em 1755. Após pesquisar por meses as profundas e complexas questões socioeconômicas e políticas decorrentes da tragédia, Leticia se colocou uma questão básica, a partir do fato de que a fotografia ainda não existia à época do ocorrido: “Como falar de um evento histórico do qual não existem fotografias?”.
A partir de uma vasta pesquisa sobre ilustrações, textos e materiais de época, a artista começou a criar experimentações com diferentes procedimentos e materiais. De início, com uma lâmpada estroboscópica em diferentes velocidades, ela iluminou uma maquete da cidade portuguesa, registrando o ato com uma microfilmadora planetária, em um ato semelhante ao usado em laboratórios científicos. O projeto se desenvolveu e outras simulações de terremotos se seguiram, não mais referentes apenas ao caso português (uma delas, explica, “seria o terremoto simbólico para o Brasil, em outubro de 2018”, com a eleição de Bolsonaro”). Entre eles, chegou a realizar um experimento no Instituto de Química da USP – por questões de segurança –, gerando como resultados artísticos filmes, fotos e sons.
“As imagens de Ramos partilham do mesmo tipo de rigor metodológico empregado nos centros de pesquisa científica, mas sem a pretensão de explicar qualquer coisa”, escreve a curadora Fernanda Brenner, diretora do PIVÔ. E ela segue: “Suas simulações visuais fascinam por reiterarem o mistério e o grau de especulação que ainda residem na mais avançada das descobertas científicas”. A análise de Brenner se completa nas palavras da própria artista, que explicita ainda mais os caminhos peculiares da fusão entre ciência e arte e da dimensão misteriosa e mágica que a mobiliza: “Vejo o terremoto como uma forma abstrata, lindos freixos de luz perdidos no espaço profundo e negro, então decido uma espécie de condição ideal para um estudo, uma estrutura isolada, ainda sem história e sem contexto”.
Enquanto História universal dos terremotos foi concebida a partir de fatos passados reais, ligados a fenômenos da natureza e à vida humana, trabalhos como Grão (2016) e Microfilme (2013-2014) se projetam em tempos ficcionais futuros. O primeiro deles, um filme em 16mm realizado a partir de maquetes montadas no espaço PIVÔ, “conta a história de uma colônia humana em um planeta incógnito, onde um antigo silo de cereais foi construído”, como resume a sinopse. Ali, fenômenos naturais e mudanças climáticas fazem o silo explodir, o que resulta no crescimento “de uma estranha plantação”. Para Leticia, esta ficção não deixa de ser algo que “nós podemos imaginar acontecendo, dentro de alguns anos, após a colonização de Marte”.
Se uma história semelhante à contada em Grão pode acontecer no futuro, o caso mais marcante da ligação entre ficção e realidade dentre as obras de Leticia é Microfilme, realizada há dez anos (com apoio da Bolsa ZUM/IMS) e que parece tratar diretamente de algo que, está, tragicamente, acontecendo na atualidade. A partir da história geológica das áreas que hoje abarcam o litoral Sul do Brasil e a costa uruguaia, moldados pelo subir e descer das águas ao longo das eras, Leticia concebeu um trabalho que chamou também de O dia em que o Rio Grande do Sul vai virar mar. Utilizando microfilme e polaroids, tendo como bases Tavares (RS) e San Antonio (Uruguai), a artista imaginou uma paisagem perdida no tempo, sem humanos, resultado da instabilidade geológica que permeia a Lagoa do Peixe, a Lagoa dos Patos e o mar. As imagens fotográficas resultantes, com paisagens imprecisas, sem limites bem delimitados, resultado do ir e vir das marés e das chuvas, nos remetem diretamente aos alagamentos vividos recentemente no Sul do país.
Detalhe da instalação Sismógrafo, parte do projeto História universal dos terremotos
Imagens do making of do filme DROPSPIKE
Não é difícil para um investigador da natureza simular seus fenômenos (16mm, HD, 8 min)
Imagens do making of do filme DROPSPIKE
Spectro del Sismo (fotografia a partir de microfilme, 2016)
Frame do filme DROPSPIKE (16mm, HD, 5 min, 2022)
Instalação do filme DROPSPIKE na exposição RUIDO MWDM
Assim, a partir de histórias naturais, de narrativas sobre o movimento da natureza, explica a artista, “o que acontece é que vários trabalhos acabam se conectando com fatos atuais, que estão sendo causados pela crise climática”. “Mas não é a ideia de que os filmes preveem o futuro, como às vezes parece, mas é que eles são atemporais. Justamente por tratarem dessa condensação entre futuro e passado, isso faz com que consigam se relacionar de alguma forma com o presente e o contemporâneo”. Ao simular fenômenos não datados – com a utilização de pesquisas e métodos científicos ancorados em fenômenos naturais reais –, sem propor um registro exato de um acontecimento histórico, Leticia mistura tempos, confunde o público entre o que já foi, o que pode ser e, inesperadamente, o que pode estar sendo.
“Então a ficção nos permite tirar de um contexto muito específico e ancorado no presente para levar para uma coisa um pouco mais fluida. E essas ficções se ressignificam no tempo histórico. É como se com o passar do tempo o trabalho se atualizasse”, explica ela. “Eu nuca faço um trabalho pensando no tema do momento, faço trabalhos que tentam compreender os fenômenos naturais, mas também pensar como isso está representado no imaginário.”
Em síntese, conclui ela sobre a sobreposição dos tempos passados e futuros, “é essa acumulação que coloca as coisas numa perspectiva histórica extremamente contemporânea”.
Do gelo do norte ao Polo Sul
Outra obra marcante na trajetória de Leticia é Vostok (2013), que exemplifica também a multidisciplinaridade de sua obra. A artista, que já havia viajado para um período de residência no frio do Norte, no Ártico, onde realizou o projeto Bitácora (2011-2012), criou na sequência um trabalho inspirado no outro polo do globo. Em mais uma mescla de histórias reais e ficcionais, ela teve como inspiração a descoberta de um lago pré-histórico submerso, na Antártida, para o qual cientistas russos da base VOSTOK enviaram em 2012 um submarino em miniatura para recolher amostras de água. Estas amostras seriam como “cápsulas do tempo” que foram usadas para pesquisas sobre um passado longínquo, quando a Antártida começou a congelar.
Com essa história real em mente, Leticia concebeu um vasto projeto que envolve um filme – no qual é simulada, com maquetes, a exploração do lago pelo submarino –; música – que resultou em um disco (LP) –; uma cineperformance realizada com orquestra; e um livro. Para além das questões científicas e geológicas que percorrem o trabalho, Vostok levanta questões geopolíticas sobre um território que não é posse de um país, mas que gera tensões e debates entre nações. Se hoje é propriedade de toda a terra, a região corre riscos em 2040, quando haverá uma revisão do Tratado Antártico, que trata, entre outras coisas, da propriedade do conhecimento que lá é produzido.
O interesse de Leticia nos polos – seus aspectos naturais, paisagens inóspitas, o derretimento causado pelo aquecimento global e as questões geopolíticas – surge também em seu mais novo trabalho, uma série de cinco filmes intitulada (até o momento) Dropspike, mas que pode ganhar também o título de Histórias do fim do mundo. Nela, uma esfera misteriosa aparece em vários lugares da terra onde, de algum modo, a crise climática afetou ou irá afetar a paisagem. Esta bola, filmada em laboratório com miniaturas, representa uma espécie de objeto arqueológico que carrega em si algumas mensagens, como uma espécie de aviso para os humanos.
1 de 5
Dos cinco filmes, Leticia já concluiu três: um que apresenta duas estações na Antártida entre as quais um robô e um cientista se comunicam sobre ter visto essa esfera no horizonte; outro em que o objeto aparece no Lago Léman (Suíça), próximo a uma usina de energia que foi responsável por um alagamento no local; e um terceiro sobre uma escavação na qual esta mesma esfera é encontrada e, depois, também surge no horizonte. Todas estas histórias, segundo a artista, estão conectadas pela questão da crise climática e, mais especificamente, do derretimento das calotas polares que dela resultam. Surge aí, mais uma vez, a questão geopolítica sobre a Antártida, “este último repositório de microrganismos, fungos, relíquias arqueológicas e, consequentemente, de uma série de novidades científicas”.
Uma obra múltipla
Caberia ainda citar aqui, sobre estas e outras obras da artista, várias de suas fontes de inspiração, que para além de notícias, pesquisas e revistas científicas passa pelas obras de escritores como o chileno Benjamín Labatut, o argentino Rodrigo Fresán e a norte-americana Ursula Le Guin, que mesclam romance e teoria científica. Caberia também adentrar com mais ênfase no trabalho em laboratório, no uso especifico de materiais, nas técnicas – que incluem objetos criados pela artista, escolhas de métodos de revelação e assim por diante – e nos suportes artísticos em que as obras são apresentadas.
Sobre este tema, a artista explica: “Minha relação com esse processo de investigação é muito intensa porque há apenas um indício como ponto de partida. Preciso estar imersa nos assuntos de meu interesse para encontrar um mapa que me leve à síntese formal. Nos trabalhos, a isso se soma a reinterpretação da técnica. O meio também é investigado e irá apresentar, posteriormente, as ferramentas estéticas que serão usadas para a construção da imagem”.
Esta peculiaridade, no entanto, não faz de Leticia um “peixe fora d’água” ou um ser solitário no meio das artes, muito pelo contrário. Ramos circulou e expôs em algumas das mais reconhecidas instituições e eventos nacionais e internacionais – como as bienais do Mercosul e Sesc_Videobrasil, o Novo Museu Nacional de Mônaco, o CAPC de Bordeaux, o Instituto Moreira Salles e as sedes de sua galeria, a Mendes Wood, no Brasil, Bélgica e EUA, entre outros. De fato, trata-se de uma artista – cientista, mas, fundamentalmente, de uma artista que lida poeticamente com as possibilidades e questões relevantes de nosso tempo. ✱
O curador da 1ª Bienal do Mercosul, Raphael Fonseca, evita que a questão das enchentes direcione ou limite o trabalho dos artistas convidados. Foto: Thiele Elissa
Adiada por conta da tragédia climática que se abateu sobre Porto Alegre e o Rio Grande do Sul, a 14ª Bienal do Mercosul, que tinha 12 de setembro como sua data inaugural, agora examina uma nova expectativa, possivelmente ainda para este ano, em dezembro (mas isso ainda não está confirmado). A Bienal do Mercosul tinha, inicialmente, a estimativa de reunir um público de 800 mil pessoas e mais de 100 artistas convidados, e sua realização, no momento seguinte a um acontecimento tão trágico quanto a inundação que deixou quase meio milhão de desabrigados e 175 mortos, se reveste de grande expectativa agora.
A estratégia tradicional do evento, que está estimado em R$ 18 milhões, consiste em ocupar a maioria dos espaços expositivos de Porto Alegre, mas boa parte desses espaços – galpões e museus – fica em alguns dos lugares mais atingidos pela enchente, o que vai exigir uma nova conformação da mostra.
O curador da 14ª Bienal do Mercosul, o carioca Raphael Fonseca, demonstra cuidado em não trazer a questão da enchente para a mostra como uma contingência, algo que possa direcionar ou tolher o trabalho dos artistas convidados. O tema das mudanças climáticas já era uma preocupação constante de artistas em todo o mundo, pondera Fonseca, e ele não tem a intenção de impor isso como uma obrigatoriedade. Também não há artistas comissionados produzindo exclusivamente in loco, nas circunstâncias da enchente, ao menos até o momento.
“Eu não tenho como te dizer, nesse momento, se teremos ou não um trabalho comissionado a partir da enchente, porque tudo ainda é muito recente. Não sei. Não estou dizendo nem que não vai ter nem que vai ter. Não sei, porque tem muita coisa ainda por acontecer nos bastidores de Bienal”, afirma Fonseca. “Eu, curatorialmente, realmente nunca tenho a intenção, em nenhum dos meus projetos, de literalizar nada. Então, mesmo lidando com uma tragédia dessas proporções, eu não gostaria que a Bienal do Mercosul se transformasse, digamos assim, na ‘Bienal da Enchente’, que a gente literalizasse a tragédia da enchente em obras artísticas. Até porque, por mais que a arte possa dar conta de questões que perpassam a existência humana, fazendo um trabalho que monumentaliza, um trabalho que usa imagens documentais, enfim, essas obras seguem sendo trabalhos que se referem à tragédia, mas não conseguem, nunca vão conseguir dar conta da dor, do luto, da perda que as pessoas sentiram e sentem”, pondera Fonseca, de 36 anos, que vive em Denver, nos Estados Unidos, onde é o curador responsável pela coleção de arte moderna e contemporânea latino-americana do Denver Art Museum.
Graduado e licenciado em História da Arte pela UERJ, com mestrado também em História da Arte pela Unicamp, Fonseca é doutor em Crítica e História da Arte pela UERJ e já atuou como professor de Artes Visuais no Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, além de curador do Museu de Arte Contemporânea de Niterói (MAC Niterói). Na Bienal do Mercosul, atuarão como curadores adjuntos de Fonseca o baiano Tiago Sant’Ana e a dominicana Yina Jiménez Suriel, e a gaúcha Fernanda Medeiros será a curadora-assistente. O time ainda reúne colaboradoras como a artista carioca Andréa Hygino e a educadora gaúcha Michele Ziegt.
Os temas da contemporaneidade perpassam todo o conceito da bienal, que tem como tema geral o título Estalo. Esse mote, pela abrangência, não sofrerá mudança, informa Raphael Fonseca, que não considera necessário mudar o conceito por causa dos eventos recentes.
Estalo é adequado para denotar diversos pontos de vista artísticos, pondera, uma palavra que se acomoda também nos atos de despertar subitamente para algo, conscientizar-se, tomar conhecimento. Segundo definiu Tiago Sant’Ana, curador adjunto:
“Pensamos no estalo como uma metáfora do ponto de partida”, disse. O ‘estalar de dedos’ pode se constituir numa referência a sons, movimento, mas também a reações. “Teremos vídeo, fotografia, pintura, intervenções, uma polifonia de linguagens”, disse o curador adjunto, em entrevista recente.
Obras de artistas originários, asiáticos, latino-americanos e LGBTQIAPN+ estarão certamente na bienal. “Acho que todo curador se preocupa, e não só curador de minha geração, mais jovem, mas pessoas mais velhas também. Todo mundo tem se preocupado com essa presença de artistas de diferentes lugares: raciais, etários, geográficos, e também as diferentes linguagens”, considera Fonseca. “Todo mundo tem ampliado o seu escopo de pesquisa, na última década, no Brasil, que é um país que ainda faz muita vista grossa para indígenas. Ou seja: você olha o Canadá, olha os Estados Unidos, olha a Austrália, a Nova Zelândia. Você tem ali décadas de artistas dos povos originários constando das mostras. São também curadores, diretores de museus, e essa discussão, infelizmente, ainda é muito recente aqui na América. A gente, obviamente, está atento, tem pesquisado, e a nossa bienal vai refletir essa preocupação também”.
O adiamento da mostra foi informado há um mês por meio de uma nota da direção. “Devido aos desafios enfrentados após a tragédia climática em nosso estado, a 14ª edição da Bienal do Mercosul será adiada”, informou a nota. “Esse é um momento importante de solidariedade, união e reconstrução – e a arte tem um papel decisivo nesse processo. A Bienal vai acontecer na hora certa para reanimar o setor artístico e atrair visitantes de volta à Capital. Em breve anunciaremos a nova data, buscando sempre celebrar a arte, a cultura, a união e a superação”. ✱
BETO (PE), Orixás, sem data. Esculturas em latão com policromia,
32 x 11 x 8 cm cada
Lançado em novembro do ano passado, em Recife (PE), o projeto Nordeste Expandido: estratégias de (re)existir já passou por Fortaleza e tem novas datas para a sua itinerância: entre os dias 4 e 6 de julho, a Pinacoteca Potiguar, de Natal (RN), recebe o seminário que acontece em paralelo à exposição.
A mostra é resultado de um processo cultural levado a cabo nos nove estados do Nordeste, e ainda em parte de Minas Gerais e Espírito Santo. Em exibição, obras que vêm sendo adquiridas para a Coleção BNB, em sua maioria pinturas, ainda que não houvesse uma preferência de suporte a priori. O projeto vai circular pelas demais capitais do Nordeste e ser apresentado também em Belo Horizonte (MG) e Vitória (ES). A parada final deve ser em Salvador (BA).
O seminário Nordeste Expandido tem por objetivo “articular o fazer artístico com as diversidades raciais, étnicas, de gênero e de território das artes visuais”. E também jogar luz sobre o processo de construção da exposição e, consequentemente, da coleção, que une popular e contemporâneo, sem hierarquizações.
Nicolas Soares (ES), diretor do MAES – Museu de Arte do Espírito Santo, é um dos curadores das Novas Aquisições do Banco do Nordeste no Nordeste Expandido, e esteve presente nos seminários de Recife e Fortaleza. Ele ressalta a importância de que estas obras, em boa parte de artistas nordestinos, estão sendo vistas por um público no próprio Nordeste.
“Boa parte da produção artística desse Nordeste expandido não tem tanta circulação e visibilidade no sistema da arte hegemônico, que está muito centralizado em São Paulo, principalmente”, pondera. “E a produção discursiva desses lugares também é geralmente vista de modo um tanto exótico e distanciado, etnográfico e antropológico. Algo que não faz parte de uma construção epistemológica, estética e imagética do que é, no fim das contas, o Brasil”.
1 de 8
Genoide Brandao (AL), O Beijo, 2021. Oleo sobre tela, 100x150 cm
Luiza Fonseca, Vinho, 2021. Óleo sobre tela, 50 x 40 cm
An Rassari (RN), Superfície de contato, 2019. Impressão pigmento mineral?em papel fotográfico alphacelulose, 140 x 93 cm
Os ambientes da Fundação foram convertidos em diferentes cômodos, organizados num cenários de acúmulo e desperdício, de hospedagem de imigrantes e de situações do cotiando
Os ambientes da Fundação foram convertidos em diferentes cômodos, organizados num cenários de acúmulo e desperdício, de hospedagem de imigrantes e de situações do cotiando
Alcino Fernandes (RN), Bifurcação, terceira à esquerda. sou do macarrão, sou quixabeirinha, Lembranças que guardei dos pedidos as velinhas, No muro em frente de casa picharam “Eterno”, 2021. Guache e acrílica sobre kraft
Alcino Fernandes (RN), Bifurcação, terceira à esquerda. sou do macarrão, sou quixabeirinha, Lembranças que guardei dos pedidos as velinhas, No muro em frente de casa picharam “Eterno”, 2021. Guache e acrílica sobre kraft
Alcino Fernandes (RN), Bifurcação, terceira à esquerda. sou do macarrão, sou quixabeirinha, Lembranças que guardei dos pedidos as velinhas, No muro em frente de casa picharam “Eterno”, 2021. Guache e acrílica sobre kraft
Soares salienta que o projeto tem relevância não somente “pelo tamanho da proposta”, mas por se concentrar nesta produção de imagens, conceitos, pensamentos, que, fora do Nordeste, não se acessa. “Pela minha participação nos seminários, vejo que há também correspondências entre as produções de cada lugar, que poderiam permitir mais aproximações, diálogos e parcerias, num contexto que, de certa maneira, fazem mais sentido”.
Em Natal, as chamadas rodas de conversa do seminário terão a participação dos seguintes artistas e pesquisadores:
Programação
DIA 4/7
17h
NA LUA CLARA VEM DANÇAR: Força, existência e devir. A pintura e o desenho através das experimentações do corpo. Com Heitor Dutra (PE), Consuelo Véa Coroca (RN), Alcino Fernandes (RN), Iyá Boaventura (BA), e mediação de Max Pereira (RN);
19h (Abertura da exposição)
BRINQUEDO: DE ONDE SURGEM OS SONHOS? Performance de Tieta Macau (MA).
DIA 5/7
8h-19h
PROJETO “TRABALHO ABSTRATO”. Performance de Ton Bezerra (MA);
16h
PALAVRAS GERADORAS – Arte e educação atreladas aos movimentos da cidade. Com Civone Medeiros (RN), Fabíola Alves/ Acervo Rossine Perez (RN) e mediação de Sanzia Pinheiro (RN);
17h30
VIR VER OU VIR – Pensar social e antropológico sobre a arte. Com Manoel Ricardo (PI), Maria do Mares (PB) e Claudia Nên (SE). Mediação de Soa Bauchwitz (RN).
DIA 6/7
9h
VENTO A VIDA ESPALHOU – O fazer fotográfico e os experimentos da imagem. Com Gabi Coêlho (AL), Osani (RN), Barbara Carnielli (ES). Mediação de Paula Lima/ Margem HUB (RN);
11h
CANTO E DANÇO QUE DARA – Contornos políticos e sociais das estruturas corporais. A pensar nos movimentos transitantes. Com Ton Bezerra (MA), André Bezerra (RN), Tieta Macau (MA). Mediação de Max Pereira (RN). ✱
Prédio da Fundação Prada em Veneza foi completamente transformado pela instalação do artista Christoph Büchel
Das imensas contradições existentes na cena da arte contemporânea, a exposição Monte di Pietà, na Fundação Prada, em Veneza, é uma das maiores já vistas. Afinal, como uma grande marca de elite é capaz de patrocinar uma mostra tão radical que não só descontrói um palácio barroco do século 17, transformado em um imenso brechó decadente, como ainda faz a crítica às raízes do capitalismo.
Tudo isso é organizado pelo artista suíço Christoph Büchel, especializado em polêmicas, entre elas trazer para a Bienal de Veneza de 2019 um navio que havia sido afundado com centenas de migrantes líbios na costa italiana, em 2015. Apenas 28 teriam sido resgatadas. Barca Nostra, o nome da obra exposta na edição organizada por Ralph Rugoff, foi vista por uns como um monumento ao drama da imigração, por outros como oportunismo. Em 2015, Büchel chegou a transformar uma igreja veneziana em uma mesquita, mas alegando razões de segurança, a obra foi fechada em duas semanas.
Agora, o artista suíço revê a história do palácio Ca’ Corner della Regina, que tem tal nome por ter sido construído na área que pertenceu à família da rainha de Chipre, Caterina Cornaro, no século 15. Desde 2011, o imponente edifício é ocupado pela Prada, mas entre 1834 e 1969, ele funcionou como uma casa de penhores, o Monte di Pietá, onde a população pobre de Veneza buscava recursos para quitar suas dívidas.
É sobre ganância e dívida, dois pilares do capitalismo e da própria história humana, que a instalação do polêmico artista suíço, na Fundação Prada, se debruça. Todos os três pavimentos do palácio estão atulhados de todo tipo de material de uso humano, roupas, bolsas de luxo falsas (isso na Prada é bem irônico), bijuterias, móveis, cadeiras de roda, discos, e obras de arte – a parte mais divertida de se encontrar, já que elas não estão identificadas como tal, mas praticamente escondidas em meio a toda essa arqueologia do que poderia ainda ter algum valor de troca.
Os ambientes da Fundação foram convertidos em diferentes cômodos, organizados num cenários de a...
1 de 12
Estão lá uma valise de Marcel Duchamp, um conjunto com seis latas de merda de artista de Piero Manzoni, uma lousa de Joseph Beuys, gravuras de Marcel Broodthaers, uma caixa com cartas de Andy Warhol, um conjunto de caixas de Robert Filliou, um díptico de Ed Kienholz e um vídeo de Chris Burden, entre os contemporâneos que consegui identificar com a ajuda de uma monitora com boa vontade. A orientação não é para apontar o que é obra de arte.
Só esse grupo de obras já é uma exposição em si sobre a questão do valor na arte, mas só encontra esses trabalhos quem realmente se dedica. Agora, nenhuma deles chega perto do Retrato de Caterina Cornaro (1454-1510), a rainha (regina, em italiano) que dá nome ao prédio, realizada postumamente, em 1542, por ninguém menos que Tiziano Vecellio e que pertence à Galeria Uffizi, em Florença. A pintura tampouco está identificada e parece estar lá em um espaço de forma desleixada.
Diamantes
Mesmo o nome do próprio artista não aparece em nenhum momento da mostra e essa intervenção radical, mais do que propriamente uma instalação, faz com que o visitante de fato se sinta no que seria o acervo de uma casa de penhores falida. O espaço foi dividido em seções e, para dar a sensação do que seria um livro de registros de toda essa tralha, o artista conseguiu uma biblioteca de livros imensos e empoeirados, por serem seculares, da biblioteca de uma cidade do sul da Itália, que possuíam função semelhante. Curiosamente, entre 1975 e 2010, o palácio serviu como arquivo da Bienal de Veneza.
Não faltam objetos como grilhões reais, usados de fato durante o período que a Itália teve um papel colonial na Somália, trazendo assim o debate escravocrata como parte da construção do poder econômico e cultural a partir do capital. Esse tipo de sarcasmo, expor utensílios de violência de forma quase banal, faz parte das estratégias polêmicas de Büchel, como Barca Nostra.
Mas olhar para a história de Veneza e todo seu contexto é um dos trunfos importantes desta intervenção, já que a cidade sempre foi uma encruzilhada de misturas e intercâmbios comerciais e artísticos, o que fica patente na mostra.
Nessa bagunça toda, ainda está a obra The Diamond Maker, que Büchel concebeu como uma mala contendo diamantes feitos em laboratório. Os diamantes são o resultado de um processo de destruição e transformação de muitas obras em poder do artista, incluindo as criadas durante a sua infância e juventude e que contém seu DNA.
O palácio ainda tem áreas que simulam um quarto de controle, com dezenas de vídeos, uma sala de profissionais do sexo, outra para jogos online. Tudo, ou quase tudo, que diz respeito à troca de valores e dívidas está mapeado nesta delirante, envolvente, misteriosa, divertida, estranha e suja ocupação na Fundação Prada, Monte di Pietà. Adjetivos não faltam para definir Monte di Pietá. Nenhum deles jamais dará conta de descrever de fato o que é percorrer os três andares do Ca’ Corner Della Regina. ✱
Há anos que defendemos a relação com o “mundo que nos rodeia”, que o “homem e a natureza são uma coisa só” e ressaltamos “a importância que a natureza tinha para nós”. Ainda assim, desde a revolução industrial isto foi negligenciado, fazendo com que os recursos naturais estejam absolutamente em perigo. O descuido com as crises sanitárias e ecológicas trariam uma conta difícil de pagar.
Na década de 1990, o antropólogo, sociólogo e filósofo francês Edgard Morin, hoje com 102 anos, lançou um dos seus livros mais famosos Os Sete Saberes Necessários à Educação do Futuro. Suas colocações revolucionaram sistemas de ensino, teorias pedagógicas e currículos escolares.
Em síntese, Morin postulou a necessidade de acabar com a concepção que estudava o mundo compartimentando o conhecimento em disciplinas estanques. Física, química, biologia, geografia, história, filosofia, arte. Morria aí a ideia de que se pudesse lidar da mesma forma com homens e mulheres do Tocantins, da Amazônia ou do sudeste brasileiro.
Na verdade, cada uma dessas coletividades pertence a biomas completamente diferentes, ecossistemas onde o ser humano, o clima, a flora, a fauna e os rios se relacionam em total interdependência. Além das diferenças de linguagem, que expressam saberes de cada região, estes grupos utilizam códigos e referências próprias, de histórias ancestrais.
A ideia do Pensamento Complexo começava a reverberar cada vez mais em diferentes circuitos do pensamento e ajudava a alertar para a importância de olhar nosso mundo como um todo. Mas isto estava longe de ser apenas uma reflexão filosófica.
O antropólogo francês Bruno Latour proferiu, a partir do ano 2000, uma série de conferências internacionais, compiladas no livro Diante de Gaia, Oito Conferências sobre a Natureza e o Antropoceno, dedicadas a debater e entender as enormes dificuldades que o homem tinha para tomar decisões internacionais e se organizar científica e politicamente perante as grandes mudanças que se estavam produzindo no planeta desde a Revolução Industrial.
O debate se centrou sobre a questão de estarmos ou não numa nova era geológica, o Antropoceno, um conceito em torno do qual ainda não há unanimidade entre os cientistas. Embora poucos deles duvidem do impacto da presença dos seres humanos sobre o planeta, da importância de se considerar o debate sobre o Sistema Terra, a comunidade geológica continua dividida. As mudanças climáticas e geológicas que vemos acontecer são suficientes para determinar que estaríamos numa nova era? E como nos comportar frente a isso?
Como parte dos seus esforços de trazer à tona estes debates, Latour fundou em 2009 o Médialab, laboratório interdisciplinar que une ciências, arte, política e tecnologia e chegou a ser convidado como um dos curadores da Bienal de Taipei em 2010.
Obviamente esta edição de arte!brasileiros foi perpassada pelas brutais enchentes que assolaram o sul do Brasil nos últimos meses, assim como os desmatamentos e as secas decorrentes do calor extremo vivenciado no país e em diferentes partes do planeta. O momento é de grandes incertezas e de muita fragilidade.
“Estamos mais perto [do colapso], mas não sabemos o quão mais perto”, disse, à agência Reuters, o oceanógrafo René van Westen, que faz pós-doutorado na Universidade de Utrecht, nos Países Baixos. A entrevista de van Westen é destaque de um artigo segundo o qual o enfraquecimento da Circulação de Revolvimento Meridional do Atlântico (Amoc), nome técnico do sistema, poderá provocar fortes anomalias no atual regime de chuvas e no padrão das temperaturas até o final do século.” (Revista Pesquisa Fapesp, junho de 2024)
Esta edição traz opiniões, reflexões diversas sobre como lidar com as ameaças que nos rodeiam.
Em entrevista a Maria Hirszman, o professor Luiz Marques, historiador da arte, que chegou a ser curador do Masp e hoje se dedica a pesquisar os fenômenos contemporâneos, comenta seu primeiro livro de 2015, Capitalismo e Colapso Ambiental e O Decênio Decisivo – Propostas para uma política de Sobrevivência, no qual desdobra suas investigações de forma ainda mais propositiva, sublinhando mais uma vez que “o tempo é nosso maior inimigo”.
A artista-cientista Leticia Ramos estuda os diferentes movimentos do planeta e cria obras de extrema singularidade.
Christian Dunker analisa as diferentes concepções do que entendemos por catástrofe, tragédia e desastre, no caso como categoria clínica e estética.
Raphael Fonseca, curador da Bienal do Mercosul de 2024, que foi adiada pela catástrofe que viveu a cidade de Porto Alegre sustenta que, como forma de reação a tudo isto, “esta não será a bienal da enchente”.
A Bienal de Veneza não nos comoveu, mas a retomamos em reportagem de Leonor Amarante sobre várias obras importantes, pavilhões dignos de destaque. Já o professor Fabio Cypriano faz uma dura crítica à forma com que foi encarada a curadoria. Ao longo do trimestre ainda, até seu encerramento, voltaremos a abordar o assunto.
A importância da preservação da memória vem à tona em dois momentos na edição: no texto de Carlos Lemos acerca do livro Imaginária Brasileira na Coleção Orandi Momesso e na fala do crítico e curador paraguaio Ticio Escobar, que aponta: a experiência artística indígena, a exemplo do ishir Ogwa, tem um papel fundamental na salvaguarda das cosmogonias dos povos originários, por meio das representações que fazem de seus mitos e rituais.
Por fim, tentando ser coerentes com nossa forma de impulsionar a arte e os artistas, lembramos o que escreveu a maravilhosa professora e crítica da arte Aracy Amaral, em um dos seus primeiros livros, Arte para quê?: “O artista de nosso continente passa, cada vez mais, a se indagar sobre a função social de sua produção, seu público e como colocar sua obra a serviço das alterações da estrutura de uma sociedade injusta”. Boa Leitura! ✱
Dentre as centenas de obras que vi durante a temporada que passei para ver a Bienal de Veneza e as mostras paralelas, que não são poucas e muitas de fato espetaculares, uma delas me sensibilizou de forma muito especial. Foi o trabalho da dupla de palestinos Basel Abbas e Ruanne Abou-Rahme: Until we became fire and fire us (até nos tornarmos fogo e nos despedirmos – em uma tradução bem literal). Em setembro, eles estarão em São Paulo em uma exposição individual no espaço da Coleção Moraes-Barbosa.
Conheci os dois em 2014, quando da Bienal de São Paulo organizada pelo grupo de que Charles Esche era um dos integrantes. Naquela edição, como já em um prenúncio do que se vive hoje na cena da arte contemporânea, a logomarca do Estado de Israel foi questionada por diversos artistas, entre eles Basel e Ruanne, provocando uma fenda nunca resolvida entre direção da Fundação Bienal e curadoria.
Nunca é demais lembrar que, por conta disso, Charles e equipe, que em seu contrato tinham por missão curar o pavilhão brasileiro em Veneza, foram desincumbidos da função como simples punição, o que vem ocorrendo com muitos artistas e curadores que façam qualquer crítica a Israel, atualmente.
Desenhos feitos pelo pai da artista Ruanne Abou-Rahme, morto recentemente. O conjunto foi realizado em Jerusalém, nos anos 1970 e 1980, e aborda formas passadas e atuais de desapropriação e apagamento na Palestina
Com esse contexto em mente vejo que a mostra recupera desenhos feitos pelo pai de Ruanne em Jerusalém, nos anos 1970 e 1980, que tratam de maneira um tanto expressionista as formas passadas e atuais de desapropriação e apagamento na Palestina.
O pai faleceu recentemente.
Até nos tornarmos fogo está na mostra Nebula, organizada pela Fondazione In Between Art Film, que comissionou oito trabalhos, entre eles um dos brasileiros Cinthia Marcelle e Tiago Machado. Ela ocorre em um antigo hospital para pessoas carentes em Veneza, denominado Complesso dell’Ospedaletto. Antigo na Itália, é bom lembrar, representa sempre algo com três ou quatro séculos, como é o caso aqui. Uma forte cenografia delimita os espaços de cada obra, em geral apagando o que seriam as marcas da antiga função do edifício.
Contudo, nas seis salas onde estão as projeções e os objetos de Basel e Ruanne, a dupla preferiu manter transparências, deixando explícita a antiga função de hospital, como a lembrar que, na Palestina, hospitais se tornaram prisões para os sobreviventes e são permanentemente bombardeados.
Vista da instalação da dupla de artistas palestinos Basel Abbas e Ruanne Abou-Rahme chamada Until we became fire and fire us
Apesar do conteúdo dramático e avassalador, não é uma mostra triste. Nos vídeos, há muita dança. Dentro e fora de uma série de salas, arranjos de palavras, sons, imagens e luzes acumulam-se e dissipam-se progressivamente. A frase “Aqueles que cantam não morrem” aparece em um momento, como a lembrar da resistência possível pela arte.
Contundente, no entanto, é um pequeno texto, que acho importante reproduzir, pois ele sintetiza o significado da catástrofe da guerra:
Gaza, repetidamente, o genocídio destrói cada parte de nós. Hospital após hospital, é bombardeado, sitiado. Pais, mães, irmãs, irmãos, filhas, filhos, entes queridos são enterrados nos terrenos dos hospitais. O hospital se torna um cemitério. O hospital está sitiado, entes queridos morrendo por falta de oxigênio, falta de remédios, falta de comida e água. Dina Abu Mehsen é a única sobrevivente de sua família morta no hospital Nasser, onde estava sendo tratada quando uma bomba foi lançada na ala das crianças. O hospital está sob fogo de atiradores, as pessoas que estavam abrigadas no hospital têm que rastejar para fora, um homem rasteja o dia inteiro, um menino testemunha seu pai e irmão serem mortos por atiradores, consegue escapar, deixando seu coração com seu irmão e o pai foi martirizado fora do hospital Al-Shifa. O hospital se torna uma prisão. Pacientes demasiado doentes, deficientes ou idosos para sair ficam presos lá dentro, e alguns médicos que não foram detidos ou mortos permanecem com eles. Eles não têm água nem comida, o hospital está sitiado, eles estão presos em um quarto. O hospital é palco de um massacre, centenas de pessoas foram mortas, mutiladas e esmagadas sob tanques. Estas palavras são um fracasso total, não há palavras para compreender este horror insuportável e inimaginável. ✱
Anita Malfatti, Mulher de Cabelos Verdes, 1915-16 e Eliseu Visconti, Autorretrato, 1902. Fotos: Patricia Rousseaux
“Esta é a primeira vez que o trabalho de Mataaho Collective é apresentado na Biennale Arte”. A afirmação consta da legenda sobre a obra do grupo neozelandês, logo na entrada do Arsenale na 60ª Bienal de Arte de Veneza, com curadoria do brasileiro Adriano Pedrosa.
Essa informação, “a primeira vez em Veneza”, se repete na legenda da imensa maioria dos trabalhos dos 300 artistas selecionados por Pedrosa. É o tipo de comentário que deveria ser feito por terceiros, não pelo autor. Por isso mesmo, o que pode querer ser uma elegia à inclusão soa mais um autoelogio à própria curadoria.
Essa é a perversão cínica dos tempos neoliberais, onde o que deveria ser uma ação a favor dos artistas se torna, em verdade, puro marketing. Não é a primeira vez que a Bienal de Veneza é organizada por curadores de instituições e coleções, mas nunca ficou tão explícito o quanto um curador se vale do museu onde trabalha, no caso o Museu de Arte de São Paulo (Masp), para alavancar seu próprio desempenho.
1 de 3
Cavaletes de vidro, Lina Bo Bardi, Arsenale, Bienal de Veneza 2024
No núcleo histórico, Ione Saldanha, Bambus, 1960/70
Artistas e curadora do Pavilhão de Israel se negaram a abrir o Pavilhão enquanto não houvesse cessar fogo à Faixa de Gaza
Os cavaletes de vidro do Masp fazem parte da mostra, há coleções inteiras do museu, como os desenhos de Joseca Mokahesi Yanomami, e até mesmo uma obra em vídeo, do italiano afrodescendente Fred Kuwornu, que exemplifica pelos catálogos do Masp novas narrativas decoloniais, um elogio que acaba até suspeito, já que quem organiza a mostra é que está sendo glorificado.
Esses gestos egocêntricos poderiam ser minimizados se, do ponto de vista conceitual, a mostra de fato apontasse para o estado da arte atual, que é o que se espera de qualquer bienal de arte contemporânea. Contudo, com a pretensão de rever a história da arte pelo Núcleo Histórico, onde estão 189 dos 300 artistas, fica evidente que esta edição de Veneza acabou basicamente revendo um paradigma da tradicional exposição: fazer do mercado secundário seu principal parceiro.
Historicamente, a Bienal de Veneza tem grande dependência de galerias de arte, já que são elas que viabilizam boa parte da exposição que não conta com um orçamento significativo. Isso sempre foi o oposto do que sempre ocorreu na Documenta de Kassel, razão pela qual suas obras sempre foram caracterizadas por uma marca experimental. E é esse impulso que, sabemos, é o que dá oxigênio à arte contemporânea.
No entanto, o que caracteriza esta edição de Veneza é dar um passo atrás, ao expor uma imensa quantidade de trabalhos realizados no século passado, em boa parte em países do chamado Sul Global. Essas obras são, então, encaixadas na narrativa modernista, como se a inserção nesta história fosse de fato um conquista significativa.
O Núcleo Histórico, por exemplo, está dividido em três seções: Retratos (112 artistas), Abstrações (37) e Italianos em toda parte (40). Os selecionados em todas essas seções não estariam criando alternativas à chamada história oficial, mas suas inserções em gêneros e movimentos definidos pelos padrões ocidentais, acabam se tornando apenas uma lista de pinturas com vontade de participar do clube oficial. É caso dos brasileiros Tarsila do Amaral, Ismael Nery, Candido Portinari e Di Cavalcanti, para citar apenas quatro. As obras escolhidas, respectivamente Estudo (1923), Figura Decomposta (1927), Cabeça de Mulato (1934) e Três Mulatas (1922) trazem pouca fricção à narrativa corrente.
Não se pode esquecer, é importante lembrar, que Pedrosa participou da histórica 24ª Bienal de São Paulo de 1998, que teve à frente Paulo Herkenhoff também com um Núcleo Histórico. A mostra teve sua importância justamente por fazer com que a história da arte fosse revista por meio de um conceito brasileiro, a Antropofagia de Oswald de Andrade. Agora, o Núcleo Histórico de Veneza apenas reduz poéticas de lugares tão distantes em benefício do cânone oficial.
Além do mais, ao expor estes trabalhos, especialmente aqueles no grande salão do Pavilhão Central, como um grande mosaico de trabalhos, parece mais uma instalação do que uma estratégia adequada para se observar cada trabalho com cuidado. Não seria esse gesto, novamente, apenas mais uma valorização do curador.
Quem ganha de fato é o mercado secundário, que agora vai atrás de fazer valer o carimbo de Veneza em suas obras nas feiras.
A título de exemplificação, esse carimbo é tão significativo que esculturas como a da paraguaia Julia Isidrez, essa no Núcleo Contemporâneo da Bienal, comercializadas em 2017 no Brasil por cerca de R$ 5 mil, estavam à venda em Art Basel 2024 por R$ 196 mil! Isidrez, não custa lembrar, já havia participado da Documenta de Kassel em 2012, que teve curadoria de Carolyn Christov-Bakargiev.
Estrangeiros em todo lugar
Além de tomar emprestada a ideia de Núcleo Histórico usada na Bienal de São Paulo, Pedrosa copiou o título de Veneza de outra mostra, o 31º Panorama da Arte Brasileira de 2009, organizado por ele mesmo. Mamõyguara opá mamõ pupé, a tradução para o tupi antigo da expressão foreigners everywhere, já havia sido apropriada da obra de mesmo nome do coletivo Claire Fontaine.
No Panorama, Pedrosa questionou o próprio sentido da tradicional exposição do Museu de Arte Moderna de São Paulo, até então voltada apenas a artistas brasileiros, para incluir oito estrangeiros que produziram obras no país. O debate sobre o que é ser brasileiro acabou sendo polêmico, mas foi uma fricção necessária e importante para rever o sentido do próprio Panorama.
Agora em Veneza, Estrangeiros em todo lugar, especialmente em seu Núcleo Contemporâneo com 110 artistas, evita o debate político, em um momento candente de imigração no mundo, particularmente polarizado, como é o caso da própria Itália, sob o governo da extrema-direitista Giorgia Meloni.
O curador dividiu o núcleo em quatro temas, criando quatro categorias para o artista: queer, “outsider”, autodidata e indígena. Existe de fato uma prática nas mostras organizadas por Pedrosa no Masp em simplificar o mundo em categorias: Histórias Feministas, Histórias da Loucura, Histórias Afro-Atlânticas. Essa operação sempre acaba reduzindo a leitura dos trabalhos a uma única ótica e essa estratégia se repete em Veneza.
O que compromete de fato esse tipo de curadoria é seu oportunismo, afinal é absolutamente relevante tratar de questões queer, indígenas ou de figuras à margem do sistema, e o sistema da arte vem sendo fortemente pressionado a estar atento a todas elas. Mas o que Veneza faz agora é cumprir um exercício formalista de inclusão, ao não contextualizar toda a problemática de cada um dos temas escolhidos, ao ficar na superfície do debate.
1 de 6
É um archivo multifrase, em movimento e em evolução composto por vídeos focados na relação entre práticas artísticas e ações políticas. O Arquivo foi apresentado mais de 15 vezes em diferentes países, comunidades e escolas. Na Bienal de Veneza o Arquivo da Desobediência, incorpora um Zoetrope – a máquina pré-filme que anima a imagem. A arquitetura dá origem a um espaço centrífugo que foi alimentado nesta ocasião por mais duas novas macro seções incluindo 40 filmes da Diaspora Ativism, que lida com processos de migração transnacional no contexto do neo-liberalismo hegemônico, como uma luta que impulsiona novas formas de habitar o mundo. Alguns deles são apresentados como uma ruptura do binarismo heterossexual.
O caso de Claudia Andujar, uma das artistas que “nunca participou de Veneza” é um caso exemplar. Suas fotos são exibidas junto aos desenhos de André Taniki Yanomami e Joseca Mokahesi Yanomami, em uma seleção de imagens internas das habitações, relegando o genocídio em prática há décadas na terra yanomami a um linha na legenda.
Um dos poucos momentos em que a política ganha espaço efetivo está no Arquivo da Desobediência (The Disobedience Archive), um projeto de Marco Scotini, desenvolvido desde 2005, com trabalhos em vídeo de 39 artistas, realizados entre 1975 e 2023. São obras potentes, mas que por estarem reunidos em um pequeno espaço, com muito interferência externa e alguns de longa duração, tem sua visibilidade absolutamente comprometida.
Nesse sentido, Estrangeiros em todo lugar se torna uma mais metáfora rasa da própria cidade de Veneza, afinal o que mais se vê são turistas em todo lugar, e do próprio significado de estrangeiro, nos termos do que afirma o curador no catálogo: “Não importa onde você se encontre, você é sempre verdadeiramente, e no fundo, um estrangeiro.”
Ora, essa é uma visão bastante individualista – olha aí o neoliberalismo – e oposta ao que apontava a Documenta, em 2022, ao se voltar para os coletivos como uma forma atual e necessária para se realizar uma nova sociedade.
Por isso, trata-se de uma edição um tanto melancólica, já que assim como busca reescrever a história da arte pelo acréscimo e não pela fricção, também trata de questões atuais por saídas que afirmam o gesto artístico como uma atitude isolada, já que mesmo artistas radicais como Claudia Andujar tiveram seu engajamento político obliterado.
Outra exceção na curadoria é o Museu da Antiga Colônia, do porto-riquenho Pablo Delano, uma complexa instalação que revê todo o passado de violência da ilha caribenha, a partir de imagens reais e da reencenação de situações que abordam o racismo e a exploração imperialista no limite entre o ficcional e o documental. Mais trabalhos desse porte teriam proporcionado uma consistência bem mais ampla à Veneza. ✱
Há quase duas décadas, Luiz Marques trocou aquele que foi seu principal campo de pesquisa – a história da arte e, mais especificamente, a arte italiana da Renascença – para abraçar um tema urgente e complexo: a crise ambiental avassaladora, que se configura como o grande desafio existencial do nosso tempo. Seu primeiro livro sobre o tema, Capitalismo e Colapso Ambiental (2015), faz um alentado balanço da situação, compila e destrincha uma quantidade avassaladora de dados e demonstra com clareza a conexão inexorável entre um modo de vida insustentável e seus efeitos absolutamente deletérios sobre a natureza. A obra, que já está em terceira edição e foi mais recentemente traduzida para o inglês, ataca o que Marques define como três ilusões concêntricas: o mito do capitalismo sustentável, a crença de que quanto mais excedente temos, mais segura é nossa existência e, por fim, a ilusão antropocêntrica, uma falsa presunção de superioridade da espécie humana.
Em entrevista à revista, o ex-curador do Masp e professor aposentado da Unicamp fala sobre as crises convergentes e aceleradas que colocam a humanidade diante da necessidade de uma profunda transformação, não sucumbindo a uma paralisia que se assemelha ao pânico.”
Há poucos meses, Marques lançou O Decênio Decisivo – Propostas para uma Política de Sobrevivência, no qual desdobra suas investigações de forma ainda mais propositiva, sublinhando mais uma vez que “o tempo é nosso maior inimigo”. E prepara-se para escrever uma terceira obra, em que pretende abordar as instabilidades mais recentes, o que vê como uma nova fase não prevista pelos modelos climáticos, precipitada pelas guerras.
Em entrevista à revista, o ex-curador do Masp e professor aposentado da Unicamp fala sobre as crises convergentes e aceleradas que colocam a humanidade diante da necessidade de uma profunda transformação, não sucumbindo a uma paralisia que se assemelha ao pânico, e sobre as possibilidades e limites de ação da cultura nessa questão. Afinal, como diz Antonio Guterres, secretário-geral das Nações Unidas e citado na orelha de O Decênio Decisivo: estamos andando sobre gelo fino.
arte!✱ – Uma primeira curiosidade: o que o levou a fazer essa guinada no seu assunto de interesse, passando da história da arte para a nossa tragédia ambiental?
Já perguntaram muitas vezes isso, acho que é um processo mais ou menos lento. No começo não sabia responder, inventei uma narrativa da qual desisti, porque acho que ela não é muito real. Sei lá, as pessoas mudam. Responderia que não sei porque as outras pessoas não mudaram ainda. É uma situação de tal maneira avassaladora… Você é de tal maneira bombardeado com isso que, ou enterra a cabeça na areia, ou toma alguma atitude.
arte!✱ – Em seu primeiro livro você enfrenta logo dois grandes monstros: a crise ambiental e o capitalismo.
Porque não há dúvida nenhuma de que um sistema como o capitalismo, muito globalizado e expansivo, muito belicoso, é muito destrutivo. Ele se choca contra os limites do planeta. Seja do ponto de vista de recursos, seja do ponto de vista do equilíbrio do planeta. Os sistemas da biosfera têm equilíbrios que são dados. No holoceno você tinha um sistema climático bastante estável, relativamente previsível, com quatro estações ao ano, desde o final do último degelo. Esse sistema permitiu a agricultura, o sediamento de populações cada vez maiores em seus territórios. Ele foi sempre considerado como uma espécie de moldura, um dado das civilizações. Podiam ocorrer alguns eventos climáticos extremos, que às vezes destruíram uma civilização ou outra, mas não era um fenômeno global. Pelo contrário, o sistema climático era benigno para as culturas.
E aí você tem um sistema industrial como esse, que é excepcionalmente expansivo. Peguemos o carvão, por exemplo. Entre meados do século 18 até 1913 – às vésperas da Primeira Guerra Mundial –, a Inglaterra tinha aumentado sua produção 192 vezes. Isso nunca tinha acontecido na história da humanidade. Nunca nenhum sistema foi capaz de crescer a uma taxa exponencial dessas. Estamos já no cheque especial, roubando recursos do futuro. Agora há também a chamada transição para a eletrificação do transporte, levando a uma exploração brutal de todos os insumos para criar baterias.
arte!✱ – É uma falácia a ideia de crescimento sustentável?
Claro. Você tem uma enorme exploração do cobalto, de lítio, em alguns países muito pobres. No caso do cobalto, o acaso quis que grande parte do cobalto mais concentrado esteja na República Democrática do Congo, que está sendo brutalmente espoliada por causa disso. Você tem ainda as últimas fronteiras de recursos no mar e está claramente diminuindo a disponibilidade de recursos.
arte!✱ – Você diz que, quando as pessoas questionam a possibilidade de acabar com o capitalismo, responde: “O que seria mais irrealista: acabar com o capitalismo ou permanecer nele?”.
Exato. É fato que, de uma forma geral, a mentalidade que prevalece é a de que o capitalismo é um sistema dado e sem alternativa possível. Isso se explica em parte pelo fato de que a experiência socialista no século 20 foi muito malsucedida, gerou distorções enormes, crises, massacres. Com o fim da União Soviética e a conversão muito forte da China para o capitalismo, você perde referências históricas importantes ligadas à questão do socialismo. E isso só reforçou uma percepção muito triunfalista do capitalismo. Essa ideia da inevitabilidade do capitalismo tem ainda muito prestígio. Qualquer possibilidade de contestar esse sistema não é considerado exatamente realista, mas infantil, pueril.
arte!✱ – Como um destino manifesto. Você procura desconstruir essa ideia e menciona a existência de três ilusões concêntricas a serem superadas para que pensemos novos cenários.
Basicamente, o que percebemos é que todas as tentativas de corrigir esse rumo, os tratados internacionais da diplomacia, as pressões contra a destruição da biodiversidade, a luta contra a desertificação, tudo isso fracassou. Muito pelo contrário, estamos hoje mais distantes dessas metas do que quando esses tratados foram confirmados. É um fracasso. O que mais caracteriza os nossos dias é a aceleração. Eu diria mesmo que em alguns casos a precipitação, o caos mesmo. O Rio Grande do Sul é um dos exemplos. Se olharmos um pouco mais à volta, para além do Brasil, veremos que acontece exatamente as mesmas coisas em vários lugares do mundo. Os picos de calor hoje são cada vez mais letais. O serviço metrológico norte-americano considera temperaturas acima de 39,4 °C como especialmente ameaçadoras para o organismo humano, uma vez a pessoa exposta a elas por muito tempo. O Washington Post fez agora um artigo bacana sobre isso, mostrando uma série de países e o número de dias em que essas populações ficaram expostas a temperaturas iguais ou superiores a 39°C. E é muito difícil você definir que alguém morreu por hipertermia. Evidentemente a pessoa morre por outras razões, por outras causas que são determinadas em última instância por essa exposição a ondas de calor muito grande, mas a causa mortis não fica bem identificada. Em todo o caso, em 2022 os serviços meteorológicos na Europa – que conta com dados com maior acuidade e transparência – mostrou que 61 mil pessoas morreram no verão de 2022 em decorrência direta de pico de calor.
…não há dúvida nenhuma de que um sistema como o capitalismo, muito globalizado e expansivo, muito belicoso, é muito destrutivo. Ele se choca contra os limites do planeta. Seja do ponto de vista de recursos, seja do ponto de vista do equilíbrio do planeta. Os sistemas da biosfera têm equilíbrios que são dados.
arte!✱ – É uma guerra…
É uma guerra. E é claro que os países com menos recursos vão sofrer mais e antes. Mas acho que é uma grande ilusão achar que os países ricos estão ao abrigo dessas questões, sobretudo se você pegar todos os países do norte do Mediterrâneo, Estados Unidos, Sudoeste americano…
arte!✱ – O que poderia mudar essa consciência? Você falou dessa questão do calor, e me veio à mente algumas imagens recentes dos macaquinhos caindo das árvores do México. Uma imagem terrível. Você acha que o recurso ao apelo visual, pode ajudar as pessoas a adquirirem maior consciência do problema?
Está acontecendo muito isso no Kuwait já há algum tempo, onde muitas espécies – sobretudo as espécies domésticas, gatos, cachorros etc. – não conseguem proteção no verão e morrem de calor. Quanto à questão da imagem, acho que sim. Veja, nunca estudei arte contemporânea, estudava a história da arte num período mais recuado. Portanto meu conhecimento de arte contemporânea é o de um consumidor qualquer, não estou muito enfronhado neste assunto. Minha percepção é que a arte contemporânea só muito recentemente começou a ser atraída por essa questão de uma maneira um pouco mais metódica, um pouco mais generalizada. Claro que você pode dizer que existe o exemplo X, Y, Z. Mas quando você vai numa Bienal, por exemplo, essa questão começa aflorar agora nas últimas edições. Mas mesmo assim são manifestações de muito pouco alcance.
Filmes como esse Não Olhe para Cima ou Wall-E talvez tenham um impacto muito maior do que todos as elaborações estéticas da arte contemporânea. Esse tipo de elaboração tem uma capacidade de impactar, de uma maneira que não é necessariamente deprimente, tem um poder muito grande ação de mostrar a situação.
arte!✱ – Outro exemplo que me ocorre não sei se você viu, mas eu acho que é fascinante, é Caverna dos Sonhos Esquecidos, sobre as cavernas de Chauvet, na França, ao lado de uma usina nuclear, com aquela floresta tropical no meio da França. Aquilo é um retrato perfeito disso que estamos tratando, não?
É um filme super bonito, bem-feito. Eu gostei bastante desse filme também. Mas estamos descobrindo aqui e ali algum filme, não um gênero. O que nós temos hoje, que é de grande audiência, é um gênero pós-apocalíptico. Você tem filmes de distopia do futuro, em que a Terra está completamente detonada. O Preço do Amanhã, por exemplo, é um filme em que as pessoas vendem o seu tempo de vida. É um mundo destruído, essa estética do Cyberpunk. Basicamente uma sociedade de alta técnica e de baixo nível de vida, como Blade Runner, por exemplo. Um filme de 1982 que inaugura efetivamente uma fase importante, uma nova fase em que o futuro é imaginado de uma maneira muito negativa. Por outro lado, a série que talvez tenha feito o maior sucesso na televisão de todos os tempos, é Star Trek (1966), cuja tripulação era composta de várias nacionalidades, tinha um russo, um japonês, um escocês, uma negra, e assim por diante, todos eles liderados pelo Capitão Kirk, que era um americano branquinho e loiro. Tinha até um cara que era semi-humano, o Capitão Spock. Era esse o mundo do pós-guerra, um mundo em que a guerra tinha sido superada, havia um Congresso mundial que havia designado a missão do foguete para ir levar a humanidade para novos limites. Isso fez um sucesso extraordinário e é um dos últimos exemplos de um futuro imaginado positivamente. A partir de Blade Runner temos, ao contrário, uma reversão desse imaginário, que começa a ser pensado sempre cada vez mais de uma maneira mais negativa. E isso virou um novo gênero, muito associado à crise ambiental.
Inundação no Museu de Arte do Rio Grande do Sul Ado Malagoli, Porto Alegre, Brazil
arte!✱ – E que corresponde à percepção geral, não? Se levantarmos os termos usados temos emergência, colapso, hecatombe, falência… A ficção científica está virando realismo?
Então, acho que como ela é muito fortemente produzida por Hollywood, pelo cinema americano – que permanece o cinema mais popular –, ela jamais coloca em questão aquilo sobre o qual nós estamos falando: esse binômio capitalismo x colapso. Não é necessariamente que eles saibam e ignorem. É que eles não pensam assim. A indústria cultural americana tem um limite que é muito claro: a ideia que você tem uma situação de injustiça, que pode ser corrigida no horizonte da democracia americana. E isso faz parte do mundo deles.
arte!✱ – Pode ser oportunista ou pode ser só essa paralisia semelhante ao pânico, que você menciona?
Isso se dá muitas vezes no âmbito do indivíduo ou de um grupo muito restrito de pessoas, que reage a uma situação maior. O que está em jogo é sempre uma tensão entre o indivíduo ou um pequeno grupo de indivíduos e um sistema de forma geral. Sempre aparece um cientista, que alerta para um problema, e governantes não levam em consideração o que ele diz. Mas ele tinha razão. E daí acontece então a catástrofe. Quando ela acontece você tem a mobilização da sociedade americana, que de alguma maneira leva à resolução do problema. Esse sistema é o que temos hoje na indústria cultural e ele é muito aquém de qualquer pretensão à uma análise mais estrutural da situação contemporânea. Essa produção pode ser muito melhorada, mas eu acho que ela tem limites também. E, de outro lado, uma produção mais analítica, mais reflexiva, não tem – ou raramente tem – um alcance, uma audiência de massa.
arte!✱ – Com um papel limitado, portanto?
Eu acho que isso faz parte de uma questão que me é muito cara, que marca muito uma divergência minha com muitos amigos e colegas, que têm um grande apreço pela arte contemporânea. Que é a ideia de que a arte, como fenômeno social, se transformou em algo muito menos relevante do que ela era no século 19 e para trás. Quando você pega uma figura como Nietzsche, por exemplo, que briga de morte com Wagner quando ele faz Parsifal, porque era um tema religioso, um tema cristão, aquilo era muito importante. Era ideologicamente, existencialmente muito importante. Imagine se agora alguém vai fazer uma briga, se um grande filósofo vai brigar com um grande artista por causa do tema que ele escolheu para fazer uma ópera. Você percebe que essa grande abertura, a permissividade, o culto à transgressão do limite, que é típico das artes de vanguarda, da tradição das vanguardas – o termo é um pouco paradoxal, mas é uma tradição – levou a que, de alguma maneira, a transgressão se banalizasse. Você tem, portanto, uma homogeneização de transgressões, e aquilo que é o modelo propriamente dito de uma exposição de arte contemporânea é um monte de estandes em que cada um transgride da sua maneira. Aquilo não é mais transgressivo, porque se você só transgride quando há uma norma. Não estou criticando, nem lamentando…
arte!✱ – Você está analisando essa contradição e os limites de alcance da produção contemporânea?
Peguemos a Divina Comédia, de Dante. É um poema nacional, popular, que as pessoas da geração dos meus pais sabiam de cor. Aquilo é uma arte erudita, é uma arte popular? É os dois ao mesmo tempo. Uma fachada de uma igreja gótica, é uma arte erudita, é uma arte popular? É algo com uma enorme capacidade de criar um senso de identificação, um senso de comunidade naquelas pessoas. Quando as pessoas entravam em guerra, elas iam e queimavam a igreja do outro. Queimar a igreja do outro é fundamental, para afirmar sua própria igreja… Esse tipo de relação entre o imaginário e a energia social é alguma coisa que hoje em dia não temos mais. Temos um entretenimento, que é muito legal, que é muito interessante, mas que não tem mais essa função, essa capacidade de dizer o que a sociedade pensa de si mesma, com a força que aquilo tinha, com a capacidade de levar à guerra. Acho que a arte perdeu essa centralidade. Paciência, aconteceu. Posso estar enganado, posso não estar vendo uma dimensão que talvez recupere isso.
É um fracasso. O que mais caracteriza os nossos dias é a aceleração. Eu diria mesmo que em alguns casos a precipitação, o caos mesmo. O Rio Grande do Sul é um dos exemplos. Se olharmos um pouco mais à volta, para além do Brasil, veremos que acontece exatamente as mesmas coisas em vários lugares do mundo. Os picos de calor hoje são cada vez mais letais. O serviço metrológico norte-americano considera temperaturas acima de 39,4 °C como especialmente ameaçadoras para o organismo humano, uma vez a pessoa exposta a elas por muito tempo. ”
arte!✱ – Talvez ela tenha sido deslocada, pelos conservadores, para o campo a ser combatido? Algo a ser aceito ou descartado de forma unívoca?
In totum! Você está falando aí no caso mais extremo do fascismo, da extrema-direita. Algo como o que Goebbels falava: “Quando eu ouço a palavra cultura, saco meu revólver”. É um pouco essa ideia. No caso da Alemanha dos anos 1930 era um pouco a reação àquilo que eles chamavam de “excesso de cultura”, porque a Alemanha naquele momento era um país fantasticamente embebido em arte, música, literatura, happenings… E o nazismo vai aparecer, portanto, como um destrutor. Mas eles vão fazer também a exposição de Arte Degenerada para mostrar que aquela arte era ruim, mas tinha uma arte boa, da tradição alemã. Ainda assim havia uma reivindicação importante de que a arte como um elemento importante. Na Exposição Universal de 1937, o estande da Alemanha nazista tinha esse lado épico, figuras muito musculosas, heroicas – aliás parecido com o realismo socialista. Acho que essa importância que a arte tinha nos anos 1930 ela já não tem mais. Se você pegar uma feira internacional qualquer, essa questão não está fortemente presente. Os caras vão mostrar o último computador que eles fizeram, a inteligência artificial, performances tecnológicas, basicamente. O imaginário artístico perdeu a sua linguagem. Mas acho que aquilo que você falou, a questão visual é muito importante.
arte!✱ – Sim, pensemos a imagem num sentido mais amplo…
Antigamente era quase a mesma coisa. Agora não é mais. Hoje artes visuais – nome atual do curso de artes plásticas – é um conceito mais amplo, É resultado do fim da academia, uma instituição que definia “até aqui é arte, além daqui não é mais”. Agora não tem mais isso, certo?
arte!✱ – Uma das ilusões que você diz ser fundamental questionar é a ideia do antropocentrismo, que está muito vinculada a essa discussão sobre arte. Faz parte do mesmo processo?
Isso faz parte de um processo que fez com que a antropologia começasse a ser uma disciplina na universidade que englobasse as demais. E a antropologia, que coloca muito fortemente a questão da relatividade entre as culturas, de que não existe uma cultura que a superior às outras, abre a porta para dizer que não existe uma espécie que é superior às outras. E a gente hoje percebe muito claramente. A ciência nos diz hoje que a diferença entre os humanos e as outras espécies, do ponto de vista da capacidade de simbolização, é uma diferença de grau, não é uma diferença de qualidade. Tudo bem, a gente é capaz de fazer uma equação complicada ou de compor uma sinfonia, e a minha gatinha não consegue. Mas a capacidade que as espécies têm de encontrar uma expressão no imaginário está se mostrando cada vez maior. Aliás, saiu no jornal outro dia que os elefantes são capazes de se chamar pelo nome. Eles têm autoconsciência. Temos a famosa declaração de Cambridge que mostrou recentemente a autoconsciência de um conjunto muito grande de espécies, portanto a concepção de ser um indivíduo, de se reconhecer no espelho e assim por diante. A questão do antropocentrismo está sendo cada vez mais identificada com a crise da própria civilização.
arte!✱ – O antropocentrismo também está conectado com essa ideia de arte de que falávamos.
A gente sempre teve uma espécie de sucessão, uma galeria de características que nos distinguiam das demais espécies. A característica mais importante, eu falo isso no livro, é que nós sabemos que vamos morrer. Eu acho que a minha gata não sabe que ela vai morrer. Isso te dá um traço muito distintivo. Outro é a linguagem, óbvio. Essas duas coisas estão muito próximas. E a gente produz lixo. As outras espécies não produzem lixo e sim nutrientes para outras espécies. E a gente produz plástico, produz substâncias químicas que são muito estáveis e, portanto, não são suscetíveis de serem integradas no ciclo de degradação e renascimento. Isso é um traço muito característico nosso. As outras características são compartidas: a gente faz guerra, os outros animais também fazem; a gente tem uma capacidade de simbolização incrível, eles também têm, algumas vezes fantasticamente. Às vezes você vê um peixinho que faz todo um desenho na areia para atrair a fêmea e ela olha para aquilo, não acha bacana e vai procurar outro macho. Ninhos de alguns passarinhos têm uma característica claramente estética… O que estamos percebendo hoje é que tivemos uma enorme ilusão, de que nós éramos uma espécie qualitativamente distinta das outras espécies. E, portanto, o planeta virou um recurso nosso. Temos o direito de dispor do planeta como um meio para o seu fim. Nós somos a finalidade, e isso é claro que é uma ilusão.
arte!✱ – Daí a importância da importância de discursos de quem não está contaminado por essa lógica, como os povos originários?
Acho que um dos grandes elementos que mostram um avanço grande – não tivemos apenas regressão – é a presença do discurso indígena na política brasileira. Dez, 15 anos atrás era motivo discussão entre três antropólogos. Hoje eles têm uma presença, não diria no centro da política brasileira, mas não dá mais para eles serem ignorados. Têm uma voz firme e crescente, a meu ver. Não só os indígenas, mas também os negros, também as mulheres, os LGBT… Você tem um monte de comunidades que são cada vez mais presentes. Minha única reserva é que isso não deveria nos fazer perder de vista uma certa universalidade da espécie. É bacana que você tenha um grito de identidade e que ela se faça ouvir, que a diferença seja considerada uma coisa positiva, mas a diferença não significa necessariamente que você desreconheça o outro como parte de alguma coisa.
arte!✱ – Uma coisa que me intriga bastante é a questão dos “Verdes”. Não há uma certa hipocrisia em apoiar a guerra, o que aparentemente contribuiu para derrota deles nas eleições para o Parlamento Europeu? Será possível assistirmos nesse próximo decênio – que você diz ser decisivo – uma onda nova de renovação?
A gente não sabe. Tem que lutar por isso, tem que apostar no princípio de que isso pode acontecer. Tem alguns sintomas interessantes, como a presença dos indígenas sobre a qual estávamos falando agora, dos quilombolas, em suma, desses segmentos da sociedade que eram considerados marginais e que hoje reivindicam, com razão, uma centralidade e de alguma maneira conseguem se impor. E isso é uma lufada de oxigênio para a gente. Mas vamos conseguir dar um salto? É muito difícil que a gente consiga, embora seja importante apostar nisso. Porque até o século 20 era uma questão de encontrar um modo de vida alternativa ao capitalismo. Claro que isso permanece completamente verdadeiro. Mas há uma questão mais abrangente. O ponto é que somos uma civilização que deve tudo aos combustíveis fósseis. Para sairmos disso é preciso uma mutação civilizacional que é ainda muito maior do que contestar o capitalismo.
arte!✱ – Não é só uma batalha contra o “greenwashing” de grandes conglomerados. É muito mais profundo que isso?
Muito mais profundo. Contestar o capitalismo é uma das estações desse trajeto. Mas não é o ponto final. Porque você pode ter uma sociedade muito mais igual, com maior governança global etc., mas que ainda acredita que pode viver com os níveis atuais de consumo energético. E a gente não pode. E uma sociedade em que aqueles que não têm esse consumo têm que perder a expectativa de ter o consumo dos ricos. Quando a gente fala que a China acabou com 800 milhões de pessoas na extrema pobreza, como não bater palmas para isso? Mas qual é a expectativa do padrão de consumo? É ser todo mundo igualzinho à classe média americana? Não tem planeta para isso! Mas qual é o nível de consumo, o teto que a humanidade pode ter? Falamos muito em renda mínima. É fundamental, tem que ser muito maior do que essa que nós temos aqui. Mas é mais difícil falar na renda máxima. É preciso ter um teto muito mais baixo do que temos atualmente. Você tem que ter um imposto, que hoje o neoliberalismo chama de expropriatório, e que nos anos 1960, 1970 era um imposto normal nos países escandinavos. O Estado ficava com 80% do teu rendimento. Não estou dizendo qual é o número, mas é basicamente essa ideia de que você tem que ter uma sociedade na qual ninguém pode ganhar tanto, porque se esse cara ganha tanto ele tem um poder que é completamente assimétrico em relação a qualquer pretensão de democracia. Considerando uma situação como o Brasil em que você tem cinco ou seis pessoas que ganham mais do que os 50% mais pobres da sociedade brasileira, isso é de uma demência. E nos Estados Unidos é pior. Esse valor tem que desaparecer. Uma civilização na qual você tem mais do que aquilo que você precisa, isso é uma vergonha. Não é um mérito.
arte!✱ – O colapso não é só ambiental. Ele vem casado com o colapso social…
Um colapso da pirâmide de valores, um colapso ideológico. Uma questão que a gente vai ter que pensar, no meu entender, é que, com ou sem religião (não importa a religião, para mim isso é uma questão de convicção pessoal), vamos ter que ressacralizar a natureza. Você que ter um imperativo categórico, você tem que falar “não pode destruir uma floresta”, “não pode destruir um rio”, “não pode pescar demais”… A gente tem que ter um limite, restaurar o conceito de limite. Esse conceito é, a meu ver, a chave da mutação civilizacional. É preciso que o limite vire um valor positivo e não um valor negativo que você tem que transgredir.
arte!✱ – Uma das várias narrativas míticas a que você recorre é o da transgressão das Colunas de Hércules. Ou à imagem de Ícaro como metáfora da humanidade…
Exatamente. Carlos V, no século 16, transforma o conceito de Colunas de Hércules, que era um limite intransponível, para um conceito que ele vai chamar Plus Ultra e que vai ser seu emblema. Ou seja, ele ultrapassou as Colunas de Hércules, e é por isso que ele é meritório. Os gregos conheciam apenas um terço do mundo que nós conhecemos. E, portanto, nós somos melhores que os gregos. É, portanto, essa ideia de matar o modelo civilizacional. Enquanto no frontão do templo de Apolo em Delfos está escrito Nada demais. A ideia de limite, a ideia de que a hybris é fundamental.
arte!✱ – Valorizar essa quebra de limites é o nosso valor fundamental e também o veneno?
E o veneno. É isso que, a meu ver, tem que mudar. É preciso resgatar a ideia da virtude e da prudência novamente. A prudência não é valorizada, foi considerada algo próxima do covarde, o homem que não tem audácia, aquele que não tentou e, portanto, não conseguiu ser mais que os outros… A gente tem que ter uma sociedade em que prudência é uma bela coisa. O autocontrole é um valor tipicamente da Antiguidade. Porque o Júlio Verne tinha uma expressão típica do otimismo do século 19: “Tudo que a mente humana pode conceber, o engenho humano pode realizar”. Maravilha! Mas ele deve realizar? A gente pode imaginar uma coisa, mas temos que pensar que talvez não seja o caso de realizar aquilo que a gente concebeu, porque é imprudente. Você tem que incluir dentro da sua cogitação qual é o perigo, o princípio de responsabilidade, o princípio de precaução. Ícaro é aquele cara que quer voar mais alto do que o pai. E não é para ele fazer. O pai sabe alguma coisa, representa uma tradição, um saber sedimentado. Tem que ter uma tensão entre inovação e conservação e a gente perdeu esse equilíbrio, perdeu essa tensão que era criativa e que agora passa a destrutiva. Se eu sei fazer a fissão nuclear, eu faço uma bomba.
arte!✱ – E eles usam o termo bomba tática, como se não fosse nada.
É bem mais forte do que a de Hiroshima. Estamos voltando para um nível de enfrentamento que é demencial. Discuto muito com os amigos meus sobre a questão da guerra da Ucrânia e, longe de mim, ser um filoputiniano. Pelo contrário, acho que é um ditador sangrento da KGB, mas você tem que entender que existe alguma coisa mais importante, que é a sobrevivência da humanidade, do que saber se a Rússia está certa ou está errada. Ela não devia invadir, está bom, mas também a Otan não devia transgredir naquilo que ela mesma tinha se definido. Não acho que a gente tem que dar medalha de ouro, prata e de bronze para quem é pior, numa espécie de Olimpíada macabra. A gente tem de pensar na paz, que é um valor mais importante do que saber quem tem razão na guerra da Ucrânia. Não importa quem tem razão na guerra da Ucrânia se você tem diante de você uma potencialidade cada vez maior de uma destruição terminal. É uma guerra entre quatro potências nucleares! O conceito de risco está muito desvirtuado.
arte!✱ – Precisamos encontrar novas formas de combate nessa janelinha que você nos deu de dez anos e que é muito pequena. E olha que ela já começou a contar…
Bem menos. O que temos diante de nós é uma ultrapassagem de um crescimento da temperatura global de 1,5º C, cujos impactos foram muito subestimados. O próprio IPCC (International Panel on Climate Change) fala isso. E a cada décimo de grau que você aumenta, o impacto é desproporcionalmente maior do que o último décimo de grau que você ultrapassou. Então o impacto entre 1,5º C e 1,6º C é muito maior do que entre 1,4º C e 1,5º C.
arte!✱ – E quando passamos essas barreiras fica muito mais difícil reverter o estrago…
E você tem o desencadeamento do que eles chamam de alças de retroalimentação. Uma vez que você desencadeia um processo de degelo na Groenlândia não tem maneira de você parar aquilo, entendeu? Há uma irreversibilidade que é catastrófica. Agora, se você consegue atuar de alguma maneira para desacelerar este processo, você ganha tempo para adaptação, que é fundamental. Tempo é a chave da adaptação.
Luiz Marques. Professor livre-docente aposentado e colaborador do Departamento de História do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH). Foi curador-chefe do Museu de Arte de São Paulo. atualmente exerce o cargo de professor Senior de Humanidades e Ambientalismo na Ilum – Escola de Ciência do CNPEM (Centro Nacional de Pesquisa em Energias e Materiais)
arte!✱ – Seu livro mais recente, O Decênio Decisivo, é uma releitura do Capitalismo e Colapso Ambiental ou são obras distintas?
Eu diria que sim, O Decênio Decisivo parte do Capitalismo e Colapso Ambiental, mas ele é um livro politicamente mais propositivo. A introdução do Capitalismo e Colapso Ambiental falava que não era sua intenção propor alternativas. O ponto do livro era tentar explorar o máximo possível a relação que existe entre um certo modo de produção e um certo efeito desse modo de produção. No segundo livro eu estava tentando fazer exatamente “propostas para uma política de sobrevivência”, que é o subtítulo do livro. E o terceiro livro, que eu estou escrevendo agora – nem sei o título que eu vou dar para ele ainda –, parte da ideia de que nós entramos agora numa outra fase, uma fase de aceleração ou de precipitação, que está nos levando já uma situação em que os impactos são maiores do que os modelos haviam previsto. E, em grande parte, não por culpa dos modelos climáticos e outros, mas porque eles têm por premissa que você mantenha uma certa regularidade do comportamento. E quando você tem uma situação de guerra generalizada, de proliferação de conflito, em que você bloqueia completamente qualquer proposta de cooperação internacional, de governança global, a situação se complica. O que vemos agora, ao contrário, é o estímulo a uma desconfiança cada vez maior entre os grupos sociais. Não sei se você está acompanhando os relatórios do SIPRI (Stockholm International Peace Research Institute), que acompanha ano a ano os investimentos em armamentos internacionais. Agora em 2023 eles alcançaram 2,4 trilhões de dólares. No ano de 2022 tinha sido 2,2 trilhões de dólares, ou seja, tivemos um aumento de mais ou menos 200 bilhões de um ano para outro, o maior desde 2019. Isso sem levar em consideração todos os investimentos em orçamentos secretos, aos quais não têm acesso, mas por certo existem.
arte!✱ – E o que eles desovaram com essas duas guerras estão querendo produzir algo mais moderno, a “nova coleção”…
Exatamente, renovar seu guarda-roupa. E isso aí mostra claramente que estamos numa extensão de precipitação muito grande. A guerra é “o” fenômeno através do qual tudo se precipita. Mesmo que a gente não acabe numa guerra nuclear, a destruição da natureza, a intoxicação dos organismos, você mina o terreno, você mina o oceano, você tem efeitos que se prolongam por décadas e impedem qualquer progresso, no bom sentido do termo. Acho que estamos, desde o final do segundo decênio, desde a pandemia mais ou menos, numa nova quadra.
a gente sabe quais são os mecanismos, por que que a gente não é capaz de solucioná-la? A gente tem inteligência para isso, capacidade de educação para isso, a gente aprende rápido, somos seres sociais… Não tem desculpa para a gente simplesmente se deixar desaparecer ou se arruinar completamente por uma coisa que estamos produzindo e não sabemos porque estamos produzindo. É isso que tem que ser a raiz da indignação!”
arte!✱ – Diante desse quadro a pandemia até parece uma coisa fácil, um pequeno tropicão…
A gente já mais ou menos normalizou a pandemia. Eu não sei, por exemplo, por que milagre não houve ainda uma grande zoonose, uma grande nova epidemia na Amazônia. Você desmata aquilo de uma maneira tal, entra em contato com um monte de novos organismos, que são ponte de um monte de vírus que, se conseguirem passar para os humanos, terão ganho a sorte grande.
arte!✱ – Também temos esses vírus que reaparecem com o degelo.
Sim, congelados lá no Ártico, na Sibéria… O antraz, que matou não sei quantas renas lá na Sibéria, matou gente também, foi liberado pelo degelo. Mas aparentemente isso não foi muito divulgado. Tudo bem, é um grupo social muito isolado. Estamos numa situação muito complicada. E falar sobre isso sem tentar ao mesmo tempo propor alternativas é muito niilista. Não é essa a mensagem que tem que ser passada, mas ao contrário: Nós somos os produtores dessa crise. Portanto, somos responsáveis por sermos capazes de superá-la. Não é um meteoro! Se a gente produziu isso, a gente é capaz tem que ser capaz de alguma maneira de colocar um limite.
arte!✱ – É o freio de emergência, expressão com a qual Walter Benjamin define o conceito de revolução e que você cita…
Sim. Porque além de a gente ser o causador disso, a gente sabe que é o causador. O que é diferente de outros povos, que por uma razão ou por outra, desencadearam alguma crise, mas não sabiam de onde ela vinha e faziam estátuas para os deuses para tentar resolver. Não, a gente sabe! O mecanismo através do qual nós estamos colocando em risco a nossa existência. Então a gente produz esse mecanismo, a gente sabe quais são os mecanismos, por que que a gente não é capaz de solucioná-la? A gente tem inteligência para isso, capacidade de educação para isso, a gente aprende rápido, somos seres sociais… Não tem desculpa para a gente simplesmente se deixar desaparecer ou se arruinar completamente por uma coisa que estamos produzindo e não sabemos porque estamos produzindo. É isso que tem que ser a raiz da indignação! ✱
A artista Carmela Gross, no Sesc Pompeia. Foto: Everton Ballardin
A exposição Quase circo, de Carmela Gross, em cartaz no Sesc Pompeia, em São Paulo, possui um grau de opacidade que nos obriga pensar sobre o que podem explicitar aqueles objetos e instalações ali dispostos. Constituída por obras tão densas, desde o início a exposição foge das típicas mostras fast food, muito comuns hoje em dia. Quase circo não se confunde com essas exposições “engajadas” que encharcam vários espaços de arte da cidade, compostas por obras interessadas em sublinhar apenas o óbvio, em detrimento de qualquer dimensão poético/política mais complexa. Neste sentido Quase circo deve ser caracterizada, para começar, como um antídoto contra a mediocridade que anda assombrando o circuito de arte da cidade.
A primeira reflexão que a mostra detona diz respeito ao lugar onde ela ocorre: justamente o Sesc Pompeia, um dos espaços mais emblemáticos da cidade de São Paulo. Concebido pela arquiteta ítalo-brasileira Lina Bo Bardi, o Sesc Pompeia – produzido durante os anos 1970 e aberto em 1982 –, desde sua inauguração, significou uma aposta no futuro da cidade e do país, um marco da arquitetura comprometida com a regeneração do Brasil enquanto nação democrática.
Não percebo a presença dos trabalhos de Carmela naquele espaço tão simbólico como uma junção feliz da sua poética com a de Lina. Pelo contrário: para mim, o que amplia a potência de Quase circo é a oposição entre a confiança no futuro que Lina projetou naquele espaço e o compromisso com o presente, visível nos trabalhos de Carmela, como o lugar ideal para a revolta.
É como se Lina, com o Sesc Pompeia, jogasse a vida para a frente, enquanto Carmela relembrasse a todo momento que dificilmente teremos um devir, se a transformação não ocorrer agora, na urgência do presente.
Enquanto o edifício do Sesc Pompeia expressa confiança no futuro, as peças e intervenções de Carmela explicitam que, caso a revolta não irrompa, nossa contemporaneidade permanecerá fixada num eterno presente, violento e sem escapatória.
Ao contrário de Lina, que apostou numa arquitetura revolucionária, rumo à utopia, ao futuro, as peças e instalações de Carmela assumem que já vivemos a distopia, que ela é o agora e o aqui. Suas produções não pregam a revolução, como as de Lina, e sim a revolta, a transformação imediata do presente (Não é à toa que a mostra prima por desviar quase tudo para o vermelho, até A Negra (1997-2024).
1 de 4
Vista da exposição 'Quase circo', de Carmela Gross, no Sesc Pompeia. Foto: Everton Ballardin
Vista da exposição 'Quase circo', de Carmela Gross, no Sesc Pompeia. Foto: Everton Ballardin
Vista da exposição 'Quase circo', de Carmela Gross, no Sesc Pompeia. Foto: Everton Ballardin
'A negra' (1997), de Carmela Gross. Foto: Gal Oppido
***
Outra questão que a exposição apresenta e que, de alguma forma, amplia e complementa a primeira é que, apesar de ser composta por objetos, gravuras, projeções e instalações, Quase circo é desenho.
O desenho sempre definiu a poética de Carmela Gross: uma artista que manifesta seu posicionamento sobre o real usando como fundamento os elementos da gráfica e suas extrapolações visíveis, tanto em seus trabalhos bidimensionais, quanto expandidas pelas peças tridimensionais e instalações que exibe.
O que é aquele “impenetrável” Roda Gigante (2019/24), a não ser um desenho no espaço, linhas que possuem como ponto de chegada (ou de partida) as ruínas de uma cidade que é, ao mesmo tempo, edificação e desmonte? Roda Gigante é um trabalho fundamental para politizar de novo – e sob outro viés – aquilo que se convencionou chamar de “arte participativa”.
1 de 2
Vista da exposição 'Quase circo', de Carmela Gross, no Sesc Pompeia.
Vista da exposição 'Quase circo', de Carmela Gross, no Sesc Pompeia.
E o que é Rio madeira (1994/2024), a não ser um conjunto de linhas configurado por traços vermelhos e verdes no chão – margeando o espelho d’água – um desenho retondulante?
E as Escadas vermelhas (2012/24) – traços-luz no espaço?
As obras de Carmela são a própria afirmação da gráfica em plena arte contemporânea: ponto e linha/traço e mancha, e é com tal conjunto restrito de elementos (às vezes revestidos de cor, às vezes não) que a artista interfere no real, o desmonta e o reconfigura.
***
Estranho afirmar que o trabalho de Carmela em tese nega a eficácia projetual da arte, na medida em que afirmo que toda sua produção é desenho. Como seus trabalhos, sendo desenhos, duvidam do futuro? Não seria o desenho puro vir a ser?
Quando Carmela produz seus trabalhos em neon, o uso da luz acaba por represar (não aniquilar, mas conter) o caráter projetual que caracteriza todo desenho, na medida em que a luz converte as linhas em formas latejantes, formas que acabam por deliberadamente confundir a objetividade dos traços que lhe deram origem. Exemplo: Luz del fuego (2018/24), que é uma mancha luminosa carregada de sentidos que pulsam em ritmo próprio.
***
Bem concebida e exibida, para mim o ponto alto da mostra é Bando (2016/24): manchas verdes impressas sobre folhas de zinco dispostas em um corredor construído com madeirite vermelho.
O que são aquelas manchas? São nuvens, continentes imaginários? São silhuetas de monstros, de animais?
Caminhar por aquela espécie de corredor vermelho, que remete à cidade sempre em construção e desmonte, é entender que, se os neons latejam nas outras peças e instalações presentes na exposição, nas impressões de Bando, as formas também pulsam, sempre no limiar entre o reconhecível e o irreconhecível.
Por outro lado, seria impossível caminhar por entre aquelas formas gravadas e não lembrar que Carmela teve que trabalhar muito até chegar àquele resultado. Naquelas impressões sobre zinco estão os Carimbos produzidos pela artista no final dos anos 1970, o Projeto para a construção de um céu, do início dos 1980, os Quasares, de 1983, os Buracos, dos anos 1990 e tantas outras obras em que os esquemas de representação deliberadamente perdem em objetividade. São, também puros vir a ser, puras indicações da necessidade de se revoltar contra o estabelecido, o já esquematizado.
***
Para finalizar estes comentários, sublinho que a dimensão política da produção de Carmela, presente em Quase circo, não se encontra de jeito nenhum numa mensagem da qual cada trabalho de arte é apenas o meio para expressá-la. Pelo contrário: o caráter político de sua produção é o resultado do entrelaçamento entre a poética da artista e o fazer plástico/visual que ela produz na concepção/execução de cada uma daquelas obra.
Decididamente os trabalhos de Carmela não tematizam, eles são a política.
O sociólogo Luiz Galina, atual diretor do Sesc São Paulo, comenta, em entrevista exclusiva, a sua trajetória junto a Danilo Santos de Miranda e o legado que levará adiante. Foto: Matheus José Maria
Desde novembro do ano passado, quando assumiu o cargo de diretor do Serviço Social do Comércio (Sesc) no estado de São Paulo, o sociólogo e economista Luiz Galina vem ressaltando, em publicações numa rede social, a importância de renovar compromissos históricos da instituição, em suas múltiplas frentes de atuação, sobretudo no âmbito da cultura. Nas imagens, vemos os encontros que teve com a presidente da Funarte, Maria Marighella, com o músico Hermeto Pascoal e a ministra da Cultura, Margareth Menezes, entre outros.
Com uma trajetória de mais de 50 anos no Sesc, em que atuou como orientador social, gerente de finanças, superintendente administrativo e consultor técnico, Galina ocupa agora o cargo que pertenceu, a partir de meados dos anos 1980, ao carioca Danilo Santos de Miranda, morto em outubro do ano passado. A instituição está em plena expansão: ao longo dos próximos dez anos estão previstas ampliações de unidades existentes e aberturas de novas. Dentre elas, a de Franca, que terá forte atuação em questões de sustentabilidade. Na capital, há grande expectativa para as aberturas no Parque Dom Pedro II e a unidade que vai ocupar o antigo prédio do Mappin, uma aposta da instituição para ajudar a revitalização do centro da cidade.
Galina começou sua carreira no Sesc ao lado de Miranda. Juntos, trabalharam no programa chamado Unidade Móvel de Orientação Social (Unimos), em que equipes de três orientadores sociais viajavam, por cerca de um mês, para um município do estado levando consigo “projetor de cinema, material esportivo, bolas, redes, uniformes, toca-disco, uma coleção de LPs, livros, mimeógrafo etc.”, ele conta.
“Íamos por esse interior afora, a cidades em que não havia unidades fixas do Sesc, que eram poucas na época. Havia em Bauru, São José dos Campos, Ribeirão Preto, meia dúzia de cidades. A gente chegou a ter em torno de 100 orientadores sociais distribuídos nas diversas equipes. Esses orientadores começaram depois a trabalhar nas unidades, com essa filosofia de escuta, de ouvir as demandas, de ver o que mais era importante para cada localidade, para cada cidade e, de certa maneira, essa filosofia de trabalho se incorporou ao jeito do Sesc ser a partir das décadas de 1970 e 1980, algo que alimenta toda essa dinâmica do nosso trabalho”, afirma.
Leia, a seguir, mais trechos da entrevista de Galina à arte!brasileiros.
UNIDADE MÓVEL DE ORIENTAÇÃO SOCIAL
A gente ficava de um mês a um mês e meio em cada cidade, dependendo de seu tamanho, e lá nós conversávamos com as lideranças no campo da cultura, da arte, do esporte, da saúde. Nós nos instalávamos num local cedido e perguntávamos o que eles gostariam de fazer. Aí vinham várias ideias. “Vamos fazer um seminário, vamos fazer um ciclo de cinema etc.”. Falávamos qual era nosso menu e perguntávamos o que eles gostariam de fazer. Obviamente, às vezes vinham ideias além do menu que a gente preparava. Era uma atividade que começava com uma escuta.
SESC E O LEGADO DE DANILO
Eu participo dessa história desde sempre. Desde o começo, quando eu entrei como orientador social, eu estou impregnado dessa cultura que formou a mim, formou o Danilo e a tantos colegas. E demos continuidade. O Danilo liderou esse aperfeiçoamento do nosso quadro técnico, na formação, na especialização. Nosso quadro gerencial tem uma formação, assim, incrível. Desde a graduação, pós-graduação, nós temos hoje mestres, doutores. Quase todos os nossos gerentes tiveram alguma experiência, ou várias experiências, no exterior, por exemplo. Isso traz um repertório muito rico.
É claro que mudam os processos. O tamanho vai impondo mudanças. Mas a nossa raiz não muda. O nosso DNA organizacional não muda, está impregnado neste quadro gerencial e neste quadro técnico. Nós temos nesse quadro hoje de 8.200 empregados, uma força muito poderosa e muito ativa de competência profissional voltada a essa missão de educação permanente, de apoiar o desenvolvimento das pessoas, de colaborar, um trabalho conjunto com outras instituições.
Danilo Santos de Miranda, morto em 2023, e Luiz Galina, em registro de 2019. Foto: Matheus José Maria
GOVERNANÇA
Estas entidades, Sesi, Senac e Senai, foram criadas na década de 40 do século passado. Na mesma época veio o Sesc, em 1946. Foi uma ideia precursora e pioneira dos empresários de então, lideranças que hoje participam da CNI, Confederação Nacional da Indústria, da Confederação Nacional do Comércio. Na Segunda Guerra mundial, o fluxo de importação da Europa para o Brasil ficou interrompido. Os alemães afundavam tudo, então o Brasil tinha que se industrializar. Para industrializar, precisava de mão de obra. A população, que era predominantemente rural, começou a vir para as cidades, grande parte analfabeta, grande parte sem educação para morar em cidades. Então esses empresários entenderam que, se quisessem industrializar o país, precisavam formar profissionais e também cuidar da mão de obra.
O Sesi e o Sesc surgiram, e muitos de seus programas iniciais eram dedicados à saúde. O Sesc teve maternidade, clínicas de exames laboratoriais. A ideia era boa, mas como financiar? Os empresários se predispuseram, então, eles próprios, a fazer uma contribuição. Para que essa ideia se concretizasse, levaram essa proposta ao governo, para que o governo criasse uma lei que tornasse a contribuição dos empresários e das empresas obrigatório. Porque eles sabiam que, se fosse voluntário, não haveria um aporte de recursos suficiente. E aí foi a primeira entidade então foi o Senai. Gestão privada da entidade com contribuição compulsória. Isso é a nossa característica até hoje.
O nosso decreto de criação e o nosso regulamento, que veio depois, é sábio, porque cada estado define a sua programação. Não há uma definição central de que todos os estados têm que fazer isso, isso e isso. Há um leque de programas. Por exemplo, todos os departamentos regionais do Sesc no Brasil, com exceção de São Paulo, investem na educação formal. Escolas, ensino fundamental, básico e médio. O Sesc de São Paulo falou lá atrás que não iria entrar nessa área porque já havia uma rede estadual, já havia redes municipais. Então, quem nos antecedeu na década de 1950, decidiu investir em cultura, esporte e lazer. E quando em educação, na educação extracurricular.
A âncora dessas entidades, primeiro, é o reconhecimento da sociedade e do papel que elas conquistaram ao longo da história. Isso é fundamental. Seja no campo da formação profissional ou seja no campo do desenvolvimento sociocultural, vamos dizer assim.
FINANCIAMENTO
Existem projetos na Câmara e no Senado que interferem na nossa arrecadação, por isso nunca estamos tranquilos. Isso sempre existiu. Mas a maior ameaça que nós vivemos foi durante a Constituinte. Há um artigo na Constituição brasileira que diz o seguinte: o que é descontado na folha de pagamento, uma parte do empregado, outra parte do empregador, esse tem que ser exclusivo para financiar a Previdência pública. Se esse artigo tivesse prevalecido sozinho, acabariam as contribuições para essas entidades. As lideranças, Confederação Nacional do Comércio e Confederação Nacional da Indústria, da época, entenderam que não podiam deixar essas entidades acabarem desse jeito. Se não tiver financiamento, não tem sentido. Essas entidades não vão conseguir continuar operando vendendo serviços.
A sociedade teria de mobilizar, criar uma emenda popular e levar para a Constituinte. Assim foi feito. Colheu-se mais de um milhão de assinaturas, e na época não havia internet. A gente montou barraquinhas nas praças, essas entidades todas se mobilizaram no Brasil todo e os presidentes da CNC e da CNI na época literalmente levaram um caminhão de abaixo-assinados e entregaram lá para o Mário Covas, que era o relator. Em função disso, foi colocado o artigo 240 da Constituição, que diz o seguinte: aquele artigo que diz que a contribuição empresarial é exclusiva para financiar a previdência pública, há uma exceção. As contribuições para financiar os serviços sociais autônomos, esse é o nosso nome oficial, e os serviços de formação profissional continuam a receber essa contribuição. De uma ameaça, nós nos fortalecemos, porque hoje temos uma âncora constitucional. Alguns especialistas dizem que essa seria uma cláusula pétrea.
ARRECADAÇÃO
A nossa receita depende da massa salarial paga pelas empresas de comércio, serviço e turismo. Se o número de empregados está aumentado, com carteira assinada, a nossa arrecadação cresce. Se o salário dessa massa melhora, se melhora pela quantidade e pelo valor do salário médio que as empresas pagam pro seus empregados. Se isso cresce, nós vamos bem. Claro, há momentos em que isso não cresce tanto quanto precisaria crescer, às vezes isso diminui, essa oscilação do mercado de trabalho. Aí que está a nossa base de evolução da nossa arrecadação. Nós tivemos momentos em que isso não cresceu, às vezes caiu, e aí a gente teve que se ajustar. Mas nós temos uma gestão muito cuidadosa, uma reserva financeira para que esses ajustes se façam sem precisar demitir. A nossa essência é esse conjunto de 8.200 empregados. Claro que o prédio é importante, mas a nossa equipe, você vai lá em São Caetano, que é uma unidade pequena, uma casa que a gente adaptou, essa equipe é maravilhosa, ela desenvolve atividades em praças públicas, ruas. Porque a competência profissional que é importante. Se nós tivermos um prédio bonito e não tivermos um profissional bem preparado, não acontece nada. O prédio por si é frio.
GESTÃO
Nós temos um foco muito importante nas análises dos custos. Temos uma arquitetura muito bem estudada e resolvida, usamos sempre nas nossas construções materiais de primeira. Uma pessoa desavisada pode perguntar por que o Sesc usou tal granito. Para não ter que fazer várias vezes. Então nós temos um cuidado na gestão do custo, para sempre ter um custo-benefício mais adequado. É sempre material de primeira. Porque sai mais barato. Você vê o Sesc Consolação, tem 60 anos aquela unidade. Claro, foi reformada várias vezes, mas ela está inteira. Atendem lá três, quatro mil pessoas por dia.
AS PARCERIAS
Estamos abertos a ouvir, a trocar ideia, a correalizar atividades com diversos parceiros, inclusive com equipes de órgãos públicos. Não temos qualquer problema de trabalhar na esfera municipal, na estadual ou mesmo na federal, quando há abertura para isso. Temos um relacionamento muito bom com as equipes das secretarias de cultura, de esporte, de educação. Aqui em São Paulo, por exemplo, temos um convênio com a Secretaria de Educação do município em que a gente recebe, nos meses de férias, crianças das escolas públicas para fazer visitas às nossas unidades, participar das atividades esportivas onde há equipamentos para isso etc. Temos um trabalho também relacionado às exposições, que é o de trazer estudantes e, em muitos casos, a gente contrata até o ônibus, porque às vezes há dificuldade para a escola em conseguir uma verba. Toda essa filosofia nasceu na Unimos, e eu e o Danilo entramos juntos nisso.
EXPANSÃO
Está estabelecido o nosso plano de expansão. Pirituba, Campo Limpo, São Miguel Paulista. E nós vamos iniciar, nos próximos meses, a obra em São Bernardo do Campo, um projeto de teatro da Lina Bo Bardi. Contratamos o Marcelo Ferraz. Vamos começar a construção do Sesc Limeira, estamos construindo em Marília um novo Sesc, e em Franca. Compramos um terreno em Sapopemba maravilhoso.
Há alguns anos, nos procuraram para que o Sesc assumisse o Teatro Brasileiro de Comédia. Começou há uns dez anos, eles procuraram o Danilo, e o Danilo falou com o presidente, e o presidente aceitou e disse que receberia. Mudou o governo, isso parou. No último ano do governo Bolsonaro, o pessoal da Funarte nos procurou novamente e falou, “olha, nós queremos efetivar essa concessão”. Aí houve todo um trabalho político do formato dessa concessão e o Sesc assumiu, então, o TBC. É uma concessão por 35 anos, renovável. E o que nos permitiu assumir o TBC, que está totalmente deteriorado. A faixada é tombada, inclusive. Mas o que nos permitiu é que nós compramos, ao lado, um terreno do Silvio Santos, um galpão. Então vai dar pra fazer uma unidade lá. É um lugar pequeno, mas vai ter o teatro, que tem 200 e poucos lugares, e ao lado do teatro tem uma unidade onde vai ter exposições, biblioteca, atividades físicas, um espaço para atender as crianças e será lotado de idosos também. Vai ser um centro de referência do teatro brasileiro.
SUSTENTABILIDADE
É um processo de aprendizado. Nosso cuidado começa no projeto arquitetônico. O projeto arquitetônico para futura unidade de Franca, prevê ventilação natural e iluminação natural, por exemplo. O cuidado no consumo de energia elétrica para se usar menos ar condicionado, menos iluminação, usar energia solar para o aquecimento da água, tanto dos processos industriais das nossas cozinhas, como para o aquecimento da água da piscina, da água dos vestiários e tal. Isso já está, nesse nível, incorporado aos nossos projetos arquitetônicos. Mas tem um mundo pela frente.
Tenho conversado com a nossa área que cuida das exposições, por exemplo, com a Juliana [Braga de Mattos, gerente de artes visuais e tecnologia]. Estive em Rio Preto, para a montagem da exposição com itinerância das obras da Bienal do ano passado. É muita madeira. Eu falei: “Juliana, como é que a gente faz para depois essa madeira ser reutilizada?”. Estou provocando as equipes, vamos pesquisar, vamos estudar, vamos ver o que está sendo feito mundo afora nesse sentido. Você viram a Casa Verde? A Casa Verde é um prédio que o Sesc comprou, era a sede da Riachuelo, e em outubro começamos a ocupá-lo. Lá fizemos uma exposição relacionada à música, ao carnaval, à arte popular, é uma parte do acervo do Museu do Pontal do Rio de Janeiro. Agora, vocês vão ver a montagem, é um prédio dentro do prédio. Na hora em que acabar a exposição, o que faremos com todo aquele material? O pessoal tem que inventar novas soluções: como eu desmonto aquilo em módulos, onde guardo e como reutilizo?
Na linha da sustentabilidade, procuramos sempre ter ações que sejam modelos. A gente quer servir de paradigma naquilo que faz para que outras instituições sigam. Se a gente tem condições para fazer isso, novas soluções para as exposições, isso depois será copiado. Os profissionais que trabalharam nisso levam esse conhecimento, expandem esse conhecimento e essa prática. Em Bertioga, por exemplo, nós temos uma RPPN, Reserva Privada do Patrimônio Natural. Pegamos um pedaço do terreno, grande, centenas de hectares. Havia lá uma cobertura vegetal original e nós propusemos uma RPPN, isso tem um processo legal de aprovação e já está aprovado pelas autoridades competentes. Ninguém mais vai poder mexer nesse área, na cobertura vegetal. Então isso foi um exemplo, e é importante essa RPPN em Bertioga porque ela está em um ambiente urbano. Ela está praticamente dentro da cidade de Bertioga.
A gente também tem feito muitos seminários, com convidados especialistas na questão climática. Esse é um assunto permanente, isso faz parte da nossa programação, e essa questão da sustentabilidade, nós temos uma gerência aqui dedicada a isso. E, cada vez mais, nas nossas unidades, estamos criando espaços adequados à educação para a sustentabilidade. É um movimento importante de renovação na nossa programação nesse sentido.
DIVERSIDADE
De alguns anos para cá, nós estamos atuando muito forte na questão da diversidade. Na questão racial, na questão LGBTQIA+. É um desafio, você não imagina a dificuldade de implantar certas ideias de respeito à diversidade. E nós estamos trabalhando, afinal, nós somos todos racistas, né? Estive conversando com uma senhora que é conselheira da SP Escola de Teatro, uma psicanalista negra muito atuante nesse movimento, Isildinha Nogueira. Ela, negra, falou, “nós todos somos racistas. Inclusive os negros.” Porque isso está entranhado, né? Então nós estamos trabalhando fortemente isso internamente. Garantindo que todos os funcionários possam ascender, desenvolvendo suas carreiras. Nós mudamos alguns critérios de recrutamento e seleção para garantir que todas as pessoas possam participar em igualdade de condições nos nossos processos. E temos a presença até de participantes descendentes de indígenas e indígenas mesmo. Nós os temos no quadro. Esse é o nosso DNA. O nosso conselho nos dá esse empoderamento. Com esse empoderamento que eu recebo do presidente e do conselho, eu trabalho muito tranquilamente.
IDOSOS
O Sesc foi pioneiro no campo do trabalho social com idosos. Nós comemoramos, ano passado, 60 anos. Fomos uma das primeiras entidades, se não a primeira, a reconhecer no idoso um cidadão como qualquer outro. Como é que isso começou? Começou no Sesc Carmo, próximo à praça da Sé, onde um técnico do Sesc observava as pessoas que iam lá almoçar, aposentados, e depois essas pessoas não tinham o que fazer. E ele pensou: vamos juntar essas pessoas, vamos bater papo. Aí começou o trabalho social com as pessoas idosas, a gente começou a convidar esses idosos a participarem. Nossos técnicos foram estudando países na Europa onde havia avanço etário na população. Então temos esportes adaptados, ginásticas adequadas. Temos um conjunto de conhecimento que nos permite atender bem a pessoas idosas. Nossos técnicos, lá na década de 1960, participaram ativamente da formação das políticas do Estatuto da Pessoa Idosa, por exemplo, que foi aprovado no Congresso Nacional. Nós tivemos uma participação importante na formulação dessa legislação. Atualmente nós temos, todo ano, uma campanha de prevenção de queda da pessoa idosa, porque é um problema seríssimo. Temos educadores especializados, espaços adequados, uma cultura de receber idosos. Anualmente, fazemos um encontro em Bertioga, em que reunimos pessoas idosas de todas as nossas unidades do estado de São Paulo para discutirem os problemas desta fase da vida. Para as pessoas também terem lazer, namorarem, brincarem, dançarem.