*Por Léo Heller

O direito humano à água e ao esgotamento sanitário foi explicitamente reconhecido por Resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas de julho de 2010 e do Conselho de Direitos Humanos da ONU em setembro de 2010, com forte apoio do governo brasileiro. A Assembleia Geral reconheceu que se trata de “um direito humano essencial para o pleno desfrute da vida”, o que pode ser compreendido em articulação com outras definições sobre os direitos humanos, como a de que todos os direitos são universais, indivisíveis e interdependentes e estão relacionados entre si. Esse reconhecimento, a par de tornar os cidadãos dos vários países portadores desse direito e aptos a reivindicarem-no judicialmente, traz obrigações aos governos e gestores públicos.

O cumprimento do Direito Humano à Água (DHA) supõe assegurar água com disponibilidade, acessibilidade física, qualidade e segurança, financeiramente acessível e que cumpra com os requisitos de aceitabilidade, dignidade e privacidade. Semelhantes atributos aplicam-se ao direito ao esgotamento sanitário.

No atual momento, em que o País vive uma dramática crise no abastecimento de água, afetando fortemente sua região mais populosa, urbanizada e industrializada, cabe analisar a situação a partir da lente do DHA.

Inicialmente, avaliando o atual desabastecimento, verifica-se que, caso os princípios do DHA tivessem sido observados pelos responsáveis pela prestação dos serviços, as oscilações climáticas que vivemos não teriam se convertido em escassez de água para consumo humano.

Entre os princípios do DHA, espera-se dos Estados-membros das Nações Unidas que empreguem o “máximo recurso disponível” para assegurar o acesso. Violações a esse direito são consideradas situações de retrocesso. Obviamente, caso o planejamento do abastecimento de água nas localidades afetadas tivesse se dado de forma adequada, levando em conta as variações climáticas, mesmo as mais extremas, o problema não estaria ocorrendo com a atual magnitude.

As tendências científicas mais contemporâneas indicam que os sistemas de abastecimento de água têm de ser planejados de forma estratégica, criativa, adaptativa e capaz de aprender com as mudanças da realidade. Quando incorporarmos esses princípios efetivamente no Brasil, nossas cidades ganharão resiliência para enfrentar situações de estresse hídrico.

Outro aspecto que merece um olhar a partir do DHA são as medidas adotadas ou planejadas para enfrentar a crise. Aí reside a maior preocupação atual, pois sabe-se que, em situações de restrição de consumo, são justamente as populações mais vulneráveis as que mais sofrem seus efeitos. Justamente essa população mais indefesa, com menos capacidade econômica, tem de lançar mão de alternativas ao desabastecimento. Isso porque ela é a mais impactada, inclusive quanto à saúde. Refiro-me não apenas ao segmento da população visivelmente mais pobre, a exemplo da que vive nas vilas e favelas, mas também aos moradores de rua, aos idosos, às crianças e à população carcerária.

O atual momento requer colocar os princípios do DHA no centro da atenção dos decisores públicos. A gestão da crise, por meio de medidas para a restrição de consumo, sejam elas quais forem – redução de pressão nas redes, instrumentos econômicos punitivos, campanhas contra o desperdício, rodízio e racionamento – não deve assumir que todos os usuários sofrerão impactos equivalentes. Ao contrário de medidas de caráter universal, essas devem ser tomadas focalizando afirmativamente as parcelas mais vulneráveis da população, que devem ser protegidas, a bem do cumprimento do DHA.

Além disso, outros princípios do DHA também devem ser evocados neste momento: a transparência e a participação. Medidas para restrição do consumo não se restringem a um processo técnico de tomada de decisão. É um processo que tem implicações sociais diretas nas populações das cidades. Portanto, o processo decisório não deve ser uma exclusividade de gestores públicos e de especialistas. Deve ser um processo democrático, que conte com a participação dos representantes dos afetados, seja nos próprios fóruns constituídos para gerir a situação de crise, seja envolvendo os conselhos de participação social já instituídos.

*Pesquisador da Fiocruz-Minas, relator especial das Nações Unidas para o Direito Humano à Água Segura e ao Esgotamento Sanitário e membro da Plataforma Política Social

 


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