Monster Chetwynd, "Hokusai’s Octapai", 2004, instalação na galeria Tanya Leighton, como parte do Galleries Curate
Monster Chetwynd, "Hokusai’s Octapai", 2004, instalação na galeria Tanya Leighton (Berlim). Foto: Cortesia Tanya Leighton Gallery

O impacto causado pela pandemia do Covid-19 tem provocado mudanças inimaginadas. A perplexidade do presente, decorrente dos protocolos de reclusão e de fechamentos temporários de galerias, museus, feiras e bienais, sacudiu o sistema de arte desde o início do ano passado. Neste contexto, o desafio de vencer a crise e buscar saída para o inesperado colapso provocou a criação da plataforma colaborativa Galleries Curate: RHE. A ideia partiu de um grupo de galeristas ligados ao comitê das três feiras Basel – Miami, Hong Kong e Basileia – com a ideia de promover exposições virtuais simultâneas em galerias dos quatro cantos do mundo, em apoio à comunidade.

A primeira exposição tem a água como tema e foi sugerida pela galerista Chantal Crousel, de Paris, uma das primeiras a abraçar a ideia. O grupo evidenciou as inegáveis limitações que seus espaços viviam naquele momento e decidiu mudar o cenário com um diálogo virtual dinâmico entre os programas individuais de cada galeria, fosse ela de Jacarta, Bruxelas, Singapura, Nova York, Rio de Janeiro, Tóquio, ou Paris.

A única galeria brasileira integrante deste pool internacional é A Gentil Carioca, do Rio de Janeiro, dirigida por Márcio Botner, um de seus proprietários. Engajado no comitê de Basel Miami, ele é um globetrotter do circuito, ligado a vários projetos pelo mundo e um dos mais animados com a Galleries Curate. “A ideia nasceu dos contatos virtuais de um grupo de 12 pessoas e me impressionou quando logo chegamos a 21 participantes”. Envolvido em tantos projetos, ele acredita na colaboração horizontal entre artistas, galeristas e críticos, unindo pessoas que pensam próximo aos objetivos do grupo. Cada galeria propôs o que queria mostrar e eles deram início às exposições no começo deste ano. “O que está acontecendo é algo especial. Ao mesmo tempo que temos galeristas consagrados, contamos com jovens entusiastas com menos tempo no mercado. A plataforma começou a ser pensada publicamente neste ano e as pessoas agora estão conhecendo melhor o projeto.”

O francês Clément Delépine, jovem coordenador da Galleries Curate: RHE e codiretor da feira Paris Internationale, também intermedia parte das lives do projeto. Para ele, desde as primeiras tratativas, essas conversas se constituem como uma terapia de grupo. “O projeto traz no título o enigmático símbolo RHE, medida de unidade e impermanência, definida por duas palavras gregas: panta rei, que significa ‘tudo se move’.” Delépine faz uma analogia entre o elemento água, fundamental em nossas vidas, e o esforço deles para criar alternativas na crise global. O trabalho transcende sediar exposições online, plataforma digital, pois há também a preocupação de arquivar materiais referentes às obras em exibição. Ao serem adicionados novos conteúdos, projetos passados e atuais são mixados.
As exposições têm temas múltiplos e a maioria fala do meio ambiente. Na coletiva Tempest, da galeria Tanya Leighton de Berlim, a artista Monster Chetwynd se destaca ao moldar a figura de um polvo enorme executado em látex, pintado e colocado lascivamente sobre o piso. A instalação se completa com a xilogravura ampliada em xerox e fixada na parede de um exemplar da série erótica O Sonho da Esposa do Pescador (Kinoe no komatsu), do artista Katsushika Hokusai, executada em impressão popular shunga no século 19. O trabalho e a vida de Monster Chetwynd tangenciam a performance, poética com a qual ela se identifica. Num jogo de identidades, a artista de Glasgow muda seu nome de quando em quando, assim como fazia Hokusai, artista que ela reverencia e que ao longo da vida teve mais de 30 nomes. A água aqui se apresenta como metáfora, sonho ou delírio mítico de um gozo nunca vivenciado.

Numa perspectiva mais programática do movimento ecológico, a Galleria Franco Noero, de Turim, exibe o filme de Simon Starling, Projeto para uma travessia do Vale do Rift. O still, composto de imagens paradisíacas, registra poeticamente uma canoa, construída com magnésio extraído das águas do Mar Morto usada em 2016, numa tentativa de atravessá-lo, partindo de Israel à Jordânia. A experiência avança em vários sentidos e revela que neste trecho, localizado no Vale do Rift, a água é altamente salgada e que o lugar se destaca por ser o mais baixo do planeta – está a 427 metros abaixo do nível do mar. Ainda alerta que a região é muito explorada por guardar riquezas minerais especiais: um litro de água contém 45 gramas de magnésio.

Há trabalhos filosoficamente engajados no simbolismo do tempo e sua duração. A galeria Jean Mot, de Bruxelas, mostra o filme Canção para Lupita, de Francis Alÿs, de 1998, uma animação em 16mm. A água se desloca no itinerário poético de Alÿs ao longo de toda a película. Uma mulher despeja água de um copo para outro repetidamente. A ação de fazer e desfazer é acompanhada por uma música cuja frase Mañana, mañana és breve para mi pode sugerir um prolongamento ou esperança contínua para o futuro.

A galeria A Gentil Carioca, do Rio de Janeiro, ancoradouro de fantasias astrais e experiências renovadoras, mostra Descompasso Atlântico, de Arjan Martins, que acontece em dois locais e com poéticas diferentes. No interior da galeria, as pinturas mantêm foco narrativo tanto na herança escravagista como na atual situação da população negra. A céu aberto, em plena praia de Ipanema, Arjan Martins realiza uma instalação colorida de inspiração geométrica que conversa com o oceano Atlântico, antiga rota dos navios negreiros. Composta por cinco birutas, objetos normalmente usados em aeroportos para controle do vento, a instalação traz em cada um deles um símbolo dos avisos marítimos: homem ao mar, carga perigosa etc. Propositalmente, a galeria abriu a exposição em 22 de abril, dia em que no ano de 1500 os colonizadores portugueses desembarcaram no Brasil. A ideologia da sobrevivência atravessada por Galleries Curate: RHE faz das declarações de intenções desse grupo um espaço ampliado de ver e registrar o novo normal.

Instalação de Birutas, 2021, de Arjan Martins, com símbolos da sinalização entre embarcações e o porto, parte do Galleries Curate
Instalação de Birutas, 2021, de Arjan Martins, com símbolos da sinalização entre embarcações e o porto. Foto: Fagner França

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