Bruna e Ricardo Pessôa de Queiroz
Bruna e Ricardo Pessôa de Queiroz

Em Pernambuco, a apenas uma hora e meia de Recife, por uma estrada surpreendentemente bem asfaltada, o visitante tem acesso à Usina de Arte. Projeto concebido em 2015, por Bruna e Ricardo Pessôa de Queiroz, ela se encontra num espaço de 130 hectares de terreno, dentro de uma área total de quase 7000 hectares, na Zona da Mata Sul, em Água Preta. 

O projeto traduz o desejo do casal e de sua família de revisitar a história da Usina Santa Terezinha, cuja operação começou em 1929, sob a condução do bisavô de Ricardo, José Pessôa de Queiroz, e que chegou a ser uma das maiores produtoras de álcool e açúcar no Brasil nos anos 1950. Em 1998, a usina encerrou suas atividades de moagem. 

Após quase 100 anos, ressignificar e reconstruir esse espaço teve e tem como objetivo, não uma nova iniciativa de produção rural, mas sim uma intervenção no território, transformando-o num lugar dedicado à natureza, à produção de arte contemporânea nacional e internacional, à cultura, à educação e à oferta de novas possibilidades de trabalho, educação e inclusão da comunidade de quase 6000 pessoas, que residem no seu entorno. 

Parte do antigo campo de pouso e das linhas férreas se transformaram num jardim de quase 40 hectares, que circunda três lagos artificiais, projetado pelo paisagista Eduardo Gomes Gonçalves, em meio ao reflorestamento com cerca de 10 mil plantas de aproximadamente 600 espécies. Antigos escritórios se transformaram em uma ampla biblioteca onde também funciona a recém-inaugurada Fab Lab Mata Sul – Usina de Arte, a Escola de Música e o Centro de Conhecimento Público com mais de 5 mil títulos,  terminais de computadores conectados à internet, impressoras em 3D e cortadora a laser para projetos da comunidade.

A ideia de museus abertos de arte contemporânea ao ar livre e a reocupação de territórios começou, no caso do Brasil, em 2006, com um enorme investimento do empresário e colecionador Eduardo Paz em Inhotim, Minas Gerais, onde foram criados um exemplar Jardim Botânico e diferentes Pavilhões para exposições de artistas renomados, junto a sua coleção. Após muitos anos é uma referência internacional.

No caso da Usina de Arte, o empreendimento visa ocupar o espaço desenvolvendo ou adquirindo obras que conversem com a história e a natureza do lugar. Hoje são mais de 45 obras já implantadas, outras foram desenvolvidas como sites específics em residência artística, e outras, adquiridas especialmente para o lugar. 

Uma das primeiras iniciativas, em 2015, foi a intervenção do artista (e curador à época) José Rufino. Num dos hangares abandonados Rufino criou várias obras utilizando sucatas, correntes, funis, peças mecânicas, utensílios ou mobiliário de época buscando lembrar a histó20ria da usina, criando uma espécie de arte-útil-memória.

Matheus Rocha Pitta inaugurou em 2022 Um Campo da fome, uma imensa intervenção na paisagem. A instalação ocupa uma área de 700 metros quadrados com uma horta focada em vegetais típicos do Nordeste, como o caju, pinha, abacaxi, milho, mandioca, confeccionados com barro. A obra remete à destruição do meio ambiente, à fome e ao desperdiço. Rocha Pitta também traz à tona a descrição de um campo da fome localizado ao leste da Acrópole, na Grécia Antiga. 

Segundo a lenda, ninguém poderia adentrar aquele terreno onde a fome estava confinada. Se alguém adentrasse, a fome se espalharia pelo mundo. “Minha ideia foi desenvolver um trabalho como contenção da fome, um lugar quase sagrado, para deixar que a falta de comida permanecesse ali, congelada”. A horta é composta por 30 canteiros onde estão dispostos legumes, frutas ou raízes da região. “Ao todo, a instalação reúne cerca de nove mil peças produzidas por Domingos, artesão de Tracunhaém, cidade conhecida pelo trabalho com cerâmica”.

Átrio, uma grande réplica do pátio interno da casa principal, projetado pelo artista Marcelo Silveira numa residência artística realizada através de um convênio com o Museu de Arte Aloísio Magalhães (Mamam), deixa  apenas tijolos em volta e mantém todas as características da passagem do tempo nas paredes, nas suas colunas e pisos, Como se tivesse sido arrancado do privado e transformado em público. Com esta ideia, o átrio é um lugar de encontros, saraus e leituras. 

Em 2021, com a entrada de mais um colaborador na equipe, o curador Marc Pottier, a Usina de arte adquire a paradigmática obra de Alfredo Jaar, Claro-Escuro, 2021, NEO, instalada num dos prédios construídos no século passado. Jaar, artista, arquiteto e cineasta chileno que mora em Nova York, disse, durante a apresentação da obra para o público: “Este lugar não está vazio, está cheio de fantasmas da história, do Brasil e do mundo”. Sua obra – um enorme neón com a frase, do pensador e político italiano Antonio Gramsci, “O velho mundo está morrendo. O novo demora a nascer. Nesse claro-escuro, surgem os monstros” – renova a ideia do que se repete na história, e de que a cada diferente momento nos surge um novo desafio. 

Em janeiro de 2024, Bruna e Ricardo inauguram duas obras importantíssimas para o parque. Fall of the Giants, do casal de artistas e escultores franceses Anne e Patrick Poirier, pesquisadores da história europeia mediterrânea e das civilizações anteriores. Eles nasceram durante a Segunda Guerra Mundial e acompanharam a destruição de cidades durante os bombardeios assim como suas consequências. Morando no sul da França, tiveram sempre muita proximidade com ruínas e restos de construções romanas que lá permanecem, já que a Provença chegou a ser uma colônia romana. 

“Nosso trabalho preocupa-se com a ideia de fragilidade. Seja ela da memória, das culturas, da natureza ou da humanidade. Para expressar esse sentimento, usamos todos os tipos de materiais, imagens e metáforas. E entre as nossas metáforas favoritas estão a das ruínas. Arquiteturas ou esculturas quebradas são as imagens mais evidentes dessa fragilidade”, explicam Anne e Patrick Poirier. Outra marca do trabalho do casal é a presença de analogias com mitologias greco-latinas. Fall of the Giants ”remete ao mito grego de uma guerra entre deuses e gigantes, onde um grande olho de mármore e esculturas são atingidas por poderosas flechas de aço, numa alegoria universal da luta entre o homem, seus deuses e suas crenças, o tempo e as dificuldades”.

Ainda nesta primeira semana de fevereiro, a artista sérvia Marina Abramović inaugura no parque sua primeira obra aberta ao público no Brasil. A obra, Generator alude a ideia de um enorme gerador de energia. Nasceu da experiência vivida pela artista em uma performance na Muralha da China, em 1988, e traz um muro com 25 metros de comprimento, 3 de altura e 2,5m de largura, no qual estão aplicados 12 conjuntos com três almofadas de quartzo rosa -vindas de Minas Gerais- conhecidas por transmitirem calma e clareza,  onde o público pode encostar a cabeça, o coração e o estômago.

Para a artista, convivemos paradoxalmente, num mundo onde os indivíduos, ao mesmo tempo que estão ligados por infinitas conexões digitais, carecem de uma ligação genuína consigo mesmos, com seus pares e a natureza.

“Como em outras oportunidades, o trabalho de Marina Abramovic foi um processo de costura com a história da Usina de Arte, da comunidade que está ao lado, e de Pernambuco. Independentemente de ser uma artista internacional, Marina dedicou seu tempo e sua energia para entender quem somos, quem é a Usina de Arte e como contribuir com a trajetória do parque. Ela apresentou quatro projetos e, no final, a obra em questão foi definida. Uma obra que conversa com a memória do lugar, com a história e com o Nordeste do Brasil”, avalia o curador da Usina de Arte, Marc Pottier.

Abramovic, que se revelou internacionalmente com sua participação individual em performances, como a que apresentou no MoMa, The Artist is Present (2010),  trabalha com o conceito que chama de “objetos transitórios”. Por meio deles, estimula o público a dar um passo além e se tornar parte ativa do trabalho, se transformando em “experimentador” dos objetos e criando o fazer artístico em conjunto com ela.

Desde outra perspectiva, para Bruna Pessôa de Queiroz, houve neste convite a intenção – assim como na oportunidade da inauguração da obra Diva (2020), da artista Juliana Notari – de trazer para o parque uma forte visão do lugar que a mulher vem adquirindo na cultura contemporânea, e a importância da força que ela imprime a seus sonhos.

A Usina de Arte tem tudo para se transformar em outro dos destinos nacionais e internacionais preferidos pelo público. O próximo objetivo é criar uma série de equipamentos capazes de receber os visitantes e tornar a experiência tão agradável quanto o lugar. 


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