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GUERRA CULTURAL RELIGIÃO
as estações até o Calvário. E vários crentes entram que é o que acontece lá em Israel o tempo inteiro e
assim em um transe, que tem o nome de Síndrome de acontece agora no Javari.
Jerusalém. Isso é uma coisa tão recorrente que o Estado
de Israel não sabia o que fazer, porque atrapalhava a ***
vida local, já que esses transes psicóticos, às vezes, se O trabalho nunca aconteceu em Israel porque foi
tornam violentos. Por isso, eles acabaram criando [em impossível para a gente fazer isso lá. A gente não fala
1951] uma clínica para tratar disso, chamada Kfar Shaul, hebreu, nem árabe. A gente nunca conseguiu nenhuma
construída em um antigo vilarejo palestino. resposta da clínica Kfar Shaul, nem nenhum apoio insti-
tucional de lá para poder começar esse trabalho. Então
*** a gente meio que botou esse trabalho na geladeira. Eu li
Essa síndrome de Jerusalém é uma coisa que a um artigo do Bruno Meyerfeld, que é o correspondente
gente está, desde 2013, tentando abordar no nosso franco-brasileiro do Le Monde no Brasil, em uma série
trabalho. A gente vem fazendo uma série de trabalhos de artigos a história da construção da Transamazônica,
com pacientes psiquiátricos, e nesses trabalhos, nessas que deveria ter chegado a Atalaia do Norte, extremo
imersões que a gente faz com um grupo de pacientes Oeste do Brasil, na tríplice Fronteira do Peru, Colômbia
do IPUB, o Instituto de Psiquiatria da UFRJ, a gente vê e Brasil. Mas a Transamazônica nunca chegou até lá,
com frequência o problema da fé, da mitologia, da exis- ficaram faltando uns 600 km e eles desistiram porque
tência de Deus. Essa questão, ela é, entre os pacientes essa região é completamente selvagem.
psiquiátricos, ainda mais forte do que na sociedade
em geral. Então a síndrome de Jerusalém tornou-se ***
uma questão forte nesses trabalhos e acabou gerando E o último texto dessa série era focado em Atalaia
uma série de trabalhos no contexto da psiquiatria que do Norte, descrevia esse paraíso prometido na Terra,
a gente fez nos últimos anos: Casulo, que ganhou a uma cidadezinha de 20 mil habitantes, completamente
bolsa Zum do IMS, em 2018, o trabalho que a gente desorganizada, completamente bolsonarista, na qual
fez para a Casa Daros, em 2015, Nada absolutamente você tem mais de 60 igrejas evangélicas diferentes,
nada e Nada quase nada, que apresentamos na Verbo, todas movidas por missionários que tentam entrar
na Vermelho, em 2016, que é uma performance a partir no Vale do Javari, o último reduto com indígenas não
de textos do Robert Walser. contactados na contemporaneidade.
*** ***
E O Avesso do Céu, esse filme novo, também surge E aí a gente sacou que tinha que deslocar esse trabalho
nesse contexto. Ele não é um filme sobre os indígenas, para tratar da conversão da fé em território, da conversão
nem sobre os evangélicos. Ele é um filme sobre a da fé de um indivíduo para uma religião, para o contexto
loucura, sobre o estado do avesso, o estado de ser da amazônico, que essa questão se materializaria lá e de uma
fé dominada pela religião. A gente entende a fé como forma mais contemporânea e sul-americana. A maioria
uma expressão individual de qualquer indivíduo para dos nossos trabalhos se desenvolve dentro da realidade
se relacionar com a sua condição de existência. Se ele ou na ótica latino-americana, então esse trabalho nessa
é indígena, a fé vai servir para caçar, para pescar. Se tríplice fronteira para a gente virou uma nova obsessão
ele é alguém do mercado da Faria Lima, ele vai “levar também, como para os missionários. Essa cidade é uma
uma fezinha” para transações arriscadas. A fé faz espécie de trampolim para os missionários entrarem
parte da vida, a fé faz parte da condição humana de se no Vale do Javari, para tentarem conhecer, encontrar,
relacionar com o desafio de estar vivo sem saber muita catalogar e converter novas culturas. É um pouco como
coisa sobre a vida, né? A gente tem essa diferença em a consequência do mito que sempre existiu da coloniza-
relação aos outros seres. A gente lida com a ideia da ção. Os brancos fizeram isso na costa brasileira, desde
morte o tempo todo que está vivo. E eu acho que a fé o século 16, e foram penetrando país adentro. Em cada
surge aí. E a religião, ela vai colonizar essa fé. Todas estado isso teve um nome e uma atividade diferentes
as religiões fazem isso. Em algum momento elas vão mas um método parecido. Mas, Por trás dessa entra-
colonizar essa fé para organizar a fé territorialmente, da religiosa sempre teve a questão extrativista. Se em
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