Page 74 - artebrasileiros-66
P. 74

GUERRA CULTURAL RELIGIÃO






            as estações até o Calvário. E vários crentes entram   que é o que acontece lá em Israel o tempo inteiro e
            assim em um transe, que tem o nome de Síndrome de   acontece agora no Javari.
            Jerusalém. Isso é uma coisa tão recorrente que o Estado
            de Israel não sabia o que fazer, porque atrapalhava a   ***
            vida local, já que esses transes psicóticos, às vezes, se   O trabalho nunca aconteceu em Israel porque foi
            tornam violentos. Por isso, eles acabaram criando [em   impossível para a gente fazer isso lá. A gente não fala
            1951] uma clínica para tratar disso, chamada Kfar Shaul,  hebreu, nem árabe. A gente nunca conseguiu nenhuma
            construída em um antigo vilarejo palestino.     resposta da clínica Kfar Shaul, nem nenhum apoio insti-
                                                            tucional de lá para poder começar esse trabalho. Então
              ***                                           a gente meio que botou esse trabalho na geladeira. Eu li
               Essa síndrome de Jerusalém é uma coisa que a   um artigo do Bruno Meyerfeld, que é o correspondente
            gente está, desde 2013, tentando abordar no nosso   franco-brasileiro do Le Monde no Brasil, em uma série
            trabalho. A gente vem fazendo uma série de trabalhos   de artigos a história da construção da Transamazônica,
            com pacientes psiquiátricos, e nesses trabalhos, nessas   que deveria ter chegado a Atalaia do Norte, extremo
            imersões que a gente faz com um grupo de pacientes   Oeste do Brasil, na tríplice Fronteira do Peru, Colômbia
            do IPUB, o Instituto de Psiquiatria da UFRJ, a gente vê   e Brasil. Mas a Transamazônica nunca chegou até lá,
            com frequência o problema da fé, da mitologia, da exis- ficaram faltando uns 600 km e eles desistiram porque
            tência de Deus. Essa questão, ela é, entre os pacientes   essa região é completamente selvagem.
            psiquiátricos, ainda mais forte do que na sociedade
            em geral. Então a síndrome de Jerusalém tornou-se   ***
            uma questão forte nesses trabalhos e acabou gerando   E o último texto dessa série era focado em Atalaia
            uma série de trabalhos no contexto da psiquiatria que   do Norte, descrevia esse paraíso prometido na Terra,
            a gente fez nos últimos anos: Casulo, que ganhou a   uma cidadezinha de 20 mil habitantes, completamente
            bolsa Zum do IMS, em 2018, o trabalho que a gente   desorganizada, completamente bolsonarista, na qual
            fez para a Casa Daros, em 2015, Nada absolutamente   você tem mais de 60 igrejas evangélicas diferentes,
            nada e Nada quase nada, que apresentamos na Verbo,  todas movidas por missionários que tentam entrar
            na Vermelho, em 2016, que é uma performance a partir  no Vale do Javari, o último reduto com indígenas não
            de textos do Robert Walser.                     contactados na contemporaneidade.

              ***                                             ***
               E O Avesso do Céu, esse filme novo, também surge   E aí a gente sacou que tinha que deslocar esse trabalho
            nesse contexto. Ele não é um filme sobre os indígenas,  para tratar da conversão da fé em território, da conversão
            nem sobre os evangélicos. Ele é um filme sobre a   da fé de um indivíduo para uma religião, para o contexto
            loucura, sobre o estado do avesso, o estado de ser da   amazônico, que essa questão se materializaria lá e de uma
            fé dominada pela religião. A gente entende a fé como   forma mais contemporânea e sul-americana. A maioria
            uma expressão individual de qualquer indivíduo para   dos nossos trabalhos se desenvolve dentro da realidade
            se relacionar com a sua condição de existência. Se ele   ou na ótica latino-americana, então esse trabalho nessa
            é indígena, a fé vai servir para caçar, para pescar. Se   tríplice fronteira para a gente virou uma nova obsessão
            ele é alguém do mercado da Faria Lima, ele vai “levar  também, como para os missionários.  Essa cidade é uma
            uma fezinha” para transações arriscadas. A fé faz   espécie de trampolim para os missionários entrarem
            parte da vida, a fé faz parte da condição humana de se   no Vale do Javari, para tentarem conhecer, encontrar,
            relacionar com o desafio de estar vivo sem saber muita   catalogar e converter novas culturas. É um pouco como
            coisa sobre a vida, né? A gente tem essa diferença em   a consequência do mito que sempre existiu da coloniza-
            relação aos outros seres. A gente lida com a ideia da   ção. Os brancos fizeram isso na costa brasileira, desde
            morte o tempo todo que está vivo. E eu acho que a fé   o século 16, e foram penetrando país adentro. Em cada
            surge aí. E a religião, ela vai colonizar essa fé. Todas   estado isso teve um nome e uma atividade diferentes
            as religiões fazem isso. Em algum momento elas vão   mas um método parecido. Mas, Por trás dessa entra-
            colonizar essa fé para organizar a fé territorialmente,  da religiosa sempre teve a questão extrativista. Se em

            74
   69   70   71   72   73   74   75   76   77   78   79