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GUERRA CULTURAL RELIGIÃO








            imprensa mais ativista, ao indigenista e ao jornalista   bondade entre aspas. Essa gente tem essa obsessão de
            que foram assassinados. A gente estava tocando em   colonizar, tem prazer de conhecer esse dito selvagem e
            um assunto muito difícil, muito bélico, perigoso mesmo,  de civilizar, de socializar, converter essa pessoa não só
            e o approach da gente era obviamente subversivo. E  em cristã como em branca! E a gente fez um trabalho
            aí eu entro na sua segunda questão.             sobre isso, sobre essa conversão. Esse é o nosso lugar
                                                            no trabalho, é um local de terceiros, de observação crí-
              ***                                           tica. A gente não pode se solidarizar, nem com um lado
               Como é o relacionamento da gente com esse grupo?  nem com outro, com toda a empatia possível, porque
            Não é um grupo, são dois grupos: os evangélicos e os   senão a gente não teria distância crítica necessária para
            indígenas. O nosso relacionamento com os indígenas foi   tratar essa questão, que é um problema. A gente está
            de empatia, mesmo considerando todo o estranhamento.  tratando ali da obsessão, e o que vem com a obsessão:
            Empatia política, empatia pelo ponto de vista deles serem   a conversão... é uma barbárie. É uma colonização, um
            os grandes defensores da natureza, da floresta, os donos   processo de perpetuação de dominação muito barra
            da terra, os verdadeiros primeiros donos dessa terra.  pesada. E isso ocorreu durante o governo Bolsonaro...
            Eles não se consideram brasileiros, eles se consideram   No mesmo período em que a Damares distribuía fetos de
            tikunas. Parte dos depoimentos que a gente tem, mas não   plástico em campanha contra o aborto no gabinete dela
            incluímos no vídeo porque não fazia parte do tema, é sobre   em Brasília, do suposto Ministério de Direitos Humanos
            essa questão do pertencimento. Eles não se consideram   e Direitos da Mulher! Ela mesma tem uma filha de origem
            brasileiros, eles se consideram tikunas. É uma particulari- indígena Kamayurá adotada sem a permissão dos pais
            dade porque isso indica também que, como toda relação   biológicos no Xingu. Essas questões são muito difíceis.
            de pertencimento, o pertencimento precisa ser recíproco,  A gente procurou não fazer do filme puramente uma
            e se eles não têm o Brasil, o Brasil também não tem eles.  denúncia, mas é muito barra pesada o que a gente viu lá.
            Essa é a questão central ali, a questão do território. E o   E o que a gente tenta manter no filme é o que possibilita
            outro grupo são os evangélicos, com os quais a gente não   essa barra pesada: a conversão.
            tem nenhuma empatia. Se a gente voltar lá, se eles virem
            esse filme, não vão se identificar com ele. É provável que   ***
            um evangélico ou um bolsonarista que veja esse filme   A igreja é a chave para o extrativismo. Ela abre a porta
            tenha um problema com ele. É um filme indigesto. Já é   do paraíso para a entrada do inferno, ela promete o paraí-
            indigesto para nós, de esquerda, para nós que trabalhamos   so divino e ela traz o inferno para dentro do paraíso, que
            com cultura. Um filme difícil de ver. Não estou falando só   é aquilo lá, que está em estado puro, em estado de vida!
            da cena do sacrifício do animal, eu estou falando da dor  O que a gente burramente chama de estado primitivo. É
            que nós todos temos de ser cúmplices dessa situação de   um total descontrole, um total equívoco. Uma situação
            eterna colonização. A descolonização começou no dia   de equívoco e que beira a loucura. E esse é o ponto do
            seguinte da colonização porque ela vai aparecer como   nosso trabalho: tentar apontar para esse equívoco e
            um ato direto de arrependimento da colonização, que é   tratá-lo como tal. Enfim, esse trabalho trata de coisas
            um ato de barbárie.                             que todo mundo vem tratando, mas a gente procurou
                                                            ir ao que a gente acha que é ponto central ali, que é a
              ***                                           transformação do pajé em pastor, a transformação de
               Então, como a gente se relaciona com isso? Da mes- pessoas que vivem na floresta em vilarejo e o processo
            ma forma que todo mundo que está assistindo o vídeo:   de evangelização dessas pessoas. Achamos que essa
            a gente tem empatia, tem dor e tem asco dessa relação   é realmente a porta de entrada para o extrativismo,
            dos missionários. Tem vários dos depoimentos que não   que acontece de forma ilegal e galopante na região, a
            entraram nesse filme por causa de tamanho e da funcio- última da Amazônia, que ainda pode ser defendida.
            nalidade do filme. Muita coisa ficou de fora, mas a gente
            tem depoimentos dos missionários nos quais eles falam   * Imagens do Filme:
            sobre essa obsessão. E é mesmo uma obsessão acima   O Avesso do Céu [The reverse of Heaven], da dupla Dias &
            de tudo, mais do que vontade de ajudar ou mais do que   Riedweg está em exibição na Galeria Vermelho em São Paulo

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