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GUERRA CULTURAL RELIGIÃO
AS MILÍCIAS DA FÉ, UMA
ESTRATÉGIA DE PODER
& PRECONCEITO
O que há em comum entre a ‘Bíblia’ de Donald Trump,
o narcopentecostalismo do Complexo do Alemão,
a tiazinha que usa bandeira de Israel nas costas em
atos da extrema direita e a recusa de Claudia Leitte
em cantar a tradição afro que a enriqueceu?
por jotabê medeiros
a onipresença de bandeiras do estado de israel escravizadas que se rebelassem contra seus algozes. Em
em uma manifestação recente da extrema-direita na Ave- 1749, o reverendo Thomas Bacon, um pastor anglicano
nida Paulista, em São Paulo, surgiu como a confirmação de Maryland, celebrou um sermão no qual dizia que os
de um fenômeno em expansão: a confusão teológica e escravizados deveriam glorificar seus mestres brancos
o charlatanismo bíblico como estratégias de combate como se fossem “Superintendentes de Deus”.
ideológico e político. Naquela ocasião, duas mulheres No Brasil, a ressonância dessas estratégias já se faz
com bandeiras de Israel nas costas, abordadas pelos ver desde o avanço da Bancada da Bíblia no Congresso
repórteres, responderam da seguinte forma à questão “Por (já com duas centenas de congressistas) até o territó-
que vocês estão com Israel?”: “Porque são cristãos como rio da cultura de massas. Chamou atenção o recente
nós”. Na verdade, os cristãos representam apenas 1,9% da embate entre as cantoras Ivete Sangalo e a evangélica
população israelense, sendo que os judeus representam Baby do Brasil durante o Carnaval de Salvador, o famoso
cerca de 83% do povo de Israel. Cristo não é reconhecido episódio do “macetar o apocalipse”. E, mais adiante, o
como o Messias por Israel. Ou seja: Israel não é cristão. embate prosseguiu com a cantora evangélica Claudia
A escalada dessa esquizofrenia que cresce misturando Leitte que, também sob argumentos de zelo religioso,
deliberadamente credos e crenças híbridas, que se escora mudou ao vivo uma letra de música (também no Car-
na demonização do outro, no expurgo e na censura para naval) para promover um “expurgo” de um ícone dos
mover perseguições de fundo político, cultural, social e cultos afro. Na música “Caranguejo”, que tem 20 anos
antropológico se dissemina com assombrosa velocidade de existência, Claudia – que enriqueceu cantando a
pelo País e pelo mundo. Não é absolutamente coincidência tradição afro na Bahia – mudou um trecho da letra e
que, há alguns dias, o ex-presidente norte-americano substituiu Iemanjá por “Yeshua”, nome de Jesus em
Donald Trump tenha lançado estrepitosamente a sua hebraico. E o veto ao uso do Estádio do Maracanã, no
própria versão da Bíblia, apelidada de Deus Abençoe Rio de Janeiro, para a turnê de Caetano Veloso e Maria
os usa, nos Estados Unidos. Em plena campanha pela Bethânia, revelado recentemente, opõe duplamente
reeleição, Trump aposta nessa reiteração gospel da liberdade de expressão e política: o boicote partiu do
supremacia white power para seguir semeando o terror governador Cláudio Castro, ex-cantor gospel e evan-
na política internacional. Ato contínuo, o setor de estudos gélico que se fez na política sob o guarda-chuvas da fé.
teológicos de Harvard publicou uma alentada análise da O patíbulo móvel em que se assenta a intolerância
estratégia do “Evangelho” de Trump, lembrando que, religiosa e cultural, ao longo da História do Brasil (e do
num passado recente, pastores protestantes utiliza- mundo), promoveu no passado (e segue promovendo)
ram a Bíblia como forma de ameaçar pessoas negras o etnocídio, tornando-se base do extermínio de povos
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