Page 58 - artebrasileiros-66
P. 58

GUERRA CULTURAL RELIGIÃO







            AS MILÍCIAS DA FÉ, UMA


            ESTRATÉGIA DE PODER


            & PRECONCEITO




                                               O que há em comum entre a ‘Bíblia’ de Donald Trump,
                                               o narcopentecostalismo do Complexo do Alemão,
                                               a tiazinha que usa bandeira de Israel nas costas em
                                               atos da extrema direita e a recusa de Claudia Leitte
                                               em cantar a tradição afro que a enriqueceu?

                                               por jotabê medeiros



            a onipresença de bandeiras do estado de israel  escravizadas que se rebelassem contra seus algozes. Em
            em uma manifestação recente da extrema-direita na Ave- 1749, o reverendo Thomas Bacon, um pastor anglicano
            nida Paulista, em São Paulo, surgiu como a confirmação   de Maryland, celebrou um sermão no qual dizia que os
            de um fenômeno em expansão: a confusão teológica e   escravizados deveriam glorificar seus mestres brancos
            o charlatanismo bíblico como estratégias de combate   como se fossem “Superintendentes de Deus”.
            ideológico e político. Naquela ocasião, duas mulheres   No Brasil, a ressonância dessas estratégias já se faz
            com bandeiras de Israel nas costas, abordadas pelos   ver desde o avanço da Bancada da Bíblia no Congresso
            repórteres, responderam da seguinte forma à questão “Por  (já com duas centenas de congressistas) até o territó-
            que vocês estão com Israel?”: “Porque são cristãos como   rio da cultura de massas. Chamou atenção o recente
            nós”. Na verdade, os cristãos representam apenas 1,9% da   embate entre as cantoras Ivete Sangalo e a evangélica
            população israelense, sendo que os judeus representam   Baby do Brasil durante o Carnaval de Salvador, o famoso
            cerca de 83% do povo de Israel. Cristo não é reconhecido   episódio do “macetar o apocalipse”. E, mais adiante, o
            como o Messias por Israel. Ou seja: Israel não é cristão.   embate prosseguiu com a cantora evangélica Claudia
              A escalada dessa esquizofrenia que cresce misturando   Leitte que, também sob argumentos de zelo religioso,
            deliberadamente credos e crenças híbridas, que se escora   mudou ao vivo uma letra de música (também no Car-
            na demonização do outro, no expurgo e na censura para   naval) para promover um “expurgo” de um ícone dos
            mover perseguições de fundo político, cultural, social e   cultos afro. Na música “Caranguejo”, que tem 20 anos
            antropológico se dissemina com assombrosa velocidade   de existência, Claudia – que enriqueceu cantando a
            pelo País e pelo mundo. Não é absolutamente coincidência   tradição afro na Bahia – mudou um trecho da letra e
            que, há alguns dias, o ex-presidente norte-americano   substituiu Iemanjá por “Yeshua”, nome de Jesus em
            Donald Trump tenha lançado estrepitosamente a sua   hebraico. E o veto ao uso do Estádio do Maracanã, no
            própria versão da Bíblia, apelidada de Deus Abençoe   Rio de Janeiro, para a turnê de Caetano Veloso e Maria
            os usa, nos Estados Unidos. Em plena campanha pela   Bethânia, revelado recentemente, opõe duplamente
            reeleição, Trump aposta nessa reiteração gospel da   liberdade de expressão e política: o boicote partiu do
            supremacia white power para seguir semeando o terror  governador Cláudio Castro, ex-cantor gospel e evan-
            na política internacional. Ato contínuo, o setor de estudos   gélico que se fez na política sob o guarda-chuvas da fé.
            teológicos de Harvard publicou uma alentada análise da   O patíbulo móvel em que se assenta a intolerância
            estratégia do “Evangelho” de Trump, lembrando que,  religiosa e cultural, ao longo da História do Brasil (e do
            num passado recente, pastores protestantes utiliza- mundo), promoveu no passado (e segue promovendo)
            ram a Bíblia como forma de ameaçar pessoas negras   o etnocídio, tornando-se base do extermínio de povos

            58
   53   54   55   56   57   58   59   60   61   62   63