Page 80 - ARTE!Brasileiros #58
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EXPOSIÇÕES SÃO PAULO
“por que retornei à amazônia?”, indaga Sebas- a vista à distância. O próprio céu é emoldurado por ár-
tião Salgado na apresentação de seu recente trabalho vores gigantes. Quando os membros das comunidades
nomeado após “a floresta que estende-se ao infinito”. indígenas vão caçar ou pescar, eles desaparecem com-
Agora, oito anos do início da sua empreitada na Ama- pletamente em espaço de segundos. Portanto, sempre
zônia, o fotógrafo consegue responder que voltou não que os acompanhava, tinha o hábito de ficar colado aos
pelo lado sombrio - os incêndios, o desmatamento, o seus calcanhares, não os perdendo de vista nem um
envenenamento dos rios pelos garimpeiros, o tráfico de segundo por medo de me perder”.
drogas -, mas para saborear a beleza incomparável da Dentro das aldeias, um estúdio móvel também era
Amazônia e renovar seu vínculo com os povos nativos improvisado e chamava aqueles que se sentiam à von-
que cuidam da floresta com tanta diligência. tade para ter seu retrato tirado. Apesar da artificialidade,
“Quando eu comecei a fotografar a Amazônia, ela a lisura da tela - em oposição à textura da vegetação
não estava de nenhuma forma em evidência. Eu achei - forneceu um campo mais apropriado para que objetos
que eu tinha que fazer as fotografias. Eu senti o bio- e costumes tradicionais viessem à tona, sem distrações.
ma ameaçado e vi uma diferença muito grande entre a Enquanto isso, sua jornada pelo Rio Negro e através do
Amazônia dos anos 1980 e depois a Amazônia do início Parque Nacional de Anavilhanas o levou à foz do rio Jaú,
dos anos 2000”. Sem um projeto específico em mente navegando em velocidade reduzida, a apenas alguns
(fosse a publicação ou a mostra itinerária que agora se metros das árvores. “Pegamos chuvas tão densas que
encontra no Sesc Pompeia, em São Paulo), a urgência de fizeram parar o barco por total falta de visibilidade. As
Salgado o levou a percorrer a floresta do estado do Pará formações de nuvens eram tão bonitas, tão volumosas e
ao Amazonas, do Acre a Rondônia, Maranhão ao Mato tão dramáticas que nos faziam sentir o tamanho da nossa
Grosso. As abrangentes movimentações eram sempre insignificância”. Piranhas e jiboias gigantes impediram
antevistas pela fUNAI - Fundação Nacional do Índio, a que ele mergulhasse no Rio Negro. Mesmo assim, Sal-
responsável por proteger os direitos dos povos indíge- gado conseguiu banhar-se na umidade dos rios aéreos
nas de todo o território nacional. “Antes de finalizar os - torrentes de vapor que se formam sobre a floresta -,
planos de visita a um grupo específico, eles consultavam fotografá-los do seu interior. Do alto, o fotógrafo teve
a comunidade para saber se estaria disposta a receber dimensão dos maiores massivos de montanha do Brasil:
alguém de fora. No meu caso, um fotógrafo”, conta. “Por “A Amazônia com a qual estávamos acostumados era um
intermédio da fUNAI, contratei um tradutor para cada território plano, com rios que a serpenteavam; uma parte
viagem, geralmente alguém da etnia em questão, que da Amazônia realmente é uma grande planície, mas uma
havia passado um tempo fora e, por isso, aprendido o grande parte é uma quantidade de montanhas incrível”.
português”. Prévio à entrada na selva, Salgado e sua Tais paisagens aéreas, raras em documentação fotográ-
equipe se abasteciam de comida, já que parte do acordo fica, foram exploradas com a ajuda do exército brasileiro,
para estar lá era não depender da comunidade para se que permitiu a imersão de Salgado em suas missões.
alimentar. Outros ítens essenciais também viajavam Segundo ele, as distâncias são tamanhas que somente
com eles: soro antiofídico, painéis solares, solução para os militares, que cobrem todo o país e que têm dezenas
purificar a água, iPod. Para estarem justos e contratados de bases disseminadas, podem chegar a esses locais.
era necessário também completar “quarentena” de dez “O exército brasileiro tem uma característica muito
dias quando chegassem ao designado posto da fUNAI, interessante na Amazônia: a grande maioria do corpo,
com o intuito de evitar a transmissão de doenças, vírus que são os soldados, a base do exército, é indígena”,
e bactérias de fora aos povos indígenas. conta Salgado. “Eles conhecem a floresta, eles vêm da
Desde a adoção da Constituição brasileira de 1988, floresta. E qual é a função de um exército? É defender a
26% da Amazônia – equivalente a 13% de todo o território soberania nacional. E a Amazônia, o bioma amazônico,
brasileiro – foram reservados exclusivamente às comu- representa quase 50% [49.29%] do território brasileiro”. FOTO: SEBASTIÃO SALGADO. TODOS OS DIREITOS RESERVADOS AO ARTISTA
nidades indígenas, lembra o fotógrafo. Nessa imensidão, Para Salgado, o nível de banditismo na Amazônia atual é
Salgado registrou eventos naturais majestosos pelo ar, preocupante e faz imprescindível tal defesa. “O governo
a exemplo dos rios aéreos e montanhas amazônicas, e atual, que é um governo aparentado das milícias, facili-
água, através de semanas navegando o Rio Negro. De tou e levou a violência para a Amazônia de uma maneira
volta à terra acompanhou tribos na caça, pesca e nos incrível”. Ele alerta, no entanto, para as diferenças entre
rituais em que sua presença era permitida. “Na maioria das os jovens oficiais que estão na floresta e os chamados
aldeias, a densidade do matagal bloqueia por completo militares da reserva. “O que é uma contradição, você
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